Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1442/21.3T8ENT-B.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INJUNÇÃO
FIADOR
TÍTULO EXECUTIVO
LEGITIMIDADE PASSIVA
INDEFERIMENTO LIMINAR
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
FALTA DE TÍTULO
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Estando em causa o cumprimento de uma obrigação pecuniária pelo fiador de uma transação comercial celebrada entre empresas, com valor não superior a 15.000,00€, não se verifica a utilização indevida do procedimento de injunção.
II – A mera afirmação da qualidade de executado de um determinado sujeito não basta para afirmar a legitimidade passiva em processo executivo, sendo necessário que a sua qualidade de devedor se surpreenda do exame do próprio título.
III – Não resultando do título executivo a qualidade de devedor do requerido, a aposição neste da fórmula executiva restringe-se à sociedade requerida, sendo o executado fiador parte ilegítima na execução.
IV – Existindo divergência entre a execução instaurada contra o executado e o que consta no título executivo, em cujo segmento certificativo da obrigação o mesmo não figura, uma vez que o pedido no processo de injunção não foi deduzido contra esse executado, nessa parte, a execução não encontra apoio no título, pelo que, a exequente não dispõe de título executivo contra o executado fiador.
V – A falta de título executivo contra este executado não é suprível, é manifesta, e seria motivo de indeferimento liminar parcial do requerimento executivo, nos termos previstos no artigo 726.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, do CPC.
VI – Consequentemente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, o juiz podia conhecer oficiosamente do vício, e determinar a extinção parcial da execução, ao abrigo do disposto no artigo 734.º do CPC.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1442/21.3T8ENT-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – Relatório
1. CZM IMÓVEIS UNIPESSOAL LDA, notificada da sentença, datada de 23.06.2022, que julgou extinta contra o executado AA a execução que contra este e a sociedade comercial TERNURAS URBANAS, S.A., havia instaurado, e não se conformando com a mesma, apelou, finalizando a sua minuta recursória com as seguintes conclusões:
«1) O presente Recurso é interposto quanto à matéria de facto e de direito, na sequência da Douta Sentença, datada de 23/06/2022, proferida nos Autos de Processo Comum, que decidiu declarar extinta a execução contra um dos executados, motivando a decisão na alegação de que a exequente não está munida de título executivo válido contra o Executado “…O mesmo é dizer que a aqui exequente utilizou indevidamente o procedimento de injunção contra o executado pessoa singular, pois não lhe exigiu o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de qualquer transacção comercial celebrada com o mesmo.
Como assim, a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular, o que, nessa parte, determina a extinção da execução nos termos das disposições conjugadas dos artigos 551.º, n.º 3, 726.º, n.º 2 alínea a), e 734.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Na defluência de todo o acervo fáctico jurídico vindo de enunciar, decido declarar extinta a presente execução movida pela sociedade “CZM Imóveis Unipessoal, Lda.” contra AA…”
2) Nos termos do disposto no Artigo 734º do C.P.C.: “O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.”
3) O Meritíssimo Juiz refere pronunciar-se da referida excepção peremptória, oficiosamente, porque “a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular, o que, nessa parte, determina a extinção da execução nos termos das disposições conjugadas dos artigos 551.º, n.º 3, 726.º, n.º 2 alínea a), e 734.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.”
4) Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, a douta Sentença não faz uma correcta análise dos factos ao considerar a não existência de título executivo nos termos da aliena a) do n.º 2 do Artigo 726.º do CPC.
5) A Recorrente intentou um Requerimento de Injunção, ao qual foi atribuído o n.º 26813/21.1YIPRT, o qual correu termos no Balcão Nacional de Injunções onde requereu a condenação dos Executados no pagamento das quantias decorrentes de uma transacção comercial titulada pela emissão da factura n.º 31A/2, no montante de 6.150,00 €;
6) Devidamente notificados, os Executados, ora Recorridos, do procedimento de injunção, não procederam a mesma dentro do prazo que lhe assistia ao pagamento dos valores em dívida, assim como não deduziram oposição à Injunção.
Em virtude da falta de oposição à injunção, foi aposta força executiva à mesma, em cumprimento do disposto no artigo 14.º do Decreto-lei 269/98, de 1 de Setembro;
7) Mantendo-se em dívida os valores relativos à factura acima identificada, foi intentada a acção executiva objecto dos autos recorridos, com base no referido título executivo – requerimento de injunção com fórmula executória, o qual é válido e foi obtido em cumprimento dos dispositivos e formalidades legais, nomeadamente nos termos constantes do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado pelo referido Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro;
8) Os serviços foram contratados pelo Executado AA, legal representante da Sociedade Executada;
9) A ora Recorrente intentou o requerimento de injunção que deu origem ao título executivo objecto do requerimento executivo, ora rejeitado, contra a ora Recorrida, na qualidade beneficiária e pessoa que contratou os serviços da mediação imobiliária, que os escolheu e que assumiu perante aquela sociedade todos os encargos e valores devidos, sendo assim que vem configurada a relação material controvertida.
