Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
186/13.4TATMR.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CONDIÇÕES DE PUNIBILIDADE
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: 1 - Tratando-se de uma condição objectiva de punibilidade prevista na lei em data anterior à dedução da acusação, aquela condição deve constar da acusação, enquanto elemento necessário à punibilidade da conduta.
2 - Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo esta condição objectiva de punibilidade, a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.

3 - O que não pode é exigir-se que a acusação contenha o teor da notificação (constando dos autos é uma questão probatória) ou que se mostrem liquidados os juros respectivos, já que estes estarão sempre dependentes do tempo decorrrido e, portanto, serão sempre indeterminados.

4 – Caso seja duvidosa a suficiência factual, isso apenas demonstra a não aplicação do disposto no artigo 311º do C.P.P. ao caso concreto, pois que este preceito exige um indubitável juízo de manifesta improcedência e deve ser usado com parcimónia e nunca nos casos em que a existência factual é discutível ou dependente de conceitos tão fluídos como a distinção entre o que é “facto” e o que pode ser “conclusão” ou “matéria de direito”.

Decisão Texto Integral:



Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

O Ministério Público de Santarém deduziu acusação, em processo comum perante tribunal singular contra “AA, Lda., BB e CC, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 107.º, nº 1 e 105º, n. 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias.

O Mmº Juiz do Tribunal Judicial por despacho de 15 de Dezembro de 2015, rejeitou a acusação por a considerar manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal, considerando não cumprido o disposto no artigo 105º, nº 4 do RGIT porquanto não foi alegada na acusação a verificação da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT.


*

Inconformada a Digna Procuradora-Adjunta de Santarém interpôs recurso, com as seguintes conclusões:

1. Os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, cuja narração se impõe na acusação, são apenas aqueles que integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime.

2. A afirmação feita pelo Mmo. JIC a quo, da equivalência dos efeitos da falta de alegação de um dos elementos do tipo e da falta de alegação da verificação de uma condição objectiva de punibilidade, rectius, da equivalência entre elemento do tipo de crime e condição objectiva de punibilidade, não deixa de acarretar a violação da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008 de 9 de Abril.

3. As condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se encontram em relação directa com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito nem ao de culpa.

4. O tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é tipificado pela não entrega, total ou parcial, às instituições de segurança social, do montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais, deduzido pelas entidades empregadoras do valor das remunerações devidas àqueles.

5. A consumação do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social dá-se quando, com absoluta independência da ocorrência ou não da condição prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, o agente preenche, com a sua conduta omissiva e contrária à lei, os elementos do respectivo tipo legal.

6. A narração contida na acusação é plenamente suficiente para perfectibilizar o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, sendo que, atenta a natureza da omissão assinalada, esta não é elemento essencial, nos termos do artigo 283, n.º 3, alínea b) do CPPenal, podendo ser regularmente suprida em sede de instrução, mediante o recurso ao procedimento da alteração não substancial de factos prevista no artigo 303.º, n.º 1 do mesmo código.

7. Tratando-se a exigência prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) de uma condição objectiva de punibilidade, o crime de abuso de confiança contra a segurança social consuma-se com independência da sua verificação, pelo que a omissão da narração dessa verificação no libelo acusatório não pode, sem se violar o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPPenal e a jurisprudência fixada nos Acórdãos n.º 6/2008 e n.º 2/2015, fundamentar a decisão de não pronúncia dos arguidos.

8. O tribunal a quo fez prevalecer uma formalidade atinente à necessidade de pena em detrimento da realização material da Justiça e da inerente protecção dos interesses legalmente protegidos.

Nesta conformidade, substituindo o despacho recorrido por outro que, suprindo a omissão de alegação em causa, mediante o recurso ao procedimento da alteração não substancial de factos prevista no artigo 303.º, n.º 1 do CPPenal, pronuncie os arguidos.


