Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
167/14.0TAPTG.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: DIFAMAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DEFESA
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As afirmações expressas em processo judicial de defesa do posto de trabalho inserem-se na defesa do vínculo laboral no qual uma trabalhadora, subordinada à disciplina de uma empresa, procura enfileirar razões que demonstrem a inexistência de justa causa de despedimento não constituem crime de difamação.
E nesse enquadramento as expressões empregues, quer na sua objectividade linguística, quer no seu significado judiciário, mais não são do que um instrumento de luta judicial, necessariamente aceitáveis nesse âmbito, pelo que perdem dignidade penal dada a sua insignificância e nenhuns efeitos na defesa da honra.

Na defesa judiciária de um direito, deve aceitar-se que a linguagem utilizada possa alcançar uma maior acutilância sob pena de o “chilling effect” (o efeito de arrefecimento) passar a abarcar a defesa de direitos em sede judicial, o que seria o cúmulo de desfasamento entre as práticas nacionais (decorrentes de uma errada interpretação legal) e o enquadramento internacional normativo e jurisprudencial.

Mas admitindo (ainda) a vigência do artigo 180º do Código Penal, a sua interpretação tem que ser restritiva à luz do supra dito e nunca a imputação penal poderá ocorrer sem que se configure, ao menos, nas expressões utilizadas, uma intenção exclusivamente difamatória ou, tendo presente o tipo penal de denúncia caluniosa (artigo 365º, nº 1 do C.P.), com a “consciência da falsidade da imputação”.

Ou seja, no caso dos autos e numa exegese necessariamente restritiva do tipo contido no artigo 180º do C.P (difamação), não há imputação de factos ou formulação de juízos de valor objectivamente ofensivos da honra e consideração pessoal do assistente.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de Inquérito que corre termos nos serviços do Ministério Público da Comarca de Portalegre, em que é arguida MLBVe assistente CMLC, por despacho lavrado em 11-06-2015 a Mmª. Juíza da Secção Criminal, J1, da Instância Local de Portalegre, lavrou despacho decidindo não pronunciar a arguida de um crime de difamação de que o assistente a acusara, em acusação particular.


*

Inconformado com a decisão da Mª Juíza dela interpôs a assistente o presente recurso, pedindo a sua procedência pela revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que pronuncie o arguido, com as seguintes conclusões:

