Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6581/21.8T8STB-A.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
VALOR DA CAUSA
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Estando em causa, na acção de impugnação de justificação notarial, a declaração da inexistência do direito de propriedade dos RR. relativamente a um imóvel devidamente identificado nos autos, tem de aplicar-se ao caso a regra inserta no artigo 302.º, n.º 1, do C.P.C., nos termos da qual o valor da acção é determinado pelo valor da coisa.
- Assim sendo, nos termos do preceito legal supra referido, estando assente nos autos que o imóvel em discussão tem o valor patrimonial de € 7.670,00, deverá ser este o valor da causa a fixar na presente acção de impugnação de justificação notarial.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 6581/21.8T8STB-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

No âmbito da presente acção de impugnação de justificação notarial proposta pelo Ministério Público contra AA e mulher, BB, veio o A. atribuir à causa o valor de € 30.000,01.
Na contestação apresentada os RR. impugnaram o valor atribuído à presente acção, já que sustentam que a mesma pretende anular um efeito jurídico sobre um imóvel, sendo que o seu valor deverá corresponder ao valor patrimonial do imóvel em causa, nos termos dos artigos 301.º, n.º 1 e 302.º do C.P.C. – € 7.785,05.
Exercendo o contraditório, defendeu o A., em resposta, que actua no exercício de uma competência própria em defesa de direitos imateriais, e porque de direito imaterial se trata, deve ser aplicado o critério disposto no artigo 303.º, n.º 1, do C.P.C..
De seguida pelo Mm.º Juiz a quo foi proferido despacho saneador, no qual decidiu fixar à presente acção o valor de € 7.670,00, por ser esse o valor patrimonial do imóvel em causa – cfr. artigos 301.º, n.º 1 e 306.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
E, para o efeito, baseou tal decisão na escritura celebrada em 20 de Março de 2014, onde é justificada a aquisição do prédio urbano, com a área de 608m2, composto de terreno para construção, sito em ... – ..., freguesia e concelho ..., não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...08, da freguesia ..., e com o valor patrimonial de € 7.670,00.

