Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
660/22.1T8ABF.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: LIVRO DE RECLAMAÇÕES
ACESSO
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não cabe ao comerciante, alvo da obrigação legal de facultar o livro de reclamações, o poder de aferir da legitimidade de quem requer o acesso ao livro de reclamações.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos autos de recurso de contraordenação n.º 660/22.1T8ABF, do Juízo Local Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de …, a arguida AA foi condenada pela ASAE no pagamento de uma coima no valor de € 2.500,00, pela prática da contraordenação prevista na alínea b) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho, e punível pela alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 9.º do mesmo diploma, consistente em não facultar imediata e gratuitamente o livro de reclamações.

Impugnada judicialmente esta decisão, foi a mesma apreciada por sentença, com o seguinte dispositivo:

“Assim sendo e em face do exposto, nego provimento ao recurso e mantenho, na íntegra, a decisão administrativa proferida.”

Inconformada com o assim decidido, a arguida interpôs recurso daquela sentença para este TRE, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

“A. A decisão administrativa aplicou à recorrente uma coima no montante de € 2.500,00, ou seja, uma coima de montante superior ao montante mínimo (€ 1.750,00).

B. Todavia, tal sucedeu sem ter havido na notificação para exercício do direito de audição e defesa qualquer menção aos elementos relevantes para a determinação da coima (cfr. artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).

C. Ao não dar a conhecer à recorrente os elementos relevantes para a determinação da coima em momento anterior à prolação da decisão administrativa, a autoridade administrativa não permitiu que a recorrente exercesse o seu direito de participação na determinação da medida da coima.

D. Nessa medida, a autoridade administrativa violou o artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, tendo formalidades essenciais ao exercício efetivo do direito de audição prévia e viciando a decisão administrativa de nulidade.

***

E. O tribunal a quo não apreciou uma das questões invocadas pela recorrente no seu recurso de impugnação judicial, nomeadamente a relacionada com a violação da norma do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.

F. Tal omissão acarreta a nulidade da sentença recorrida, em conformidade com o disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, aplicável ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.

***

G. Por outro lado, a sentença recorrida não faz qualquer referência ao tipo subjetivo do ilícito contraordenacional.

H. A falta de descrição, na sentença condenatória, dos elementos subjetivos da contraordenação imputada à recorrente, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, acarreta a nulidade da mesma, em conformidade com o disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, aplicável ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.

***

I. A matéria de facto dada como provada não é suscetível de fundamentar a decisão proferida pelo tribunal a quo.

J. Com efeito, e contrariamente ao que consta da decisão recorrida, do teor da factualidade dada como provada não resulta que a recorrente praticou a contraordenação que lhe é imputada.

K. Nos termos do disposto no artigo 3.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, o prestador de serviços é obrigado a facultar imediata e gratuitamente ao utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado.

L. Ou seja, a al. b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro apenas estabelece a obrigatoriedade de fornecer o livro de reclamações a quem for consumidor ou utente.

M. Utente é a pessoa que utiliza, usa ou frui de alguma coisa, o que pressupõe que se chega a estabelecer uma relação jurídica de consumo entre o utente e o prestador de serviços (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.10.2016, proferido no processo n.º 2756/15.7T8VFR.P1).

N. O que releva para tal qualificação é a existência de uma relação jurídica de fornecimento de determinados bens ou serviços, uma vez que só com o estabelecimento de tal relação haverá a obrigação de fornecer o serviço e o direito de reclamar por parte do utente ou consumidor.

O. Conforme se pode constatar através da leitura dos factos dados como provados pelo tribunal a quo, não resultou provado que a denunciante BB era utente da recorrente, porquanto não resultou provado que a denunciante estava a ser atendida pela recorrente ou sequer que a mesma tencionava contratar os serviços da recorrente.

P. Apenas resultou provado que a recorrente “expulsou” a denunciante do estabelecimento em virtude de um conflito de teor pessoal existente entre ambas, conflito esse relacionado com os maridos de ambas, conforme corroborado pela testemunha CC, que, inclusivamente, afirmou que a denunciante era sua cliente e não da recorrente.

Q. A testemunha CC, que trabalhava e ainda trabalha no estabelecimento em questão, foi perentória ao afirmar que à data da prática dos factos a denunciante era sua cliente e não da recorrente, e, como tal, a recorrente, no dia anterior à data dos factos, não prestou qualquer serviço à denunciante nem esta tencionava contratar os seus serviços.

R. Os senhores militares da GNR não presenciaram o que sucedeu no dia anterior ao dia em que a denunciante BB foi pedir o livro de reclamações à recorrente, não presenciaram a recorrente a efetuar qualquer serviço à denunciante, tendo inclusivamente afirmado que a recorrente lhes comunicou que a denunciante não era sua cliente, razão pela qual se recusou a entregar-lhe o seu livro de reclamações.

