Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2149/21.7T8ENT-B.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: PENHORA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO DE PRÉDIO URBANO PARA A INDÚSTRIA
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O terceiro embargante tem de alegar e provar a posse sobre o bem penhorado ou a titularidade de qualquer direito sobre esse bem incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (penhora).
2 – A cópia do contrato de arrendamento faz prova plena da formação e proveniência do documento uma vez que a embargada não invocou a sua falta de genuidade (isto é, não impugnou as assinaturas apostas no referido contrato nem pôs em causa a exatidão do mesmo, isto é, a concordância da cópia do documento com o original), mas já não faz prova plena quanto à veracidade e validade das declarações nele contidas (artigo 376.º do Código Civil).
3 – Não tendo a embargante produzido prova documental quanto ao pagamento da renda ou quanto à celebração de contratos de fornecimento de água e de eletricidade relativos ao locado ou prova documental reveladora do pagamento dos respetivos consumos no imóvel penhorado ou prova documental (v.g. projetos, orçamentos, recibos de pagamento de bens e de serviços) e/ou testemunhal da realização de obras de melhoramento previstas no contrato que juntou aos autos e cuja cláusula terceira prevê uma carência no pagamento das rendas mensais durante o período inicial de 10 anos sob condição de realização de obras de melhoramento no imóvel, considera-se que aquela não logrou provar a titularidade do direito pessoal de gozo invocada alegadamente adveniente da celebração de contrato de arrendamento que teve por objeto o imóvel penhorado nos autos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2149/21.7T8ENT-B.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), embargada nos presentes autos que foram movidos por (…), Unipessoal, Lda. por apenso à ação executiva instaurada pela primeira contra (…) e (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo de Execução do Entroncamento, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual julgou o incidente de embargos de terceiro totalmente procedente e, consequentemente, «reconheceu a existência do contrato de arrendamento invocado pela embargante no qual esta última figura como arrendatária, bem como a sua manutenção na ordem jurídica, impedindo a entrega do locado livre de pessoas e bens».

Na presente ação, deduzida por apenso à ação executiva onde foi penhorado o imóvel em causa nos presentes autos, a embargante alegou que é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico, comércio, revenda, distribuição, montagem, importação e exportação de carpintaria e mobiliário, projetos de arquitetura, design de interiores, entre outros, e que no âmbito daquela sua atividade comercial e porque precisava de espaço para o exercício da mesma, tomou de arrendamento o prédio urbano sito em (…), Estrada do (…), em (…), no dia 1 de outubro de 2019, contrato que foi celebrado pelo prazo de 25 anos e que teve início no dia 1 de outubro de 2019. Mais alegou que a renda foi fixada em € 350,00 mensais e que realizou investimentos avultados no imóvel para ali poder exercer a sua atividade, o que explica as condições estabelecidas no contrato de arrendamento, e, ainda, que só teve conhecimento da penhora do imóvel arrendado no dia 11 de outubro de 2019.
Os embargos foram recebidos e foi determinada a suspensão da instância executiva quanto ao imóvel penhorado naqueles autos.
Notificados a exequente e os executados, apenas a primeira contestou, impugnando a existência e validade do contrato de arrendamento invocado pela embargante.
Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento, após o que foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A) A recorrente vem interpor recurso da mui douta sentença proferida pelo Juiz 3 do Juiz de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, no âmbito do Processo n.º 2149/21.7T8ENT-B, que julgou os embargos de Terceiro procedentes nos seguintes termos: decide-se julgar totalmente procedente, por provado, o incidente de embargos de terceiro deduzido e, em consequência, decide-se reconhecer a existência do contrato de arrendamento invocado, no qual figura como arrendatária a embargante, e a manutenção do contrato de arrendamento na ordem jurídica, impedindo a entrega do locado livre de pessoas e bens.
B) Porquanto, veio o douto Tribunal a quo dar como provado que o imóvel penhorado nos presentes autos está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à recorrida e estando, no caso, reconhecida a existência do contrato de arrendamento invocado pela embargante, mesmo no caso de venda executiva, o pedido formulado deve sempre ser atendido.
C) Ora, não pode a recorrente conformar-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, porquanto nem há prova do arrendamento efetivo, válido e eficaz do imóvel penhorado nos autos à recorrida nem tão pouco a recorrida alegou ou fez qualquer prova dos pressupostos previstos no artigo do artigo 342.º do Código de Processo Civil, posse, uso do imóvel ou de qualquer direito incompatível com a penhora, pelo que não bastará invocar um contrato de arrendamento para que o pedido da recorrida seja atendido.
D) O recurso tem por objeto a matéria de facto e de direito, salvo o devido respeito, a decisão recorrida padece de erro de julgamento, não fez a melhor interpretação dos factos nem da interpretação e aplicação das normas de Direito que se impunham, não houve uma correta subsunção dos factos ao direito em virtude da prova produzida e constante dos autos, não houve uma correta valoração da prova documental e testemunhal, os fundamentos da decisão assentam em factos/matéria nova, revelando-se uma decisão surpresa em violação dos princípios constantes do artigo 3.º, 5.º e 6.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, nula, nos termos da alínea c) e d) do artigo 615.º do Código de Processo Civil, e dos artigos 411.º, 590.º, n.º 3 e 4, do CPC, com consequente nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 1, segunda parte, do Código de Processo Civil, pelo que carece de ser revogada e alterada nos termos abaixo expostos.