01ª. – Todas as afirmações constantes da Acusação Particular, ao contrário do que se diz no douto despacho de não pronúncia são falsas, não correspondendo pois à verdade, proferidas pela arguida contra o Assistente não para defesa de um alegado direito que sobre a mesma recaía, de intentar acção judicial de responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos, mas sim com o objectivo de ofender a honra e dignidade do mesmo, concretamente,
“01º. - O Assistente é Administrador da Sociedade acima identificada e a arguida foi trabalhadora da mesma entidade até ao dia 19.03.2014;
02º. - Na sequência de procedimento despedimento por necessidade de extinção do posto de trabalho da arguida,
03º. - Entendeu a mesma intentar no Tribunal Judicial de Portalegre acção declarativa comum, com processo sumário contra o Assistente, uma Operadora de Supermercado, a Directora de Recursos Humanos e o Director de Loja, todos a exercerem funções para a sociedade acima já identificada;
04º. - A referida acção judicial foi autuada e distribuída ao 1º. Juízo sob o nº. 131 / 14.0 TBPTG;
05º. - Na petição inicial a arguida imputa directamente ao Assistente a prática de actos, os quais, para além de serem falsos, são atentatórios da sua honra e dignidade, sentindo-se o Assistente ofendido com as mesmos, as quais se passa, em síntese, a relatar:
06º. - Artigo 4º., da p.i.: “Entre as transferidas a segunda Ré, vinda da secção de caixas, desconhecendo os comportamentos praticadas nas mesmas, foi colocada nas secções da A. correndo na empresa que foi por acção da esposa do 1º Réu que não largava a baixa da dita empregada”;
07º. - Artigo 5º., da p.i.: “Apareceu nestas secções de peixaria, legumes e frutas a instabilidade, já que continuou a proximidade ao Administrador da empresa, CC, 1º Réu e este passou a ouvi-la aceitar plenamente o que lhe narra sem ouvir a parte contrária”;
08º. - Artigo 6º., da p.i.: ”Passando a atender às queixas desta senhora de nacionalidade brasileira que vive maritalmente com um português de quem tem uma filha; para receber o que quer que seja da 2ª Ré o 1º perdeu o fiel da balança”;
09º. - Artigo 7º., da p.i.: “Há cerca de 3 anos, os pais do companheiro da 2ª Ré entraram na sede da empresa a pedir satisfações ao 1º Réu, o dito administrador e ameaçando caso não se afastasse da companheira do filho, tudo em voz alta dentro da sede da empresa, ouvindo clientes e empregados as ameaças tendo por acabado por reunir todos na secção de Recursos Humanos”:
10º. - Artigo 8º., da p.i.: “ Como a esposa do 1º Réu se apercebeu, foi transferida para as secções da A., mas, decorridos cerca de seis meses desse acontecimento, o Sr. Administrador, 1º Réu continuou a aproximar-se da dita colega, brasileira, nas secções da A. tal como fazia anteriormente nas secções das caixas”;
11º. - Artigo 9º., da p.i.: “ É assim que passa períodos dilatados em conversa amena e suave só para os dois ouvirem em frente da bancada, onde a 2ª Ré presta serviço”;
12º. – Artigo 10º., da p.i.:” Passando a ir ajudá-la dentro da câmara frigorífica onde está o peixe, os legumes e frutas”;
13º. - Artigo 11º., da p.i.: ”Não recorrendo quer a 2ª Ré, trabalhadora, quer o 1º Réu Sr. Administrador a solicitar ou ordenar a outro trabalhador que a ajudasse no transporte do que quer que seja da câmara frigorífica para as bancadas”;
14º. - Artigo 12º., da p.i.: “ Acontece que a A. foi vítima de divórcio por o seu marido se envolver com a sua colega de serviço, tendo abandonado o lar conjugal e passando a habitar com a dita senhora”;
15º. - Artigo 13º., da p.i.: “ Tal facto veio a causar período de abatimento a A.”;
16º. - Artigo 14º., da p.i.: “ O dito Administrador, CC, 1º Réu apercebendo-se de tal abatimento, aproximou-se da A. e ofereceu-lhe todo o apoio pessoal, humano e económico”;
17º. - Artigo 15º., da p.i.: “ O que a agradou a satisfação de tal comportamento social e de humanidade”;
18º. - Artigo 16º., da p.i.: “ Mas, entretanto, tal apoio tinha uma contra partida já que o 1ºRéu Sr. Administrador, lhe disse para passar os momentos livres na empresa porque não fazia falta em casa e que desenvolvia mais a empresa onde passariam mais horas”;
19º. - Artigo 17º., da p.i.: “ Apercebeu-se da intenção do Sr. Administrador, casado, ao tempo com três filhas e actualmente com quatro, sendo a esposa do dito Sr. Administrador também colaboradora funcional da Pl, S.A.”;
20º. - Artigo 18º., da p.i.: ”Nunca a A. teve intenção de por em risco a felicidade de lares, nem estragar casais”;
21º. - Artigo 19º., da p.i.: “Não satisfazendo a proposta do Sr. Administrador começou a A. a ser um alvo de ataque do mesmo”;
22º. - Artigo 22º., da p.i.: “ Tornou-se impossível para a A. à medida que a relação do Sr. Administrador, 1º Réu, aumentava a aproximação com a colega brasileira, a 2ª Ré e esta incutia naquele ódio contra si.”;
23º.- Artigo 23º., da p.i.: “ A sua acção, a sua actividade impetrante contra a A., começou a agravar-se à medida que o Sr. Administrador ouvia queixas contra si do 2ª Ré que não aceitava a A. porque lhe exigia o cumprimento dos seus deveres especialmente para não prejudicar os colegas; já que a relação entre 1º e 2ª Ré é deles e a A. nada tem a ver com isso”;
24º. - Artigo 38º., da p.i.: “Nos últimos seis meses, passaram o Sr. Administrador, 1º Réu e o Director de Loja, 4º R. a frequentar as secções diariamente (além das visitas da 2ª Ré pelo 1º Réu) a bloquear actividade e arranjar qualquer falta da A., o que não conseguiram, soprando o 1º Réu, Sr. Administrador, como animal embravecido que passou a causar pressão, medo e receio, limitações à liberdade de acção e determinação da A….”
25º. - As afirmações produzidas pela arguida, no que ao Assistente dizem respeito, imputam-lhe sobretudo três grupos de prática de actos:
a) - Uma relação existente entre o Assistente e Operadora de Supermercado, PCS, que consiste não só no seu favorecimento em detrimento da Arguida, como também uma relação amorosa;
b) - Que o Assistente tentou obter favores sexuais da arguida em momento que esta se havia divorciado;
c) - Que o Assistente em conjugação de esforços com a Operadora, PS, a Directora de Departamento de Recursos Humanos, AIFe o Director de Loja, JBtêm praticado actos contra a arguida com o propósito de a prejudicar;
26º. - Todas as afirmações constantes dos artigos da p.i. transcritos para esta Acusação não correspondem à verdade, sendo por isso falsas, além de outros que o Assistente se dispensa de identificar, correndo o risco de colaborar da autêntica “telenovela mexicana” que a arguida pretendeu fazer valer com a instauração daquele já identificado processo, não tendo sequer a ele comparecido e já tendo sido proferida douta sentença absolutória, já transitada em julgado;
27º. - Ofendem a honra e dignidade do Assistente, tendo como único objectivo denegrir a sua imagem, não só enquanto Administrador da entidade acima identificada, como também na sua condição de ser humano, o que a arguida quis fazer;
28º. - A arguida com as afirmações proferidas está consciente de que as mesmas não correspondem à verdade, bem sabendo que as mesmas são proibidas por lei, extrapolando em muito o seu direito de defesa no que diz respeito à sua qualidade de trabalhadora em procedimento de despedimento por necessidade de extinção do seu posto de trabalho;
29º. – Logrou a arguida na realidade ofender a honra e dignidade do Assistente;
30º. - Há assim indícios, por parte da arguida, da prática de um crime de difamação, p. e p., pelo artº. 180º., do Código penal;
31º. – A arguida agiu sempre livre, conscientemente e deliberada sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiu de as praticar.”
02ª. – A arguida manteve com o Assistente relações apenas de âmbito profissional confinadas aos facto de ambos exercerem funções para a mesma entidade patronal, a arguida, na qualidade de trabalhadora, o Assistente seu administrador;
03ª. – Seria legítimo à arguida fazer utilização do direito laboral contra a sua entidade patronal e também seria legítimo à arguida intentar a acção de responsabilidade civil em causa, concretamente, pela prática por parte do Assistente, contra ela, por factos ilícitos;
04ª. – Todavia, mesmo que não se tivesse demonstrado na Audiência de Discussão e Julgamento a prática por parte do Assistente desses factos ilícitos contra ela praticados, caso fosse essa a sua convicção, eventualmente, a sua conduta estaria a coberto da legalidade;
05ª. – O que a arguida não pode fazer é, sabendo muito concretamente que determinados factos que constam da petição inicial não são verdadeiros, disso tendo plena consciência, vir, a coberto de uma pretensa legalidade, intentar acção judicial e trazer à mesma factos que sabe não serem de todo verdadeiros e,
06ª. – Foi esta postura que a arguida teve com o Assistente, tendo com a sua ausência, do seu ilustre Mandatário e de todas as testemunhas por ela arroladas, perdoe-se a expressão completamente se “borrifando” e “estando-se nas tintas” para comparecer na Audiência de Discussão e Julgamento, e, nesse âmbito, procurar que a prova se produzisse e dessa forma condenar o Assistente;
07ª. – O direito que se encontra na esfera jurídica da Autora, aqui arguida, de propor acção judicial de responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos contra determinada pessoa tem limites e, mesmo que seja um direito constitucionalmente protegido e, por essa via, de alguma forma colidir esse direito com outros que sobre o Assistente, ali Réu possam existir – tudo seria legítimo se a arguida na realidade agisse na convicção de que esses factos correspondiam à verdade. Mas não, a arguida ao proferir as afirmações em causa não manteve tal conduta com essa convicção por saber, ter a consciência, de que tais afirmações não são, não eram, nem nunca foram verdadeiras;
08ª. – A arguida nada mais fez, do que a coberto de um suposto direito, trazendo aos autos factos que sabia serem falsos, deles prescindiu de produzir prova por já ter nítida consciência que a não conseguia fazer, faltando pois à Audiência de Discussão e Julgamento;
09ª. – Não é pois verdade que a arguida tivesse agido na convicção de que aqueles factos eram verdadeiros, não sendo pois correcta a interpretação do douto Tribunal de que faltam os pressupostos na actuação da arguida de natureza objectiva e subjectiva, não sendo pois também correcta a interpretação de que a arguida, caso seja levada a julgamento não lhe seja aplicada qualquer pena condenatória;
10º.- Face ao exposto, deverá o douto despacho de não pronúncia ser revogado e substituído por douto despacho que pronuncie a arguida nos mesmo termos que consta da Acusação Particular, assim se fazer a costumada Boa Justiça.

