Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2825/16.6T8STR-B.E1
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: PROVA PERICIAL
ÂMBITO
OBJECTO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I. A prova pericial consiste na intermediação, entre a fonte de prova e o tribunal, de um juízo técnico emitido por um perito que aprecia e apreende factos para os quais são requeridos conhecimentos técnicos específicos de que o julgador não dispõe ou que são relativos a pessoas, não devendo, neste último caso, constituir objecto de inspecção judicial.

II. Ao tribunal compete apreciar se a diligência não é impertinente ou dilatória (n.º 1 do art.º 476.º do CPC) e conceder à parte contrária a faculdade de se pronunciar sobre o objecto da perícia.

III. A diligência é impertinente se não respeita aos termos da causa e será dilatória se as questões colocadas não exigirem conhecimentos especiais.

IV. É licito à parte, ainda que não onerada com o ónus da prova, fazer a contraprova a respeito dos mesmos factos.

V. Determinado tipo de provas, como é a que agora está em causa – perícia médico legal de psiquiatria - , pelo tempo que demoram na sua produção, pelos seus custos, pelos recursos que despendem e pelo carácter intrusivo na privacidade das pessoas, só devem ser utilizados quando se mostrem necessários e adequados à situação em causa, não devendo ser utilizados como meio de pressão ou de enxovalho das pessoas que a elas se devem sujeitar, sendo também nesta sede aplicável o princípio da proporcionalidade.

VI. A consideração do princípio estruturante do inquisitório impõe que o juiz tome posição sobre a necessidade das diligências de prova requeridas pelas partes e, em particular, sobre os meios de prova a constituir, razão pela qual, ao decidir-se naquele sentido, não se infringiu aquele princípio.