S. Ou seja, a prova documental carreada para os autos e a prova produzida em sede de audiência de julgamento permitem concluir que a recorrente apenas se recusou a entregar o seu livro de reclamações à denunciante porque esta não era sua utente e como tal não lhe prestou qualquer serviço.

T. Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que não foi produzida qualquer prova no sentido de a denunciante ser cliente da arguida, pelo que, em observância ao princípio do in dubio pro reo, sempre se imporia a absolvição da recorrente.

U. Não havia entre a denunciante e a recorrente qualquer relação jurídica que legitimasse a obrigação da recorrente fornecer o seu livro de reclamações à denunciante, justamente por tal obrigação apenas existir relativamente a quem seja seu utente.

V. O acórdão invocado pelo tribunal a quo não se afigura relevante para o caso em apreço, uma vez que a situação aí tratada é manifestamente diversa da situação subjacente aos presentes autos, em que a denunciante apenas contactou com a recorrente em virtude do conflito pessoal existente entre ambas.

W. Por outro lado, resulta da prova documental carreada para os autos e da prova produzida em audiência que o estabelecimento era, à data da prática dos factos, explorado pela recorrente e por mais duas prestadoras de serviços, sendo que cada uma tinha o seu livro de reclamações (não havendo, assim, um livro de reclamações do estabelecimento).

X. Nessa medida, a recorrente não incorreu em qualquer contraordenação ao ter recusado facultar-lhe o seu livro de reclamações, razão pela qual se impõe a absolvição da recorrente da prática da contraordenação pela qual vem condenada.

Y. A sentença recorrida violou as normas da alínea b) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho, tendo interpretado a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005 no sentido em que o prestador de serviços é obrigado facultar imediata e gratuitamente a qualquer pessoa o seu livro de reclamações sempre que tal lhe seja solicitado, quando deveria ter interpretado tal norma no sentido em que o prestador de serviços é apenas obrigado a facultar imediata e gratuitamente o seu livro de reclamações quando tal lhe seja solicitado por um utente.”

Pugnando, a final, pelo seguinte:

“Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:

I. Ser declarada a nulidade da decisão administrativa, absolvendo-se a recorrente da prática da contraordenação pela qual foi condenada.

II. Ser declarada a nulidade da sentença recorrida, absolvendo-se a recorrente da prática da contraordenação pela qual foi condenada.

Caso V. Exas. assim não entendam, deve a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, ser a recorrente absolvida da prática da contraordenação pela qual foi condenada.”

O recurso foi admitido.

O MP respondeu ao recurso, em síntese com o seguinte teor (transcrição):

“A decisão recorrida apreciou os fundamentos da impugnação judicial em termos de merecer a nossa concordância no que respeita aos dois fundamentos para a discordância da recorrente. Fê-lo de modo claro e bem fundamentado, salientando-se que a própria impugnante admitiu que não entregou o Livro e que a queixosa era cliente do Estabelecimento.

Não se vislumbra nulidade invocada, nem qualquer outra, porquanto o tribunal fundamentou a decisão ponderando todos os factos pertinentes ao enquadramento da situação de facto nas normas aplicáveis. Como se salienta também na sentença, no processo administrativo foi dada a possibilidade de se pronunciar e de apresentação de defesa, o que foi exercido (fls. 6 a 10, 12 a 14).

O Tribunal entendeu que não se verificam fundamentos para alterar a a decisão administrativa, pelos motivos que melhor resultam do texto da decisão recorrida e que não nos merecem contestação quanto à decisão daquelas questões.”

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação apôs o seu “visto”.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Factos Provados

De relevante para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:

No dia 14-01-2019, quando BB se encontrava a fazer as sobrancelhas, no Estabelecimento "DD", a arguida AA expulsou a primeira do referido estabelecimento, em virtude de conflito existente entre ambas.

Nessa sequência, no dia seguinte, dia 15 de janeiro de 2019, pelas 10h30m, no estabelecimento comercial denominado «DD», sito na avenida … em … e explorado pela arguida, o livro de reclamações não foi, pela arguida, imediatamente facultado a BB, após por esta ter sido solicitado, para poder efectuar à reclamação do sucedido do dia anterior.

Mesmo após a chegada de elementos da GNR ao local, cuja presença foi solicitada por BB, a arguida recusou-se a facultar o livro de reclamações.

A arguida sabia, previu e aceitou a realização dos factos supra descritos, na medida em que sabia que estava obrigado(a) a facultar de forma imediata o livro de reclamações, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente.

Factos Não Provados

Não se provou qualquer facto que esteja em contradição lógica com a factualidade provada.

Não se provou que a intenção de BB, ao solicitar o livro de reclamações, fosse o de causar distúrbios no estabelecimento da arguida.