10) Não existindo qualquer fundamento legal, salvo o devido e merecido respeito pelo Tribunal a Quo, para considerar, como considerou, a falta de título com base na ilegitimidade passiva da demandada, que não existe, pelo que a douta Sentença recorrida ilegal e indevidamente rejeitou o requerimento executivo, e em manifesta violação dos artigos 30.º e 550.º, n.º 2, alínea b), do CPC e dos artigos 14.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro;
11) É válido o título executivo que serviu base à execução em questão – injunção com fórmula executória, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 550.º, n.º 2, alínea b), do CPC e nos artigos 14.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro, dado que foram cumpridos e respeitados todos os requisitos e formalidades legais para o efeito, não existindo quaisquer vícios no plano dos pressupostos processuais, no processo declarativo, assim como não se verifica qualquer ilegitimidade passiva da demandada e muito menos a falta de título.
12) Um dos fundamentos de indeferimento liminar previstos no artigo 726.º, n.º 2, do CPC é, justamente, a falta ou insuficiência (insupríveis) do título executivo, pelo que essa falta/insuficiência de título executivo pode também vir a ser conhecida, pelo juiz, numa fase mais tardia do processo, isto é, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, nos termos do Artigo 734.º do Código de Processo Civil.
13) No caso resulta dos Autos que não houve oposição à execução nem à penhora por partes do Executados e que o juiz a quo conheceu oficiosamente, uma suposta falta de título executivo.
14) O título executivo constitui a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da acção executiva» (artigo 10.º, n.º 5, do CPC), ou seja, o tipo de acção executiva, o seu objecto e a legitimidade activa e passiva para a execução.
15) «Portanto, o tribunal da execução não certifica o direito exequendo, antes o impõe, porque o título executivo já o certifica. Efectivamente, o juízo de procedência executiva é instrumental do juízo de procedência declarativa, efectivada em sentença ou presumida em título diverso de sentença. Essa instrumentalidade é assegurada pelo título executivo por meio da sua ligação à causa de pedir», conforme escreve o Professor Rui Pinto, no seu manual A acção Executiva, 2019.
16) De acordo com o disposto no artigo 703.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, à execução podem servir de base os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
17) É justamente o caso do título executivo formado no âmbito do processo de injunção regulado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 01/09 e pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio.
18) Como se salienta no Ac. da RL de 01.06.2017, processo n.º 17633/13.8YYLSB-A.L2-2, relatora Ondina Carmo Alves, que pode ser consultado em www.dgsi.pt. «tal silêncio do requerido, subsequente à sua notificação, faz presumir a existência da dívida, cujo pagamento lhe é exigido, sendo certo que essa presunção é passível de ser ilidida, através da oposição que venha a ser feita à execução».
19) Regressando ao caso sub judice, o exequente/apelante apresentou à execução um requerimento de injunção, no qual se mostra declarado, pelo secretário de justiça, que «este documento tem força executiva».
20) Resulta dos Autos que não houve oposição à execução.
21) O juiz a quo entendeu que se verifica falta de título executivo e que essa falta de título executivo foi determinada pela ilegitimidade processual passiva da requerida do processo de injunção.
22) Ora conforme foi decidido pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão 530/17.5T8SLV.E1, que teve como Relatora a Sr. Dra. Juíza Desembargadora Cristina Dá Mesquita:
“… A ilegitimidade processual passiva no processo onde se formou o título executivo não é suscetível de gerar a falta de título executivo nem a inexistência da obrigação exequenda porquanto a legitimidade processual, pressuposto processual relativo às partes, visa assegurar que as partes processuais são os sujeitos a que se destinam os efeitos materiais da sentença, sendo consideradas como tal os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor. Consequentemente, a legitimidade processual apenas pode ser negada pelo tribunal se o autor tiver convocado para o processo pessoas que não são as que aquele enuncia como integrando a relação material; fora desse particular contexto, a legitimidade processual manter-se-á até à decisão final mesmo que na decisão final se venha a afirmar a sua ilegitimidade material….”
23) Salvo opinião diversa, com a qual jamais a Recorrente se conformará, decidiu mal o Tribunal Recorrido, ao decidir como decidiu.
24) Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso de Apelação ser considerado procedente por provado e, por sua vez, ser revogada a douta Sentença ora recorrida e ser considerado válido o título executivo objecto dos autos executivos e legítimo o demandado AA, em cumprimento dos dispositivos legais, ordenando ainda o imediato prosseguimento dos ulteriores termos dos autos executivos recorridos, com as devidas e legais consequências».

2. O executado não apresentou contra-alegações.

3. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, a única questão colocada no recurso é a de saber se a exequente dispõe ou não de título executivo contra o executado, pessoa singular.
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III – Fundamentos
Na sentença recorrida foram tidas em consideração as seguintes incidências processuais relevantes:
1). «(…) por requerimento datado de 30-05-2021, a sociedade “CZM Imóveis Unipessoal, Lda.” instaurou a presente execução para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo comum sumário, contra “Ternuras Urbanas, S.A.” e AA, oferecendo como título executivo um requerimento de injunção ao qual, em 27-05-2021, havia sido aposta força executiva.