Inconformado com tal decisão dela apelou o A., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1 - À presente ação de impugnação de escritura de justificação notarial, deve ser aplicável o disposto no artigo 303.º, n.º 1, do CPC, na medida em que o interesse do A. Ministério Público em atuação por competência própria e específica é um interesse imaterial;
2 - Nas acções sobre interesses imateriais o seu objeto não tem valor pecuniário, isto é, que se destinam à declaração ou efetivação dum direito extrapatrimonial;
3 - Com efeito, a presente ação foi instaurada pelo Ministério Público, de acordo com as atribuições que lhe são concedidas pelo artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público, Lei 68/2019, de 27.08, e artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
4 - Atentas as atribuições do Ministério Público, na prossecução do interesse público, este exerce um verdadeiro poder de intervenção em relações jurídico-privadas, que o ordenamento jurídico, em certas circunstâncias, reserva ao Estado Coletividade;
5 - Neste âmbito se encontram os preceitos do Código Civil que estabelecem um regime próprio, de carácter imperativo, nos seus artigos 1376.º a 1381.º, com o intuito da criação e manutenção de unidades prediais economicamente viáveis para esse fim, visando impedir a divisão da propriedade agrícola, preceitos que os RR visaram tornear com a sua atuação;
6 - A este regime subjaz um interesse económico e social, que interessa a toda a coletividade, e por tal facto, um interesse público;
7 - De igual forma, de acordo com o disposto no artigo 294.º do Código Civil, disposição legal de carácter imperativo o MP possui legitimidade desde que o negócio envolva um interesse público tutelado por norma imperativas e de ordem pública.
8 - Compete, pois, ao Ministério Público a defesa da legalidade e da prossecução do interesse público (artigos 3.º, n.º 1, alínea l) e 5.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 47/86, 49.º, n.º 1, do DL n.º 555/99, de 16/12, 54.º, n.º 4, da Lei n.º 91/1995, de 2/9 e 240.º, 241.º, 280.º, n.º 1, 286.º e 294.º do Código Civil, em todas as situações em que se encontrem em causa violação dos preceitos referentes ao ordenamento do território;
9 - Mostrando-se que os RR fizeram constar na escritura de justificação a declaração de factos que não correspondem à verdade, com violação das disposições referentes à aquisição originária usucapião – visaram contornar a proibição legal de fracionamento rústico previsto naqueles preceitos do artigo 1376.º e seguintes do Código Civil;
10 - Nestes termos, o interesse do Ministério Público na presente ação não se relaciona com o valor pecuniário do bem - prédio objeto da escritura, antes visa defender a legalidade e os interesses públicos subjacentes aos preceitos que proíbem o fracionamento dos prédios rústicos;
11- Em consequência, requer-se que seja declarado procedente o presente recurso e revogada a decisão, devendo ser atribuída à ação o valor de € 30.000,01.
Contudo, V. Exas. farão a costumada Justiça.
Pelos RR. não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável ao recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber qual o valor que deve ser fixado à acção, sendo que nas acções sobre interesses imateriais – como a presente – o seu objecto não tem valor pecuniário e, por isso, o valor a fixar nesta acção será de € 30.000,01, como estipulado no artigo 303.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Apreciando, de imediato, a questão supra referida importa dizer a tal propósito que, relativamente a questão idêntica ou similar, já se veio a pronunciar, entre outros, o Ac. desta Relação de 16/6/2016 – no qual o aqui relator interveio como Ajunto – disponível in www.dgsi.pt, adiantando, desde já, que sufragamos, por inteiro, as razões e fundamentos aí explanados que, de seguida, passamos a transcrever:
- Com a justificação notarial o que se pretende é estabelecer o trato sucessivo nos termos dos artigos 116.º do Código do Registo Predial e 89.º a 101.º do Código do Notariado.
Trata-se, assim, de um meio ou expediente técnico simplificado, de obter a primeira inscrição registral de um prédio que alguém afirma ser seu, apesar de ser um meio que não tem as necessárias garantias de correspondência com a realidade, pois é suficiente a declaração do interessado, confirmada por outros declarantes.
Dai que exista a válvula de escape que é a impugnação do facto justificado, mediante o processo judicial previsto no artigo 101.º do Código do Notariado, que constitui uma ação declarativa de simples apreciação negativa, visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura.
A final, o que o tribunal vai dizer é se os declarantes adquiriram ou não aquele prédio.
Não está, assim, em causa a validade do ato jurídico – escritura de justificação – mas sim o direito de propriedade que lhe está subjacente.
Ou seja, o que o autor pretende atingir é o direito de propriedade sobre o bem que o justificante declarou na escritura ser titular e não a formalidade que se tem por adequada e que a lei exige para a validade de tal direito.
Não estando em causa a validade formal do ato jurídico – escritura de justificação – mas sim o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado bem não deve relevar para a aferição do valor da causa o disposto no artigo 301.º, n.º do CPC, mas antes o disposto no artigo 302.º do Código de Processo Civil.
Por isso, no caso dos autos, estando, no fundo, em causa na ação a declaração da inexistência do direito de propriedade da ré relativamente a um imóvel, que tem por efeito o ressurgimento na ordem jurídica do direito de propriedade das autoras sobre o mesmo imóvel, tem de aplicar-se ao caso a regra inserta no aludido artigo 302.º, n.º 1, do CPC, nos termos da qual o valor da causa é determinado pelo valor coisa.
Quanto ao valor da coisa deve relevar, em princípio, o seu valor real.
(…)
Embora competindo ao juiz a fixação do valor da causa (cfr. artigo 306.º, n.º 1, do CPC) este não pode deixar de ter em conta a posição das partes, expressa no processo, relativamente ao valor, só devendo modificá-lo, no caso de estarmos perante uma situação como a dos autos em que se pretende fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa determinada, se o valor aceite por ambas as partes estiver em plena desarmonia com o valor real do bem.
No mesmo sentido do aresto supra transcrito veja-se ainda o Ac. da R.L. de 18/1/2007, também disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, é afirmado o seguinte:
- A acção de impugnação de justificação notarial, reveste a natureza de acção declarativa de simples apreciação negativa, pois que visa a declaração da inexistência daquele direito.
- Estando em causa nesta acção a declaração da inexistência do direito de propriedade dos réus relativamente a um imóvel, que tem por efeito o ressurgimento na ordem jurídica do direito de propriedade do autor sobre o mesmo imóvel, tem de aplicar-se ao caso a regra inserta no artigo 311.º, n.º 1 (correspondente ao artigo 302.º do actual C.P.C.) nos termos da qual o valor da causa é determinado pelo valor coisa, relevando para o efeito o seu valor real.
Voltando agora ao caso em apreço constata-se que, nesta acção de impugnação de justificação notarial, o A. colocou em crise a escritura celebrada em 20 de Março de 2014, onde é justificada a aquisição do prédio urbano, com a área de 608m2, composto de terreno para construção, sito em ... – ..., freguesia e concelho ..., não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...08, da freguesia ..., e com o valor patrimonial de € 7.670,00.
Ora, o valor da causa nestas acções corresponde à sua utilidade económica, sendo o seu valor correspondente à existência ou não de um direito de propriedade sobre certo e determinado bem (imóvel), o qual é determinado pelo valor da coisa – cfr. artigo 302.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
In casu – nos termos do preceito legal supra referido – estando assente nos autos que o imóvel em discussão tem o valor patrimonial de € 7.670,00, deverá ser este o valor da causa a fixar na presente acção, o que aqui se reitera e determina para os devidos e legais efeitos.
Assim sendo, forçoso é concluir que não tem aqui aplicação o disposto no artigo 303.º, n.º 1, do C.P.C. – tal como era sustenta do pelo A., ora apelante – pois é o valor da coisa que justifica a utilidade económica do pedido e não a qualidade em que intervém o A. (nomeadamente, com a instauração da presente acção pelo Ministério Público em defesa da legalidade democrática).
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa quaisquer outras questões entendemos que a decisão recorrida é de manter e, por via disso, improcedem in totum as conclusões de recurso formuladas pelo A., ora apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ele indicados.

***

Por fim, atento o estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

***

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, aqui A. e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas, atenta a isenção do A., ora apelante (cfr. artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do RCP).
Évora, 13 de Julho de 2022
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, págs. 286 e 299).