Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
164/21.0T8RMZ.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: CITAÇÃO DE SOCIEDADE
CITAÇÃO POSTAL
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário:
I – Tratando-se de citação de pessoa colectiva sujeita a inscrição obrigatória no ficheiro central de pessoas colectivas, a citação faz-se com recurso à respectiva sede estatutária constante de tal ficheiro.
II – Devolvida a primeira carta registada com a indicação de “objecto não reclamado”, deve ser remetida segunda carta para a referida sede oficial da citanda.
III – Observadas as formalidades a que aludem os n.ºs 2 e 4 do art. 246º do CPC, em conjugação com o n.º 5 do art.º 229.º e o n.º 2 do art.º 230.º, a citação postal considera-se efectuada.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
I
A autora, Sociedade Agrícola V. Rosado, S.A., com sede no Monte da Cerejeira, em Mourão, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a Ré Acampi – Entreposto Comercial de Alimentos, Unipessoal, Lda., contribuinte fiscal n.º 516132857, com sede na Rua de São Miguel, nº 56, 4835-106 Guimarães.
Tendo sido feitas as diligências para citação, foi considerada a Ré regularmente citada e uma vez que não foi apresentada contestação foi dado cumprimento ao disposto no artigo 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, após o que foi proferida sentença condenatória.
Notificada da sentença a Ré veio recorrer, alegando a falta da sua citação.
II
São as seguintes as conclusões da recorrente:
“A) A Recorrente não foi regularmente citada nos autos e, aliás, nem sequer foi citada. Art. 188º e 191º do CPC.
B) É nulo tudo o processado após a petição inicial quando a Ré não tenha sido citada. Art. 187º do CPC
C) A Recorrente possui a firma social:
“ACAMPI – ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS UNIPESSOAL, LDA”
D) A Recorrente não foi identificada com precisão na carta de citação, não tem funcionários, local para a administração, estabelecimento comercial ou recetáculo postal.
E) A citação de pessoas coletivas é efetuada por carta registada com aviso de receção, contacto pessoal de solicitador, de funcionário ou mandatário judicial, ou por edital. Arts 223º, 225º e 246º do CPC
F) A Recorrente não foi citada regularmente como refere, de modo tabelar, a douta decisão recorrida, devido a erro na identificação do citado e por falta de conhecimento do ato. Art. 188º do CPC.
G) Foram violadas as garantias e direitos de defesa da Recorrente – art. 20º CRP - designadamente das formalidades de citação, que impediram o exercício do contraditório.
H) Esta é a primeira intervenção da Recorrente no processo. Art. 189º do CPC.
I) A douta sentença recorrida violou as normas supracitadas e deve ser revogada, como é de justiça.”
III
Vistos os autos, afigura-se que é possível conhecer de imediato do recurso interposto.
Diz o art. 652º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, sobre as funções do relator nos recursos de apelação, que compete ao relator, além do mais, “julgar sumariamente o objeto do recurso, nos termos previstos no artigo 656º”.
E estabelece o art. 656º do CPC, com a epígrafe “decisão liminar do objeto do recurso” que “quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia.
Ficaram assim previstas pelo legislador situações em que não se justifica a intervenção da conferência, considerando a simplicidade da questão a decidir, apontando-se nomeadamente, a título exemplificativo, os casos em que essa questão já esteja suficientemente esclarecida pela jurisprudência existente, ou por o que vem pedido no recurso se apresentar manifestamente infundado.
Por outras palavras: a lei processual pretende que nas situações em que surja como claro e pacífico que o recurso não pode proceder, ou em que a decisão se apresente notoriamente simples, seja isso dito pelo relator em decisão sumária, sem as delongas que implicaria a intervenção do colectivo no tribunal superior.
Afigura-se que é essa a situação do presente recurso, já que, atento o teor da decisão recorrida, e vistos os factos a considerar e o direito aplicável, o recurso se apresenta como manifestamente procedente.
Assim passaremos a conhecer do recurso, apreciando e decidindo como se segue.
