Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1113/18.8T8STB.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1 - A escritura de justificação notarial em causa nos autos configura um ato jurídico de invocação da usucapião que permite registar o direito invocado sobre o imóvel e não um ato de fracionamento de um prédio rústico.
2 – Sancionando o art. 1379.º do Código Civil, na redação anterior àquela que lhe foi dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, com a anulabilidade os negócios jurídicos que infrigissem as normas sobre fracionamento de prédios rústicos e prevendo um prazo curto (3 anos) para a respetiva impugnação - permitindo desta forma a consolidação de situações de posse sobre prédios que têm na sua génese um fracionamento ilegal ocorrido durante a sua vigência -, não faz sentido invocar o interesse público que está na base das restrições impostas ao fracionamento, devendo reconhecer-se ao usucapiante a exclusividade do seu direito de propriedade sobre o prédio no qual, desde há muito tempo, vem exercendo e de forma regular, continuada e pacificamente os poderes inerentes ao direito de propriedade.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
O Ministério Público interpôs recurso ordinário da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Cível de Setúbal- Juiz I na ação instaurada por aquele contra BB e CC.
A sentença sob recurso julgou improcedente o pedido de declaração de anulabilidade do negócio consubstanciado na escritura pública de justificação de posse outorgada no dia 13 de fevereiro de 2015, no Cartório Notarial de Maria Teresa Morais Carvalho de Oliveira, em Setúbal.
Na sua petição inicial, o Ministério Público alegou que através da justificação de posse realizada mediante a escritura pública supra mencionada a parcela de terreno relativamente à qual os Réus justificaram a respetiva posse foi desanexada de um primitivo prédio inscrito na respetiva matriz sob o art. …, da Secção H, constituído maioritariamente por cultura arvense, localizado a sul do Tejo, concretamente no distrito de Setúbal, onde, nos termos do art. 1.º da Portaria n.º 202/70, de 21/4, a unidade mínima de cultura está fixada em 7,5ha para terrenos de sequeiro e que a desanexação pretendida implica a criação de dois prédios rústicos distintos: um com 2,0700ha referente ao prédio a constituir e outro com 1,0550 ha referente à área remanescente, ou seja, áreas inferiores às estipuladas como unidade mínima na supra referida Portaria. Pelo que a divisão do prédio original, operada pelo negócio jurídico em causa é proibida e anulável, nos termos do disposto no art. 1376.º, n.º 1, do Código Civil.
Os Réus contestaram, alegando, em síntese, que:
a) Adquiriram o prédio em causa por sucessão hereditária de seu pai, o qual, por sua vez, o havia adquirido em 1965 por compra verbal;
b) Após a aquisição, o seu pai entrou na posse e fruição da referida parcela de terreno, agindo sempre de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente, anexando a referida parcela ao seu prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número seis mil oitocentos e cinquenta e três, da freguesia de Pinhal Novo, inscrito a parte rústica sob parte do art. … da secção H e a parte urbana sob o ar. 502 da freguesia de Pinhal Novo, usufruindo como tal do referido prédio e suportando os respetivos encargos.
c) Os Réus, e antes o seu pai, têm vindo a exercer a posse efetiva do indicado prédio há mais de 20 anos, de forma pacífica, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, atuando na convicção de que eram proprietários do mesmo.
d) Os efeitos da usucapião retrotraem à data do início da posse, sendo que o condicionalismo legal da desanexação a que se deve atender é o existente no momento em que se iniciou a posse e à data do início desta última ainda não vigorava a Portaria n.º 202/70, de 21 de abril.
e) A divisão do prédio original de que resultou o prédio justificado operou-se em 1965 não tendo, por isso, violado qualquer dispositivo legal.
f) A usucapião, como forma originária de aquisição, opera mesmo relativamente a parcelas de um prédio ainda que na sua génese tenha estado um fracionamento legal.