VII. Por outro lado, os ditames do princípio da cooperação não implicam que se desvirtuem e/ou menosprezem as regras processuais aplicáveis à admissibilidade de produção de determinados meios de prova, tanto mais que, como sucede no caso, estas são mero reflexo das normas de direito probatório material.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I.Relatório
Na acção constitutivo-condenatória proposta por BB contra CC, em sede de audiência prévia foram elencados os seguintes temas da prova:
“1. Desde o início do ano de 2011 (durante o mês de Janeiro), o Autor passou utilizar veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Mercedes - Benz, Classe E, matricula …-AJ-… de forma exclusiva e diariamente, quer profissionalmente durante a semana, quer a título estritamente pessoal, mesmo fora dos períodos de trabalho, inclusivamente aos fins-de-semana?
2. Desde aquela data que o Autor fez uso do dito veículo como se de seu proprietário se tratasse, fazendo-se transportar a si, aos seus familiares, amigos e colegas de trabalho, bem assim como material de trabalho e os seus pertences pessoais?
3. A partir daquela data que o Autor passou a proceder aos pagamentos da generalidade das despesas inerentes ao veículo em causa, designadamente, com combustível, reparações, revisões, impostos, e seguros?
4. Em Janeiro de 2015, o Autor acordou com o Réu (este na qualidade de legal representante da então proprietária, DD, Lda.), na formalização da compra e venda do veículo em causa (Mercedes- Benz, matricula …-AJ-…)? (natureza do contrato- definitivo ou promessa?)
5. Em 26 de Janeiro de 2015, acordaram no pagamento do preço de €10.000,00 (dez mil euros)?
6. No dia seguinte, 27 de Janeiro de 2015, o Autor procedeu ao pagamento do preço combinado, através de transferência interbancária para a conta da referida DD, Lda.?
7. O Réu ficou sempre na posse de um conjunto de chaves do veículo em causa, mesmo após 2011, aquando da entrega do mesmo ao Autor, sob o pretexto, àquela data, que o veículo era propriedade da DD, Lda.? Em 06 de Novembro de 2015 (Sexta-feira, durante a tarde) e fazendo uso das chaves que possuía, o autor apossou-se do veículo em questão, o qual se encontrava estacionado no parque do local de trabalho do Autor?
8. O Réu, no dia 6 de Novembro de 2015, cerca das 18:00 mandou entregar ao autor através de um funcionário da DD, Lda., uma comunicação, onde se pode ler: "BB, Como sabes e tens conhecimento há quatro anos atrás fiz contigo negócio da venda do veículo que tens usado diariamente, concretamente um veículo de marca Mercedes Beriz, com a matricula …-AJ-….Nesse negócio acordámos que pagarias a quantia de €25.000,00 Euros. Como bem sabes, após muita insistência da minha parte entregaste €.10. 000, 00 Euros no iníicio deste anos de 2015, em concreto no dia 26 de janeiro de 2015, como consta de declaração que na altura foi elaborada. Passado quase um ano continuo sem receber a restante quantia que deves pela compra do veículo que diariamente utilizas. Assim, decidi que deixarás de utilizar este veículo até que me seja paga a quantia em falta devida pela venda do mesmo. Não pretendo mais que o veículo circule sem que esteja legalizado em teu nome o que ocorrerá logo que pagues a restante parte do preço em falta. Quando fizeres a entrega desta quantia o carro ser-te­-á entregue de imediato. Espero que compreendas esta minha decisão que nesta altura visa, essencialmente, salvaguardar os meus direitos e património que outros pretendem atingir. "(CC)Santarém, 06 de Novembro de 2015"?
9. Foi através da carta supra que o Autor tomou conhecimento do apossamento do veículo por parte do réu?
10. ... O qual tinha aliás no seu interior diversos bens pessoais e material de trabalho, designadamente, uma cadeira de criança, régua de trabalho, óleo para carro, pasta com faturas de combustível, etc?
11. Alguns destes bens foram-lhe restituídos no seu local de trabalho, (dentro de uma caixa), na segunda-feira seguinte (09/09/2015), outros só mais tarde (cerca de duas semanas depois) e após muita insistência do Autor (régua de trabalho) e outros, não foram sequer restituídos até à restituição do próprio veiculo, ou seja, em 17/02/2016 nomeadamente, faturas/recibos de combustível?
12.O Autor utilizava o veículo em causa, quer como instrumento de trabalho, quer na utilização quotidiana nas deslocações profissionais e pessoais, designadamente, de sua residência para o local de trabalho e vice-versa, concretamente entre Pulinho de Cima, Casével e Santarém (…)?
