Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
359/17.0T8STR.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: DIVISÃO DE COISA COMUM
COMPROPRIETÁRIO
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A divisão da coisa pode operar em substância ou em partilha do seu valor, conforme a coisa seja divisível ou indivisível.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente /Autor: (…)

Recorrida/ Ré: (…)

Os presentes autos consistem no processo especial de divisão de coisa comum, da fração autónoma de que A e R são comproprietários em partes iguais.
Foi declarada a indivisibilidade do bem, determinando-se a prossecução dos autos para conferência de interessados.
Em sede de conferência de interessados foi ordenada a venda da fração por negociação particular. Veio a concretizar-se a venda mediante a proposta apresentada pela R (…), atribuindo-se à fração o valor de € 74.050,00.
No âmbito do processo apenso de reclamação e graduação de créditos foi reconhecido o crédito hipotecário reclamado pelo Banco (…), SA no montante de € 29.927,42, a que acrescem juros de mora vencidos desde 07/08/2018 e vincendos até integral pagamento. Na sentença ali proferida, a 22/10/2018, consignou-se que tal crédito «será pago preferencialmente com o produto da venda do bem imóvel em causa nos autos principais de divisão de coisa comum, e que os interessados nos autos principais terão direito apenas ao remanescente do preço de venda do imóvel em causa, após ser pago o crédito do credor reclamante Banco.»[1] E foi decidido que «as custas do concurso de credores saem precípuas do produto da venda do bem imóvel em causa nos autos principais de divisão de coisa comum.»[2]


II – O Objeto do Recurso

No decurso das diligências para venda da fração, o encarregado de venda solicitou fosse informado se a totalidade do depósito a efetuar era de metade do valor da proposta de aquisição, no montante de € 37.025,00, já que a proponente era a R. Seguiu-se o despacho proferido 21/06/2019 (ref.ª 81394555) com o seguinte teor:
«Fls. 158: Comunique ao sr. encarregado de venda que, tendo em conta que a proponente, ou seja, a R. (…), é titular da propriedade sobre metade indivisa do bem imóvel comum a vender, a mesma apenas estará obrigada a depositar e pagar metade do valor proposto para a aquisição de tal imóvel.»
A R depositou € 37.025,00 na sequência do que foi outorgada a escritura pública de aquisição do direito a ½ que cabia ao A.
Foi proferida decisão declarando finda a instância por se ter cumprido o respetivo desiderato nela se exarando, designadamente, o seguinte:
«O prédio comum foi então vendido à R. (…), conforme resulta da escritura de venda que agora foi junta. Deste modo, a R. adquiriu a restante quota indivisa do prédio em causa que pertencia ao outro comproprietário.
Tendo em conta que resulta igualmente da escritura de venda que a R (…) depositou nos autos o preço de aquisição a que estava obrigada, passou a ser proprietária única do prédio em causa.
A quota-parte do outro comproprietário no prédio comum, ou seja, o A. (…), será preenchida com a parte do preço depositada pela R., que por sua vez a adquiriu. Deverá levar-se, contudo, em conta a decisão tomada no apenso de graduação de créditos, quanto ao pagamento do crédito aí reclamado e reconhecido e às custas aí em questão.»