Na sentença sob recurso foi declarado que os Réus têm a posse sobre a parcela de terreno que pretendem justificar há mais de 30 anos, tempo suficiente para poderem usucapir o referido bem imóvel; que à data da divisão do terreno ainda não estava em vigor a Portaria n.º 202/70, mas sim a Lei n.º 2116, de 14.08.1962 que embora já proibisse o fracionamento não existia Portaria a fixar a unidade mínima de cultura para o distrito de Setúbal, pelo que o fracionamento sempre seria possível, à data em que o mesmo ocorreu; que, pese embora, em face da dimensão do prédio usucapiado, da sua desanexação resulte um fracionamento proibido pelo art. 1376.º, do CC, a usucapião deverá prevalecer sobre as regras de ordenamento do território.
I.2.
O recorrente formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A – O Ministério Público veio pedir a juízo a anulabilidade do ato declarativo titulado na escritura de justificação outorgada pelos Réus no dia 13 de fevereiro de 2015, no Cartório Notarial de Maria Teresa Morais Carvalho de Oliveira, por violação do disposto no artg. 1376º, nº 1 do Código Civil.
B - O julgador concluiu pela validade da escritura de justificação notarial, entendendo que o fracionamento não ocorreu com a celebração da escritura, mas no momento do início da posse, data em que inexistia portaria a fixar a unidade mínima de cultura para o distrito de Setúbal, pese embora vigorasse a Lei nº 2116, de 14.08.1962, que mandava fixar a unidade mínima de cultura.
C - Na hipótese de aplicação da Portaria 202/70, o tribunal recorrido concluiu pela prevalência da usucapião sobre as regras relativas ao fracionamento dos prédios rústicos aptos para a cultura.
D - O Autor discorda de tais posições, porquanto, e desde logo, o fracionamento ocorreu com a escritura notarial de justificação, e não antes, pelo que é aplicável a Portaria nº 202/70, de 21 de abril.
E - A matéria descrita nos Factos não provados é irrelevante, porque conclusiva ou de direito.
F - É no momento em que é outorgada a escritura de justificação que a usucapião se torna conhecida e, por isso, só a partir dessa data é que eventuais prejudicados com o ato de fracionamento violador das regras existentes, e o próprio Estado, podem reagir do mesmo, por terem, a partir de então, acesso a um documento que titula a ilegalidade.
G – Não se divisa a que outro ato, para além do ato da escritura, se refere o artg. 1379º, nº 3 do Código Civil.
H - Antes da escritura não temos um ato celebrado, mas uma divisão material.
I - O prédio …, Secção H sobre o qual a desanexação incide é constituído maioritariamente por cultura arvense, ou seja cultura em regime de sequeiro.
J - Está localizado a sul do Tejo, concretamente no distrito de Setúbal onde, nos termos do artigo 1º da Portaria nº 202/70, de 21 de abril, a unidade mínima de cultura está fixada em 7,5 ha para terrenos de sequeiro.
L – A desanexação pretendida implica a criação de dois prédios rústicos distintos: um com 2,0700 ha, referente ao prédio a constituir pretendido; e outro com 1.0550 ha, referente à área remanescente, ou seja, áreas inferiores às estipuladas como unidade mínima na supra referida portaria.
M – A prolatada sentença reconheceu que o fracionamento/destacamento é proibido nos termos do citado artigo. No entanto, remetendo para a jurisprudência, concluiu pela prevalência da usucapião sobre as regras atinentes ao fracionamento de prédios rústicos aptos para a cultura.
N – Não acompanhamos tal entendimento, desde logo, porque a proibição da divisão de terrenos aptos para a cultura em unidades cuja área seja inferior à unidade de cultura mínima, imposta pelo artg. 1376º do Código Civil, assenta em interesses de natureza pública, na defesa do aproveitamento e viabilidade económica das explorações agrícolas, que afetam toda uma comunidade.
O - No confronto entre interesses, seja a estabilidade e certeza nas relações jurídicas, que subjaz à usucapião, seja o interesse no aproveitamento e viabilidade das explorações agrícolas, deve prevalecer este último, por ser de grau superior, conforme resulta do disposto no artg. 335º, nº 2 do Código Civil, pois envolve e afeta toda a comunidade nacional e não apenas os próprios interessados.
P – O novo regime, resultante da nova redação do artg. 1379º do Código Civil, cominando com a nulidade os atos de fracionamento que não respeitem a unidade mínima de cultura, reflete a visão do legislador no sentido de reforçar a imperatividade da referida norma, na defesa do interesse público.