13. Não dispunha de outra viatura e não existem transportes públicos alternativos para efectuar o percurso de casa para o trabalho e regresso, designadamente em horário útil para o efeito?
14. O autor desde a 6 de Novembro de 2015 até 17 de Fevereiro de 2016 deslocava-se de transportes de privados e aos favores a título de empréstimo de pessoas amigas e familiares?
15. O Autor, nas deslocações para o seu local de trabalho durante os dias de semana, teve necessidade de recorrer a um veículo emprestado pela sua mãe, concretamente um veículo ligeiro de passageiros marca Citroen C3 do ano de 2002?
16. Até 6 de Novembro de 2015, o autor deslocava-se quinzenalmente ao fim de semana de Santarém a Sines a fim de visitar a sua namorada, que ali residia, e com quem passava aqueles dias, muitas vezes passeando, utilizando para o efeito o veículo em causa?
17. O valor de um veículo de substituição da mesma gama do veículo …-AJ-… através de aluguer (Rent a Car a preços actuais, ascende a valores acima dos €100,00 (cem euros) + IVA, por dia?
18. Por força dos factos descritos supra, o Autor ficou profundamente abalado e perturbado psicologicamente., causando-lhe enorme angústia e ansiedade?
19. Durante a noite, o autor quase não consegue pernoitar, tendo muita dificuldade em conciliar o sono?
20. Nas poucas horas em que consegue dormir, revela um sono muito agitado, mexendo-se, virando-se, falando e acordando subitamente a intervalos curtos, sobressaltado?
21. Durante o dia, o Autor apresenta grande sonolência, irritabilidade, incapacidade para raciocinar com facilidade e lentidão de reflexos, bocejando constantemente?
22. Autor e réu são ambos sócios da Sociedade Comercial "DD, Lda.", sendo que, apenas o Réu é o gerente com poderes de representação da supra referida sociedade comercial, a qual se obriga com a respectiva assinatura?
23. ( da reconvenção) Na venda referida em 4) o valor acordado foi de € 25.000,00?
24. Os factos referidos em 18) a 21) são causados pelo alcoolismo de que padece o autor?
25. O réu solicitou por varias vezes ao autor o pagamento do remanescente do valor acordado para venda - € 15.000,00?
26. O valor de € 10.000,00 foi pago a título de sinal?”
O R. requereu, então, “exame pericial de psiquiatria na pessoa do Autor, para prova da situação de alcoolismo referente ao ponto 23 dos temas de prova, nomeadamente se o Autor padece de algum problema de alcoolismo e em caso afirmativo se o mesmo se mantem.
Requer ainda que se oficie a Clinica do C…, identificada folhas 73 e no artigo 90º da Contestação, a fim de informar o Tribunal se o Autor alguma vez aí esteve internado. E em afirmativo em que período de tempo e razão pela qual se deveu o internamento”.
Deferido o requerimento quanto a que se oficiasse à Clínica do C… e notificado o A. foi, oportunamente, proferido o seguinte despacho:
Perícia psiquiátrica na pessoa do Autor ( "a fim de apurar sobre a sua situação de alcoolismo")
Aquele que requerer a realização de perícia sobre a sua personalidade deverá indicar a razão pela qual entende que esse meio de obtenção de prova pode relevar para a verdade material, fundando assim o seu pedido, quer sobre o desiderato prosseguido com a perícia, quer sobre o alcance que, com ela, visa ajudar o tribunal na sua decisão.
O Réu requereu a produção de prova pericial sobre este aspecto "para prova da situação de alcoolismo referente ao ponto 23 dos temas de prova".
No ponto 24) da matéria controvertida pode ler-se: "os factos descritos em 18) a 21) são causados pelo alcoolismo de que padece o autor?".
Sem prejuízo do caracter instrumental deste facto não vislumbra este Tribunal, a relevância da realização de uma perícia medico psiquiátrica descortinando a existência ou não da situação de alcoolismo.
O objecto do litígio prende-se com a celebração de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel pelo que, para apreciação do mérito da causa, o facto de o Autor padecer de alcoolismo é indiferente.
Nestes termos, ao abrigo do artigo 476, n.º 1 do CPC por se revelar impertinente e dilatória, indefiro a perícia requerida.
Notifique.”
O R. não se conformando com o despacho que indeferiu a perícia psiquiátrica na pessoa do A. dele interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
i) Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido em 20 de junho de 2017 que, a fls… dos autos indeferiu a prova por perícia psiquiátrica na pessoa do autor, por entender que a mesma é impertinente e dilatória.
ii) O douto despacho proferido efetuou uma incorreta aplicação da lei, indeferindo o meio de prova requerido pelo réu, quando em face do nº 24 dos factos controvertido, para fazer prova da situação de alcoolismo do autor, o único meio de prova adequado e essencial é, s.m.o., a perícia psiquiátrica.