Nesse requerimento de injunção, apresentado no Balcão Nacional de Injunções em 23-03-2021, a aqui exequente, depois de indicar estar em causa obrigação emergente de transacção comercial (DL n.º 62/2013, de 10/05) e não um contrato com consumidor, alegou o seguinte:
«1º - A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica também à mediação imobiliária, sendo detentora da licença AMI n.º 17299.
2º - A 1ª Requerida é uma sociedade comercial que se dedica à “Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Construção civil. Arrendamento de bens imóveis como actividade acessória”.
3º - No dia 12/06/2019, a pedido da 1ª Requerida foi outorgado entre esta e a Requerente um contrato de mediação imobiliária tendo por objecto a mediação imobiliária do prédio urbano composto por casa de habitação e logradouro, destinado a habitação, sito em vale de Estacas, Rua A, n.º 9, união de freguesias da Cidade de Santarém, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém, sob o n.º ...60-Santarém.
4º - Após a prestação de serviços, foram emitidas a factura n.º 31A/2 datada de 27/08/2020, e vencimento no mesmo dia, no valor de 6.150,00 € (seis mil cento e cinquenta Euros);
5º - As referidas Factura foi entregue à 1ª Requerida na pessoa do 2º Requerido que não as devolveu e as integrou na sua contabilidade.
6º - Os serviços foram prestados à 1ª Requerida sem que tivesse existido qualquer reclamação.
7º - Pelo que, a Requerida permanece em dívida para com a Requerente no montante de 6.150,00 € (seis mil cento e cinquenta Euros), apesar das diversas interpelações da Requerente para o seu pagamento.
8º - Acresce que, o 2º Requerido, intitulando-se representante da Requerida, sempre reconheceu o montante em dívida e garantiu à Requerente que o pagaria com o seu património pessoal, caso a 1ª Requerida assim não o fizesse.
9º - Ao valor em dívida, acrescem ainda juros vencidos, às taxas de juro comercial sucessivamente vigentes, calculados nos termos do §5 do artigo 102º do Código Comercial, do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio e da Portaria n.º 277/2013, de 26 de Agosto, desde a respectiva data de vencimento até ao presente dia, no valor total de 245,46 € (duzentos e quarenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos).
10º - Peticiona-se, ainda, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, o valor de 615,00 € (seiscentos e quinze Euros), a título de indemnização pelos custos de cobrança de dívida, consubstanciados na provisão inicial paga ao seu Advogado e comprovados através da Factura n.º FT 2020/171, emitida e paga em 29/10/2020, pois trata-se de uma transacção comercial.
11º - Ao valor em dívida, acresce ainda o montante de 102,00 € (cento e dois euros) despendido pela Requerente com a presente Injunção a título de taxa de justiça.
12º - Pelo exposto, é o Requerido devedora da Requerente na quantia de 7.112,46 € (sete mil cento e doze Euros e quarenta e seis cêntimos), a que acrescerão juros vincendos até efectivo e integral pagamento, bem como custas e procuradoria condigna.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá a Requerida ser condenada a pagar à Requerente a quantia total 7.112,46 € (sete mil cento e doze Euros e quarenta e seis cêntimos), a que acrescerão juros vincendos até efectivo e integral pagamento, bem como custas e procuradoria condigna, com as devidas consequências legais.» (sic)
Com relevância, resulta ainda do processo executivo, que:
2). No requerimento de injunção, apresentado como título executivo, antes da acima transcrita exposição dos factos que fundamentam a pretensão, consta como causa “contrato de: fornecimento de bens ou serviços”, e “data do contrato: 12-06-2019”.
3). No requerimento executivo, em que são identificados como exequente, “Czm Imóveis Unipessoal, Ld.ª”, e, como Executados, “Ternuras Urbanas, SA” e AA, consta a seguinte alegação abaixo de “Factos” (transcrição):
«1º - Foi apresentado um Requerimento de Injunção, ao qual foi atribuído o n.º 26813/21.1YIPRT e ao qual foi conferida força executiva em 27/05/2021, conforme consta do documento em anexo.
2º - Conforme consta do título executivo, foi a Executada notificado para proceder ao pagamento da quantia 6.150,00 € (seis mil cento e cinquenta Euros), acrescida dos respectivos juros de mora, calculados às respectivas taxas de juro comercial, vencidos e vincendos, que até ao dia 23/03/2021 ascendiam ao montante de 245,46 € (duzentos e quarenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos), bem como das despesas já suportadas, nomeadamente a quantia de 102,00 € (cento e dois euros) a título de taxa de justiça e o montante 615,00 € (seiscentos e quinze Euros) pelos custos de cobrança da dívida (nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio), perfazendo o total de 7.112,46 € (sete mil cento e doze Euros e quarenta e seis cêntimos).
3º - Até à presente data, apesar das diversas interpelações da Exequente para o pagamento da dívida, o certo é que a Executada não procedeu à entrega de qualquer montante por conta do valor em débito.
4º - Deve, assim, a Executada à Exequente a quantia de 7.112,46 € (sete mil cento e doze Euros e quarenta e seis cêntimos), acrescida de juros vencidos desde 23/03/2021 até hoje, bem como dos juros vincendos e dos juros compulsórios à taxa legal contabilizados desde a data da aposição da fórmula executória e das despesas decorrentes da presente execução, tudo até efectivo e integral pagamento, com custas e procuradoria condigna.