E) Nos termos do requerimento executivo, em 05.12.2013, no exercício da sua atividade creditícia, a Caixa (…), por escritura pública outorgada, de fls. 89 a fls. 92, do Livro de notas (…)-A, do Cartório Notarial de Santarém, celebrou com a (…), Lda., devidamente representada por (…) e (…), que intervieram na qualidade de sócios-gerentes e também na qualidade de fiadores, e com (…), (…), (…) e (…), na qualidade de fiadores, um Contrato de Empréstimo com Hipoteca e Fiança, no valor de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), destinado à liquidação de responsabilidades de crédito na Caixa (…).
F) Para garantia do integral cumprimento das obrigações pecuniárias assumidas os Executados (…) e (…) constituíram a favor da Caixa (…), agora da Exequente, hipoteca voluntária sob:
- Prédio misto, composto de pinhal e barracão de rés do chão e primeiro andar para habitação e logradouro, outro barracão e logradouro, sito em (…) – Estrada do (…), dita freguesia de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o número (…)/(…) e inscrita na matriz predial urbana respetiva sob os artigos (…), (…) e (…).
G) A Hipoteca foi registada na referida Conservatória do Registo Predial através das Ap. (…), de 2013/12/05 (a cessão a favor da Exequente registada como Averb. – Ap. (…), de 2020/04/07).
H) Sucede que os Executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao mutuante, em 17.01.2019.
I) Veio a recorrida, alegar que no dia 1 de outubro de 2019 que arrendou o supra referido prédio urbano, com a renda mensal de € 350,00, pelo prazo de 25 anos, liquidou o imposto do selo, realizou investimentos avultados para ali exercer a sua atividade profissional de fabrico, comércio, revenda, distribuição, montagem, importação e exportação de carpintaria e mobiliário, projetos de arquitetura, design de interiores, entre outros., juntando, para o efeito, apenas cópia do alegado contrato de arrendamento para fins não habitacionais e de liquidação de imposto de selo.
J) A ora recorrente, embargada nos autos, veio contestar e demonstrou não inexistir qualquer contrato de arrendamento efetivo, válido e eficaz, por não existir qualquer pagamento de renda, o imóvel em apreço não permite o exercício daquela atividade por não dispor de licença de utilização e necessita de obras profundas e estruturantes, e a recorrida não alegou nem demonstrou que faça uso, tenha a fruição do imóvel penhorado ou um qualquer direito incompatível com a diligência de penhora do imóvel, e juntou o auto de constatação do imóvel e afixação de edital elaborado a 19.01.2022 pela Senhora Agente de Execução delegada Dra. (…), do qual constam as fotografias do imóvel nessa data degradado, devoluto e fechado.
A. DO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
K) Entende a recorrente que a matéria constante no ponto 4.1.7 da sentença recorrida deveria ter sido julgada como não provada (4.1.7. O prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à embargante).
A sentença recorrida fundamenta a sua decisão quanto a esta matéria de facto sic: A prova produzida foi analisada critica e livremente no seu conjunto tenha ou não emanado da parte que devia produzi-la (artigo 413.º do Código de Processo Civil) tendo como critério fundamental o previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, no qual se consagra o princípio da liberdade de julgamento ou o princípio da livre apreciação da prova, de onde emerge que compete ao tribunal «apreciar livremente as provas segundo a sua livre convicção acerca de cada facto».
Os seis primeiros pontos factuais apurados foram considerados assentes no saneador, o qual não mereceu oposição.
O sétimo ponto factual assentou na conjugação da cópia do contrato de arrendamento junta aos autos com os comprovativos relativos ao imposto de selo, igualmente juntos aos autos. Ademais, o arrendamento foi confirmado por (…), que, ainda que parte interessada no desfecho da causa, por ser executada, referiu este aspeto de forma que se afigurou isenta, por perentória e clara. Os documentos juntos pela exequente, designadamente edital e fotografias do imóvel, não contrariam esta conclusão, já que, como (…) referiu, o locado destinava-se ao armazenamento de materiais, não tendo de estar lá alguém para o efeito.
Mesmo (…), Agente de Execução, autora do edital e das fotografias, admitiu como possível a atividade de armazenamento no imóvel.
L) Salvo o devido respeito por opinião diversa, o Douto Tribunal a quo não valorou de forma correta nem a prova documental junta aos autos nem a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento.
Desde já,
M) A douta sentença do Tribunal a quo veio a dar como provado a existência do alegado contrato de arrendamento que afinal seria para o locado destinava-se ao armazenamento de materiais, não tendo de estar lá alguém para o efeito, contrariando assim aquilo que consta quer do alegado contrato quer da petição inicial da embargante, revelando-se assim uma decisão surpresa em violação dos princípios constantes dos artigos 3.º, 5.º e 6.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, nula, nos termos das alíneas c) e d) do artigo 615.º do Código de Processo Civil, e dos artigos 411.º, 590.º, n.º 3 e 4, do CPC, com consequente nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 1, segunda parte, do Código de Processo Civil, pelo que carece de ser revogada, porquanto até à contestação da recorrente nunca havia sido alegado que locado destinava-se ao armazenamento de materiais.