iii) Na audiência prévia, o réu requereu o exame pericial de psiquiatria na pessoa do autor, para prova da situação de alcoolismo referente ao ponto 23 dos temas de prova, nomeadamente se o autor padece de algum problema de alcoolismo e em caso afirmativo se o mesmo se mantém.
iv) Na petição inicial, o autor vem peticionar indemnização por danos morais, com fundamento nos seguintes factos controvertidos:
18) Por força dos factos descritos supra, o Autor ficou profundamente abalado e perturbado psicologicamente, causando-lhe enorme angústia e ansiedade?
19) Durante a noite, o autor quase não consegue pernoitar, tendo muita dificuldade em conciliar o sono?
20) Nas poucas horas em que consegue dormir, revela um sono muito agitado, mexendo-se, virando-se, falando e acordando subitamente a intervalos curtos, sobressaltado?
21) Durante o dia, o Autor apresenta grande sonolência, irritabilidade, incapacidade para raciocinar com facilidade e lentidão de reflexos, bocejando constantemente?
v) O réu contestou estes factos, alegando que todos os danos morais alegados pelo autor não advêm de qualquer comportamento do réu, mas antes do seu problema de alcoolismo.
v) É o seguinte o teor do número 24 dos factos controvertidos dos temas da prova: Os factos referidos em 18) a 21) são causados pelo alcoolismo de que padece o autor?
vi) Entendeu o douto Tribunal a quo que não vislumbra a relevância da realização de uma perícia médico psiquiátrica descortinando a existência ou não da situação de alcoolismo, pois o objeto do litígio prende-se com a celebração de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel pelo que, para apreciação do mérito da causa, o facto de o autor padecer de alcoolismo é indiferente.
vii) Ora, entendemos que assim não é.
viii) O autor vem pedir uma indemnização ao réu por danos morais, acima descritos em 4, que são impugnados pelo réu, que alega que tais danos morais não têm nexo causal com a situação em discussão nos autos, mas sim com a doença de alcoolismo de que padece o autor.
ix) Parece-nos que a prova da doença de alcoolismo do autor apenas pode ser feita por prova médico psiquiátrica – perícia psiquiátrica – pois trata-se de um facto que não pode ser provado por testemunhas, documentos ou outro tipo de prova, sendo assim o meio de prova requerido pelo réu essencial para que o mesmo possa provar o facto 24 dos factos controvertidos.
x) Não é indiferente para a decisão a proferir – designadamente quanto à condenação do réu por danos morais – o nexo de causalidade entre os referidos danos alegados pelo autor e a sua situação de alcoolismo.
xi) Tal constitui meio de prova essencial para a boa decisão da causa.
xii) O art. 411º CPC, consagrador do princípio do inquisitório determina incumbir ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer.
xiii) Neste sentido, o juiz deve ordenar as diligências indispensáveis para que o processo siga os seus trâmites.
xiv) O referido artigo consagra um poder-dever do juiz, que o douto acórdão do STJ, proc. n.° 325/00, de 11/01/2001 caracterizou da seguinte forma “uns entendem como o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa e outros como um poder discricionário, tendente a realizar uma função meramente supletiva e residual do tribunal em sede de produção de provas, como um poder autónomo de indagação oficiosa”.
xv) Tendo em conta que o Tribunal , ao não ordenar a diligência, violou o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, estamos perante uma nulidade por omissão que se deixa expressamente arguida para todos os devidos efeitos legais.
xvi) O douto despacho recorrido violou as normas contidas nos artigos 476º, nº 1 e 598.º, ambos do CPC.
xvii) Bem como violou os artigos 410º, 411º e o princípio da cooperação plasmado no artigo 417º do CPC.
xviii) O presente recurso deve, pois, merecer provimento e o despacho recorrido ser revogada por outro que admita a prova de perícia psiquiátrica na pessoa do autor, com todas as legais consequências.”
O apelado respondeu às alegações, pugnando pela confirmação do despacho sob censura.
Dispensados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir
II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC),
A única questão a decidir resume-se a determinar se deveria ter sido ordenada a realização de prova pericial.
III. Fundamentação
1.De Facto
Os factos pertinentes à resolução do presente recurso constam do antecedente relatório.