Q – Proibindo a lei um resultado, necessariamente serão proibidos os meios para o atingir.
R - Não faz sentido cominar com a invalidade os atos de fracionamento, mas permitir o seu fracionamento físico, material e jurídico em consequência da sua aquisição por usucapião, pois que, dessa forma, estaria encontrada a forma de contornar, e até afastar, a proibição legal, funcionando como válvula de escape para adquirir um direito que, de outro modo, seria insuscetível de aquisição.
S – O artg. 1287º do Código Civil consagra exceções ao instituto da usucapião ao prever expressamente “(…) salvo disposição em contrário”, ali se incluindo as normas jurídicas referentes ao ordenamento e aproveitamento dos terrenos agrícolas, proibindo o fracionamento de terrenos que não respeitem a unidade mínima de cultura.
T - Significa que a usucapião apenas pode ocorrer caso não exista disposição legal que a ela obste.
U – Os atos de posse baseados num facto proibido pelo Direito não podem permitir uma aquisição por usucapião.
V – Este instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima.
X – A sentença recorrida violou o disposto nos artgs. 294º, 335º, nº 2, 1287º, 1376º, 1379º do Código Civil e Portaria nº 202/70, de 21 de abril.
Ponderando o exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, declarando-se a anulabilidade do ato jurídico titulado pela escritura de justificação, comunicando-se o facto ao Cartório Notarial respetivo, nos termos do disposto no artg. 131º, nº 1, alínea d) e 202º, alínea c) do Código do Notariado, ao Registo Predial de Palmela e ao Serviço de Finanças de Palmela. […]».
I.3
Os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença com todos os efeitos legais.
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
Correram vistas nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), pelo que cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A matéria de facto julgada provada pelo tribunal de primeira instância foi a seguinte:
1. Os Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Setúbal Teresa Morais Carvalho Oliveira, em Setúbal, exarada de fls. 3 a 5 verso do Livro de escrituras diversas n.º 277-A, no dia 13.02.2015.
2. Na escritura id. em (1), os Réus declararam:
2.1. São donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou de direito, do seguinte: Prédio rústico, composto de parcela de terreno composta por terras de semeadura com a área de três mil quinhentos e trinta e um virgula noventa metros quadrados, sito em Venda do Alcaide, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, que confronta do norte com Carlos L… e outros, do Sul com José J…, do Nascente com Manuel C… e do poente com Luzia O…, Maria O… e Rosália O…, inscrito na respetiva matriz sob parte do artigo … da Secção H, ainda por descrever na Conservatória do Registo Predial de Palmela. (…)
2.2. Que a referida parcela de terreno foi adquirida no ano de mil novecentos e sessenta e cinco, por compra verbal que Manuel C…, solteiro, maior, residente na Rua …, Venda do Alcaide, Pinhal Novo, em Palmela, pai dos aqui justificantes, atualmente falecido, efetuou a Filipe A… e mulher, Jesuína O…, casados sob o regime da comunhão geral de bens, residentes que foram na Rua …, nº …, no Barreiro, sem que no entanto ficasse a dispor de titulo formal que lhe permitisse o respetivo registo na Conservatória do Registo Predial, mas desde logo entrou na posse e fruição da referida parcela de terreno, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade nomeadamente anexando a referida parcela ao seu prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número …, da referida freguesia de Pinhal Novo, inscrito a parte rústica sob parte do artigo … da secção H e a parte urbana sob o artigo … da freguesia de Pinhal Novo, usufruindo como tal do referido prédio e suportando os respetivos encargos.
2.3. Que o seu mencionado prédio após a anexação passou a ter a seguinte composição: Prédio Misto, sito em Venda do Alcaide, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, com a área de vinte mil e setecentos metros quadrados, que confronta do norte com Casimiro S… e Bento C…, do Sul com Arnaldo J…, do nascente com Estrada Municipal 575 e do poente com Luzia O… e outros, composta a parte rústica de terras de semeadura, inscrita na respetiva matriz sob parte do artigo … da secção H, o qual proveio do anterior …2 da freguesia do Pinhal Novo, e a parte urbana de casa térrea de rés-do-chão para habitação com duas dependências anexas para cavalariça e palheiro, com a área coberta de noventa e três metros quadrados, inscrita na respetiva matriz sob o artigo … da freguesia de Pinhal Novo, (anteriormente artigo …, da freguesia do Pinhal Novo).