*

O Digno Procurador-Adjunto do Tribunal apresentou resposta defendendo o decidido, com as seguintes conclusões:

1. Por as questões suscitadas terem sido exaustivamente tratadas no douto despacho de não pronúncia recorrido, e concordando-se na íntegra com os fundamentos aduzidos no mesmo, tanto mais que o Ministério Público entendeu não haver indícios suficientes para deduzir acusação particular (cfr. fls. 76), entende o Ministério Público que o mesmo deve ser mantido na íntegra.

*

Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.


*****

B - Fundamentação:

B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho judicial e os factos que dele constam:

É o seguinte o teor (parcial) do despacho recorrido:

«O assistente CMLC deduziram acusação contra a arguida MLBV a quem imputam a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do Código Penal.
Acusação de fls. 92-97 cujo teor se dá aqui por reproduzido.
Inconformada, porém, a arguida veio requerer a abertura de instrução, pugnando pela sua não pronúncia pelos factos de que vem acusada.
Aduz, em síntese, que:
- Os factos descritos na acusação particular provêm do direito de defesa;
- A matéria de facto elencada na dita peça processual foi apenas trazida ao processo, sem qualquer publicidade ou notoriedade;
- Não teve intenção de ofender quem quer que seja.
Requereu a inquirição de testemunhas e a junção de documentos.
(…)