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Responderam os arguidos, pessoas singulares, com as seguintes conclusões:

1º - Desde a síntese da tramitação, até à decisão final da instrução do processo nº 186/13.4TATMR, o Mmo. JIC espelha e enfatiza a distinção entre as figuras: elementos objectivos do tipo, elementos da culpa e condições objectivas de punibilidade;

2º - Em, respeito pelos acórdão uniformizador de jurisprudência – Ac. STJ nº 6/2008 de 9 de Abril e bem assim os acórdão dos Tribunais superiores, que com este acompanham a jurisprudência fixada, nomeadamente: Ac. T. R. Porto de 27-06-2012 – proc. 581/10.0GDSTS.P1 e A. R. Évora de 24-09-2013.

3º - A posição defendida pelo M.P. no recurso, compreende uma alteração substancial do factos, porém sem fundamento legal em fase de instrução.

4º - O Mmo. Juiz de instrução não está vinculado, ao princípio da acusação, mas antes ao princípio do inquisitório, enquanto órgão soberano da defesa da tutela efectiva dos direitos fundamentais da liberdade, da igualdade, da segurança e da dignidade humana,

5º - Opera no pensamento e funão do Juiz de instrução, não a necessidade da acusação, mas ao invés da probabilidade do agente previamente acusado, vir ou não, a ser punido;

6º - Para efeitos e probabilidade de ser ou não punido, “a afirmação feita pelo Mmo. JIC a quo da equivalência dos efeitos da falta de alegação de um dos elementos do tipo e da falta de alegação da verificação de uma condição objectiva de punibilidade”, não enferma de qualquer vício ou violação da “jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ nº 6/2008 de 9 de Abril”.

termos supra expostos em que v. exas.:

- devem negar provimento ao recurso apresentado, pelo m. público;

- devem manter o despacho de não pronúncia nos termos em que o fez o mmo. sr. dr. juíz de isntrução criminal da comarca de santarém – secção de instrução criminal de santarem – j2;

- com as demais consequências.


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Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso na medida em que as condições objectivas de punibilidade estão contidas na acusação, nos seguintes termos:

(…) A questão que vem suscitada pela digna Magistrada do Ministério Público recorrente consiste em saber se a falta de descrição da condição objectiva de punibilidade pode levar à rejeição da acusação deduzida por, assim, ser manifestamente infundada, nos termos estatuidos no artigo 311° n. 3 do CPP. E se, dizemos nós, a narração contida na acusação é insuficiente para perfectibilizar o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social e a respectiva condição objectiva de punibilidade.

Começaremos por nos debruçar sobre a questão da suficiência (ou falta dela) da narração contida na acusação deduzida pois que, na nossa óptica e no caso em apreço, tal questão prejudica o conhecimento daqueloutra que consiste em saber se a acusação deve conter os elementos conducentes à afirmação da verificação da condição objectiva de punibilidade, nos termos decididos no douto despacho recorrido.

Se atentarmos na referida acusação verificamos que, ao contrário do decidido, esta não é omissa no que concerne à condição objectiva de punibilidade que, no caso, há-de verificar-se para ser legalmente admissível o procedimento.

Nesta peça processual consignou-se que “no entanto e apesar de ter efectuado os descontos nos salários que nos meses referidos pagou, a sociedade, representada pelos dois arguidos, não entregou tais quantias à Segurança Social nem nos prazos estipulados para o efeito, nem nos 90 dias posteriores, nem até à presente dada”.

E, no final desta peça escreve-se que “está decorrido o prazo de 90 dias a que alude o artigo 105°, n. 4, al. a) do RGIT aplicável porforça do n. 2 do artigo 107º do RGIT”.

E, “está decorrido o prazo de 30 dias a que alude o artigo 105°, n04, al} b) do RGIT, aplicável por força do n. 2 do artigo 107º do RGIT”.

Em sede de prova documental, o libelo acusatório indica as notificações efectuadas à AA e aos arguidos BB e CC.

O artigo acima indicado dispõe que os factos descritos nos números anteriores só são puníveis (n. 4, alínea b) se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicáoel; no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Feito este enquadramento, consideramos que quando a acusação refere que está decorrido o prazo de 30 dias a que alude o artigo 105°, n. 4, al. b) do RGIT está implicitamente a considerar que esse prazo foi efectivamente concedido e que foi feita a notificação para esse mesmo efeito pois que, a não ser assim, nenhum sentido faria a alusão a tal prazo.