2.4. No dia vinte e dois de Agosto de dois mil e catorze, na freguesia de São Sebastião, concelho de Setúbal, faleceu Manuel C…, no estado de solteiro, maior, (…), tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os filhos, BB e CC, aqui justificantes.
2.5. Que assim, os aqui justificantes estão na posse da identificada parcela há mais de vinte anos, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente cultivando a referida parcela de terreno, conjuntamente com o restante imóvel, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião...
3. Na escritura id. em 1, Arnaldo J…, Capitolina S… e Álvaro J… declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.
4. A área do prédio destacado é de 20.700,00 m2 e o prédio remanescente ficou com a área de 10.550,00 m2.
5. O prédio n.º … sobre o qual desanexação incide é constituído maioritariamente por cultura arvense.
6. Esta aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial, cujo prédio resultante foi inscrito sob o n° …/20150409 da freguesia de Pinhal Novo.
7. O réu BB requereu, em 25.03.2015, no Serviço de Finanças de Palmela, a constituição de prédio rústico distinto, dando origem ao processo de cadastro n.º …/2015.
8. Este processo teve parecer desfavorável da Direcção-Geral do Território.
9. Os réus adquiriram o prédio por sucessão hereditária de seu pai, Manuel C…, falecido em 22.08.2014, do qual foram os únicos herdeiros.
10. O pai dos réus adquiriu em 1965, por compra verbal, o prédio rústico, composto de parcela de terreno composta por terras de semeadura, com a área de três mil quinhentos e trinta e um virgula noventa metros quadrados, sito em Venda do Alcaide, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, que confronta do norte com Carlos L… e outros, do Sul com José J…, do Nascente com Manuel C… e do poente com Luzia O…, Maria O… e Rosália O…, inscrito na respetiva matriz sob parte do artigo … da Secção H, ainda por descrever na Conservatória do Registo Predial de Palmela.
11. E logo começou a cultivá-la com produtos hortícolas, à vista de todos, tendo anexado a referida parcela ao seu prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número …, da referida freguesia de Pinhal Novo, inscrito a parte rústica sob parte do artigo … da secção H e a parte urbana sob o artigo … da freguesia de Pinhal Novo, usufruindo como tal do referido prédio e suportando os respetivos encargos.
12. Este prédio tinha a área total de 17.168,10 m2, e passou após a anexação, a ter a área total de 20.700 m2.
13. Tendo vindo os RR. e antes o seu pai, a exercer a posse efetiva do indicado prédio há mais de vinte anos, ali tendo casa de habitação, que passaram a usar com o seu agregado familiar, desenvolvendo uma exploração de produtos hortícolas para consumo familiar, vedando o seu prédio.
14. Atuando com convicção de que eram os proprietários do mesmo.
15. Ao longo de cerca de 50 anos, de forma pacífica, à vista de todos e sem oposição de ninguém.

II.3.
No caso em apreço, o recurso prende-se exclusivamente com uma questão de direito, uma vez que o recorrente não impugnou a matéria de facto declarada provada pelo tribunal de primeira instância.
A questão de direito suscitada no recurso em apreço consiste em saber se a usucapião opera e produz efeitos em detrimento de normas que proíbem o fracionamento de terrenos aptos para a cultura.
Na presente ação, o Ministério Público veio impugnar uma escritura pública de justificação notarial outorgada em 13 de fevereiro de 2015, mediante a qual os réus/recorridos se declararam titulares do direito de propriedade sobre uma parcela de terreno ali identificada, por efeito do instituto jurídico da usucapião.
O recurso interposto pelo recorrente funda-se no disposto no art. 1379.º do Código Civil, na redação em vigor à data em que foi outorgada a escritura de justificação a que respeita os presentes autos (e, portanto, antes da alteração operada a pela Lei n.º 111/2015, de 27-08, que estabeleceu o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária[1]), normativo que prescrevia o seguinte:
«1 – São anuláveis os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, bem como o fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.