*
Cumpre decidir, agora, em face dos elementos de prova carreados para os autos, da suficiência ou insuficiência de indícios que sustentem a acusação deduzida pelos assistentes.
*
(…)
É imputada à arguida a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do Código Penal.
Nos termos do disposto no art. 180º do Código Penal “1 –Quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formalizar sobre ela uma juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 – A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira;
3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar de imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 – A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”.
Por seu turno, dispõe o art.º 182.º do mesmo diploma que “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.”
O crime de difamação tem como elementos objectivos:
a) Imputação de facto lesivo da honra de outrem;
b) Por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa; ou
c) Pela reprodução daquela imputação ou juízo;
d) A conduta se não faça directamente ao ofendido, mas dirigindo-se a terceiros.
Além destes elementos impõe-se ainda que o agente aja com dolo (em qualquer uma das suas modalidades).
É aqui a honra encarada numa perspectiva dupla (normativa e fáctica), como bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, que se protege neste tipo legal de crime: Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 607 e 629.
O bem jurídico complexo da honra abrange, assim, quer a dignidade enquanto valor interior, quer a consideração enquanto valor exterior.
Como escreveu Faria Costa (ob. cit., pág. 609), a noção de “facto” traduz-se naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência, tratando-se de um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência, enquanto o conceito de “juízo” deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor, deve ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorados em função do fim prosseguido.
Numa receita simplista, podemos dizer que o tipo objectivo deste ilícito se satisfaz com a imputação directa a outra pessoa de “factos, palavras ou juízos desonrosos”, enquanto o elemento subjectivo exige o dolo (genérico: os crimes contra a honra não carecem do dolo específico, para que se tenham por verificados), em qualquer das suas modalidades previstas no Art. 14º, do Código Penal.
Segundo Beleza dos Santos, a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale (Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria, RLJ, 92º-164).
A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público.
A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral, a consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém como um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo.
Tal está consagrado directamente, no artigo 26º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra entre outros direitos da personalidade, o direito ao bom nome e reputação, corolário lógico de outro valor constitucional em que se traduz a dignidade da pessoa humana (Artigo 1º, da Constituição da República Portuguesa; e ainda, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, p.106ss).
Deste modo, o crime de difamação – em particular, e os crimes contra a honra, em geral – consuma-se quando a imputação difamatória (ou injuriosa) – é compreendida pelo destinatário, pois, nesse momento viola-se uma pretensão de respeito pela dignidade devida à pessoa humana.
A este propósito salienta, Beleza dos Santos que os delitos contra a honra não são crimes de dano. Para se considerarem consumados não é necessário que o ofendido tenha sofrido, de facto, uma diminuição na sua honra, ou na consideração social; basta que haja o perigo de que as ofensas que constituem aquelas infracções possam atingir esses dois valores (...) Basta, portanto, a imputação de facto donde resulte o perigo de ferir esses valores. A lei não exige que eles sejam realmente prejudicados, isto é, que os ofendidos, de facto, sejam avaliados socialmente como pessoas indignas ou com menor dignidade do que a que tinham, ou com menor consideração do que aquela que lhes era atribuída antes da ofensa em questão (estudo citado, RLJ, 95º-35).
Pressuposto é que a imputação do facto ou a formulação do juízo de valor seja feita perante terceiro, ainda que na presença do ofendido (critério do destinatário, que distingue este ilícito-criminal, do crime de injúria).
São por isso inúmeras as maneiras de cometer o crime.
O artigo 182º do Código Penal, conforme já se expôs, equipara à difamação e à injúria verbais “as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.
Ela pode ser cometida por palavras ou por acções.
Para além da injúria verbal, onde as palavras têm um inequívoco significado ofensivo da consideração (“ladrão”, “gatuno”, “cornudo”, “puta”, “filho de puta”), o crime pode cometer-se metendo a ridículo o ofendido, de maneira simbólica, mediante actos, imagens ou objectos que, pelo seu significado, facilmente compreendido pelos outros, ofendem a honra. Há, na verdade, todo um vocabulário de gestos que poderão ser usados juntamente com os insultos verbais, alguns deles adaptados para o uso à distância, e portanto equivalentes aos insultos gritados.
No entanto, não é fácil definir o que constitui um insulto. Em qualquer cultura existem palavras e imputações que são especialmente ofensivas, potenciando uma forma de agressão na qual os adjectivos e substantivos são usados menos para descrever a outra pessoa do que para atingi-la. Outras vezes usam-se de forma subtil, sendo a sua relevância especialmente complexa. Ocorrem, por exemplo, graus de insultos, em que a visão do mundo de cada um e em especial o contexto assumem importância decisiva (sobre este ponto particular ver o Ac. Rel. Guimarães de 27/04/2006, proc. n.º 358/06-2, disponível em www.itij.pt).
Importante, igualmente, é a contextualização dos factos, ou seja, na expressão de Simas Santos/Leal-Henriques, a atenção à característica da relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso de determinada palavra ou acto é fortemente tributário do lugar ou ambiente em que ocorrem, das pessoas entre quem ocorrem, do modo como ocorrem (Código de Processo Penal de 1982, Vol. 2, 1986, p.203).
Difamar e injuriar mais não é, basicamente, que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública (Ac. Rel. Lisboa de 6.2.96, CJ, I, pág. 156).
No entanto, vem-se entendendo, unanimemente, que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts 180º e 181º do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa (uma vez que os crimes de difamação e de injúria são crimes de perigo).
Como escreveu Beleza dos Santos «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (…).” v. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92º, pág. 167.
Pretende o legislador, com a previsão dos crimes de difamação e injúria, proteger o bem jurídico honra, vista enquanto valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade mas também a sua reputação ou consideração exterior.
Distinguem-se um do outro pela imputação directa ou indirecta dos factos ou juízos desonrosos, i. e., e no seguimento de Faria Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol.I, p. 608, enquanto que a difamação pressupõe uma relação tipicamente triangular - sendo feita perante uma terceira pessoa que é instrumentalizada para servir os intentos do agente – a injúria importa uma conexão bipolar, sendo levada a cabo perante a vitima.
*
Importa agora analisar os factos indiciados, subsumindo-os ao crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, n.º 1 e 182º, todos do Código Penal, por forma a concluir pela pronúncia, ou não pronúncia, do arguido.
I - Assim, com interesse para a decisão a proferir, encontram-se suficientemente indiciados os seguintes factos:
A) Da Acusação:
1. O Assistente é Administrador da sociedade para a qual a arguida trabalhou até 19-03-2014;
2. Entendeu a arguida intentar no tribunal judicial de Portalegre acção declarativa comum, com processo sumário contra o ora assistente, uma operadora de supermercado, a directora de recursos humanos e o director de loja da referida sociedade;
3. A referida acção foi autuada e distribuída ao 1º Juízo sob o n.º 131/14.0TBPTG;
4. Na petição inicial fez-se constar as seguintes expressões: “Entre as transferidas a segunda ré, vinda da secção de caixas, desconhecendo os comportamentos praticadas nas mesmas, foi colocada nas secções da A. correndo na empresa que foi por acção da esposa do 1º Réu que não largava a baixa da dita empregada”;
5. “Apareceu nestas secções de peixaria, legumes e frutas a instabilidade, já que continuou a proximidade ao Administrador da empresa, CC, 1º Réu e este passou a ouvi-la aceitar plenamente o que lhe narra sem ouvir a parte contrária”;
6. “Passando a atender às queixas desta senhora de nacionalidade brasileira que vive maritalmente com um português de quem tem uma filha; para receber o que quer que seja da 2ª Ré o 1º perdeu o fiel da balança”;
7. Há cerca de 3 anos, os pais do companheiro da 2ª Ré entraram na sede da empresa a pedir satisfações ao 1º Réu, o dito administrador e ameaçando caso não se afastasse da companheira do filho, tudo em voz alta dentro da sede da empresa, ouvindo clientes e empregados as ameaças tendo por acabado por reunir todos na secção de Recursos Humanos”;
8. “Como a esposa do 1º Réu se apercebeu, foi transferida para as secções da A., mas, decorridos cerca de seis meses desse acontecimento, o Sr. Administrador, 1º Réu continuou a aproximar-se da dita colega, brasileira, nas secções da A., tal como fazia anteriormente nas secções das caixas”;
9. “É assim que passa períodos dilatados em conversa amena e suave só para os dois ouvirem em frente da bancada, onde a 2ª Ré presta serviço”;
10. “Passando a ir ajudá-la dentro da câmara frigorífica onde está o peixe, os legumes e frutas”;
11. “Não recorrendo quer a 2ª Ré, trabalhadora, quer 1º Réu Sr Administrador a solicitar ou ordenar a outro trabalhador que a ajudasse no transporte do que quer que seja da câmara frigorífica para as bancadas”;
12. “Acontece que a A. foi vítima de divórcio por o seu marido se envolver com a sua colega de serviço, tendo abandonado o lar conjugal e passando a habitar com a dita senhora”;
13. “Tal facto veio a causar período de abatimento a A.”;
14. “O dito Administrador, CC, 1ª Réu apercebeu-se de tal abatimento, aproximou-se da A. e ofereceu-lhe todo o apoio pessoal, humano e económico”;
15. “O que a agradou a satisfação de tal comportamento social e de humanidade”;
16. “Mas, entretanto, tal apoio tinha uma contra partida já que o 1º Réu Sr. Administrador, lhe disse para passar os momentos livres na empresa porque não fazia falta em casa e que desenvolvias mais a empresa onde passariam mais horas”;
17. “Apercebeu-se da intenção do Sr. Administrador, casado, ao tempo com três filhas e actualmente com quatro, sendo a esposa do dito Sr. Administrador também colaboradora funcional da Pl, S.A.”;
18. “Nunca a A. teve intenção de por em risco a felicidade de lares, nem estraga casais”;
19. “Não satisfazendo a proposta do Sr. Administrador começou a A. a ser alvo de ataque do mesmo”;
20. “Tornou-se impossível para a A. à medida que a relação do Sr. Administrador, 1º Réu, aumentava a aproximação com a colega brasileira, a 2ª Ré e esta incutia naquele ódio contra si”;