2. O Direito

O despacho apelado que não ordenar a realização da requerida perícia psiquiátrica, observando que, para a discussão sobre o objecto da causa, era indiferente o apuramento do facto controvertido contido no ponto n.º 24 do elenco dos temas da prova.

O apelante sustenta a imperatividade do recurso a esse meio de prova para a demonstração daquela factualidade.

É consabido que a prova pericial consiste na intermediação, entre a fonte de prova e o tribunal, de um juízo técnico emitido por um perito que aprecia e apreende factos para os quais são requeridos conhecimentos técnicos específicos de que o julgador não dispõe ou que são relativos a pessoas, não devendo, neste último caso, constituir objecto de inspecção judicial (cfr. art.º 388.º do Cod. Civil).

Com efeito, a prova pericial “destina-se a demonstrar, como qualquer outra prova, a realidade dos enunciados de facto alegados pelas partes (art.º 341.º do Cod. Civil), tendo como objecto a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art,.º 388.º do Cod. Civil).

(…)

No tocante ao valor da perícia, quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (artº 389 do Código Civil).

Deste princípio decorre, naturalmente, a impossibilidade de considerar os pareceres dos peritos como contendo verdadeiras decisões, às quais o juiz não possa, irremediavelmente, subtrair-se. Uma tal conclusão só se explicaria por um deslumbramento face à prova científica de todo inaceitável e incompatível com os dados, que relativamente à pericial, a lei coloca à disposição do intérprete e do aplicador.

Agora, convém não esquecer o peculiar objecto da prova pericial: a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (artº 388 do Código Civil).

Deste modo, à prova pericial há-de reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Deste modo, se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva (artº 653 nº 2 e 659 nº 2, in fine, do CPC). Dever que deve ser cumprido com particular escrúpulo no tocante a juízos científicos dotados de especial densidade técnica ou obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica seja universalmente reconhecida”[1].

Ao tribunal compete apreciar se a diligência não é impertinente ou dilatória (n.º 1 do art.º 476.º do CPC) e conceder à parte contrária a faculdade de se pronunciar sobre o objecto da perícia.

A diligência é impertinente se não respeita aos termos da causa e será dilatória se as questões colocadas não exigirem conhecimentos especiais[2]

No caso, importa, primeiramente, notar que o facto inserto no ponto n.º 24 do elenco dos temas da prova constitui matéria de impugnação motivada da factualidade constante dos pontos n.ºs 18 a 21 desse elenco.

No entanto, pese embora a duvidosa utilidade da inserção daquele facto nesse elenco, é de excluir a hipótese de ter a perícia requerida como impertinente, já que a mesma se reporta a um facto controvertido.

Não é, pois, esse o caminho a seguir para resolver a questão solvenda.

Efectivamente, é lícito à parte, ainda que não onerada com o ónus da prova, fazer a contraprova a respeito dos mesmos factos, com vista a torná-los duvidosos e, conseguindo-o, obtém ganho de causa (cfr. art.º 346.º do Cod. Civil).

Mas a verdade é que a demonstração de que o estado de saúde do A., que se acha descrito pontos n.ºs 18 a 21 do elenco dos temas da prova, é atribuível ao alcoolismo de que o mesmo padece pode, com suficiente precisão, ser demonstrado por outros meios de prova, nomeadamente a prova testemunhal, prova por declarações de parte, prova por confissão (que foi requerida e admitida) ou até a prova documental (tendo já sido requerida e deferida).

Por outro lado, o estabelecimento da relação entre essa alegada adição do A. e aquele estado de saúde não requer conhecimentos técnicos especiais e pode ser facilmente apreensível mediante a concatenação dos pertinentes meios de prova, a intervenção das regras da experiência corrente e a consideração da ordem natural das coisas e dos dados da intuição humana.

Acresce que, e fundamentalmente, haverá de ter em mente que determinado tipo de provas, como é a que agora está em causa, que, pelo tempo que demoram na sua produção, pelos seus custos, pelos recursos que despendem e pelo carácter intrusivo na privacidade das pessoas, só devem ser utilizados quando se mostrem necessários e adequados à situação em causa, não devendo ser utilizados como meio de pressão ou de enxovalho das pessoas que a elas se devem sujeitar. Também aqui é aplicável o princípio da proporcionalidade.