Também não se provou que à arguida não tenha sido conferido o direito de defesa em sede de procedimento administrativo.

Motivação da Decisão de Facto

O Tribunal fundou a sua convicção relativa à factualidade dada como provada e não provada na análise crítica e conjugada dos seguintes meios de prova, analisados à luz de critérios de razoabilidade e retirados da experiência comum:

- auto de notícia de fls. 3 e 4;

-notificação para audição da arguida e exercício do direito de defesa de fls. 6, à qual foi junta cópia do referido AN;

- Requerimento de defesa escrita de fls. 8 a 10;

- Depoimentos das testemunhas EE e FF, elementos da GNR, que se deslocaram ao estabelecimento em causa no dia 15.01.2019, e que presenciaram a recusa da arguida em facultar o livro de reclamações;

- Declarações da arguida, em julgamento, a qual admitiu que BB era sua cliente, e continua a ser.

O depoimento da testemunha CC mostrou-se inócuo para a formação da convicção do Tribunal, na medida em que não presenciou a cliente em causa a solicitar o livro de reclamações.

A restante factualidade não provada, ainda não especificamente referida, resultou de inexistência de prova. Aliás, sempre se diga que, caso de BB tivesse intenção de causar de distúrbios no estabelecimento da arguida, não se compreenderia o facto da mesma ter solicitado a presença de autoridade policial, no local, dia e hora, da ocorrência.

Aplicação do Direito aos Factos

Do teor da factualidade dada como provada e sem necessidade de grandes considerações, resulta que a arguida praticou a contraordenação imputada.

Cumpre, ainda, referir que, ainda que se demonstrasse que, no dia 15.01.2019, BB não assumia a qualidade de cliente da arguida, o que, conforme resulta da factualidade provada, não é o caso dos presentes autos, tal circunstância não isentava a arguida da obrigação de facultar o livro de reclamações.

Neste sentido , cfr. Ac., do TRP, de 15.12.2021, proc. 3185/20.6T9AVR.P1, disponível em www.dgsi.pt , no qual se sumaria:

“I - A recusa de acesso a um estabelecimento aberto ao público e em funcionamento a potencial cliente a quem foi recusada a entrada é motivo válido para pedir o livro de reclamações.

II - A disponibilização do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos da reclamação ou a legitimidade de quem a apresenta.”

Ou seja, não cabe ao comerciante, alvo da obrigação legal de facultar o livro de reclamações, o poder de aferir da legitimidade de quem requer o acesso ao livro de reclamações.

A coima aplicável deve situar-se entre € 1750,00 e € 3500,00.

A arguida foi condenada em €2.500,00, valor que não merece qualquer censura ou reparo, tendo em conta a factualidade e circunstancialismo apurados, designadamente que a arguida manteve a sua recusa em facultar o livro de reclamações, mesmo após a chegada de elementos da GNR ao local, e que a instaram a cumprir sua obrigação legal.

Inexistem, assim, fundamentos de facto ou de direito para alterar a decisão administrativa proferida, a qual deverá ser mantida nos exatos termos.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º do CPP), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – Nulidade da decisão administrativa.

2.ª questão – Nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.

3.ª questão – Do erro de direito.

B. Decidindo.

1.ª questão – Nulidade da decisão administrativa.

Segundo a recorrente, a autoridade administrativa não lhe deu a conhecer os elementos relevantes para a determinação da coima anteriormente à decisão, tendo violado o disposto no art.º 50.º do DL n.º 433/82.

Vejamos.

Segundo a aludida norma, não é permitida a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.

“A possibilidade de exercício deste direito [de pronúncia] supõe que seja feita comunicação ao arguido, antes da decisão administrativa de aplicação de sanções, sobre quais os factos que lhe são imputados, o enquadramento jurídico dos mesmos e a sanção ou sanções que a autoridade administrativa competente para aplicar a coima entende serem aplicáveis.(1)”

No caso dos autos, verifica-se que, sob a epígrafe “NOTIFICAÇÃO – DIREITO DE AUDIÇÃO E DEFESA DO ARGUIDO”, foi a arguida notificada, em 21.05.2019, das circunstâncias de tempo e lugar da contra-ordenação em causa, da sua previsão legal e da moldura punitiva. (cfr. fls. 6 e 7 dos autos)

Consequentemente, não se vê qualquer fundamento para o alegado, sendo certo que, após tal notificação, a arguida veio, como a própria ali reconhece, “para efeitos de direito de audição prévia, nos termos do art.º 50.º do Decreto-Lei 433/82, de 24 de Dezembro (RGCO)”, apresentar a sua defesa, o que fez por requerimento entrado na ASAE em 07.06.2019. (cfr. fls. 8 a 10 dos autos)

Assim, por manifesta falta de fundamento, improcede a questão.

