Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
190/15.8T9EVR.E2
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO
NATUREZA DA INFRACÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto no artigo 36.º do DL n.º 28/84, de 20 de janeiro, configura-se como um crime comum, suscetível de ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de ser ou não a promotora ou beneficiária do subsídio ou subvenção, tratando-se, quanto à sua natureza, de um crime de execução vinculada.
II. O bem jurídico protegido é o subsídio ou subvenção enquanto instituição.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica ..., foram os arguidos AA, BB e CC submetidos a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.

Após audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, por sentença de 26 de outubro de 2022, decidiu julgar a acusação parcialmente procedente e em consequência:
• Absolver a arguida AA, da prática, na forma consumada e em co-autoria material, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36.º n.º 1, alínea c) e n.º 2 e n.º 5, alíneas a) e b) da Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro;
• Absolver a arguida BB, da prática, na forma consumada e em cumplicidade, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36.º n.º 1, alínea c) e n.º 2 e n.º 5, alíneas a) e b) da Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro;
• Absolver o arguido CC, da prática, na forma consumada e em co-autoria material, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36.º n.º 5, alínea b), da Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro;
• Condenar o arguido CC, pela prática de um crime, em autoria material e na forma consumada, de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36.º n.ºs 1, alínea c), 2 e 5, alínea a), da Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
• Suspender a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses aplicada a CC na sua execução, por igual período;
• Não aplicar a pena acessória de caução de boa conduta, prevista no artigo 8.º, alínea b), da Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro;
• Não condenar os arguidos CC e AA a pagar ao Estado o valor de € 5.593,70 (cinco mil, quinhentos e noventa e três euros e setenta cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 110º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal;
• Não condenar os arguidos CC e AA, nos termos do artigo 39.º da Lei n.º 24/84, de 20 de Janeiro a restituir ao Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P., o montante de €17.180,56 (dezassete mil cento e oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos), correspondentes aos valores recebidos pela ... no âmbito do processo 0203/....
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Inconformado com a decisão, o arguido CC interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
01) Nos termos da douta sentença recorrida, o arguido CC, ora Recorrente, foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo art. 36º, nº.1 alínea c), nº.2, e nº.5 alínea a), da Lei nº.28//84, de 20 de Janeiro, na pena de DOIS ANOS E SEIS MESES DE PRISÃO, suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 6 meses.
Da impugnação da matéria de facto:
02) O ora Recorrente admite todos os factos de imputação objectiva que resultaram provados, ou seja, os pontos 1 a 68, dado que nesta parte bem andou o Tribunal a quo.
03) A impugnação da matéria de facto só abrange os pontos 69, 72, 74, 75, 76, 84, e 85, dos factos provados, todos de imputação subjectiva, bem como o ponto V dos factos não provados.
04) Quanto à imputação subjectiva, resultaram PROVADOS, entre outros, os seguintes factos:
O arguido CC, que na qualidade de presidente da direcção da ... actuou, conseguiu com as condutas descritas, obter um rendimento fixo mensal, para a arguida AA. (Ponto 69)
Não obstante, (o arguido) quis e conseguiu omitir do IEFP, IP., o facto das beneficiárias não se encontrarem a desempenhar as funções que estiveram na base da aprovação da candidatura e que constavam nos respectivos contratos. (Ponto 72)
O arguido agiu com o propósito concretizado de produzir documentos cujo teor sabia não corresponder à verdade, ciente de que os factos constantes dos documentos eram determinantes para o pagamento de prestações patrimoniais, por parte do IEFP, IP, à .... (Ponto 74)
Agiu o arguido sempre com o propósito concretizado de obter do IEFP, IP, a aprovação da candidatura e o pagamento do financiamento aprovado, para que dessa forma, a arguida AA, enquanto beneficiária indicada pelo arguido CC, pudesse obter um rendimento mensal durante o ano de 2014, o que logrou atingir. (Ponto 75)
O arguido CC agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, na convicção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. (Ponto 76)
O arguido CC, com as condutas descritas em 69, atuou com o propósito de, durante o período temporal de um ano, obter um rendimento fixo mensal para a arguida AA. (Ponto 84)
O arguido CC, ao apresentar, em representação da ..., a candidatura à medida de Contrato-Emprego de Inserção do projecto “Património Activo” na área de vigilância e espaços florestais, não tinha qualquer intenção em que a ... e a comunidade beneficiassem do trabalho de quatro sapadores florestais, tendo agido apenas com a intenção de obter um rendimento mensal para a arguida AA, o que ambos quiseram e conseguiram. (Ponto 85)
05) Relativamente a tais factos, e na parte da «Motivação da matéria de facto», diz a douta sentença recorrida que “os factos atinentes à imputação subjectiva (factos 69 a 78) foram considerados como provados por força da conjugação da conduta objectiva do arguido CC e da arguida BB, e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, já que, face aos primeiros, outra não pode ter sido a vontade dos arguidos”.