Acresce que,
N) Salvo o devido respeito por opinião diversa, a cópia do contrato de arrendamento não são fundamento bastante para a existência de um arrendamento efetivo, válido e eficaz, nem tão pouco as testemunhas referidas confirmaram o arrendamento em apreço nos presentes autos, bem como não há qualquer prova dos requisitos constantes no artigo 342.º do Código de Processo Civil para que os embargos de terceiro posas ser julgados, sem mais, procedentes.
O) Nos termos do artigo 1022.º do Código Civil “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.” e nos termos do n.º 1 do artigo 1075.º do Código Civil. A renda corresponde a uma prestação pecuniária periódica.
P) Muito embora, o alegado contrato de arrendamento preveja uma renda mensal de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), o mesmo prevê que no período inicial de 10 (dez) anos, o Senhorio concede uma carência no pagamento das rendas mensais sob a condição da Arrendatária efetuar obras de melhoramento do locado, em virtude de o Senhorio não possuir liquidez para a realização de obras profundas e estruturais que o locado necessita” (cfr, cláusula Terceiro do alegado contrato de arrendamento).
Q) Na alegada data do contrato de arrendamento de 01.10.2019, o contrato executado nos autos principais estava em incumprimento desde 17.01.2019, o que, desde, já torna inverosímil que perante o incumprimento de um contrato de crédito garantido por hipoteca sob o imóvel em apreço, o executado proprietário do imóvel possa celebrar um alegado contrato de arrendamento sem qualquer retribuição durante um período de 10 (dez) anos.
R) Assim, como inexiste no alegado contrato de arrendamento qualquer estimativa de custos para as alegadas obras profundas e estruturantes, o que determina a nulidade do alegado Contrato nos termos do artigo 280.º do Código Civil.
S) Tão pouco, a Embargante demonstra os alegados investimentos avultados, nomeadamente com pagamentos efetivos e com volume de faturação que possam justificar a concretização dos mencionados investimentos avultados.
T) Inexiste assim prova de qualquer retribuição, tal facto é relevante, uma vez que importa a nulidade do próprio contrato, mas também porque torna impossível fazer prova da sua existência.
U) Um imóvel que necessite de obras profundas e estruturantes não pode dispor de licença de utilização para o fim nele previsto e alegados pela recorrida na petição inicial ou sequer para o exercício de uma qualquer atividade comercial.
V) Nos termos do n.º 1 do artigo 1070.º do Código Civil, o arrendamento urbano só poder recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente, através de licença de utilização, quando exigível”.
X) E conforme o n.º 1 do artigo 5.º do DL 160/2006, de 8 de agosto, “só podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestado pela licença de utilização”.
Z) Não foi feita prova da existência de qualquer licença de utilização nem a mesma é junta ao mencionado contrato de arrendamento.
AA) Prevê ainda o alegado contrato que “Independentemente da causa de cessação do contrato do presente do contrato de arrendamento no período de vigência inicial por causa exclusivamente imputável ao Senhorio, este obriga-se a indemnizar a Arrendatária no valor do presente contrato de arrendamento, isto é o Senhorio ficará obrigado a pagar a renda anual de € 4.200,00 (quatro mil e duzentos euros), a multiplicar pelos 25 (vinte e cinco) anos de duração inicial do contrato”.
BB) Face à desproporcionalidade das obrigações, por se tratar de cláusula abusiva e leonina, agravada pela inexistência da exigência da concretização pela recorrida de qualquer das alegadas obras profundas e estruturais, essa cláusula contratual determinaria também a nulidade de um qualquer contrato, além de ser pouco crível, uma vez que o alegado Senhorio, Executado nos autos, sabe que o contrato de crédito garantido pela hipoteca estava incumprido desde 17.01.2019, bem sabendo que, o imóvel viria a ser penhorado conforme ocorreu.
CC) Além de não ter sido alegada qualquer posse do imóvel pela recorrida, a mesma não foi sequer provada em sede de audiência de julgamento,
DD) Conforme consta dos autos, em 19.01.2022, conforme cópia do edital afixado e fotos do exterior juntos pela Senhora Agente Delegada aos autos principais, o imóvel não apresenta qualquer melhoria ou benfeitoria.
EE) Em 19.01.2022, o imóvel necessita de obras profundas e estruturais, está fechado e não havia ninguém.
FF) Ressalvado o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo a dar como provado a existência de um contrato de arrendamento considerando a cópia do contrato de arrendamento junta aos autos com os comprovativos relativos ao imposto de selo, o qual conforme referido sempre seria um contrato de arrendamento nulo, inválido e ineficaz,
Acresce que,
GG) Do depoimento da testemunha (…), prestado na sessão de julgamento ocorrida no 15 de setembro de 2022, pelas 10:39:31 horas às 10:47:11 horas, constante do ficheiro 20220915103930_2976366_3995028 da prova gravada, supra transcrito, apesar da testemunha indicar que foi celebrado o alegado contrato de arrendamento, do mesmo não decorre prova da existência de um contrato de arrendamento efetivo, válido e eficaz sob o imóvel penhorado nos presentes autos, o depoimento da testemunha apresenta incongruências ao indicar que a recorrida paga a renda quando tal não consta do contrato nem existe qualquer prova documental disso, refere que não entra no imóvel pelo que não faz também prova de qualquer posse ou uso do imóvel pela recorrida ou direito incompatível com a penhora, e conforme consta da Douta Sentença do Tribunal a quo a testemunha é parte interessada no desfecho da causa na qualidade de executada.