21. “A sua acção, a sua actividade impetrante para a A., começou a agravar-se à medida que o Sr. Administrador ouvia queixas contra si do 2ª Ré que não aceitava a A. porque lhe exigia o cumprimento dos seus deveres especialmente para não prejudicar os colegas; já que a relação entre 1º e 2ª Ré é deles e a A. nada tem a ver com isso”;
22. “Nos últimos seis meses, passaram o Sr. Administrador, 1º réu e o director de Loja, 4º R. a frequentar as secções diariamente (além das visitas da 2ª Ré pelo 1º Réu) a bloquear actividade e arranjar qualquer falta da A., o que não conseguiram, soprando o 1º Réu, Sr. Administrador, como animal embravecido que passou a causar pressão, medo e receio, limitações à liberdade de acção e determinação da A.”.
*
B) Do requerimento de abertura de instrução:
a) Tais factos foram relatados pela arguida, na petição inicial, na convicção de que são verdadeiros, e para defesa do que julga ser o seu direito.
*
Assim, atento o que se acaba de expor, não se encontra suficientemente indiciado que:
- Os factos imputados pela arguida na petição inicial, e supra citados, sejam falsos;
- Têm como único objectivo denegrir a sua imagem, não só enquanto Administrador da sociedade, como também na condição de ser humano, o que a arguida quis fazer
- A arguida agiu com o intuito de ofender o bom nome, honra e consideração do assistente, bem sabendo que tal é proibido por lei.
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Os factos constantes dos pontos 1 a 22 não foram postos em causa pela arguida (no requerimento de abertura de instrução) e resultam do teor dos documentos juntos aos autos (certidão dos autos que correram termos no 1º Juízo sob o n.º 131/14.0TBPTG).
*
No que concerne aos factos constantes da al. a), o Tribunal formou a sua convicção com base no teor das declarações prestadas pela arguida em sede de inquérito.
Quanto à factualidade não indiciada, a mesma não resulta de qualquer meio de prova produzido em inquérito ou em sede de instrução, nem, indubitavelmente, das regras da experiência comum.
Vejamos.
Das declarações da arguida, e do teor da petição inicial não resulta indiciada a alegada intenção de ofender, resulta, ao invés, o intuito de exercício de um direito (Direito à acção). Podemos discutir a “bondade” da linguagem utilizada ou a correcção dos termos utilizados. Contudo, não se vislumbra mais do que um narrar de factos que visam compor a causa de pedir daquela acção.
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Importa agora apurar se os factos indiciariamente imputados à arguida integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em causa.
Por forma a melhor enquadrar os factos, importa analisar o que tem sido decidido pela jurisprudência a respeito de expressões proferidas em juízo.
Conforme se pode ler no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 28 de Fevereiro de 2007, disponível em www.dgsi.pt. “(…) não basta que o visado pelas imputações ou juízos se considere ofendido, para que se possa concluir pelo preenchimento do tipo de crime em causa. Há que ponderar, perante as circunstâncias do caso, a existência, ou não, de ofensa.”.
A acção típica deste crime consistirá na divulgação de factos (acontecimentos da realidade), incluindo a suspeição, ou então de considerações (palavras ou expressões) injuriosas, tanto na sua dimensão pessoal, como social. No entanto, tanto os conceitos de honra como de desconsideração não devem estar dependentes da perspectiva ou compreensão que cada um tem dos seus valores “morais” ou “ético-sociais”. Daí que os mesmos devam ser insuflados por aqueles valores que emergem do nosso quadro constitucional (art. 26.º, n.º 1 C. Rep.), que alude ao “bom nome e reputação, à imagem”, como legislativo (v. g. 70.º, n.º 1 Código Civil), nomeadamente aquela que diz respeito à tutela geral da personalidade (“personalidade física ou moral”).
Como se sabe o direito penal tem carácter subsidiário ou fragmentário, como decorre expressamente do art. 18.º, n.º 2 da C. Rep., ao preceituar que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Assim e muito embora, tanto a descrição típica do crime legal de difamação, como de injúria, não exijam que a correspondente ofensa da honra ou consideração tenham, pela sua natureza, efeitos ou circunstâncias, que ser consideradas como graves, somos de crer que a vinculação constitucional ao citado art. 18.º, n.º 2, estabelece um efectivo critério limitador. Tanto assim é, que a jurisprudência tem vindo paulatinamente a considerar, como sucedeu com o Ac. do TRP de 12 de Junho de 2002 (disponível em www.gdsi.pt), que “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”.
Para o efeito já se considerou que em certos circunstancialismos, designadamente no decurso de uma discussão, que alguém dirigir-se a outrem dizendo-lhe “que ele lhe devia dinheiro, pedindo-lhe o pagamento” não seriam expressões criminalmente típicas e, como tal, destituídas de qualquer carga injuriosa.
Estamos, nestes casos, naquela margem do nosso relacionamento social, que se deve ter como jurídico-penalmente aceitável, por não revestir, naqueles concretos circunstancialismos, qualquer imputação objectivamente ofensiva da honra ou consideração do assistente.
Por outro lado, a utilização de expressões que, em tese, possam ser consideradas desonrosas, em contexto judicial, como o caso dos autos, já mereceu tratamento jurisprudencial. Veja-se, a título de exemplo o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 31 de Janeiro de 2007, disponível em www.dgsi.pt, no qual se pode ler “A contenda judicial, enquanto processo de partes, traduz necessariamente um litígio decorrente de posições conflituantes - se não houvesse litígio, não haveria processo - sendo infelizmente frequente o extremar de posições para além daquilo que a lógica e a razão permitiriam supor. As partes procuram naturalmente acautelar da melhor forma possível as respectivas posições, tentando fazer valer aquilo que consideram ser o seu direito. E fazem-no valendo-se dos argumentos que reforçam a sua posição, requerendo as diligências e meios de prova que podem trazer-lhes vantagem, mas também procurando obstar às iniciativas da parte contrária susceptíveis de as prejudicar. “
Limitar o exercício do direito (dever) de alegação dos factos que servem de fundamento à pretensão de quem recorre aos Tribunais seriam uma clara violação do direito constitucional de liberdade de expressão e ainda da realização de um interesse legítimo.
O direito à honra e consideração não é um direito absoluto e está sujeito a compressões, por via do exercício ao direito de expressão e ao exercício de outros direitos legítimos. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido nesse sentido (vide a título de exemplo o acórdão desse tribunal no caso Almeida Azevedo contra Portugal, de 23 de Janeiro de 2007, disponível em www.echr.coe.int/echr).
O justo limite da liberdade de expressão de uma parte em processo judicial, é ditado pelas necessidades de defesa da causa. É essa a justa compressão que o direito à honra e consideração da contra-parte deve sofrer.
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Analisada, na íntegra, a petição inicial, conclui-se que na mesma se relatam factos (condutas que a serem verdadeiras são susceptíveis de responsabilidade civil e até criminal), juntam-se documentos e arrolam-se testemunhas.
Em primeiro lugar, quanto aos termos utilizados, em si, não contêm uma carga pejorativa de tal forma forte que possam por si só serem considerados uma ofensa, como aconteceria por exemplo com as palavras “ladrão” ou “gatuno”. A linguagem utilizada não contém em si juízos de valor pejorativos, sendo, no essencial, o descrever de condutas e actos e não a imputação de juízos de valor. Ainda que, nalguns casos, tenham sido alegados juízos de valor, não vemos que extravasem, de alguma forma, o lícito âmbito do exercício de um direito. Ou seja, ainda que se possa considerar que os factos imputados são lesivos da honra e consideração do assistente, há que atender ao âmbito em que são utilizados. Trata-se de uma imputação feita em juízo e não à mesa do café.
A circunstância do assistente considerar lesivas da sua honra e consideração as imputações efectuadas pela arguida na dita peça processual, não é suficiente para se imputar à arguida a prática do crime de que vem acusada.
Assim, que conclusão se deve retirar?
É certo que o texto em causa poderá ferir a sensibilidade do assistente, mas tais juízos só atentariam contra a sua honra se “nada tiverem a ver com o exercício do direito à acção e de acesso ao direito”, e forem “exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar (e sobretudo aquelas situações em que os juízos negativos sobre o visado se desprendem de qualquer conexão com a matéria em discussão, quando enfim, se exercita uma pura agressão pessoal)”.
Não é certamente o caso dos autos, em que, atentos os indícios recolhidos, a arguida proferiu, por escrito, as expressões em causa, no âmbito de uma acção judicial e no intuito de fazer valer o direito que julga ser seu. Ainda que se diga que não precisava de alegar todos aqueles factos e que se poderia ter limitado a invocar outras razões para conseguir o efeito pretendido, a verdade é que a mesma tem o direito, constitucional, de usar em Tribunal a argumentação que considere necessária para a defesa do seu direito. Ainda mais, se um dos fundamentos da acção é a responsabilidade civil por actos ilícitos, sobre a arguida, aí Autora, impendia o ónus de alegação dos factos constitutivos do direito invocado (causa de pedir) – cfr. art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil. Ainda que se considere objectivamente uma conduta típica (que não subscrevemos), sempre estaríamos perante uma exclusão da ilicitude por via do previsto no art.º 31.º, n.º 1 e 2, al. b) do Código Penal.
Diferente seria se estivéssemos, por exemplo, no âmbito de uma simples acção de dívida comercial, e a ora arguida tivesse alegado os factos em causa. Aí sim seriam a “despropósito” e visariam apenas denegrir a imagem do assistente. Contudo, não é esse o caso.
Conclui-se assim, que a conduta adoptada pela arguida não é susceptível de preencher os elementos objectivos do crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do Código Penal.
Mais, inexiste prova indiciária bastante de que a arguida tenha agido dolosamente (em qualquer das vertentes previstas no art.º 14.º do Código Penal), pelo que também o elemento subjectivo não está preenchido.
Do exposto conclui-se que, a repetir-se, em audiência de julgamento, a prova existente nos autos, a arguida não seria condenada pela prática do crime de que está acusada. Sendo altamente improvável a sua condenação em julgamento, deverá a arguida não ser pronunciada pelo crime de que foi acusada.
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Pelo acima exposto, ao abrigo do disposto no artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal, decido não pronunciar a arguida MLBVda prática de um crime de crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, n.º 1 do Código Penal.
Custas pelo assistente – cfr. art.º 515.º, n.º 1, al. a) do CPP.
Notifique.»
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Cumpre apreciar