06) E na sequência da anulação da primeira sentença, decorrente do mencionado douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 24/05/2022, acrescenta agora a (nova) sentença recorrida que “no que tange à factualidade vertida em 84) e 85), e à semelhança da fundamentação atinente aos factos 69) a 78) resultou a mesma assente por via da sedimentação da factualidade objectiva que descreve as condutas do arguido CC, também aqui conjugada com as regras da experiência comum que ditam que o homem médio, com a capacidade de compreensão e discernimento do arguido, sabe que ao agir do modo descrito, age de modo contrário à lei, sendo tal conduta proibida e punida pela lei penal. Adicionalmente, decorreu ainda das declarações prestadas pelo arguido, as quais, neste particular, mereceram acolhimento, que ao celebrar os contratos pretendia «ajudar as pessoas da comunidade de ...», sabendo que beneficiava aquelas quatro pessoas, razão por que cumpria julgar provada a factualidade em referência, com a redacção que ali se consignou”
07) Esta motivação do Tribunal a quo não convence, nem pode aceitar-se, uma vez que, atento o que se deu como provado, e como melhor resulta da douta sentença recorrida, as condutas objectivas do arguido são (só) as que se extraem dos pontos 6, 7, 20, 21, 25, 27, 28, 29, 32, 33, 42, 43, 45, 66, dado que nada mais resultou demonstrado que lhe deva ser imputado.
08) E em súmula, o que daí resulta é: a) O arguido era o Presidente da Direcção da ...; b) E nessa qualidade, em nome e representação da ..., o arguido apresentou junto do IEFP, IP, uma candidatura à Medida de Contrato-Emprego de Inserção, na área de vigilância e espaços florestais; c) Entre 26/12/2013 e 22/01/2014, o arguido remeteu o termo de aceitação da aprovação da candidatura ao IEFP, IP, a quem também indicou e forneceu o nome das quatro beneficiárias; d) No dia 22/01/2014, foram celebrados entre a ..., representada pelo arguido, e essas beneficiárias quatro contratos-emprego de inserção; e) O arguido entregou ao IEFP, IP, toda a documentação necessária para a aprovação da candidatura; f) O arguido solicitou à Sra. Presidente da Câmara Municipal ... que indicasse e aceitasse três dessas candidatas, g) O arguido informou tais beneficiárias que deveriam apresentar-se na Câmara Municipal ..., h) O arguido não exigiu à sua filha que devolvesse as quantias que esta recebeu como beneficiária da medida.
09) Ora, desta realidade factual objectiva, e de acordo com as regras da experiência comum, não se vê que seja possível extrair os factos de imputação subjectiva dos pontos 69, 75, 84, e 85.
10) Nesta parte, a decisão é manifestamente injusta, dado que ficou demonstrado e resultou como NÃO PROVADO que “em data não concretamente apurada, mas anterior a Julho de 2013, os arguidos CC e AA formularam um plano com o propósito de obterem um rendimento fixo mensal para a segunda, o qual passaria por esta vir a ser beneficiária de uma bolsa no âmbito de um contrato de emprego-inserção a celebrar com a ..., financiado pelo IEFP, IP”. (Ponto A, factos não provados).
11) E ainda no que respeita a tais pontos (69, 75, 84, 85), já esclareceu o anterior douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido nestes autos em 24/05/2022, que estão em causa duas realidades, uma objectiva, que é a obtenção de um rendimento, e outra subjectiva, que é a intenção ou propósito de obter tal rendimento.
12) Quanto à realidade objectiva, trata-se de um facto que resultou provado (pontos 37 e 38), e que assim, não oferece qualquer contestação, aceitando-se que o mesmo deriva da actuação do arguido, pois que, se a candidatura não tivesse sido apresentada, as beneficiárias não teriam obtido o rendimento em causa.
13) A fundamentação do Tribunal a quo, relativa aos factos de imputação subjectiva em causa, só teria alguma lógica e coerência, se tivesse resultado provado o referido ponto A (não provado), ou seja, o tal plano para obterem um rendimento fixo mensal para a arguida AA.