5º - A obrigação é certa, líquida e exigível».
4). Em 10.09.2021, foram juntos pelo Senhor Agente de Execução os autos de penhora de um imóvel e de um depósito bancário.
5). Nesse mesmo dia consta nos autos a citação expedida para ambos os executados, com o seguinte teor:
«Nos termos do disposto nos artigos 856º do Código Processo Civil (CPC), fica pela presente citado para os termos do presente processo executivo, tendo o prazo de 20 (vinte dias) para:
a. Pagar a quantia em dívida, juros e custas; ou querendo,
b. Deduzir oposição à execução através de embargos de executado; e/ou
c. Deduzir oposição à penhora»(…).
6). Os executados não deduziram qualquer oposição.
7). O imóvel penhorado nos autos não foi transmitido, nem o montante do depósito bancário foi entregue à exequente.
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III.2. – O mérito do recurso
Defende a apelante, em apertada síntese, que não tendo havido oposição por parte dos executados, nem à injunção, nem à presente execução, nem à penhora nos autos realizada, o tribunal a quo não podia ter conhecido oficiosamente de uma suposta falta de título executivo, determinada pela ilegitimidade processual passiva do requerido no processo de injunção.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 734.º do CPC, “O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento.”
Por seu turno, decorre do preceituado no artigo 726.º, n.º 2, do CPC, na parte que importa considerar no caso em presença, que o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando: a) seja manifesta a falta ou insuficiência do título; acrescentando o n.º 3 que é admitido o indeferimento liminar parcial, designadamente quanto à parte do pedido que exceda os limites constantes do título executivo ou aos sujeitos que careçam de legitimidade para figurar como exequentes ou executados.
Como é sabido, desde o DL n.º 38/2003, que o conhecimento judicial oficioso das questões que antes podiam ter dado lugar a um despacho de indeferimento liminar, parcial ou total, do requerimento executivo, ou a um despacho de aperfeiçoamento, passou a poder ter lugar até ao primeiro ato de transmissão de bens penhorados. Dito de outro modo, no âmbito do processo executivo, só a partir da ocorrência da primeira transmissão de bens é que preclude a possibilidade, rectius o dever, de o juiz verificar a ocorrência de alguma das situações que constituem fundamento de indeferimento liminar, nos termos previstos no artigo 726.º do CPC, proferindo, se for o caso, despacho de extinção da instância executiva e de levantamento da penhora que entretanto haja sido efetuada.[4]
In casu, o despacho recorrido foi tempestivamente proferido, uma vez que o imóvel penhorado nos autos não foi transmitido, nem o montante do depósito bancário foi entregue à exequente.
Interpretou a Apelante o despacho recorrido, no sentido de que a consideração pelo tribunal a quo de que a exequente não dispunha de título executivo válido contra o executado pessoa singular, foi determinada pela ilegitimidade processual passiva do requerido no processo de injunção.
Não cremos ter sido esse o concreto (ou, pelo menos, o único) fundamento que esteve na mente do julgador.
Com efeito, atento o teor do despacho recorrido, julgamos que a decisão recorrida teve em vista a falta de título executivo por indevida utilização do procedimento de injunção e consequente invalidade do título executivo contra o referido executado.
Apreciando o requerimento de injunção que constitui o título executivo, entendeu o julgador que a ali requerente, ora Apelante, “no que concerne ao executado AA, alegou tão-somente que o mesmo, «intitulando-se representante da Requerida, sempre reconheceu o montante em dívida e garantiu à Requerente que o pagaria com o seu património pessoal, caso a 1ª Requerida assim não o fizesse». É assim por demais evidente estar ausente do requerimento de injunção em apreço qualquer contrato celebrado com o identificado executado pessoa singular que se inscreva na susodita noção de transacção comercial. O mesmo é dizer que a aqui exequente utilizou indevidamente o procedimento de injunção contra o executado pessoa singular, pois não lhe exigiu o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de qualquer transacção comercial celebrada com o mesmo.
Como assim, a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular, o que, nessa parte, determina a extinção da execução nos termos das disposições conjugadas dos artigos 551.º, n.º 3, 726.º, n.º 2, alínea a), e 734.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil”.
Apreciando.
De acordo com a noção vertida no artigo 7.º do DL n.º 269/98, de 1 de setembro, na redação atualmente vigente[5], considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro.
Assim, o artigo 2.º define o seu âmbito de aplicação, pela positiva, no seu n.º 1, onde estabelece que “o presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais”, e pela negativa, prevendo o respetivo n.º 2 que “são excluídos do âmbito de aplicação do presente diploma: a) Os contratos celebrados com consumidores; b) Os juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais; c) Os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros”.