Diferente seria a situação caso a acusação fosse completamente omissa quanto à condição objectiva de punibilidade, situação que, admitimos, poderia justificar a prolação do douto despacho recorrido.

Porém, e no caso, somos do entendimento que a acusação deduzida não é manifestamente improcedente pois que se não exige uma forma tabelar de articulação da condição objectiva de punibilidade.

E, ao assim não considerar, cometeu o douto despacho recorrido erro de direito consistente numa errada integração do conceito de acusação manifestamente infundada que importa corrigir e que importa a substituição do douto despacho recorrido por um outro que aprecie dos indícios recolhidos da prática dos crimes imputados aos arguidos e profira despacho em conformidade.

Como assim, emitimos parecer no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.


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Cumprido o disposto no artigo 417º do C.P.P. responderam os arguidos.

*****

São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo os que constam do relatório que antecede.

É o seguinte o conteúdo parcial do despacho recorrido:

«Iniciaram-se os presentes autos com a comunicação ao Ministério Público da instauração de inquérito efectuada pelo Núcleo de Investigação Criminal do Instituto da Segurança Social (Serviço de Fiscalização de Lisboa e Vale do Tejo), informando da verificação de factos susceptíveis de integrar a prática, pela sociedade “AA, Lda”, do crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
Realizadas as diligência probatórias tidas por relevantes, foi declarado encerrado o inquérito e deduzida a acusação de fls. 417 e ss, que imputa à arguida “AA, Lda” e aos arguidos BB e CC, a prática do dito crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, por ref.ª aos artigos 105º, n.ºs 1, 2 e 4, 6º e 7º desse diploma.
Em síntese aí se refere que os arguidos BB e CC, na qualidade de legais representantes da arguida sociedade e no interesse desta, retiveram dos vencimentos dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários o montante devido pelas cotizações à segurança social, e que não entregaram tais quantias nos cofres da Segurança Social no prazo legalmente previsto, nem até ao presente momento.
Tais retenções indevidas abrangeram os meses de Agosto, Novembro e Dezembro de 2007 e Janeiro, Fevereiro, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 2008, no valor total de € 15.924,91.
Mais se afirma que os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de se apropriar para a sociedade desses montantes, sabendo que não lhe pertenciam e que lesava a Segurança Social no mesmo valor.