IV
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, como resulta das disposições conjugadas nos artºs. 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do art.º 663º n.º 2 todos do Código de Processo Civil – se outra questão não se perfilar que por um lado seja de conhecimento oficioso e que por outro venha a prejudicar o conhecimento daquelas colocadas pelo recorrente.
Atentas as conclusões do presente recurso, a questão a decidir resume-se em saber se a Ré foi ou não regularmente citada.
V
São os seguintes os dados do processo a considerar para conhecimento do recurso:
1 – A Autora instaurou a presente acção declarativa a 30-09-2021, identificando a demandada como “ACAMPI -ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS, UNIPESSOAL LDA, NIPC 516132857, com sede na Rua de São Miguel, nº 56, 4835-106 Guimarães.”
2 – Juntou com a petição inicial a informação colhida a 20-05-2021 no Portal da Justiça, onde se publicitavam os dados registados referentes à sociedade demandada:
“Nº de Matrícula/NIPC: 516132857 Firma: ACAMPI -ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS, UNIPESSOAL LDA Natureza Jurídica: SOCIEDADE POR QUOTAS Sede: Rua de São Miguel, nº 56 Distrito: Braga Concelho: Guimarães Freguesia: Creixomil 4835 - 106 Guimarães.”
3 – Os documentos juntos com a petição inicial (v. g. facturas e correspondência enviada pela Autora à Ré, também apresentam os mesmos dados identificadores da Ré e da sua sede.
4 - A 11-10-2021, previamente à citação, foi feita consulta da base de dados e junta ao processo certidão electrónica disponível online, onde se confirmaram os elementos identificadores da Ré: NIPC: 516132857 Firma: ACAMPI - ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS, UNIPESSOAL LDA Natureza Jurídica: SOCIEDADE POR QUOTAS Sede: Rua de São Miguel, nº 56 Distrito: Braga Concelho: Guimarães Freguesia: Creixomil 4835 106 Guimarães.
5 – E nesse mesmo dia 11-10-2021 foi expedida carta registada com aviso de recepção para a citação da Ré, contendo os elementos para tal fim.
6 – A carta foi endereçada para “CAMPI - ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS, UNIPESSOAL LDA Rua de São Miguel, nº 56 Guimarães 4835 106 Guimarães.”
7 – Esta carta foi devolvida pelos CTT com a menção “objecto não reclamado”.
8 – Em face dessa devolução foi remetida segunda carta registada com aviso de recepção, invocando-se “os termos do disposto no nº. 4 do art.º 246.º do Código de Processo Civil”.
9 – Também esta carta estava endereçada para “CAMPI - ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS, UNIPESSOAL LDA Rua de São Miguel, nº 56 Guimarães 4835 106 Guimarães.”
10 – Os serviços dos correios devolveram ao processo o aviso de recepção, preenchido e assinado no verso pelo funcionário respectivo, com os seguintes dizeres: “Declaração: No dia 29-10-21 às 10.02 na impossibilidade de entrega depositei no Receptáculo Postal Domiciliário da morada indicada a CITAÇÃO a ela referente”, seguindo-se uma assinatura ilegível e a data referida, e o carimbo dos correios.
11 – A 24-01-2022 foi então proferido despacho que considerou a Ré regularmente citada, seguindo-se a tramitação daí decorrente, que veio a culminar na sentença condenatória.
12 – Esta sentença foi notificada à Ré através de carta registada enviada para a mesma morada; do endereço consta “Campi -Entreposto Comercial de Alimentos, Unipessoal Lda Rua de São Miguel, Nº 56 – Guimarães 4835-106 GUIMARÃES”, tendo a Ré na sequência dessa notificação dado entrada ao presente recurso.
VI
APRECIANDO E DECIDINDO:
A) Como se pode constatar nas conclusões que delimitam o objecto do recurso, a apelante baseia a sua alegação de que se verifica falta de citação em dois fundamentos diferentes: o erro na identificação da citada e a sua falta de conhecimento do acto.
Disso é que resultaria a violação dos direitos de defesa da recorrente, contra a qual se insurge.
O invocado erro na identificação da citada consistiria na falta de um A na designação da Ré colocada no endereço das duas cartas que lhe foram remetidas.