Não estando a situação em presença excluída do âmbito de aplicação da providência de injunção, por via da sua integração em qualquer um dos casos previstos nas diversas alíneas do referido n.º 2, mas relembrando o julgador que o aqui exequente indicou expressamente estar em causa obrigação emergente de transação comercial, atenta a menção ao DL 62/2013, de 10.05, concluiu que, não estando em causa na injunção em apreço qualquer contrato celebrado com o executado pessoa singular que se inscreva na noção de transação comercial ínsita no artigo 3.º, alínea b) deste mencionado diploma, a aqui exequente utilizou indevidamente o procedimento de injunção contra o executado.
Sendo certo que o montante peticionado nos autos tem como fundamento o incumprimento do pagamento do valor devido pela prestação de serviços decorrente do contrato celebrado no dia 12.06.2019, entre a 1.ª Requerida e a Requerente, tendo por objeto a mediação imobiliária de um prédio urbano, acordo que se integra de pleno no que deve entender-se por transação comercial à luz do referido artigo 3.º, alínea b), configurando uma transação entre empresas destinada à prestação de serviços contra remuneração, é também evidente que, tendo o requerido, pessoa singular, outorgado esse acordo em representação da sociedade comercial também requerida, o mesmo não é pessoalmente parte nesse contrato.
Acontece que, se bem virmos o teor do requerimento de injunção, não foi nessa qualidade de outorgante do contrato de mediação em representação da sociedade requerida que o mesmo foi demandado na qualidade de requerido – que obviamente não podia ser –, mas sim, porque “garantiu à Requerente que pagaria com o seu património pessoal, caso a 1ª Requerida assim não o fizesse”.
Portanto, é nesta qualidade de garante de uma dívida proveniente de transação comercial que temos de apreciar se o procedimento de injunção podia ou não ser usado contra o fiador garante.
In casu, a resposta não pode deixar de ser positiva.
Com efeito, a singela alegação da requerente do procedimento de injunção relativamente ao requerido, é juridicamente enquadrável num contrato de fiança, garantia especial e pessoal das obrigações, cuja finalidade é precisamente a de assegurar o cumprimento pelo terceiro garante, da obrigação assumida pelo devedor principal perante o credor, se este a não satisfizer, ou seja, “o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor” (artigo 627.º, n.º 1, do CC).
E, porque a obrigação do devedor e a do fiador são autónomas, mas têm o mesmo objeto, isto é, o mesmo conteúdo, na medida em que o fiador se obriga a cumprir a obrigação do devedor na sua plenitude, como resulta do artigo 634.º do CC, considerou-se até no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.06.2021[6], que “sendo os créditos em discussão de natureza comercial e oriundos das relações comerciais entre a autora e 1ª ré, e garantidos pelas fiadoras, 2ª, 3ª e 4ª rés, na sua plenitude, que asseguram o seu cumprimento, é de aplicar o processo previsto no DL. 62/2013 de 10/05, mais concretamente tendo em conta o disposto no artigo 2º n.º 1 e artigo 3º al. a) e b)”.
Porém, ainda que assim não se entenda – designadamente em face do teor literal dos preceitos e por se tratar de transposição da diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que introduziu medidas adicionais para dissuadir os atrasos de pagamentos nas transações comerciais –, a verdade é que, na situação em presença, o valor alegadamente “afiançado” pelo requerido é inferior a 15.000,00€.
Consequentemente, atenta a formulação alternativa do acima mencionado artigo 7.º, considerando-se ainda “injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular”, ou seja, de obrigações pecuniárias de valor não superior a 15.000,00€, temos de concluir que estando em causa o cumprimento de uma obrigação pecuniária pelo fiador, não se verifica a declarada utilização indevida do procedimento de injunção[7].
Não obstante, tal não significa que na concreta situação em apreciação a apelação deva proceder.
Com efeito, pese embora por fundamentos diversos dos convocados pelo julgador, está certa a decisão recorrida quando refere que “a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular”.
E a apelante tocou a razão (rectius, uma das razões) pela qual assim devemos concluir, quando se referiu à questão da legitimidade do executado.
Vejamos.
Conforme decorre do artigo 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CPC, dizem-se «ações executivas» aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida, tendo na sua base a existência de um título executivo pelo qual se determinam o seu fim e os respetivos limites subjetivos e objetivos (artigo 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CPC), concretizando o artigo 53.º, n.º 1, do CPC – que rege sobre a legitimidade de exequente e executado –, que a execução tem que ser promovida pela pessoa que figure no título como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor, ou por quem suceda na posição ativa e passiva, nos termos prevenidos no artigo 54.º do CPC, que no caso não releva considerar.
Como refere LEBRE DE FREITAS[8], “a legitimidade das partes determina-se, na ação executiva, com muito maior simplicidade do que na ação declarativa.
Enquanto nesta há que indagar da posição das partes em face da pretensão, o que implica averiguar a titularidade, real ou meramente afirmada pelo autor, da relação ou outra situação jurídica material em que ela se funda, e dá por vezes lugar a dificuldades de distinção perante a questão de mérito, na ação executiva a indagação a fazer resolve-se no confronto entre as partes e o título executivo: têm legitimidade como exequente e executado, quem no título figura, respetivamente, como credor e como devedor (art. 53)”.