14) Mas em face ao que resultou provado (factos objectivos), por confronto com aquele ponto A, os pontos 75, 84, e 85 nunca se podem considerar provados, dado que não existe lógica, nem coerência, neste juízo de prognose formulado pelo Tribunal a quo.
15) Trata-se de um erro notório na apreciação da prova, uma vez que as conclusões do Tribunal são ilógicas e inaceitáveis nesta parte, e mesmo que assim mui doutamente não se entenda, sempre se deverá concluir que há contradição entre os fundamentos e a decisão, dado que há oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento de tal decisão, para além de que o mencionado ponto A dos factos não provados exclui que se possam dar como provados os pontos 75 e 85.
16) A celebração dos contratos em causa só ocorreu em Janeiro de 2014, ou seja, mais de sete meses depois da elaboração e apresentação da candidatura junto do IEFP, IP., o que também impede que se possam considerar provados os referidos pontos 75 e 85.
17) A douta sentença recorrida, nesta parte, enferma dos vícios previstos nas alíneas b) e c), do nº.2, do art. 410º, do C.P.P., que aqui se invocam.
18) E quanto ao ponto 72), a imputação subjectiva da omissão ali mencionada não deve recair sobre o arguido, mas apenas e só sobre a ..., uma vez que foi esta, e não ele, quem celebrou os contratos em causa, como melhor resulta do ponto 32 (facto provado).
19) E não se defenda que era sobre o arguido que recaía a referida obrigação de informar o IEFP, IP., mesmo admitindo, sem transigir, que esta obrigação existia, uma vez que a douta sentença recorrida é bem esclarecedora quando sentencia que “não resultou como provado que o arguido tenha agido com abuso dos poderes que tinha enquanto Presidente da Direcção da ...”. (Vd. ponto M, factos não provados, e a fundamentação de direito).
20) A douta convicção do Tribunal a quo, nesta parte, só se entende em razão da errada interpretação que se fez sobre o facto das funções contratuais serem um elemento relevante para a obtenção do subsídio em causa, o que se traduz em erro de julgamento, como se evidenciará.
21) Relativamente ao ponto 74), o Tribunal a quo considerou provado que “o arguido agiu com o propósito concretizado de produzir documentos cujo teor sabia não corresponder à verdade, ciente de que os factos constantes dos documentos eram determinantes para o pagamento de prestações patrimoniais, por parte do IEFP, IP, à ...”.
22) A douta sentença recorrida, em nenhum momento, especifica quais são os documentos em causa, o que resulta em manifesta falta de fundamentação da decisão nesta parte.
23) E só na parte final da «fundamentação de direito» é que ali se diz que “nos referidos documentos, o arguido fez constar factos juridicamente relevantes que não correspondiam à verdade, tais como, as funções a exercer e o local de trabalho”.
24) Num juízo contraditório e incoerente, a douta sentença recorrida dá como provado o mencionado ponto 32), onde se diz que “nesse dia foram celebrados entre a ..., representada pelo arguido CC e as beneficiárias acima identificadas quatro contratos emprego de inserção …”, e depois, quando chega à «fundamentação de direito», imputa coisa diferente, quando refere que “nessa altura, o arguido celebrou com as pessoas acima identificadas os contratos de emprego-inserção de onde consta que as mesmas iriam exercer funções na área da vigilância dos espaços florestais, designadamente no Quartel dos Bombeiros Voluntários de ..., no horário das 09h00 – 17h00”, acrescentando ainda que é “de salientar que, nos referidos documentos, o arguido fez constar factos juridicamente relevantes que não correspondiam à verdade tais como, as funções a exercer e o local de trabalho”. (sublinhado nosso).
25) E assim, não se entende tal raciocínio, uma vez que a decisão não é esclarecedora, sendo que há uma clara oposição entre o que ficou provado e não provado, e o que é referido como fundamento da decisão tomada.
26) E por outro lado, nenhuma razão existe, nem nenhuma prova foi produzida ou resulta dos autos que permita concluir que o arguido “agiu ciente de que os factos constantes daqueles documentos eram determinantes para o pagamento de prestações patrimoniais, por parte do IEFP, IP, à ...”
27) Na verdade, se o arguido tivesse representado, em algum momento, que tais contratos continham menções falsas, designadamente as funções a exercer pelas beneficiárias e o local de trabalho das mesmas, jamais os teria assinado, bem como nunca teria permitido que essas pessoas fossem trabalhar para a Câmara Municipal ....