Inconformado, o A apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida na parte versada no recurso, decretando-se que a sua quota-parte seja preenchida com a parte do preço depositado levando-se em conta apenas metade do valor das custas e do crédito graduado. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A. O presente recurso nasce da inconformidade com a sentença e o despacho de 21/6/2019, com a referência 81394555, que se impugna;
B. A sentença em recurso, à semelhança do supra citado despacho, estão em contradição com os despachos e sentença de graduação de créditos que constam dos autos;
C. A sentença determina, para lá do mais, que a quota-parte de que o recorrente é comproprietário, no prédio comum, é preenchido com a parte do preço depositado pela R., levando-se em conta a graduação de créditos reconhecida e as custas do apenso, ora…
D. Por sentença transitada em julgado no âmbito do apenso A. foi reconhecido o crédito do credor reclamante e hipotecário Banco, sobre recorrente e recorrida,
E. Tendo sido determinado, em tal sentença, que o referido crédito seria pago com o produto da venda do bem imóvel,
F. Sendo, também, decidido que as custas saíam precípuas do produto dessa venda e que recorrente e recorrida teriam direito apenas ao remanescente do preço de venda do mesmo imóvel, após ser pago o credor reclamante;
G. A recorrida fez uma proposta de aquisição do imóvel pelo valor de € 74.050,00 sendo que por despacho de 14/1/2019, com a referência 80065018, foi determinado que o silêncio do credor reclamante e do recorrente seria entendido como concordância com tal preço;
H. Por despacho de 6/3/2019, com a referência 80506801, foi determinado que o Sr. Encarregado procedesse à venda do imóvel pelo preço referido no requerimento de fls. 118, isto é, o preço de € 70.050,00;
I. Por despacho de 29/5/2019, com a referência 81229633, foi determinado que a escritura não podia ter lugar antes de a recorrida depositar a totalidade do preço para aquisição do bem comum, isto é, € 74.050,00;
J. Entretanto, em 21/6/2019, através do despacho que se impugna, no presente recurso, o Tribunal “a quo” dispensou a recorrida de depositar a metade do valor proposto para aquisição do imóvel.
K. Tal despacho e a douta sentença objeto do presente recurso, estão em contradição direta não só com os despachos anteriormente proferidos, como com a sentença de graduação de créditos, transitada em julgado, que, para lá do mais, determinou que o recorrente e recorrida só teriam direito ao remanescente do preço após pagamento do crédito ao credor reclamante Banco.
L. As mesmas sentença e despacho violam o disposto no artigo 815.º, n.º 1, do C. P. Civil, aplicável à presente situação, que prevê no caso de haver graduação de créditos, a dispensa de depósito do preço na parte que não seja necessária para pagar ao credor graduado,
M. Sendo que, quando muito, devia o Tribunal “a quo” ter dispensado a recorrida de depositar o preço que excedesse o valor da dívida do credor graduado;
N. Ao decidir como decidiu quer no despacho, quer na sentença em recurso, o Tribunal “a quo” não teve em consideração a sentença de graduação de créditos, os despachos anterior, o disposto no artigo 815.º do C. P. Civil,
O. Decidindo que, injusta e injustificadamente, o recorrente pague sozinho a totalidade do crédito hipotecário e as custas.
P. Assim, quer o despacho, quer a sentença em recurso violam o disposto nos artigos 815.º n.º 1, 620.º, n.º 1 e 625.º do C. P. Civil.»
Em sede de contra-alegações, a Recorrida sustenta ser o despacho datado de 21/06/2019 irrecorrível, por se tratar de despacho de mero expediente, sendo certo que sempre o recurso seria, nesse âmbito, extemporâneo, e que deve manter-se a decisão recorrida por não terem sido violadas as disposições legais apontadas pelo Recorrente.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- do montante do preço cujo depósito incumbe à Recorrida;
- do preenchimento da quota-parte do Recorrente.


III – Fundamentos

A – Dados a considerar: aqueles que constam já supra elencados.