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Inconformados, vieram os arguidos BB e CC requerer a abertura da instrução alegando em síntese que:
a) No período referido na acusação a arguida sociedade deparava-se com falta de liquidez (situação que já vinha de períodos anteriores);
b) Tal situação foi causada pela própria Segurança Social que penhorou créditos da sociedade e onerou os seus imóveis com hipotecas legais;
c) Mas ainda assim não diligenciaram por obter pagamento por essa via;
d) Nenhum dos corpos gerentes ou seus familiares recebeu qualquer vencimento no período em causa;
e) E os trabalhadores foram pagos não com dinheiro da sociedade mas com verbas angariadas junto dos familiares dos sócios;
f) No mês de Outubro de 2008 a arguida sociedade não pagou qualquer vencimento;
g) Impugnando-se os montantes referentes a esse mês que não foram declarados pela sociedade;
h) Existindo também discrepâncias quanto aos meses anteriores;
i) Os arguidos nunca obtiveram qualquer vantagem pessoal com esta conduta;
j) No período de tempo referido na acusação o arguido CC não exerceu a gerência da arguida sociedade, tendo renunciado à gerência no ano de 2001, mas por motivos estranhos à sua vontade, tal renúncia apenas foi levada ao registo em 2009;
k) Pugna pela prolação de despacho de não pronúncia, requerendo a junção de documentos e a inquirição de testemunhas.
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Produzida a prova, foi realizado debate instrutório, com observância das formalidades legais.
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II – Da manifesta improcedência da acusação:
Compulsados os autos, verificamos que a acusação não contém a narração de todos os factos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança.
Está nomeadamente omissa no requerimento acusatório qualquer menção factual à condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, por remissão do artigo 107º, n.º 2, do mesmo Código.
De facto, aos arguidos é imputada a prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) que estatui que:
“1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º
2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º.”.
Por sua vez o artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT estatui que:
“4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”.
Sucede que em lado algum da acusação, no segmento da narração dos factos, se faz referência a esta notificação. Refere-se apenas que a arguida sociedade “elaborou as competentes declarações” e, no final da acusação, escreve-se que:
“A responsabilidade da arguida sociedade comercial deriva do disposto no artigo 7º do RGIFNA, actualmente, do artigo 7º do RGIT.
Está decorrido o prazo de 90 dias a que alude o artigo 105º, nº4, al. a) do RGIT, aplicável por força do nº2 do artigo 107º do RGIT.
Está decorrido o prazo de 30 dias a que alude o artigo 105º, nº4, al. b) do RGIT, aplicável por força do nº2 do artigo 107º do RGIT.”.
Ora o segmento que acabamos de citar não contém quaisquer factos, apenas conclusões de direito as quais, em especial quanto à condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT não são sustentadas por qualquer factos, pois como dissemos a acusação – rica que é em factos irrelevantes ou meramente instrumentais e conclusões jurídicas – nada refere quanto à existência da notificação prevista nesse artigo.
Deveria pois a acusação referir que os arguidos foram notificados para proceder em 30 dias proceder ao pagamento das cotizações em dívida, acrescidos dos juros devidos e coima aplicável, indicando também quando tal notificação ocorreu ou pelo menos que tais quantias não foram pagas no prazo de 30 dias contados dessa mesma notificação.
De facto, o artigo 283º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal estatui que a acusação deve conter, sob pena de nulidade “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”. (sublinhado nosso)
Ora se a acusação deve conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, então essa narração deve conter não só os elementos do tipo objectivo e subjectivo, mas também todas as condições objectivas de que depende a punibilidade da conduta. Também estas últimas carecem de ser provadas em julgamento para que os arguidos possam ser condenados. E para que sobre estas possa incidir prova, devem primeiro ser alegadas pelo órgão titular da acção penal, ou seja, pelo Ministério Público, na acusação.
O artigo 311º, n.º 3, al. d), do CPP refere que uma acusação deve ser considerada manifestamente infundada e como tal rejeitada se “os factos não constituírem crime”.
O conceito de “crime” para efeito da lei processual penal é o constante do artigo 1º, al. a), do CPP, que o define como “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”. Não distingue aqui o legislador (nem deve portanto distinguir o intérprete) entre os vários pressupostos da verificação do crime.
Da conjugação das normas citadas, é pois de concluir que a noção de “crime” para efeitos da aplicação da lei processual penal é a acepção lata dada pela doutrina, segundo a qual crime é o facto típico, ilícito, culposo e punível.
Assim sendo, para que os factos narrados na acusação constituam crime é necessário que:
a) Se descreva um facto humano: ou seja uma acção ou omissão imputada a um ser humano dominada ou dominável pela vontade;