2. Têm legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
3. A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do ato ou do termo do prazo referido no n.º 1.»
O Ministério Público/recorrente começa por defender que «o fracionamento ocorreu com a escritura notarial de justificação, e não antes», acrescentando que «É no momento em que é outorgada a escritura de justificação que a usucapião se torna conhecida e, por isso, só a partir dessa data é que eventuais prejudicados com o ato de fracionamento violador das regras existentes, e o próprio Estado, podem reagir do mesmo, por terem, a partir de então, acesso a um documento que titula a ilegalidade».
Sobre o que se deverá entender por «ato de fracionamento» seguir-se-á de perto o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.01.2018, processo n.º 7601/16.3T8STB.E1[2] que se pronunciou sobre um caso idêntico.
O fracionamento é uma «operação de estruturação fundiária que consiste na divisão da área de um prédio (…) em unidades prediais que passem a ser objeto de direito de propriedade autónomo» — Rui Pinto/Cláudia Trindade, Código Civil: Anotado (Coord. Ana Prata), volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 192.
O fracionamento de um prédio rústico pressupõe não apenas a divisão da sua área em duas ou mais unidades prediais como exige, também, a transferência do domínio dessas unidades prediais para dois ou mais proprietários (vd. Ac. STJ de 07.06.2011, processo n.º 197/2000.E1[3] e na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 259). Ou seja, para que de fracionamento de prédio rústico se possa falar tem de haver um ato translativo de propriedade.
A outorga da escritura de justificação notarial em causa nos autos visou o estabelecimento do trato sucessivo previsto no art. 116.º, n.º 1 do Código de Registo Predial. De acordo com este normativo, o adquirente que não dispõe de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.
A justificação notarial para estabelecimento do trato sucessivo consiste, assim, numa forma especial de titular direitos sobre imóveis para efeitos de descrição na Conservatória do Registo Predial e baseia-se em declarações dos próprios interessados (que têm, todavia, de ser confirmadas por três declarantes – art. 91.º, do Código de Notariado).
Como é referido no Acórdão do STJ de 09.07.2015, processo n.º 448/09.5TCFUN.L1.S1[4]: «A escritura de justificação notarial tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão. A justificação notarial associa-se, pois, à dinâmica do registo predial – art. 116.º, n.º 1, do CRP –, mormente à prova documental do facto jurídico a registar, imprescindível para o registo – cf. art. 43.º, n.º 1, do mesmo diploma. (…) Reduzida a escritura pública, constitui, por conseguinte, um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula – cf. arts. 363.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1, ambos do CC. Evidentemente, como qualquer outro ato jurídico, também a escritura de justificação notarial é passível de ser impugnada judicialmente, por parte de quem tenha legitimidade (…)».
Por seu turno, o art. 89.º do Código de Notariado dispõe que: «1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais. 2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião».
Resulta já de todo o exposto supra que a escritura de justificação notarial não é um ato constitutivo de direitos nem um ato translativo de direitos. Consiste, ao invés, num ato declarativo de aquisição de um direito por via da usucapião, o qual se mostra necessário pelo facto de a usucapião, para ser eficaz, necessitar de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 1287.º, do Código Civil e anotação ao mesmo no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 65).
Também no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2018, processo n.º 6000/16.1T8STB.E1.S1[5], se escreveu: «a justificação notarial constitui um mero instrumento jurídico através do qual, por via da invocação de razões de ciência, se obtém um título justificativo da aquisição do direito real por usucapião. Não é o referido ato que traduz o fracionamento do prédio, o qual deve corresponder ao ato de divisão material, a partir do qual se iniciou a posse sobre cada uma das parcelas que, prolongando-se no tempo, por período legalmente suficiente, permitiu a invocação por parte dos RR. da aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via da usucapião».
Em suma e para concluir, a escritura de justificação notarial em causa nos autos configura um ato jurídico de invocação da usucapião que permite registar o direito invocado sobre o imóvel.
A usucapião é uma forma de aquisição de direitos reais sobre coisas que se funda numa posse exercida de forma duradoura sobre aquelas (art. 1287.º, do CC).