B – O Direito
Temos em mãos o processo especial de divisão de coisa comum previsto nos arts. 925.º a 930.º do CPC, instrumento para exercício do direito consagrado no art. 1412.º do CC, nos termos do qual, em geral, nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão. A ação dirige-se a todos os consortes e tem como fim a cessação da compropriedade, conferindo um carácter universal à ação.[3] Dispõe, assim, o art. 925.º do CPC que todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.
A divisão da coisa pode operar em substância ou em partilha do seu valor, conforme a coisa seja divisível ou indivisível.
A ação de divisão de coisa comum desenvolve-se, sob o ponto de vista processual, em duas fases distintas: uma fase declarativa e uma fase executiva. Na fase declarativa define-se o direito do autor, através da determinação da natureza comum da coisa, a existência ou subsistência da invocada compropriedade, a fixação das respetivas quotas e ainda a divisibilidade em substância e jurídica da coisa dividenda, tendo em consideração as suas características físico-materiais; fixados os quinhões entra-se na fase executiva, iniciando-se a execução do direito declarado com a divisão em substância da coisa e à adjudicação, por acordo ou por sorteio dos quinhões ou, se ela for indivisível, à sua adjudicação a algum dos interessados ou à sua venda.[4]
No caso em apreço, o direito de compropriedade recai sobre uma fração autónoma, tendo sido declarada a sua indivisibilidade. Realizou-se a conferência de interessados, que se destina ao preenchimento dos quinhões em espécie ou por equivalente, mediante o eventual acordo dos interessados quanto à adjudicação da coisa comum a algum ou alguns deles, inteirando-se a dinheiro a quota dos outros; na falta de acordo sobre essa adjudicação, tem lugar a venda, sendo em momento ulterior o preço repartido por todos em função das respetivas quotas, podendo, todavia, os consortes concorrer à venda – cfr. art. 929.º, n.º 2, do CPC.
As diligências de venda, por via do disposto no art. 549.º, n.º 2, do CPC, são executadas conforme estabelecido no processo executivo, sendo precedida das citações a que alude o art. 786.º do CPC e aplicando-se o regime atinente ao concurso de credores previsto nos arts. 788.º e ss do CPC, com as necessárias adaptações.
Determinada que foi a venda por negociação particular, veio a R (…) apresentar uma proposta atribuindo à fração o valor de € 74.050,00. Mediante interpelação expressa por parte do encarregado da venda, alertando para o facto de a proponente ser a R, foi proferido despacho no sentido de que bastaria que esta depositasse metade do valor da proposta, ou seja, € 37.025,00. Ao que a R procedeu, outorgando-se a escritura de aquisição do direito a ½ que cabia ao A.
Tal despacho não configura um despacho de mero expediente, um despacho que se destina a prover o andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes – cfr. art. 152.º, n.º 4, do CPC. Na verdade, tal despacho teve por objeto os direitos e deveres das partes litigantes relativamente ao valor da coisa, definindo o montante pecuniário que a proponente R, comproprietária, estava adstrita a depositar em ordem a adquirir a quota-parte do A.
E à luz do regime inserto no art. 644.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, é manifesto que o referido despacho não era suscetível de recurso autónomo.
Logo, não é extemporânea a pretensão do Recorrente no sentido de colocar em crise aquela decisão – cfr. art. 644.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.
E nessa decisão, efetivamente, não foi considerado o desfecho do apenso de reclamação e graduação de créditos. É que o crédito hipotecário reclamado pelo Banco (…), SA, no montante de € 29.927,42 a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos, obterá pagamento através do produto da venda do bem imóvel objeto da venda, sendo que A e R terão direito apenas ao remanescente do preço da venda, após ser pago o crédito do credor reclamante Banco. No que respeita às custas, embora se tenha determinado que as custas do concurso de credores saem precípuas do produto da venda, certo é que, atento o regime vigente quanto ao reembolso das taxas de justiça pagas e uma vez que inexistem, no mencionado apenso, encargos ou outras despesas a contabilizar, resulta destituído de sentido a determinação de pagamento das custas de forma precípua pelo valor do bem objeto da venda.
Então, do valor global do bem, no montante de € 74.050,00 há-de subtrair-se o valor do crédito apurado, no valor de € 29.927,42 (a que acrescerão juros de mora ainda não contabilizados), o que implica no saldo de € 44.122,58 em favor das partes, cabendo € 22.061,29 a cada uma delas (quantias aproximadas, já que está em falta o cálculo dos juros de mora do crédito do BPI).
O que implica que, do montante depositado, ao Recorrente sejam devidos € 22.061,29, revertendo o mais (€ 14.963,71) em favor do pagamento do crédito hipotecário. O Recorrente deixa de ter direito na fração mediante o recebimento daquela quantia.
À R, enquanto comproprietária, seriam devidos € 22.061,29, o valor da sua quota-parte após o pagamento do crédito hipotecário. Assumindo a qualidade de adquirente, o valor total que está adstrita a pagar para se tornar proprietária plena e exclusiva da fração com o valor de € 74.040,00 cifra-se em € 51.988,71 (a que acrescem os juros de mora devidos sobre o crédito hipotecário): cabe-lhe o pagamento de € 22.061,29 ao Recorrente e de € 29.927,42, a que acrescem juros de mora, ao credor hipotecário.
Nos termos do disposto no art. 815.º, n.º 1, do CPC, o exequente que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber; igual dispensa é concedida ao credor com garantia sobre os bens que adquirir. Aplicando, com as devidas adaptações, este regime à venda operada no presente processo especial de divisão de coisa comum, resulta que a R, na qualidade de comproprietária e proponente na aquisição da fração a que cabe o valor de € 74.050,00, está dispensada de proceder ao depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar o crédito do Banco no montante de € 29.927,42, acrescido dos juros de mora, e que não exceda a importância que lhe cabe na fração, na proporção de metade no valor remanescente, satisfeito que seja o referido crédito.
Termos em que, reconhecendo mérito à pretensão recursória nesta matéria, se conclui ser de alterar o despacho datado de 21/06/2019 (ref.ª 81394555, de fls. 162) em conformidade com o ora exposto.