b) Que esse facto seja típico: devendo descrever-se todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo;
c) Que esse facto seja ilícito: sendo que a ilicitude emerge em regra da tipicidade do facto, a não ser que ocorra uma causa que a exclua;
d) Que o facto seja culposo: devendo descrever-se factos de onde se conclua que o arguido, podendo adequar a sua conduta ao direito, escolheu não o fazer;
e) Que o facto seja punível.
Quanto à punibilidade do facto, esta emerge em regra da sua tipicidade, ilicitude e da culpa do agente, salvo quando o legislador decide condicionar essa punibilidade à verificação de determinados factos objectivos, ou seja, quando existem condições objectivas de punibilidade, como é o caso dos autos.
Tratando-se de um crime para o qual o legislador previu condições objectivas que devem estar verificadas para a sua punibilidade, então estas devem também estar descritas na acusação, pois de outra forma os factos descritos não serão puníveis e portanto não serão “crime” na acepção dos artigos 1º, al. a) e 311º, n.º 3, al. d), do CPP. Tal levaria assim, na fase de julgamento, à rejeição da acusação.
A este respeito, citamos o Ac. da Relação de Évora de 24/09/2013 (proc. n.º 53/11.6TASRP.E1, disponível in www.dgsi.pt) onde se decidiu que “Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006 (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008), a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.”.
Atentando na análise da doutrina efectuada por Cruz Bucho (Direito Penal, 2ºvol. Lisboa, 1983, pág. 367-368 e 372), afirma o mesmo que “H.H. Jescheck é peremptório ao afirmar que as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo (Tratado de Derecho Penal, Parte general, 4ª ed., trad. esp., Granada, 1993, pág. 508). Entre nós parece também ser esta a solução defendida por Teresa Beleza, quando assinala que quanto as estas condições funcionam as mesmas exigências de garantia da lei penal em termos de interpretação e de aplicação.”.
Isto significa que, tal como os elementos típicos do crime, as condições objectivas de que depende a punibilidade da conduta do arguido devem constar da acusação, sob pena da sua manifesta improcedência (neste sentido, mas referindo-se à condição objectiva de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão, cfr. Ac. Rel. Lisboa de 11/10/1999, proc. n.º 0042713, in www.dgsi.pt).
Ora a conclusão “Está decorrido o prazo de 30 dias a que alude o artigo 105º, nº4, al. b) do RGIT, aplicável por força do nº2 do artigo 107º do RGIT” nunca pode ser dada como provada porque não é um facto.
E mesmo que se provem em sede de julgamento todos os factos constantes da acusação, ainda assim não se logrará obter a condenação dos arguidos, pela falta desta mencionada condição objectiva de punibilidade.
Ora entendimento largamente maioritário (diremos mesmo unânime) da jurisprudência dos tribunais superiores, é de que situações como a dos autos devem resultar na não pronúncia do arguido.
De facto, como se afirma no Ac. da Relação do Porto de 27-06-2012, proferido no proc. n.º 581/10.0GDSTS.P1:
“I – A acusação à qual falte um dos elementos constitutivos do tipo não é nula mas improcedente.
II – Deduzida acusação improcedente e requerida a abertura de instrução, a circunstância de os factos descritos na acusação não constituírem crime levaria à rejeição desta.
III - E se, mesmo assim, a acusação não tivesse sido rejeitada e viesse a ser realizado julgamento, essa situação levaria à absolvição do arguido com o consequente arquivamento dos autos.
IV- Em nenhuma destas situações se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo, em vez do seu arquivamento.
IV – A reformulação ou correcção da acusação, nestas circunstâncias, subverteria o sistema processual penal vigente.”.
De igual modo, no Ac. da Relação de Coimbra de 23-05-2012, proferido no proc. n.º 126/09.5IDCBR-B.C1 afirma-se que:
“Se ocorrer no âmbito da instrução, no seio da decisão instrutória, aquando do saneamento do processo, a declaração de nulidade da acusação (art.ºs 283º, n.º 3 e 308º, n.º 3, do C. Proc. Penal), a obstar ao conhecimento do mérito da causa, mormente pela ausência da narração dos factos, determinará a não pronúncia e o consequente arquivamento do autos e não a «remessa» dos mesmos ao Ministério Público.”.
Naturalmente que, como já observámos, a falta de alegação na acusação da verificação de uma condição objectiva de punibilidade tem os mesmos efeitos que teria a falta de alegação de um dos elementos do tipo, pois o legislador não faz qualquer distinção entre os vários elementos constitutivos do crime.
De facto, considerando que:
a) Os princípios do acusatório e da autonomia do Ministério Público impedem que o Juiz de Instrução Criminal (JIC) devolva os autos ao Ministério Público para reformulação da acusação; e
b) Não é lícito ao JIC corrigir ele mesmo a acusação aditando os factos em falta, substituindo-se à função do órgão acusador;
outra solução não pode emergir para além da não pronúncia dos arguidos.
*
III – Decisão:
Nestes termos e com os fundamentos expostos não pronuncio os arguidos “AA, Lda”, BB e CC, pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, que lhes vem imputado na acusação.
Sem custas. Notifique e, oportunamente, arquive.»