A verificação da usucapião depende, assim, da existência de posse e do decurso de certo período de tempo, este variável consoante as características da primeira e a natureza dos bens sobre que incide o direito a cujo exercício a posse respeita.
No caso concreto, o recorrente não põe em causa que se verifica a usucapião que foi invocada pelos réus/recorridos. Simplesmente, entende que aquela não deve prevalecer sobre normas de ordenamento do território.
Vejamos se lhe assiste razão.
No que respeita às regras sobre o fracionamento de prédios rústicos, no ano de 1965 estava em vigor a Lei n.º 2.116, de 14 de agosto de 1962, cuja Base I, n.º 1 prescrevia que «1. Os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada pelo Governo para cada zona do país, ouvida a Corporação da Lavoura. Esta unidade pode variar, no interior de cada zona, em atenção às exigências técnicas de cultivo e às condições locais de natureza económico-agrária e social».
Na vigência do referido diploma, para aferir da validade dos atos de fracionamento de prédios rústicos mantiveram-se as áreas mínimas previstas no art. 107.º, do Decreto n.º 16.731 de 13.04.1929 (cfr. Base XXXIII, n.º 2 da Lei n.º 2116). Assim, nos termos do supra mencionado art. 107.º, era proibida (sob pena de nulidade, e ainda quando derivada de partilha judicial ou extrajudicial), a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de 1/2 hectare (5.000 m2).
Aquele normativo continuou em vigor até à data da entrada em vigor da Portaria n.º 202/70, de 21 de abril, a qual veio classificar os prédios rústicos em terrenos de regadio (arvenses ou hortícolas) e de sequeiro e fixou a unidade de cultura (hectares) para as diferentes zonas do País. Na zona de Setúbal — aquela que está em causa nos autos — estabeleceu uma unidade mínima de cultura de:
— 2,50 ha para os terrenos de regadio/arvenses;
— 0,50 ha para os terenos de regadio/hortícolas;
— 7,50 ha para os terrenos de sequeiro.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 1967, veio estabelecer-se que os terenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país (cfr. art. 1376.º), estabelecendo-se a anulabilidade dos atos de fracionamento contrários àquele normativo (art. 1379.º).
No caso concreto, do fracionamento ocorrido com a compra e venda verbal de uma parcela de terreno com a área de 3.531,90 m2 resultaram dois prédios rústicos distintos, a saber, um com uma área de 20.700m2 (2,0700 ha) – referente ao prédio destacado - e outro (o remanescente, sobre o qual incide a desanexação e constituído maioritariamente por cultura arvense) com uma área de 10.550 m2 (1,0550ha) (cfr. supra II.2.).
O fracionamento operado no prédio n.º 224 e que deu origem a um prédio com a área de 20.700m2, ficando o primeiro com uma área remanescente de 10.550m2 não desrespeitou os limites previstos no art. 107.º, do Decreto n.º 16.731 de 13.04.1929, o qual vigorava no ano de 1965 (só com a entrada em vigor da Portaria n.º 202/70, de 21.04 é que a unidade mínima de cultura para os terenos rústicos de sequeiro passou a ser de 7,50ha), pelo que, in casu, não estamos perante um fracionamento ilegal.
Mas, ainda que assim não fosse, ou seja, se na génese da usucapião invocada pelos réus/recorridos estivesse um fracionamento ilegal, aquela deveria prevalecer. Vejamos:
Os efeitos da usucapião retroagem à data do início da posse (art. 1288.º, do CC) e, uma vez invocada, a usucapião determina a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida, o que implica que, sendo o direito adquirido ex novo, ele é imune aos vícios que afetassem o direito antes incidente sobre a coisa, designadamente relativamente a uma parcela de um prédio em cuja génese tenha estado um fracionamento ilegal porque constitutivos de frações com a área inferior à unidade de cultura (cfr., entre outros, Ac. RC de 02.05.1989, Ac. RC de 31.05.2005, processo n.º 3997/04, Ac. STJ de 04.05.2018, processo n.º 7859/15.5T8STB.E1 e Ac. STJ de 01.03.2018, processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2[6]).