Nas palavras de RUI PINTO[9] «o artigo 817.º CC ao definir o direito à execução coativa da prestação fixa ipso facto quem em legitimidade processual ativa e passiva na execução: o “credor”, i.e., aquele que “tem o direito de exigir judicialmente o (…) cumprimento” e o “devedor” titular do “património” responsável pela dívida.
Por outro lado, o mesmo Código Civil, no seu artigo 818º CC determina que o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro à dívida, quando estejam vinculados à garantia do crédito (…). Isto significa que, excecionalmente, no plano da legitimidade passiva pode ser parte passiva quem não é devedor”. (…)
Apela-se, assim, à literalidade do título executivo, seja ele sentença, contrato, título de crédito ou qualquer outro. Num certo sentido, a legitimidade singular executiva apura-se por confronto entre o título executivo e as partes da causa. (…)
Por outro lado, credor e devedor tanto podem ser singulares, como plurais, em conjunção de solidariedade. O devedor tanto pode ser um devedor principal, como um devedor subsidiário, maxime, fiador».
Portanto, a primeira tarefa cometida ao julgador para determinar a legitimidade do executado na ação executiva é a análise do título dado à execução, com vista a determinar o seu âmbito e alcance subjetivo e objetivo.
Com efeito, o título executivo é “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla executio sine titulo”[10]. Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo[11].
Na verdade, os “títulos executivos são os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador”, sendo “constitutivo da relação obrigacional quando a obrigação tem no acto documentado a sua fonte” e “certificativo da obrigação quando, procedendo a constituição da dívida de um outro acto, o título apenas confirma a existência dela”. Concluindo, “o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não)”[12]. Ou, por outras palavras, o título executivo é “o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou o direito que está dentro. Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele”[13].
In casu, o título executivo é a Injunção n.º 26813/21.1YIPRT, na qual foram identificados como Requerente, a ora Apelante, e como Requeridos, a sociedade comercial Ternuras Urbanas, S.A. e AA, que igualmente constam identificados, respetivamente, como Exequente e Executados, na ação executiva.
Porém, se bem atentarmos na exigência legal, a legitimidade da parte passiva na ação executiva não se basta com a identificação de uma pessoa pelo exequente, na qualidade de executado.
Com efeito, decorre expressamente do disposto nos artigos 10.º, n.º 5, e 53.º, n.º 1, do CPC, que é pelo título que se determinam os limites subjetivos da ação executiva, devendo a execução ser instaurada contra a pessoa que naquele tenha a posição de devedor.
Destarte, cabe primeiramente verificar se o executado pessoa singular figura no título executivo na posição de devedor, qualidade que não se lhe atribui pelo simples facto de ali haver menção ao seu nome (já vimos que o nome do executado, pessoa singular, consta na injunção na qualidade de requerido). Efetivamente, para que possa dizer-se que o executado é parte legítima na execução, neste momento de análise liminar e meramente formal do título, importa que do seu exame decorra que a execução foi instaurada contra a pessoa que no título tem a posição de devedor, porque no caso contrário, ou seja, se do título não resultar a sua qualidade de devedor, então teremos de concluir que o executado é parte ilegítima.
Na verdade, pese embora seja entendimento pacífico que a legitimidade em processo executivo se afere através de um critério formal, “o que vale por dizer que uma pessoa pode aparecer no título na posição de credor ou de devedor sem que seja realmente titular de um direito de crédito ou sujeito de uma obrigação”[14], ANSELMO DE CASTRO[15] adverte que “não vale em processo executivo um conceito de legitimidade que se reconduza à simples afirmação da titularidade do direito ou da obrigação, na medida em que esta terá de se apresentar fundada no próprio título”.
Assim, a mera afirmação da qualidade de executado de um determinado sujeito não basta para afirmar a legitimidade passiva em processo executivo, sendo necessário que a sua qualidade de devedor se surpreenda do exame do próprio título.
O cerne da apreciação do título neste momento liminar, basta-se, pois, com a confirmação pelo julgador de que no título a parte passiva tem a posição de devedor, o que, porém, não se confunde com a indagação de que o sujeito passivo é realmente devedor da exequente.
Com efeito, louvando-nos no afirmado no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 10.07.2008[16], “ao interrogarmo-nos sobre se a recorrida tem ou não legitimidade passiva para a execução que lhe foi movida pela recorrente, temos, necessariamente, que averiguar se a mesma consta nos títulos como devedora da exequente, aqui recorrente. Só vendo se lá consta como tal é que poderemos afirmar a sua legitimidade; caso contrário, outra conclusão não pode ser tirada que não seja a da sua ilegitimidade. É, pois, este particular ponto que nos interessa e já não saber se ela é, efectivamente, devedora da exequente”.
Como observam JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[17], “o objeto da execução tem de corresponder ao objeto da situação jurídica acertada no título, o que requer a prévia interpretação deste”.
Revertendo este enquadramento à concreta situação em apreço, verificamos que, apesar de ter sido identificado como Requerido no requerimento de injunção apresentado pela ora exequente, e de neste ter sido mencionado que “o 2º Requerido, intitulando-se representante da Requerida, sempre reconheceu o montante em dívida e garantiu à Requerente que o pagaria com o seu património pessoal, caso a 1ª Requerida assim não o fizesse”, a verdade é que não foi formulado qualquer pedido contra o mesmo, como cristalinamente decorre do segmento final, onde expressamente se refere que “deverá a Requerida ser condenada a pagar à Requerente a quantia total 7.112,46 €” (…).