***

B - Fundamentação

Cumpre conhecer.

B.1 - A questão a apreciar prende-se, exclusivamente, com a definição da exigência da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT e consequência da sua inexistência face à dedução de acusação pelo Ministério Público.

Seguimos de perto o já por nós relatado no acórdão de 24-09-2013 no processo nº 53/11.6TASRP.E1.

Ali afirmámos:

«É claro o Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008 ao estabelecer que “A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT]”. [1]
Tratando-se de uma condição objectiva de punibilidade prevista na lei em data anterior à dedução da acusação, esta (acusação) deveria conter a declaração do seu cumprimento, pois que delimitando a acusação o thema decidendum (objecto do processo) e o thema probandum (extensão da cognição), o teor da dita acusação delimita e baseia a existência processual dos elementos que são necessários à punibilidade da conduta.
Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo esta condição objectiva de punibilidade, é claro que a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.
É que, como é bom de ver, se a condição não está verificada, o ilícito não é punido. Se não é punível por isso, a importância da “condição objectiva de punibilidade” está demonstrada. Se não é punido, é inútil vir para o Tribunal.
Porque se trata de uma condição objectiva de punibilidade e não de mais simples condição de procedibilidade.
(….)
Afirma o nosso colega Cruz Bucho, do Tribunal da Relação de Guimarães que “H.H. Jescheck é peremptório ao afirmar que as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo (Tratado de Derecho Penal, Parte general, 4ª ed., trad. esp., Granada, 1993, pág. 508). Entre nós parece também ser esta a solução defendida por Teresa Beleza, quando assinala que quanto a estas condições funcionam as mesmas exigências de garantia da lei penal em termos de interpretação e de aplicação (Direito Penal, 2ºvol. Lisboa, 1983, pág. 367-368 e 372).
Figueiredo Dias fala mesmo de um capítulo da doutrina do facto punível marcado pela inconcludência: “décadas de especulação levaram só à magra conclusão (negativa) de que ali se trata de um conjunto de pressupostos que, se bem que se não liguem nem à ilicitude, nem à culpa, todavia decidem ainda da punibilidade do facto” (Temas Básicos da Doutrina do Direito Penal, Coimbra, 2001, pág. 247 e Direito Penal, cit., pág. 617, §1, itálico no original).” [2]
(…)
Só depois disso se deverá passar à fase posterior, ou seja, deduzir acusação. E isto porque se, como afirma Jescheck, “as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo”, a sua existência, a sua verificação tem que constar da acusação.»


*

B.2 - Mas não nos parece que este seja o ponto saliente da decisão no caso em apreço na medida em que esta questão não é, realmente, colocada em crise nos autos, pelo menos numa inicial abordagem.

É certo que a Digna magistrada recorrente defende a ideia contrária aos acórdãos desta Relação de Évora de 24-09-2013 (nosso relato) e de 10-12-2013 (Sénio Alves).

E defende diversa posição com argumentos atendíveis mas já ponderados.

Porque a questão aqui, para além da óbvia base de partida substantiva penal, centra a sua importância em aspectos de cariz processual penal.

A essência da nossa posição assenta na óbvia necessidade de confrontar o arguido com a verificação de condições objectivas de punibilidade essenciais à sua punição. E só espantaria que, dispondo os autos dos elementos necessários para incluir tal ou tais condições no teor da acusação, se fizesse gala de os não fazer constar por serem elementos de nenhum relevo na punibilidade da conduta.

Questão diversa – que essa sim, ganha relevo em futuros casos como consequência das posições tomadas e não como seu pressuposto – tem a ver com a possibilidade muito previsível de, não contendo a acusação os factos pertinentes à condição objectiva de punibilidade, como classificar a inclusão de tal condição nos factos provados em termos de variação factual em audiência de julgamento.

Isto é, não contendo a acusação os factos pertinentes à dita condição, a sua inclusão nos factos provados em sede de audiência de julgamento deve seguir o regime do artigo 358º do C.P.P. (alteração não substancial dos factos) ou, ao invés, o do artigo 359º do diploma (alteração substancial)?