E no caso em apreço não se afigura, ponderando todos aqueles factores, que haja fundamento bastante para a realização daquela perícia.

Por isso, a diligência deve ter-se como dilatória, pelo que, embora com fundamentação diversa, há que concluir que bem se andou em enjeitar a referida diligência, não se mostrando, pois, infringido o que se dispõe no art.º 476.º do CPC.

Note-se, por seu turno, que, ao invés do que se alega, a consideração do princípio estruturante do inquisitório impõe que o juiz tome posição sobre a necessidade das diligências de prova requeridas pelas partes e, em particular, sobre os meios de prova a constituir, razão pela qual, ao decidir-se naquele sentido, não se infringiu aquele princípio.

Por outro lado, os ditames do princípio da cooperação – pensa-se que o recorrente pretenderia aludir à previsão do disposto no n.º 1 do art.º 7.º do CPC - não implicam que se desvirtuem e/ou menosprezem as regras processuais aplicáveis à admissibilidade de produção de determinados meios de prova, tanto mais que, como sucede no caso, estas são mero reflexo das normas de direito probatório material.

Não se vislumbra, por fim, qualquer razão que leve a considerar que se decidiu contra o disposto nos art.ºs. 410.º e 598.º, ambos do CPC, já que nada se prevê nestes preceitos a respeito da questão solvenda.

Termos em que, sem necessidade de mais considerações, se conclui pela manutenção da decisão apelada.

As custas serão suportadas, porque vencido, pelo apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Sumário

I. A prova pericial consiste na intermediação, entre a fonte de prova e o tribunal, de um juízo técnico emitido por um perito que aprecia e apreende factos para os quais são requeridos conhecimentos técnicos específicos de que o julgador não dispõe ou que são relativos a pessoas, não devendo, neste último caso, constituir objecto de inspecção judicial.

II. Ao tribunal compete apreciar se a diligência não é impertinente ou dilatória (n.º 1 do art.º 476.º do CPC) e conceder à parte contrária a faculdade de se pronunciar sobre o objecto da perícia.

III. A diligência é impertinente se não respeita aos termos da causa e será dilatória se as questões colocadas não exigirem conhecimentos especiais.

IV. É licito à parte, ainda que não onerada com o ónus da prova, fazer a contraprova a respeito dos mesmos factos.

V. Determinado tipo de provas, como é a que agora está em causa – perícia médico legal de psiquiatria - , pelo tempo que demoram na sua produção, pelos seus custos, pelos recursos que despendem e pelo carácter intrusivo na privacidade das pessoas, só devem ser utilizados quando se mostrem necessários e adequados à situação em causa, não devendo ser utilizados como meio de pressão ou de enxovalho das pessoas que a elas se devem sujeitar, sendo também nesta sede aplicável o princípio da proporcionalidade.

VI. A consideração do princípio estruturante do inquisitório impõe que o juiz tome posição sobre a necessidade das diligências de prova requeridas pelas partes e, em particular, sobre os meios de prova a constituir, razão pela qual, ao decidir-se naquele sentido, não se infringiu aquele princípio.

VII. Por outro lado, os ditames do princípio da cooperação não implicam que se desvirtuem e/ou menosprezem as regras processuais aplicáveis à admissibilidade de produção de determinados meios de prova, tanto mais que, como sucede no caso, estas são mero reflexo das normas de direito probatório material.

V. Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora em negar provimento à apelação, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelo apelante.

Registe.

Notifique.

Évora, 25 de Janeiro de 2017

Florbela Moreira Lança (Relatora)

Elisabete Valente (1.ª Adjunta)

Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta)


__________________________________________________
[1] Ac. da RC de 24.04.2012, proferido no proc. n.º 4857/07.6BVIS.C1
[2] Assim LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, II, pp. 504.