Com efeito, a firma da Ré é a que foi indicada na petição inicial e nos documentos que a acompanham “ACAMPI - ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS, UNIPESSOAL LDA.” mas o oficial de justiça que inseriu os dados e endereçou a correspondência escreveu apenas ““CAMPI - ENTREPOSTO COMERCIAL DE ALIMENTOS, UNIPESSOAL LDA”.
Falta, portanto, o A inicial da designação ACAMPI.
Será este erro um “erro de identificação” da citada?
Afigura-se que se trata de um lapso de escrita, tão irrelevante como qualquer erro ortográfico que não afecte a inteligibilidade do que se pretendeu escrever, e na verdade tão insignificante que se apresenta insusceptível de causar qualquer confusão quanto à identidade da demandada.
Aliás, uma vez aberta a carta de citação o conjunto formado pela petição inicial e pelos documentos que a acompanham desfariam qualquer dúvida possível sobre a correcta identificação da destinatária.
Como aliás aconteceu com a notificação da sentença, que veio a justificar a interposição desta apelação. A Ré não teve qualquer hesitação em concluir que essa notificação lhe era dirigida.
O erro de identidade do citado, previsto no art. 188º, n.º 1, al. c), do CPC, como uma das circunstâncias em que existe falta de citação, é algo de completamente diferente. Verifica-se quando a pessoa citada não é aquela que foi demandada (ou seja, foi citado alguém, mas a pessoa que devia ser citado não o é).
Para que ocorra esta falta será preciso constatar que a pessoa indicada na petição inicial não foi citada e em vez dela outra pessoa foi citada no processo.
Não é o que acontece no caso presente, em que não houve qualquer erro na identificação da pessoa citada: a Ré identificada como tal na petição inicial foi efectivamente a pessoa citada, considerando a citação que foi efectuada.
Repare-se que esta conclusão não depende de saber se foi mal ou bem citada, que é outra questão. Certo é, porém, que não existiu erro de identidade do citado, para os efeitos do art. 188º, n.º 1, al. b), do CPC, carecendo de fundamento esta alegação da recorrente.
Improcede, portanto, o recurso nesta parte.
B) O outro fundamento para a mencionada falta de citação coincide com o previsto na ali e) do n.º 1 do art. 188º: existe falta de citação “Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.
Diga-se desde já que a recorrente afirma, mas não demonstra essa falta de conhecimento. E os factos que afirma, para explicar a sua falta de conhecimento, concretamente quanto a não ter a sua sede no local onde foi feita a citação, são-lhe obviamente imputáveis, visto que lhe cabe o ónus de manter actualizados os registos dos seus dados no Registo Nacional de Pessoas Colectivas.
A única sede social conhecida à Ré, consultadas as bases de dados oficiais, nomeadamente a certidão permanente disponível online, é precisamente aquela para onde foi feita a citação.
Acrescente-se, aliás, que mesmo no recurso a recorrente que diz estar instalada noutro local não apresenta qualquer documento que comprove essa afirmação (ainda que tal alteração, a ter ocorrido entretanto, não seja relevante para a sorte do recurso, dado o teor dos registos existentes na data dos actos processuais praticados).
A Ré foi citada nos autos de acordo com o disposto no art. 246º do CPC, que regula especificamente a citação das pessoas colectivas.
Assim, verifica-se que em primeiro lugar foi-lhe remetida carta registada com aviso de recepção para efeitos de citação em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 246º: “para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.”
Seguidamente, tendo sido devolvida essa carta com a menção de não reclamada, foi cumprido o disposto no n.º 4 do mesmo artigo: foi repetida a citação, enviando-se nova carta com aviso de recepção.
Esta carta não foi devolvida, verificando-se que, como determina o art. 246º, n.º 2, procedeu-se de acordo com o disposto no art. 229º, n.º 5: foi deixada a própria carta no receptáculo postal do domicílio em causa, e o serviço postal certificou a data e o local exacto em que depositou o expediente e remeteu essa certificação ao tribunal.
Não encontramos na factualidade conhecida nenhuma infracção ao estatuído no art. 229º, n.º 5, ou no art. 230º, n. 2, do CPC, a que alude o já referido art. 246º, n.º 4, como regras também aplicáveis ao caso.