Mas essa é questão que para os autos não releva já que a decisão antecede em concreto essa possibilidade e sempre terá em vista evitá-la.


*

B.3 – Porque – e como muito bem observa a Exmª Procuradora-Geral Adjunta – não há falta de factos.

Dispõe o artigo 105.º do RGIT que

«1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
(…)
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.»

Entre elementos do tipo penal e condições objectivas de punibilidade repartidos pelos números 1 e 4 do preceito o que está em causa no despacho recorrido é a falta de factos que permitam a integração neste último.

E da acusação consta, de forma expressa:

“No entanto e apesar de ter efectuado os descontos nos salários que nos meses referidos pagou, a sociedade, representada pelos dois arguidos, não entregou tais quantias à Segurança Social nem nos prazos estipulados para o efeito, nem nos 90 dias posteriores, nem até à presente dada”.

(…)

«Está decorrido o prazo de 90 dias a que alude o artigo 105°, n. 4, al. a) do RGIT, aplicável por força do n. 2 do artigo 107° do RGIT.

Está decorrido o prazo de 30 dias a que alude o artigo 105°, n. 4, al. b) do RGIT, aplicável por força do n. 2 do artigo 107° do RGIT

E isto são factos, independentemnete do local em que se encontrem na economia da acusação.

Aliás, a primeira condição objectiva de punibilidade – a da al. a) do nº 4 – até se mostra repetida. Quanto à da al. b) ela mostra-se suficientemnente indicada na afirmação de que está decorrido o prazo de 30 dias a que alude o preceito.

O que não pode é exigir-se que a acusação contenha a notificação (constando dos autos é uma questão probatória) ou que se mostrem liquidados os juros respectivos ou qual seja o valor da coima aplicável (o preceito não exige a indicação desse valor, que é sabido, apenas determina o pagamento acrescido), já que aqueles estarão sempre dependentes do tempo decorrrido e, portanto, serão sempre indeterminados.

Mesmo que se considere duvidosa a suficiência factual, isso apenas demonstra a não aplicação do disposto no artigo 311º do C.P.P. no caso concreto.

Este preceito exige um indubitável juízo de manifesta improcedência e deve ser usado com parcimónia e nunca nos casos em que a existência factual é discutível ou dependente de conceitos tão fluídos como a distinção entre o que é “facto” e o que pode ser “conclusão” ou “matéria de direito”.

E a sua função é clara, como afirmámos no acórdão desta Relação de Évora de 10 de Outubro de 2006 (processo nº 996/06.1):

«Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.

De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.

Não é o que se passa no caso em apreço, pelo que o recurso, não obstante por razões diversas, é procedente, devendo ser lavrado despacho de pronúncia dos arguidos.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, determinando se lavre despacho de pronúncia.

Sem tributação.

(elaborado e revisto pelo signatário antes de assinado).

Évora, 05 de Julho de 2016

João Gomes de Sousa

António Condesso_________________________________________________

[1] - De muita utilidade a leitura do acórdão da Relação de Guimarães de 22-11-2010 (rel. Desemb. Cruz Bucho - 157/03.9DBRG.G1): «“I- A exigência prevista na alínea b) do n.º4 do artigo 105.° do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.° n.º 4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. II- Esta nova condição objectiva de punibilidade não abarca todos os crimes de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social); apenas é aplicável aos casos em que a existência da dívida fiscal é participada pelo sujeito passivo, através da correspondente declaração, que não foi acompanhada do respectivo meio de pagamento. III- No caso de o arguido ser notificado nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º4 do artigo 105.° do RGIT, o processo deve aguardar sempre o decurso do prazo de 30 dias a que alude aquele normativo legal. Este prazo de 30 dias não reveste a natureza de um prazo processual pelo que o arguido a ele não pode renunciar.».

[2] - In “O crime de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social): a Lei do OE 2007 e os processos pendentes”, Guimarães, 6 de Fevereiro de 2007, gentilmente cedido pelo autor.