No que respeita às quotas dos comproprietários, não restam dúvidas de que o respetivo preenchimento há de fazer-se mediante o remanescente do preço da venda da fração, após ser pago o crédito do credor reclamante Banco.
Tendo a R depositado a quantia de € 37.025,00 determinou-se que «a quota-parte do outro comproprietário no prédio comum, ou seja, o A. (…), será preenchida com a parte do preço depositada pela R., que por sua vez a adquiriu. Deverá levar-se, contudo, em conta a decisão tomada no apenso de graduação de créditos, quanto ao pagamento do crédito aí reclamado e reconhecido e às custas aí em questão.» Porém, como já se explicitou, ao A, ora Recorrente, não cabe apenas o remanescente daquele concreto valor depositado, após pagamento do crédito. Cabe-lhe a parte do preço que a R está adstrita a depositar, pago que esteja o crédito do Banco.
Decorre, no entanto, do regime inserto no já citado art. 815.º do CPC e da decisão proferida no processo apenso que a quota do Recorrente não é de preencher por via do remanescente de metade do crédito do Banco, como pretende o Recorrente.
Impõe-se, contudo, a alteração do despacho datado de 09/09/2019 (ref.ª 81743457, a fls. 186) de modo a evidenciar que a quota-parte do comproprietário A (…) será preenchida com a parte do preço que cabe à R depositar, pago que esteja o crédito do Banco.
Uma vez que não se mostra depositada a quantia monetária devida pela aquisição da fração por parte da R e para preenchimento da quota devida ao A, não se encontra concluída a fase executiva da presente ação. Por via do que inexiste fundamento para declarar extinta a instância.

Termos em que procedem, parcialmente, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre o Recorrente e a Recorrida em partes iguais – art.º 527.º, n.º 1, do CPC.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que:
- altera-se o despacho datado de 21/06/2019 (ref.ª 81394555, de fls. 162) passando a consignar-se que a R, na qualidade de comproprietária e proponente na aquisição da fração a que cabe o valor de € 74.050,00, está dispensada de proceder ao depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar o crédito do Banco no montante de € 29.927,42, acrescido dos juros de mora, e que não exceda a importância que lhe cabe na fração, na proporção de metade no valor remanescente, satisfeito que seja o referido crédito;
- altera-se despacho datado de 09/09/2019 (ref.ª 81743457, a fls. 186), passando a consignar-se que a quota-parte do comproprietário A (…) será preenchida com a parte do preço que cabe à R depositar, pago que esteja o crédito do Banco;
- revoga-se a declaração de extinção da instância e, bem assim, a subsequente condenação em custas.

Custas pelo Recorrente e pela Recorrida em partes iguais.
Évora, 19 de dezembro de 2019
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos
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[1] Cfr. fls. 32 do processo apenso.
[2] Cfr. fls. 32 do processo apenso.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2.ª ed., pág. 387.
[4] Cfr. Ac. TRL de 23/02/2017 (Ondina Carmo Alves).