2.ª questão – Nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.

A omissão de pronúncia em causa diz respeito, segundo a recorrente, à questão acima conhecida.

Mais uma vez, lhe falece a razão, uma vez que o tribunal a quo efectivamente se pronunciou sobre tal questão, concluindo que “não se provou que à arguida não tenha sido conferido o direito de defesa em sede de procedimento administrativo”.

De qualquer forma, ainda que não o tivesse feito, sempre a questão estaria sanada, uma vez que, como se viu supra, a recorrente foi efectivamente notificada nos termos do mencionado art.º 50.º, tendo, inclusive, exercido o seu direito de defesa.

Quanto à alegada omissão na sentença recorrida de “referência ao tipo subjetivo do ilícito contraordenacional”, dir-se-á o seguinte:

Nos termos do art.º 8.º, n.º 1 do DL 433/82, só é punível o facto praticado com dolo, o que nos remete para a respectiva definição vertida no art.º 14.º do Código Penal. (cfr. art.º 32.º daquele diploma)

Provou-se que a “arguida sabia, previu e aceitou a realização dos factos supra descritos, na medida em que sabia que estava obrigado(a) a facultar de forma imediata o livro de reclamações, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente”.

Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime (ou, in casu, uma previsão objetiva contraordenacional), for representada como consequência possível da conduta, há dolo (eventual) se o agente actuar conformando-se com aquela realização, ou seja, “[s]empre que o agente, ao actuar, se conforma com a possibilidade da ocorrência do resultado, este deve ser-lhe imputado a título de dolo eventual. Daí que, nestes casos, seja da maior importância o posicionamento do agente perante a possibilidade de produção do resultado da conduta.(2)”

Considerando aquele facto provado, ou seja, que a arguida sabia, previu e aceitou a realização da conduta omissiva, ou seja, a não apresentação imediata do livro de reclamações e se conformou com tal resultado, mostra-se inequivocamente demonstrado o dolo eventual.

Pelo exposto, improcede, in totum, esta questão.

3.ª questão – Do erro de direito.

Vem a recorrente sindicar a imputação da referida contraordenação, uma vez que, na sua perspectiva, a denunciante “não estava a ser atendida pela recorrente ou sequer que a mesma tencionava contratar os serviços da recorrente.” Faz, para fundamentar a sua alegação, referência aos depoimentos prestados pelos militares da GNR ouvidos na audiência e pela testemunha CC.

Desde logo, cumpre sublinhar que este TRE apenas conhece da matéria de direito, não sendo sindicável a decisão da 1.ª instância no que respeita à matéria de facto. (art.º 75.º, n.º 1 do DL 433/82)

Por outro lado, quanto à qualidade de “cliente” ou não da denunciante no dia 15.01.2019, afigura-se-nos a mesma irrelevante, já que a deslocação ao estabelecimento da arguida se relacionava com factos ocorridos no dia anterior, em que a aquela foi expulsa do estabelecimento quando “se encontrava a fazer as sobrancelhas”, ou seja, quando, indiscutivelmente, era “cliente”. Assim, estando o pedido do livro de reclamações relacionado com uma situação ocorrida durante a prestação de um serviço, ainda que ocorrida no dia anterior, está verificada a qualidade de “cliente”, não podendo o mesmo ser recusado.

Por último, quanto à invocada inobservância do princípio in dubio pro reo.

Nos termos do art.º 32.º, n.º 2 da CRP, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. O princípio da presunção de inocência cristalizado neste comando constitucional “surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.”(3)

Entendemos que o tribunal a quo descreveu com rigor o iter que seguiu para chegar à convicção de prova sobre os factos, explicitando de forma fundada e consistente as opções de prova tomadas. Assim, concluímos que o mencionado iter traduz um correto entendimento do princípio da livre apreciação da prova, nos termos recortados pelo art.º 127.º do CPP.

Do exposto flui que na decisão sob censura o tribunal a quo não evidencia quaisquer dúvidas relativamente à prova dos factos.

A este propósito, importa recordar que “a dúvida relevante nesta sede é a do tribunal e não a do recorrente”(4).

Ou, de forma mais impressiva: “De todos os modos, o princípio in dubio pro reo não é lesado quando, segundo opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado, mas tão-só quando o juiz condenou apesar da existência real de uma dúvida.” (5)

Improcede, assim, totalmente o recurso.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa in Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 5.ª edição, 2009, Vislis Editores, página 407.

2 Ob. cit., página 149.

3 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Volume I, 2007, página 519.

4 Acórdão do STJ de 27.11.2019 proferido no processo 232/16.0JAGRD.C1.S1.2 (Relator Vinício Ribeiro).

5 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal (tradução da 29.ª edição alemã de 2017), Ediciones Didot, Buenos Aires, 2019, página 573 (tradução nossa).