Não se olvida que as normas relativas ao fracionamento de terrenos aptos para cultura são determinadas por razões de interesse público, concretamente, o interesse público na defesa do aproveitamento e viabilidade económica das explorações agrícolas (cfr. art. 93.º, n.º 1, al. d), da Constituição da República) sendo certo que a produtividade agrícola de terrenos com áreas limitadas é menor.
Porém, a usucapião também se funda em razões de interesse público, concretamente, assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer um meio de prova seguro de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e à sua titularidade – neste sentido, Durval Ferreira, Posse e Usucapião versus Destaque e Loteamentos, Legalização das Edificações e Acessão, Doutrina e Jurisprudência, Vida Económica pp. 34-35 e Ac. STJ de 08.11.2018, processo n.º 6000/16.1T8STB.E1.S1[7].
É um facto que a Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto veio alterar o art. 1379.º, do Código Civil, passando a sancionar com a nulidade os atos de fracionamento contrários ao disposto nos arts. 1376.º e 1378.º, do CC, o que revelará uma intenção do legislador no reforço da imperatividade das regras estabelecidas para o fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos agrícolas (neste sentido, Ac. RE de 25.05.2017, processo n.º 1214/16.7T8STB.E1[8]). Contudo, à data em que o fracionamento em causa ocorreu, a cominação prevista para o fracionamento ilegal era a anulabilidade (cfr. art. 1379.º, n.º 1, o CC) e os negócios que infrigissem as normas sobre fracionamento de prédios rústicos aptos para cultura eram impugnáveis no prazo de 3 anos (cfr. art. 1379.º, n.º 3, do CC). Ou seja, por opção legislativa, o prazo curto de reação a situações prejudiciais ao ordenamento do território era curto, permitindo a consolidação de situações de posse exercida sobre prédios resultantes de fracionamentos ilegais. Por conseguinte, não faz sentido invocar o interesse público que está na base das restrições impostas à divisão, quando a própria lei fixava um prazo tão curto de reação à violação daquelas restrições, devendo reconhecer-se ao usucapiante a exclusividade do seu direito de propriedade sobre o prédio no qual, desde há muito tempo, vem exercendo e de forma regular, continuada e pacificamente os poderes inerentes ao direito de propriedade.
O art. 1287.º, do Código Civil prescreve que «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.»
Uma parte da jurisprudência – de que é exemplo, o Ac. RE de 25.05.2017, processo n.º 1214/16.7T8STB.E1– e da doutrina entende que aquele normativo admite exceções ao instituto da usucapião, enquanto forma originária de aquisição do direito de propriedade, ao fazer a ressalva «salvo disposição em contrário».
Contudo, nos diplomas legais sobre loteamentos, destaques ou fracionamento de prédios rústicos não existe disposição que estabeleça que uma posse exercida sobre terreno que tenha na sua génese um fracionamento ilegal não pode conduzir à usucapião quando teria bastado o legislador ter introduzido naqueles diplomas uma norma que proibisse a aquisição por usucapião de prédios rústicos que tivessem na sua origem um fracionamento ilegal (como fez, por exemplo, nas situações previstas nos arts. 1293.º e 1297.º, do Código Civil) (vd. por todos, Ac. STJ de 01.03.2018, processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2[9]).
Julgamos, assim, acompanhando os recentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2018, processo n.º 6000/16.1T8STB.E1.S1, 12.07.2018, processo n.º 7601/16.3T8STB.E1.S101.03.2018, processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2 e o Ac. RE de 20.12.2018, processo n.º 357/18.7T8STB.E1[10] que a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura fixada prevalece sobre a proibição de fracionamento contida no art. 1376.º, n.º 1, do Código Civil, na redação anterior à que foi introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27.08, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no art. 1379.º, do CC.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Sem custas porquanto o recorrente (Ministério Público) está isento do respetivo pagamento, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas Judiciais.
Notifique.

Évora, 14 de fevereiro de 2019,
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato
Mata Ribeiro

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[1] Com a entrada em vigor da Lei n.º 111/15, de 27.08, o n.º 1 do art. 1379.º, passou a ter a seguinte redação: «São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º».
[2] Publicado em www.dgsi.pt.
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[6] Todos publicados em www.dgsi.pt
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[9] Publicado em www.dgsi.pt.
[10] Todos publicados em www.dgsi.pt.