28) E quanto às alegadas falsidades que a douta sentença recorrida relata, já antes se criticou a errada interpretação do Tribunal a quo de considerar as funções a exercer pelas candidatas, bem como o local de trabalho das mesmas, como elementos importantes e relevantes para a obtenção do subsídio em causa
29) O IEFP, IP., como melhor resulta dos factos provados, desvalorizou aqueles dois elementos, e acabou por validar e confirmar as prestações totais que foram pagas às beneficiárias que prestaram trabalho na Câmara Municipal ..., mesmo depois de ter apurado que elas não exerceram quaisquer funções na entidade promotora, ou seja, na ..., com quem se tinham vinculado contratualmente.
30) A este propósito, o Tribunal a quo deveria ter valorado de outro modo o que disseram as testemunhas DD e a Dra. EE, ambos Técnicos do IEFP, IP., em excertos que se transcreveram, e de cujos depoimentos resulta com bastante certeza, que as funções a desempenhar, bem como o local de trabalho, não são vistos pelo IEFP, IP., à luz dos Regulamentos do Programa Património Activo, como elementos preponderantes na obtenção do subsídio em causa.
31) Neste particular, a interpretação do IEFP, IP., é a que melhor corresponde aos princípios e objetivos do diploma que criou o “Programa Património Activo”, ou seja, a Portaria nº.33/2013, de 29 de Janeiro, em cujo preâmbulo se afirma que “importa ainda estimular e reforçar medidas que contribuam para uma aproximação ao mercado de trabalho por parte das pessoas desempregadas originárias do sector da construção e imobiliário e outros com maiores dificuldades de reintegração, nomeadamente através do trabalho socialmente útil”. (sublinhado nosso).
32) Em consequência, deve concluir-se que as funções a desempenhar e o local de trabalho não constituem elementos relevantes para a atribuição do subsídio em causa, e assim, tal circunstância não pode relevar para a imputação subjectiva do crime ao arguido.
33) E ao contrário do que decidiu a douta sentença recorrida, impõe-se que se devam dar como NÃO PROVADOS os pontos 72) e 74), porquanto a douta sentença recorrida inclui o ponto A dos factos não provados que os excluem, no sentido que impedem a sua imputação subjetiva ao arguido, e por outro lado, toda a factualidade objetiva que resultou provada é manifestamente insuficiente para se firmar o juízo decisório relativo ao ponto 74.
34) E o mesmo sucede quanto aos pontos 75), 84), e 85), dado que nesta parte também a douta sentença recorrida inclui o ponto 32) que os exclui, em razão da contradição entre tais factos, bem como por ser manifesto que o Tribunal efectuou uma apreciação incorrecta e desadequada, que resultou de um juízo de prognose ilógico, incoerente, e contraditório relativamente a tais factos.
35) A douta sentença recorrida, nesta parte, padece dos vícios previstos nas alíneas a), b), e c), do nº.2, do art. 410º, do C.P.P., pelo que é injusta, o que impõe que deva ser revertida.
36) Resultou NÃO PROVADO o seguinte facto: A circunstância relatada nos pontos 40 a 60 dos factos provados era do conhecimento e merecera o consenso do IEFP, IP, e correspondia a uma prática frequente de intercâmbio entre estruturas da comunidade de .... (Ponto V)
37) Na parte final da fundamentação de facto, diz a douta sentença recorrida que “quanto ao facto indicado no ponto V, o mesmo é considerado como não provado, por força da conjugação dos depoimentos das testemunhas já acima escalpelizadas, não sendo possível considerar como provada tal factualidade, uma vez que as únicas pessoas que a mencionaram foram os arguidos ou alguém que se encontrava em situação de dependência funcional dos mesmos à data dos factos”.
38) O Tribunal a quo não deu crédito aos depoimentos das várias testemunhas que falaram sobre as referidas circunstâncias, tendo formulado em relação a todas elas, de forma generalista, um juízo crítico negativo, que não pode aceitar-se por ser incorreto segundo as regras da experiência comum.
39) Nesta parte, trata-se de uma justificação pouco plausível, que logo peca por ser generalista, mas essencialmente, porque só atendeu à situação funcional das pessoas, e não valorizou o efetivo conhecimento que elas tinham dos factos em causa, o que evidencia que o Tribunal a quo não formulou o devido juízo de prognose, como se lhe exigia.