B.2 –O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação.

Em função disso a questáo a abordar no recurso reconduz-se a apurara se a conduta da arguida integra a prática de um crime de difamação.


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B.3.1 – Encontramo-nos no âmbito de relações entre particulares e o dissídio centra-se no direito à liberdade de expressão no âmbito de relações laborais.

Não é um especial ou qualificado direito de liberdade de expressão no âmbito dos media ou das questões de interesse geral stricto sensu, sim um litigio entre particulares inserido nas relações laborais e, nestas, no que é resultante da existência de uma vinculação contratual, seu término e papel de ambos os contendores, assistente e arguida, face às razões invocadas para a cessação do contrato.

Mas até nesta área a liberdade de expressão tem campo de aplicação, já que a arguida não perde a sua liberdade de se exprimir por via da existência, tout court, de um vínculo laboral (não existe, no caso, cláusula limitativa devida a especiais razões, concorrenciais designadamente).

E isso inclui, naturalmente, a liberdade de a arguida se defender, expressando-se e adiantando razões para defesa do seu posto de trabalho.

Tal direito tem dignidade constitucional – consagrada no artigo 37º da CRP - e, no âmbito do direito infra-constitucional, encontra-se salvaguardado e regulado pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem no seu artigo 10º. [1]

Ou seja, hoje, mais propriamente, desde que Portugal é membro do Conselho da Europa, não é possível fazer uma análise do tipo criminal “difamação” sem ter presente a letra (artigo 10º, nº 1 e 2 ) da Convenção e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), algo que é amiúde esquecido.

Ou seja, as análises do tipo “difamação” não se podem limitar à análise tipológica positivista, que pode ser notável e algo coimbrã, mas algo desfasada do “ser” e do “dever-ser” jurídico-político europeu.

Este normativo convencional estipula, como obrigação directamente decorrente da sua letra e do seu espírito, a obrigação de o Estado português assegurar a plena vigência daquele princípio de liberdade de expressão, exigindo-se mesmo a implementação de medidas positivas de protecção, seja de facto, seja de direito – acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Manole e outros c. Moldávia.

Logo, é tarefa do tribunal assegurar que a liberdade de expressão é garantida através de um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão consagrada como princípio no artigo 10º da Convenção e a reputação da pessoa em causa, enquanto direito decorrente da protecção da vida privada consagrado no artigo 8º da Convenção – acórdão Cumpana e Mazare c. Roménia (processo nº no 33348/96 de 17-12-2004), § 91.

Assumindo que não há democracia sem pluralismo e que a democracia se alimenta da liberdade de expressão (a liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática), o acórdão Manole e outros c. Moldávia, de 17 de Setembro de 2009, afirma a liberdade de expressão como uma das condições primordiais do progresso de uma sociedade democrática.

Daqui decorre, com naturalidade, o maior peso reconhecido pela convenção e pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem à liberdade de expressão sobre a honra das pessoas, por muito que isso custe à nossa tradição jurídica e civilizacional napoleónica e à análise tipológica criminal exclusivamente positivista e tendo sempre presente que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem se sobrepõe à legislação ordinária portuguesa.

Naturalmente a “liberdade de expressão” anglo-saxónica a impor-se à “Raison d`État” gaulesa e ao militarismo prussiano. Certamente a impor-se também sobre qualquer arcaica concepção de honra sul-europeia que nos é, também, muito própria.

No seu número 2 o referido artigo 10º da Convenção prevê, no entanto, condições, restrições ou sanções ou, genericamente, “ingerências” no direito de liberdade de expressão.

Estas são admitidas mas devem, no entanto, estar previstas na lei e mostrar-se necessárias numa sociedade democrática, entendidas estas como uma ingerência por “necessidade social imperiosa”, para, por referência ao caso concreto, a protecção da honra e dos direitos de outrem.[2]

Indubitavelmente o ordenamento jurídico português prevê no Código Penal um tipo penal de protecção da honra do assistente, o crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1 do Código Penal:

“1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.