HH) Assim como, salvo o devido respeito por opinião diversa, a testemunha (…), Agente de Execução, autora do edital e das fotografias do imóvel juntos aos autos, depoimento prestado na sessão de julgamento ocorrida no 15 de setembro de 2022, pelas 10:50:29 horas às 10:58:06 horas, constante do ficheiro 20220915105028_2976366_3995028 da prova gravada, supra transcrito, em nenhum momento admitiu como possível a atividade de armazenamento no imóvel, conforme decorre do depoimento da testemunha o imóvel apresenta o estado constante das fotografias juntas com o auto de constatação do imóvel, ou seja, fechado, devoluto a necessitar de obras profundas e estruturantes e não conseguia avistar o que quer que seja do seu interior, o imóvel estava fechado, não consegue saber se havia ou não havia alguma atividade no imóvel e apenas a testemunha (…) lhe terá referido que o imóvel estaria arrendado e ficou de lhe enviar as fotografias do interior que nunca fez.
II) Portanto, salvo o devido respeito por opinião diversa nenhuma das testemunhas prova a existência de um qualquer contrato de arrendamento sob o imóvel penhorado nos autos, a sua posse ou uso pela recorrida.
JJ) A matéria vertida no ponto 4.1.7 da sentença recorrida deverá ser dada como não provada, dada a manifesta ausência de prova quanto à existência de que o prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à embargante.
KK) Face ao exposto, inexiste prova de qualquer contrato de arrendamento sob o imóvel penhorado, efetivo, válido e eficaz, bem como inexiste prova de qualquer uso, posse titulada ou fruição do imóvel penhorado pela recorrida e, nestes termos, não pode o alegado contrato de arrendamento ser judicialmente reconhecido.
B. DO RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
LL) Salvo o devido respeito por opinião diversa, o Douto Tribunal a quo também não fez uma correta subsunção dos factos ao direito, porquanto,
Nos termos da Douta Sentença do Tribunal a quo:
“(…)
5. Fundamentação de Direito
(…)
Dispõe o artigo 342.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que «se a penhora, ou qualquer ato
judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
(…)
Os requisitos necessários à procedência dos embargos facilmente se vislumbram no estabelecido pela citada disposição legal, consistindo na demonstração, pelo embargante (factos constitutivos do direito alegado – cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), por um lado, da sua qualidade de terceiro, e, por outro, de que é possuidor ou detém qualquer direito incompatível relativamente aos bens objeto da diligência judicialmente ordenada (neste caso, a penhora).
(…)
Quanto ao segundo requisito, a embargante entende que a penhora ofende o seu direito. Ora, de acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 05 de Julho de 2021, Processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A, in dgsi: «A venda em sede de processo de insolvência de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil» e «Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824.º, n.º 2, do CCivil, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento».
Na sequência da jurisprudência indicada, e estando, no caso, reconhecida a existência do contrato de arrendamento invocado pela embargante, mesmo no caso de venda executiva, o pedido formulado deve sempre ser atendido.
Pelo que se julga que os presentes embargos deverão proceder.
Ora,
MM) Nos termos da petição inicial da recorrida, esta requereu que deve ser reconhecida à Embargante a existência do contrato de arrendamento, bem como deverão os presentes embargos de terceiro serem procedentes, por provados e, consequentemente deve o contrato de arrendamento manter-se na ordem jurídica, impedindo a entrega do locado livre de pessoas e bens, salvo o devido respeito por opinião diversa, além de se tratar de um contrato de arrendamento inexistente, inválido e ineficaz, não são os presentes autos de oposição mediante embargos de terceiro o meio idóneo para o reconhecimento do contrato de arrendamento alegado pela recorrida e não cabe ao tribunal de execução essa apreciação.
NN) O processo de execução ou a oposição mediante Embargos de terceiro não constituem meio processual adequado para o reconhecimento e apreciação da validade, existência, titularidade de um contrato de arrendamento, antes sim para defesa da posse ou direito incompatível com a penhora, a qual não foi sequer alegada e, por efeito, tão pouco provada.
Posto isto,
OO) A recorrida não faz qualquer prova da existência de um contrato de arrendamento efetivo, válido e eficaz nem tão pouco de que é possuidor ou detém qualquer direito incompatível relativamente aos bens objeto da diligência judicialmente ordenada (neste caso, a penhora).
PP) Nem tão pouco do depoimento das testemunhas decorre qualquer prova nesse sentido, o imóvel em apreço estava trancado, não havia lá ninguém, não existe qualquer prova ou evidência nos autos da posse do imóvel pela recorrida.
QQ) Cabe ao embargante a prova dos fundamentos do seu direito: artigo 342º do Código Civil. Assim, sobre ele recai o ónus probatório de demonstrar que a penhora, a apreensão ou entrega judicialmente ordenada e a incidir sobre determinados bens ofende direitos que ele tem sobre esses mesmos bens, merecedores de tutela (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/13/201, Processo n.º 2586/15.4T8LOUB.P1, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8ca74bc9fe1bc6dd802584390047 9a64).