Portanto, a fórmula executória aposta neste requerimento de injunção limita-se ao pedido formulado contra a empresa requerida, a real devedora, e não contra o requerido, seu administrador.
Aliás, mal se compreende que o mesmo tenha sido identificado como executado, já que também o próprio requerimento executivo foi desenhado apenas por referência à sociedade comercial executada, sem qualquer menção à existência do devedor subsidiário (supomos, já que nada concretamente se alegou na injunção também a este respeito), relativamente ao qual não foram sequer alegados “os factos de aquisição de um direito ou poder a uma prestação exigível”. Efetivamente, como sintetiza RUI PINTO[18], “a lei exige que o credor demonstre por meio do título a existência da obrigação (reconhecida ou constituída pelo título), nos termos do artigo 703.º, e que a obrigação é exigível, conforme o artigo 713.º, mesmo que o não seja em face do título”.
Na espécie, como a Apelante bem sabe – tanto assim que o afirma na explanação dos fundamentos de facto em que suporta o pedido formulado –, a pessoa singular indicada como requerido, celebrou a transação comercial fundadora da obrigação como “representante da Requerida”. Como assim, o requerido não é devedor principal, pois os atos daquele repercutem-se na esfera jurídica desta, em face da personalidade jurídica que lhe é conferida pelo disposto no artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais, sendo que os titulares das participações sociais, não são responsáveis pelo pagamento das dívidas contraídas pela sociedade comercial, já que, como decorre do preceituado no artigo 601.º do Código Civil[19], pelo cumprimento da obrigação respondem os bens do devedor.
Ademais, a qualidade de devedor do executado, pessoa singular, também não encontra arrimo na mera alegação de que o administrador da sociedade devedora “garantiu à requerente que pagaria com o seu património pessoal”. É certo que os sócios e administradores das sociedades comerciais podem prestar garantias pessoais ou reais, tornando-se solidariamente responsáveis pelo cumprimento das obrigações sociais. Porém, tanto umas como outras obedecem a requisitos de forma. No caso, como acima referimos, a requerente sustentou a demanda contra o requerido na alegação de um acordo entre ela credora e o terceiro garante da satisfação do seu direito de crédito contra a empresa. Acontece que, em face do disposto no artigo 628.º, n.º 1, do CC, a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal, e, no caso, o contrato de mediação imobiliária é obrigatoriamente reduzido a escrito, conforme previsto no artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, o que nem sequer foi alegado. É certo que in casu, o título dado à execução não foi o contrato de fiança, mas a apresentação da injunção a que foi aposta a fórmula executória.
Porém, do exame do título resulta, final e decisivamente, que no requerimento de injunção a requerente/exequente não formulou qualquer pedido contra este requerido/executado.
Ora, de acordo com o previsto no artigo 10.º, n.º 3, do citado DL 269/98, durante o procedimento de injunção não é permitida a alteração dos elementos constantes do requerimento, designadamente do pedido formulado, pelo que, nem sequer pode haver lugar a qualquer aperfeiçoamento.
Destarte, mesmo na perspetiva de análise da Apelante, não resulta do título executivo a qualidade de devedor do requerido, nem sequer como devedor subsidiário em decorrência da garantia pessoal da obrigação da sociedade devedora, pela simples, mas decisiva razão, de não haver sido formulado contra si qualquer pedido.
Consequentemente, restringindo-se a aposição da fórmula executiva no processo de injunção à requerida, então teremos necessariamente de concluir que o executado AA é parte ilegítima na execução.
Não obstante, defende a Apelante ter título executivo contra o executado pessoa singular, pelo facto de não ter sido por este deduzida oposição, nem à injunção nem ao processo executivo.
Porém, em face do que dispõe o referido artigo 10.º, n.º 5, do CPC, no caso em presença, a exequente também não tem razão quando pretende ter título válido contra o executado, por este motivo.
Com efeito, se bem virmos, a situação de ilegitimidade em presença entrecruza-se com a constatação de que a execução instaurada contra a pessoa singular, não é conforme ao título executivo formado no processo de injunção, porque não há correspondência entre a pretensão deduzida contra o executado e o documento certificativo da existência e extensão, subjetiva e objetiva, da obrigação exequenda.
Efetivamente, decorre da análise atenta do seu conteúdo que o título executivo foi formado apenas contra a requerida, porque o pedido de condenação[20] formulado no processo de injunção só a esta foi dirigido: “deverá a Requerida ser condenada a pagar à Requerente a quantia de 7.112,46”. Aliás, que a ora Apelante bem sabe que quem tem a qualidade de devedora é apenas a sociedade comercial e não a pessoa singular, decorre do próprio teor do requerimento executivo acima transcrito. Basta a sua leitura para se verificar que, apesar de ter instaurado a presente execução também contra o requerido no processo de injunção, este só é mencionado no lugar destinado à identificação do executado, sendo os fundamentos do requerimento e o pedido exclusivamente articulados contra a executada: “Deve, assim, a Executada à Exequente a quantia de 7.112,46€”.