Com a equiparação constante do artigo 182.º do Código Penal:

“À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.”

Estão, pois, verificadas as condições para que possam operar as restrições contidas no número dois do preceito da Convenção, no sentido de que existe lei prévia punindo a difamação.

Resta saber se a “ingerência” na liberdade de expressão (o limite “difamatório”) se mostra justificada no caso concreto, se ela se mostra necessária numa sociedade democrática – isto é, se a defesa da honra do assistente se mostra necessária nesta concreta sociedade e pelas razões invocadas e, em caso afirmativo, qual dos valores deve prevalecer, a liberdade de expressão da arguida na defesa do seu trabalho (direito igualmente garantido constitucionalmente, no artigo 58º da CRP) ou a honra do assistente.

É, pois, no contraponto destes dois interesses (ou bens tutelados, na terminologia criminal) que a análise se deve centrar e só depois descair para os princípios “escolásticos” de análise do tipo criminal.

Porque sem ter a noção deste conflito de interesses não é possível concluir, como iremos concluir, que a interpretação do equilíbrio entre liberdade de expressão e defesa da honra deve orientar-se para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão, realidade que é a expressa na ordem jurídica enformada pela Convenção, como o é a portuguesa.

Ou seja, a interpretação do artigo 180º (Difamação) do Código Penal português só pode fazer-se com a (e está dependente de) análise à luz prevalecente do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


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B.3.2 – Acresce que este sentido de análise normativo restritivo da honra e expansivo da liberdade de expressão tem outras manifestações de cariz mais actual, mas não menos importante. A tendência hodierna para a extinção do tipo penal “difamação” se não absoluta, pelo menos muito relevante.

Essa tendência é já assumida na vertente “media” ou jornalística, através da Resolução 1003 (1993) sobre ética em jornalismo e da Recomendação 1589 (2003) sobre liberdade de expressão nos media na Europa.

E retomadas pela Resolução 1535 (2007) sobre ameaças à liberdade de expressão de jornalistas [3] e Resolução 1577 (2007), para a descriminalização da difamação (Towards decriminalisation of defamation).

Este movimento de descriminalização da difamação não se limita à sua vertente jornalística e teve, recentemente, um acréscimo de autoridade através da publicação do “Coroners and Justice Act (2009)”, que na sua parte 2ª, capítulo 3, Secção 73 aboliu a difamação (libel) na “commom law”. [4]


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B.3.3 – É evidente que estes não são argumentos de interpretação do direito positivado em Portugal, mas são alertas confirmatórios no sentido da compreensão de uma interpretação restritiva do tipo penal “difamação” contido no artigo 180º do Código Penal à luz do artigo 10º da Convenção.

Aliás, na vertente jornalística, essa interpretação restritiva é muito mais patente na jurisprudência do TEDH. Mas não só. Em tudo o que diga respeito a “questões de interesse geral” (que também podem ser económicas, sociais ou culturais) a jurisprudência do TEDH é restritiva da defesa da honra enquanto limite à liberdade de expressão.

Mas, no geral, a tendência será, como se afirma na Resolução 1577 (2007), no sentido da abolição da pena de prisão no crime de difamação, da definição mais precisa do conceito de difamação para evitar a arbitrariedade e, principalmente, o deixar à lei civil o papel de acautelar a protecção da dignidade das pessoas afectadas pela difamação em razoável número de casos.

Ou seja, a concretização da ideia de ultima ratio da intervenção penal, pela constatação de que a lei civil melhor acautelará os interesses ou parte dos interesses hoje abarcados pelo tipo penal.

Isso visa, igualmente, evitar os efeitos nefastos da existência de um tipo penal de “difamação”, pelo conhecido efeito de arrefecimento de condutas (chilling effect), surgindo as ameaças de prossecução por difamação como uma “particularmente insidiosa forma de intimidação” - Resolução 1577 (2007).

E essa “particularmente insidiosa forma de intimidação” tem sido utilizada na sociedade portuguesa de forma abundante, seja por pessoas, seja por empresas e organismos públicos ou privados, como forma de calar a oposição, impedir o exercício de direitos e impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância.

Tem que ser neste enquadramento geral que a questão de facto posta nos autos e o conflito entre assistente e arguida deve ser analisado.

Que o dissídio entre o assistente e a arguida se situa em questões de laborais não temos dúvida. Logo, questões de interesse individual e comercial. E através da imputação de factos.

As expressões que estão em causa são as seguintes:

06º. - Artigo 4º., da p.i.: “Entre as transferidas a segunda Ré, vinda da secção de caixas, desconhecendo os comportamentos praticadas nas mesmas, foi colocada nas secções da A. correndo na empresa que foi por acção da esposa do 1º Réu que não largava a baixa da dita empregada”;
07º. - Artigo 5º., da p.i.: “Apareceu nestas secções de peixaria, legumes e frutas a instabilidade, já que continuou a proximidade ao Administrador da empresa, CC, 1º Réu e este passou a ouvi-la aceitar plenamente o que lhe narra sem ouvir a parte contrária”;
08º. - Artigo 6º., da p.i.: ”Passando a atender às queixas desta senhora de nacionalidade brasileira que vive maritalmente com um português de quem tem uma filha; para receber o que quer que seja da 2ª Ré o 1º perdeu o fiel da balança”;
09º. - Artigo 7º., da p.i.: “Há cerca de 3 anos, os pais do companheiro da 2ª Ré entraram na sede da empresa a pedir satisfações ao 1º Réu, o dito administrador e ameaçando caso não se afastasse da companheira do filho, tudo em voz alta dentro da sede da empresa, ouvindo clientes e empregados as ameaças tendo por acabado por reunir todos na secção de Recursos Humanos”:
10º. - Artigo 8º., da p.i.: “ Como a esposa do 1º Réu se apercebeu, foi transferida para as secções da A., mas, decorridos cerca de seis meses desse acontecimento, o Sr. Administrador, 1º Réu continuou a aproximar-se da dita colega, brasileira, nas secções da A. tal como fazia anteriormente nas secções das caixas”;
11º. - Artigo 9º., da p.i.: “ É assim que passa períodos dilatados em conversa amena e suave só para os dois ouvirem em frente da bancada, onde a 2ª Ré presta serviço”;
12º. – Artigo 10º., da p.i.:” Passando a ir ajudá-la dentro da câmara frigorífica onde está o peixe, os legumes e frutas”;
13º. - Artigo 11º., da p.i.: ”Não recorrendo quer a 2ª Ré, trabalhadora, quer o 1º Réu Sr. Administrador a solicitar ou ordenar a outro trabalhador que a ajudasse no transporte do que quer que seja da câmara frigorífica para as bancadas”;
14º. - Artigo 12º., da p.i.: “ Acontece que a A. foi vítima de divórcio por o seu marido se envolver com a sua colega de serviço, tendo abandonado o lar conjugal e passando a habitar com a dita senhora”;
15º. - Artigo 13º., da p.i.: “ Tal facto veio a causar período de abatimento a A.”;
16º. - Artigo 14º., da p.i.: “O dito Administrador, CC, 1º Réu apercebendo-se de tal abatimento, aproximou-se da A. e ofereceu-lhe todo o apoio pessoal, humano e económico”;
17º. - Artigo 15º., da p.i.: “O que a agradou a satisfação de tal comportamento social e de humanidade”;
18º. - Artigo 16º., da p.i.: “Mas, entretanto, tal apoio tinha uma contra partida já que o 1ºRéu Sr. Administrador, lhe disse para passar os momentos livres na empresa porque não fazia falta em casa e que desenvolvia mais a empresa onde passariam mais horas”;
19º. - Artigo 17º., da p.i.: “Apercebeu-se da intenção do Sr. Administrador, casado, ao tempo com três filhas e actualmente com quatro, sendo a esposa do dito Sr. Administrador também colaboradora funcional da Pl, S.A.”;
20º. - Artigo 18º., da p.i.: ”Nunca a A. teve intenção de por em risco a felicidade de lares, nem estragar casais”;
21º. - Artigo 19º., da p.i.: “Não satisfazendo a proposta do Sr. Administrador começou a A. a ser um alvo de ataque do mesmo”;
22º. - Artigo 22º., da p.i.: “Tornou-se impossível para a A. à medida que a relação do Sr. Administrador, 1º Réu, aumentava a aproximação com a colega brasileira, a 2ª Ré e esta incutia naquele ódio contra si.”;
23º.- Artigo 23º., da p.i.: “A sua acção, a sua actividade impetrante contra a A., começou a agravar-se à medida que o Sr. Administrador ouvia queixas contra si do 2ª Ré que não aceitava a A. porque lhe exigia o cumprimento dos seus deveres especialmente para não prejudicar os colegas; já que a relação entre 1º e 2ª Ré é deles e a A. nada tem a ver com isso”;
24º. - Artigo 38º., da p.i.: “Nos últimos seis meses, passaram o Sr. Administrador, 1º Réu e o Director de Loja, 4º R. a frequentar as secções diariamente (além das visitas da 2ª Ré pelo 1º Réu) a bloquear actividade e arranjar qualquer falta da A., o que não conseguiram, soprando o 1º Réu, Sr. Administrador, como animal embravecido que passou a causar pressão, medo e receio, limitações à liberdade de acção e determinação da A….”

É por demais evidente que as afirmações referidas se inserem na defesa do vínculo laboral na qual uma trabalhadora, subordinada à disciplina de uma empresa, procura enfileirar razões que demonstrem a inexistência de justa causa de despedimento.

Portanto, o que aqui se disputa não é apenas a honra numa vertente de credibilidade profissional mas também a possibilidade de exercício de um direito.

E as expressões serão atentatórias da honra? A resposta terá que ser obtida por referência à sua expressão objectiva – à expressão resultante do significado das palavras e expressões empregues – e tem que ser analisada no seu enquadramento social, no caso, laboral.

E nesse enquadramento as expressões empregues, quer na sua objectividade linguística, quer no seu significado judiciário, mais não são do que um instrumento de luta judicial, necessariamente aceitáveis nesse âmbito, pelo que perdem dignidade penal dada a sua insignificância e nenhuns efeitos na defesa da honra.

Aqui – como, aliás, bem argumenta o tribunal recorrido – na defesa judiciária de um direito, deve aceitar-se que a linguagem utilizada possa alcançar uma maior acutilância sob pena de o “chilling effect” (o efeito de arrefecimento) passar a abarcar a defesa de direitos em sede judicial, o que seria o cúmulo de desfasamento entre as práticas nacionais (decorrentes de uma errada interpretação legal) e o enquadramento internacional normativo e jurisprudencial (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem).

Mas admitindo (ainda) a vigência do artigo 180º do Código Penal, a sua interpretação tem que ser restritiva à luz do supra dito e nunca a imputação penal poderá ocorrer sem que se configure, ao menos, nas expressões utilizadas, uma intenção exclusivamente difamatória ou, tendo presente o tipo penal de denúncia caluniosa (artigo 365º, nº 1 do C.P.), com a “consciência da falsidade da imputação”.

Ou seja, no caso dos autos e numa exegese necessariamente restritiva do tipo contido no artigo 180º do C.P (difamação), não há imputação de factos ou formulação de juízos de valor objectivamente ofensivos da honra e consideração pessoal do assistente, como bem analisado pelo tribunal recorrido. Não há, portanto, ofensa à honra do assistente. Prevalece, no caso, a liberdade de expressão.

Por isso o recurso deve improceder.

***

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar o despacho recorrido.

Notifique.

Custas pelo assistente com 3 (três) Ucs. de taxa de justiça.

Évora, 02 de Fevereiro de 2016

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso

__________________________________________________

[1] - As referências sobre jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem podem ser consultadas, com proveito, em “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada” de Irineu Cabral Barreto, Coimbra Editora, 4ª Edição, 2010.

[2] - Acórdão Cumpana e Mazare c. Roménia, § 88 «La condition de «nécessité dans une société démocratique» commande à la Cour de déterminer si l’ingérence incriminée correspondait à un «besoin social impérieux». Les Etats contractants jouissent d’une certaine marge d’appréciation pour juger de l’existence d’un tel besoin, mais cette marge va de pair avec un contrôle européen portant à la fois sur la loi et sur les décisions qui l’appliquent, même quand elles émanent d’une juridiction indépendante. La Cour a donc compétence pour statuer en dernier lieu sur le point de savoir si une «restriction» se concilie avec la liberté d’expression sauvegardée par l’article 10 (voir, parmi beaucoup d’autres, les arrêts Perna, précité, § 39, et Association Ekin c. France, no 39288/98, § 56, CEDH 2001-VIII)».

[3] - “Freedom of expression is a cornerstone of democracy. Where there is no real freedom of expression, there can be no real democracy”.

[4] - “The following offences under the common law of England and Wales and the common law of Northern Ireland are abolished: (a) the offences of sedition and seditious libel; (b) the offence of defamatory libel; (c) the offence of obscene libel”.