RR) Constituindo os embargos de terceiro um meio de defesa da posse ofendida, por quem é alheio à ação executiva, isto é terceiro, essa posse não pode ser uma posse precária, mas antes uma posse real, efetiva, que se consubstancia no exercício de poderes de facto sobre a coisa penhorada, não se exigindo a posse jurídica (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/13/201, Processo n.º 2586/15.4T8LOUB.P1, in SS) o que a recorrida não fez, a recorrida não fez qualquer prova dos fundamentos constantes no artigo 342.º do Código de Processo Civil, a recorrida sequer alegou qualquer posse real e efetiva sob o imóvel penhorado nos autos.
TT) O Tribunal a quo fundamenta a decisão proferida com base no Douto Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 05 de Julho de 2021, Proc. n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A, in dgsi., sendo que nos autos em apreço não se tratam de processo de insolvência, nem tão pouco o alegado contrato de arrendamento seria para habitação.
UU) Admitir-se o reconhecimento de um contrato de arrendamento conforme o dos presentes autos, inválido e ineficaz, como oponível à penhora, e, designadamente, sem prova da sua efetiva existência, sem prova de qualquer retribuição, sem prova de qualquer posse pela alegada arrendatária, pelo prazo de 25 anos, com uma cláusula abusiva e leonina conforme a que consta nos autos em apreço independentemente da causa de cessação do contrato do presente do contrato de arrendamento no período de vigência inicial por causa exclusivamente imputável ao Senhorio, este obriga-se a indemnizar a Arrendatária no valor do presente contrato de arrendamento, isto é o Senhorio ficará obrigado a pagar a renda anual de € 4.200,00 (quatro mil e duzentos euros), a multiplicar pelos 25 (vinte e cinco) anos de duração inicial do contrato, tal possibilidade colocaria em causa toda a certeza jurídica já que, por forma a inviabilizar uma qualquer venda judicial, insolvencial ou executiva, bastaria, aos mutuários, aquando do incumprimento do contrato garantido por hipoteca, formalizar um qualquer contrato de arrendamento, conforme o que está em causa nos presentes autos, sem qualquer prova da existência efetiva do arrendamento, da retribuição ou posse efetiva para que fosse oponível à execução e inviabilizar qualquer venda judicial.
VV) Ora, inexiste prova de qualquer direito real ou posse da recorrida sob o imóvel penhorado e inexiste qualquer uso ou retribuição paga pela Embargante e, por efeito, não existe fundamento legalmente admissível para a recorrida deduzir embargos de terceiro nos termos do 342.º do Código de Processo Civil.
XX) O direito ao arrendamento não constitui direito real, nem o mencionado contrato de arrendamento existe, não é oponível à execução nem tem qualquer eficácia real ou inscrição no registo.
ZZ) Nos termos supra expostos, não há qualquer prova da existência de um contrato de arrendamento, bem como não consta dos autos prova de um qualquer contrato de arrendamento, válido e eficaz de que a recorrida seja titular, bem como inexiste prova de qualquer uso lícito ou titulado ou direito incompatível com a penhora da recorrida, ou oponível à execução, nem tão pouco há prova da posse pela recorrida do imóvel penhorado nos autos, nem a oposição mediante embargos de terceiro não são o meio processual adequado para o pedido deduzido pela recorrida, e um contrato inexistente, inválido e ineficaz não pode ser reconhecido judicialmente, não foi produzida prova nem documental,
nem testemunhal, dos requisitos constantes do artigo 342.º do Código de Processo Civil, nem sequer é feita prova cabal da existência de um contrato de arrendamento, pelo que a decisão da primeira instância deverá ser revertida e substituída por nova decisão, que dê como não provado o ponto 4.1.7 da matéria de facto, e que julgue os embargos de terceiro deduzidos pela recorrida improcedentes por não provados.

TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS., VENERANDOS JUÍZES DESEMBARGADORES, DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, E, CONSEQUENTEMENTE, SER JULGADA REVOGADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO, JULGANDO OS EMBARGOS DE TERCEIRO IMPROCEDENTES, POR NÃO PROVADOS,
FAZENDO ASSIM UMA VEZ MAIS V. EXAS., A COSTUMADA JUSTIÇA!».

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo julgador a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
As questões que importa decidir são as seguintes:
1 – Nulidade da sentença.
2 - Impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
3 – Reapreciação da decisão de mérito.

II.3.
FACTOS
II.3.1.
Factos provados
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
1. O prédio urbano sito em (…), Estrada do (…), (…), freguesia de (…), concelho de Santarém, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos (…) e (…) da dita freguesia está descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob a descrição …/19980819, da freguesia de (…).
2. O prédio acima descrito está registado, por aquisição, em nome de (…).
3. Sobre o prédio em causa está registado através da Ap. (…), de 2013/12/05, hipoteca a favor da Caixa (…) para garantia do crédito exequendo.