Julgamos, pois, também improcedente o recurso no que tange a este fundamento.
E desta forma, porque outros fundamentos não são alegados, impõe-se concluir que não houve qualquer ofensa aos direitos de defesa da recorrente, ou ao seu acesso ao direito, não se descortinando lesão aos imperativos constitucionais consagrados no art. 20º da Constituição da República.
C) A questão em apreço tem sido repetidamente conhecida, no sentido que expusemos, em arestos dos nossos tribunais superiores. Citamos alguns, todos disponíveis em www.dgsi.pt, na parte sumariada que tem aplicação directa à situação dos autos.
- Acórdão da Relação de Lisboa de 20-10-2016, no processo n.º 1243-14.5TVLSB.L1-8, Relatora Teresa Prazeres Pais:
“1 - Passou a recair sobre as pessoas coletivas (e sobre as sociedades) o ónus de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, atualizando-o com presteza, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior.
2 -O que significa que a lei actual (artº 246 CPC) passou a fazer impender sobre a pessoa coletiva o ónus de garantir que chegue ao seu conhecimento, em tempo oportuno, uma citação que lhe seja enviada por um tribunal, o que poderá fazer por qualquer meio à sua escolha.”
Acórdão da Relação de Coimbra de 12-12-2017, no processo n.º 565/12.4TBSRT-A.C, Relator Vítor Amaral:
“1. - Para a citação postal de sociedades obrigadas a inscrição no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas existe norma processual especial, a do art.º 246.º do NCPCiv., segundo a qual a carta para citação é endereçada para a sede da citanda inscrita naquele ficheiro central (cfr. n.ºs 2 a 4).
2. - Considerou o legislador que a constituição e manutenção de determinadas pessoas coletivas, como as sociedades, comporta ónus e deveres, a que está sujeito o ente coletivo, o que explica a relevância conferida ao registo obrigatório da sede societária para efeitos de citação em processo civil.
3. - Observadas as formalidades a que aludem os n.ºs 2 e 4 daquele normativo legal (em conjugação com o n.º 5 do art.º 229.º e o n.º 2 do art.º 230.º), a citação postal considera-se efetuada, ainda que a correspondência, depois de depositada no recetáculo postal, venha a ser devolvida, operando a presunção legal – não ilidida – de que a destinatária teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados.”
- Acórdão da Relação de Guimarães, de 16-01-2020, no processo n.º 3873/19.0T8VNF-A.G1, Relator Paulo Reis:
II- Para se concluir pela falta de citação, nos termos do artigo 188.º, n.º1, al. e), do CPC não basta a alegação pela requerida/citanda de que não teve conhecimento do ato de citação, revelando-se ainda necessário que aquela alegue e demonstre não só que tal aconteceu, mas ainda que sucedeu devido a circunstâncias que não lhe são imputáveis;
III- Tratando-se de citação de pessoa coletiva sujeita a inscrição obrigatória no ficheiro central de pessoas colectivas, o recurso à respetiva sede estatutária (constante de tal ficheiro) como domicílio para efeitos de citação não se revela incompatível com os princípios de defesa e do contraditório, também não representando um excessivo ónus para a citanda a obrigação de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior.”
- Acórdão da Relação de Coimbra de 29-06-2021, no processo n.º 334/20.8T8SRE-A.C1, Relator Freitas Neto:
1 - Devolvida uma carta registada para citação de pessoa colectiva com a indicação de “objecto não reclamado”, deve ser remetida segunda carta para a sede oficial da citanda constante do ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Colectivas.
2 - Na ausência de quem receba esta segunda carta, esta deve ser ali depositada com todos os elementos referidos no artigo 227.º do CPC e com a advertência do n.º 2 do artigo 230.º do mesmo diploma, certificando o distribuidor a data e local exacto em que depositou o expediente.
D) Por tudo o que fica dito, improcede o recurso em apreciação, ficando consequentemente confirmada a sentença recorrida.
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Decisão:
Pelo que fica dito, decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se por consequência a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente (cfr. art. 527º, n.º 1, CPC).
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Évora, 9 de Junho de 2022
O Desembargador Relator
José Lúcio