Ora, como ensina ALBERTO DOS REIS[21] “É pelo título que se determinam os limites da ação executiva, isto é, a extensão e o conteúdo da obrigação do devedor e consequentemente até onde pode ir a ação do credor.
Podem dar-se várias hipóteses:
1.ª promoveu-se uma execução sem título;
2.ª Promoveu-se uma execução com base num título que não tem força executiva;
3.ª Promoveu-se uma execução que está em desconformidade com o título, ou no tocante ao fim ou no tocante aos limites (…)
O terceiro caso assemelha-se ao primeiro. Desde que a execução não é conforme ao título, na parte em que existe a divergência tudo se passa como se não houvesse título: nessa parte a execução não encontra apoio no título”.
Em retas contas, é o que acontece no caso dos autos. Existindo divergência entre a execução instaurada contra o executado e o que consta no título executivo em cujo segmento certificativo da obrigação o mesmo não figura, uma vez que – repete-se –, o pedido não foi dirigido no processo de injunção contra o ora executado, nessa parte a execução não encontra apoio no título, o mesmo é dizer que a exequente não dispõe de título contra o executado, pessoa singular.
A falta de título executivo contra este executado não é suprível, é manifesta, e seria motivo de indeferimento liminar parcial do requerimento executivo, nos termos previstos no artigo 726.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, do CPC.
Consequentemente, o juiz podia conhecer oficiosamente do vício, e determinar a extinção parcial da execução, ao abrigo do disposto no artigo 734.º do CPC, não merecendo censura o segmento decisório da sentença recorrida na parte em que considerou que “a exequente não está munida de título executivo válido contra o executado pessoa singular, o que, nessa parte, determina a extinção da execução nos termos das disposições conjugadas dos artigos 551.º, n.º 3, 726.º, n.º 2 alínea a), e 734.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.”
Nestes termos, na improcedência da apelação, ainda que por fundamentos não coincidentes, é de confirmar a decisão recorrida.
Vencida, a Recorrente suportará as custas do recurso interposto, na vertente de custas de parte, de acordo com o princípio da causalidade vertido nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, e 529.º, n.ºs 1 e 4, do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
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Évora, 20 de abril de 2023
Albertina Pedroso [22]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Juízo de Execução do Entroncamento – Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr., JOSÉ LEBRE DE FREITAS, ARMINDO RIBEIRO MENDES e ISABEL ALEXANDRE, in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, vol. 3.º, 3.ª edição, ALMEDINA, 2022, págs. 486 e 487.
[5] Decorrente das sucessivas alterações do diploma até à introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13.09.
[6] Proferido no processo n.º 11952/19.9YIPRT.G1, disponível em www.dgsi.pt, como os demais citados sem menção de outra fonte.
[7] Cfr., neste sentido, o citado aresto.
[8] In A AÇÃO EXECUTIVA À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, 7.ª edição, GESTLEGAL, Coimbra, 2017, pág. 143.
[9] In A AÇÃO EXECUTIVA, AAFDL EDITORA, Lisboa, 2019, reimpressão, págs. 277 a 279.
[10] Cfr. AMÂNCIO FERREIRA, in CURSO DE PROCESSO DE EXECUÇÃO, 13.ª Edição, ALMEDINA, 2010, pág. 23, citando CHIOVENDA.
[11] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, in NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL, COIMBRA EDITORA 1979, pág. 58.
[12] Cfr. ANTUNES VARELA et Alii, in MANUAL DE PROCESSO CIVIL, 2.ª edição revista e atualizada, COIMBRA EDITORA 1985, págs. 78 e 79.
[13] Cfr. Ac. STJ de 19-02-2009, proferido no processo n.º 07B4427, e disponível em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. AMÂNCIO FERREIRA, in CURSO DE PROCESSO DE EXECUÇÃO, 13.ª edição, ALMEDINA, 2010, págs. 74 e 75, distinguindo do que ocorre na aferição da legitimidade na ação declarativa, e convocando para ilustrar a ideia o ensinamento de ALBERTO DOS REIS, quando enfatizava que “figurar no título como credor não é o mesmo que ser credor; ter no título a posição de devedor é coisa diversa de ser realmente devedor”.
[15] In A ACÇÃO EXECUTIVA SINGULAR, COMUM E ESPECIAL, COIMBRA EDITORA, 1973, 2.ª Edição, págs. 76 e 77.
[16] Proferido no processo n.º 08A1057.
[17] In CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, vol. 1.º, 4.ª edição, ALMEDINA, 2018, págs. 53 e 54.
[18] Obra citada, pág. 57.
[19] Doravante abreviadamente designado CC.
[20] Conforme refere AMÂNCIO FERREIRA, obra citada, pág. 54 «o procedimento de injunção é um tipo particular de processo de condenação, pertencendo à categoria dos que, na terminologia de CHIOVENDA, são de considerar como “averiguações com prevalente função executiva”».
[21] In COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, vol. 1.º, 2.ª edição, COIMBRA EDITORA, 1960, pág. 63.
[22] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos Desembargadores que compõem esta conferência.