4. O crédito exequendo foi cedido ao exequente.
5. Sobre o prédio em causa está registada, através da Ap. (…), de 2021/09/10 a penhora dos autos principais.
6. Os presentes embargos de terceiro deram entrada a 10 de novembro de 2021.
7. O prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à embargante.
8. A embargante teve conhecimento da penhora a 11 de outubro de 2021.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
II.4.1.
Nulidade da sentença
A recorrente alega que a sentença é nula porque é uma decisão-surpresa na medida em que «julga provado que o locado destinava-se a armazenamento de materiais, não tendo de estar lá alguém para o efeito», contrariando aquilo que consta quer do alegado no contrato junto aos autos quer da petição inicial da embargante. O que, na sua perspetiva, «constitui uma violação dos princípios constantes dos artigos 3.º, 5.º e 6.º do Código de Processo Civil, sendo, consequentemente, uma decisão nula nos termos das alíneas c) e d) do artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e dos artigos 411.º, 590.º, n.º 3 e 4, do CPC, com consequente nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 1, segunda parte, do Código de Processo Civil».
Apreciando.
A prolação de uma decisão-surpresa é uma manifestação da violação de um princípio estruturante do nosso processo civil, a saber, o princípio do contraditório o qual se mostra expressamente previsto no artigo 3.º do Código de Processo Civil.
Princípio que, por seu turno, é decorrência do princípio da tutela jurisdicional efetiva, que tem consagração constitucional (cfr. artigo 20.º da Constituição da República) e implica permitir às partes, e em condições de plena igualdade, influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa em qualquer fase do processo e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão – assim, Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 7.
De acordo com o disposto no artigo 3.º/3, do CPC, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade[1], decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
É também consabido que a inobservância deste princípio pode gerar nulidade processual, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a qual, quando coberta por decisão judicial, poderá implicar a nulidade dessa decisão, a arguir em sede de recurso da mesma (não estando a nulidade a coberto de decisão judicial, a mesma deve ser arguida, mediante reclamação, nos termos e prazo previstos no artigo 199.º do Código de Processo Civil).
Distinto do princípio do contraditório é o princípio do dispositivo, que se desdobra, ele próprio, em dois outros princípios processuais, quais sejam: o princípio dispositivo stricto sensu, que se traduz na liberdade de decisão sobre a instauração do processo, sobre a conformação do seu objeto e das partes na causa e também sobre o termo do processo ou sobre a sua suspensão e o princípio da controvérsia que se traduz na responsabilidade pelo material fático da causa – assim, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, págs. 122-123.
De acordo com o princípio do dispositivo é ao autor que cabe solicitar a tutela jurisdicional, sobre ele recaindo a responsabilidade pelo material fático atinente ao direito cujo reconhecimento pretende ver obtido. Logo, no plano da introdução dos factos principais da causa, incumbe ao autor alegar os factos constitutivos do direito que se arroga (cfr. artigo 5.º/1, do CPC), não podendo o juiz considerar na sua decisão factos principais diversos dos alegados pelas partes (quer em articulado quer em resultado da instrução da causa). Regra que se mantém para os factos principais que sejam introduzidos na causa, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, ou seja, factos que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor (a causa de pedir), ou do reconvinte ou a exceção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, sendo nessa qualidade decisivos para a viabilidade ou procedência da ação/reconvenção/defesa por exceção, e que se revelem com a instrução da causa. Também quanto a estes deverá ser assegurado o direito de resposta da parte contrária àquele a quem aproveitem e o direito a produzir, em prazo razoável, contraprova ou prova do contrário.
Esta regra, porém, já não se aplica aos factos instrumentais (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil), os quais não têm de ser alegados pelas partes, podendo surgir no decorrer da instrução da causa, tendo o juiz de os considerar, independentemente da alegação das partes – assim, Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, ob. cit., págs. 15-16. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 607.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil o tribunal deve extrair dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa as ilações que se impuserem no sentido da comprovação dos factos essenciais.
No caso sub judice a apelante alega que o julgador a quo julgou provado um facto que nunca foi alegado pela embargante e que tão pouco resulta do contrato de arrendamento junto aos autos, concretamente, que «o prédio arrendado se destinava a armazenamento de materiais».
A embargante, efetivamente, não alegou na sua petição inicial que o locado se destina a armazenamento de materiais. Sucede que o julgador a quo não julgou provado que o locado se destina a armazenamento de materiais (cfr. supra II.3.1.). Com efeito, o que o tribunal a quo julgou provado foi que «o prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019, à embargante» (cfr. ponto provado 4.1.7), facto que foi alegado pela embargante na sua petição inicial. Pelo que não ocorre uma violação do princípio do dispositivo, nos termos defendidos pela apelante.
Lendo a motivação da sentença concernente àquele concreto enunciado de facto – o ponto 4.1.7 – verifica-se que o julgador a quo invocou, nomeadamente, o depoimento da testemunha (…) para julgar provado o referido enunciado de facto.[2] Todavia, a valoração do depoimento da executada (…), produzido em audiência de julgamento contraditória, para corroborar o facto provado 4.1.7. não torna a decisão recorrida uma decisão-surpresa.
Concluímos, pois, que a sentença não padece da nulidade que lhe é imputada, pelo que improcede este segmento do recurso.

II.4.2.
Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O artigo 662.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe que: «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
O Tribunal de segunda instância deve formar a sua própria convicção acerca dos elementos probatórios disponíveis (os indicados pelas partes e os obtidos oficiosamente) a qual deve ser obtida através de uma ponderação crítica dos mesmos, quando sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova (como sucede no caso vertente). Ou, dito de outra forma, a segunda instância deve funcionar como um efetivo segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
O convencimento do juiz quando haja de decidir segundo a sua livre convicção deve fundar-se numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida[3].
No caso concreto, a recorrente defende que o ponto de facto provado 4.1.7o prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à embargante – deve ser julgado não provado.
Para tal desiderato, a apelante sustenta que a cópia do contrato de arrendamento não é suficiente para provar a existência do arrendamento e que não há prova documental do pagamento de qualquer retribuição ou dos alegados investimentos avultados referidos no contrato junto aos autos ou prova da existência de uma licença de utilização que também não foi junta ao contrato de arrendamento, para além de que as testemunhas ouvidas não confirmaram o arrendamento em apreço.
Vejamos se lhe assiste razão.
O julgamento sobre a matéria de facto compreende uma apreciação global da prova e das narrativas em confronto, articulada com uma análise atomizada de cada específico facto controvertido. No caso em análise o julgamento sobre o facto provado impugnado compreendeu, como meios de prova, a cópia do contrato de arrendamento, «os comprovativos relativos ao pagamento do imposto de selo» e o depoimento da testemunha (…). Diz-se na sentença recorrida que «O sétimo ponto factual assentou na conjugação da cópia do contrato de arrendamento junta aos autos com os comprovativos relativos ao imposto de selo, igualmente juntos aos autos. Ademais, o arrendamento foi confirmado por (…) que, ainda que parte interessada no desfecho da causa, por ser executada, referiu este aspeto de forma que se afigurou isenta, por perentória e clara. Os documentos juntos pela exequente, designadamente edital e fotografias do imóvel, não contrariam esta conclusão já que, como (…) referiu, o locado destinava-se ao armazenamento de materiais, não tendo de estar lá alguém para esse efeito».

A cópia do contrato denominado “Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais” é um documento particular (artigos 362.º, 363.º e 373.º e ss., todos do Código Civil). A embargada não impugnou a genuidade do documento, isto é, não pôs em causa que as assinaturas apostas no referido contrato fossem, pelo lado do senhorio, a de (…)e, pelo lado da arrendatária (…), Unipessoal, Lda., a de (…), gerente da embargante; tão pouco pôs em causa a exatidão do mesmo, isto é, a concordância da cópia do documento com o original. Mas já pôs em causa a relação de correspondência entre o declarado no contrato e a verdade histórica, isto é, a veracidade das declarações de vontade contidas no contrato cuja cópia foi junta aos autos pela embargante. Efetivamente, a embargada/exequente pôs em causa que o prédio penhorado nos autos tivesse sido efetivamente arrendado à embargante e que esta o utilizasse no âmbito da atividade comercial por si desenvolvida.

O referido documento faz prova plena da sua formação e proveniência porquanto a sua genuidade não foi posta em causa pela embargada, mas já não faz prova plena quanto à veracidade intrínseca e validade das declarações nele contidas – cfr. artigo 376.º do Código Civil. Pelo que, quanto à veracidade intrínseca e validade das declarações negociais tinha a embargante de produzir prova que lograsse convencer o tribunal de que efetivamente ocupa e usa o prédio urbano penhorado para o exercício da sua atividade comercial e por força do contrato de arrendamento cuja cópia juntou aos autos. Para além da cópia do contrato de arrendamento, a embargante juntou documento comprovativo da liquidação do imposto de selo, o qual apenas prova a participação do contrato à Autoridade Tributária, não sendo suficiente para demonstrar que a embargante usa efetivamente o prédio penhorado nos autos ao abrigo do contrato de arrendamento participado e que paga uma contrapartida (renda). E o facto é que a embargante não juntou aos autos quaisquer contratos de fornecimento de água e de eletricidade relativos ao alegado locado ou documentos que comprovem o pagamento, por ela, de consumos de água e de eletricidade no alegado locado, os quais revelariam um uso do mesmo; tão pouco juntou aos autos prova documental relativa ao pagamento da renda, concretamente recibos eletrónicos (dada a participação do contrato à Autoridade Tributária) apesar de a própria testemunha (…) ter afirmado, em sede de audiência de julgamento, que «o arrendamento está a ser pago mensalmente»; se assim é, perguntamos nós, onde estão os comprovativos do pagamento da renda? Ademais, a embargante não juntou aos autos prova documental (v.g. projetos, orçamentos, recibos de pagamento de bens e de serviços) e/ou prova testemunhal que permitisse comprovar a realização de obras de melhoramento previstas no contrato de arrendamento, obras que se realizadas pela arrendatária implicariam uma carência no pagamento das rendas mensais durante o período inicial de 10 anos (como resulta da cláusula terceira do contrato). Não se olvida o depoimento da testemunha (…), mas esta é também ela executada nos autos principais, filha do proprietário do imóvel, não sendo, pois, de desconsiderar o seu interesse no desfecho da ação principal.

Em conclusão, os documentos acima referidos e o depoimento da testemunha supra referida não são suficientes para julgar provada a factualidade enunciada no ponto 4.1.7 dos factos provados, o que implica a procedência da impugnação da decisão de facto, com a transição daquela factualidade para o elenco dos factos não provados.

Decisão
Em face do exposto, procede a impugnação da decisão de facto e, em conformidade, ordena-se a transição do facto enunciado sob o ponto 4.1.7 dos factos provados para o elenco da factualidade não provada.

II.4.3.
Reapreciação do mérito da decisão
Os embargos de terceiro constituem um incidente através do qual quem não é parte no processo vem defender-se de uma ingerência indevida na respetiva esfera jurídica. Dito de outro modo, os embargos de terceiros constituem um meio de defesa contra os atos executivos e cautelares de apreensão de bens.
Quando deduzidos na pendência de uma instância executiva para pagamento de quantia certa, como sucede no caso sub judice, a penhora – ato executivo contra o qual o terceiro embargante reage – implica que o executado perca a posse efetiva sobre aquele bem.
Nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CPC, se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou de entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
O terceiro embargante não pode ser executado, exequente, cônjuge citado por força do disposto no artigo 786.º, n.º 1, ou credor reclamante.
Até à Reforma de 1995-1996, os embargos constituíam um estrito meio de defesa da posse, mas atualmente os embargos de terceiro constituem um meio de defesa também de qualquer direito incompatível com a realização da diligência ou do respetivo âmbito. Ou seja, atualmente, os embargos de terceiros podem ser deduzidos com um de dois fundamentos: ou o terceiro alega que é possuidor, beneficiando da titularidade do direito nos termos do qual possui, ou alega que é titular de um direito incompatível com a execução que está em curso. Em síntese, os embargos de terceiro deixaram de ser uma estrita ação possessória.
O terceiro embargante tem de alegar e provar a posse sobre o bem ou a titularidade de qualquer direito sobre esse bem incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (artigo 342.º/1, do Código Civil).
No caso concreto, a embargante/apelada alegou que “usa” o imóvel penhorado nos autos e que “paga uma contrapartida por essa utilização” ao abrigo de um contrato de arrendamento para fins comerciais outorgado com o proprietário do imóvel. De acordo com a sua alegação seria, pois, titular de um direito pessoal de gozo oponível à exequente. Exequente que é, note-se, titular de um crédito provido de garantia real, concretamente de uma hipoteca que foi registada em data anterior àquela que consta como sendo a data da outorga do contrato de arrendamento (confronte-se certidão de registo predial anexa à petição inicial com a data do contrato de arrendamento junto aos autos).
Sucede, porém, que por força da procedência da impugnação da decisão de facto, e com a consequente transição do ponto de facto provado 4.1.7 para o elenco dos factos não provados, a embargante não logrou demonstrar, como lhe incumbia, que é sequer titular de um direito pessoal de gozo por força de um contrato de arrendamento outorgado entre ela e o(s) proprietário(s) do imóvel penhorado nos autos. O que, por si só, implica a improcedência da pretensão da embargante, sem que haja necessidade de abordar a questão dos efeitos da venda executiva, concretamente se a venda ocorrida em processo executivo de um bem hipotecado destinado à satisfação do crédito exequendo faz caducar o contrato de arrendamento celebrado posteriormente à constituição daquela garantia real (hipoteca).
Em síntese, a apelação é procedente o que implica a revogação da decisão recorrida, julgando-se os embargos de terceiro improcedentes.

Sumário: (…)


III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, em conformidade:
1) Revogam a decisão recorrida;
2) Julgam totalmente improcedentes, por não provados, os embargos de terceiro.
Sem custas na presente instância recursiva porquanto a apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao pagamento de custas de parte porque não houve resposta às alegações de recurso.

Notifique.
DN.
Évora, 30 de março de 2023
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
Rui Machado e Moura (1.º Adjunto)
Eduarda Branquinho (2.ª Adjunta)




__________________________________________________
[1] Isto é, quando se trata de questões cuja decisão não tem, em si mesma, qualquer repercussão sobre a instância, não sendo relevante para a decisão do litígio ou quando se trate de questões que, pela sua natureza, não compreenda o contraditório prévio, como é o caso de decisões de mero expediente ou a decisão liminar do juiz convidando o autor a aperfeiçoar a petição inicial – assim, Paulo Ramos/Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, 2014, 2.ª Edição, Almedina, pág. 31.
[2] Resulta da motivação da decisão do tribunal quanto a tal ponto de facto provado o seguinte: «O sétimo ponto factual assentou na conjugação da cópia do contrato de arrendamento junta aos autos com os comprovativos relativos ao imposto de selo, igualmente juntos aos autos. Ademais, o arrendamento foi confirmado por (…) que, ainda que parte interessada no desfecho da causa, por ser executada, referiu este aspeto de forma que se afigurou isenta, por perentória e clara. Os documentos juntos pela exequente, designadamente edital e fotografias do imóvel, não contrariam esta conclusão já que, como (…) referiu, o locado destinava-se ao armazenamento de materiais, não tendo de estar lá alguém para esse efeito».
[3] Tomé Gomes, Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no Processo Civil, Revista do CEJ, III-IV, 1995, págs. 127-168.