40) No decurso da audiência de julgamento, depuseram sobre esta específica matéria as testemunhas EE, DD, FF, GG, HH, II, JJ, e KK.
41) A testemunha de acusação DD, Técnico do IEFP, IP., tinha conhecimento directo da referida realidade, tal como se retira do discurso das testemunhas de defesa II e JJ, e também resulta do documento que agora se junta, (Doc.1).
42) Relativamente ao conhecimento que tal testemunha tinha desta situação, ficou o mesmo mais sedimentado pelos depoimentos das três testemunhas, indicadas pelo Ministério Público, que voltaram a depor na repetição do julgamento, em razão da anulação da primeira sentença, e que claramente afirmaram que várias vezes falaram com este Técnico no período em que exerceram as suas funções na Câmara Municipal ... no âmbito da situação em apreço.
43) O Tribunal a quo deveria ter valorizado de outro modo o que, nesta parte, disseram as testemunhas FF (acusação), que foi beneficiária em vários projectos, e que admitiu ter transitado entre entidades, GG, que disse ter conhecimento directo daquela realidade, JJ, que presenciou algumas dessas situações, e em especial, tudo o que a Dra. II afirmou, cujo depoimento foi elucidativo.
44) Em razão de todos estes depoimentos, não podem suscitar-se dúvidas quanto à certeza de que era normal e habitual a troca e cedência de beneficiários entre entidades da comunidade de ....
45) Os depoimentos das testemunhas Dra. II e Dr. JJ são absolutamente esclarecedores quanto ao conhecimento por parte dos referidos técnicos, dado que estes fiscalizavam a execução dos projectos, conheciam as pessoas que deles beneficiavam, conversavam com os responsáveis das diversas entidades promotoras, e ainda partilhavam as mesmas instalações na Câmara Municipal ....
46) O documento que ora se junta, pode não dizer muito quanto à matéria em causa, mas em face do mesmo, logo cabe perguntar porque razão o Técnico do IEFP, IP., se dirigiu ao Presidente da Direcção da ..., ou seja, ao ora Recorrente, a pedir que lhe indicasse os nomes das pessoas que iriam incorporar o projecto da (Junta de Freguesia) da Luz.
47) O Tribunal a quo, neste particular, deveria ter formulado um outro juízo de prognose sobre os factos em causa, e em sentido favorável aos arguidos, porquanto não avaliou correctamente toda a prova produzida em audiência de julgamento, o que carece de ser corrigido, dado que determinou um julgamento incorrecto e injusto dos factos em causa.
48) E perante tal erro de julgamento, logo se impõe outro juízo de prognose favorável ao arguido, que dê como PROVADO, no mínimo, que ”a circunstância relatada nos pontos 40 a 60 dos factos provados … correspondia a uma prática comum e frequente de intercâmbio entre estruturas da comunidade de ...”.
Do Direito:
49) A douta acusação do Ministério Público assentava essencialmente num alegado plano elaborado pelos arguidos CC e AA, com o propósito de obterem um rendimento fixo mensal para a segunda, o qual passaria por esta vir a ser beneficiária de uma bolsa no âmbito de um contrato de emprego- inserção a celebrar com a ..., e financiado pelo IEFP, IP, e que a mesma, durante a vigência do contrato, ao invés de trabalhar na ..., desempenhou funções nos estabelecimentos comerciais da família, tendo sempre recebido a bolsa de ocupação mensal financiada pelo IEFP, IP, e ainda que ambos representaram que, com estes comportamentos, o ora Recorrente abusava dos poderes que tinha enquanto Presidente da Direcção da ....
50) Todavia, como melhor resulta da douta sentença recorrida, nenhuma destas circunstâncias se provou, devendo ainda destacar-se que as arguidas AA e BB foram absolvidas da prática do crime aqui em causa.
51) As condutas típicas previstas na norma penal têm de estar descritas com factos concretos na douta acusação, não bastando uma mera imputação genérica, sem qualquer concretização, e assim, a alegada falsidade dos documentos tem de resultar de factos objectivos dados como provados, o que manifestamente não ocorre no caso concreto.
52) Nesta parte, o arguido apenas foi confrontado com o ponto 82) da douta acusação, cujo facto é de imputação subjectiva, e onde se dizia que “os arguidos agiram com o propósito concretizado de produzirem documentos cujo teor sabiam não corresponder à verdade, cientes de que os factos constantes dos documentos eram determinantes para o pagamento de prestações patrimoniais por parte do IEFP, IP à ...”.
53) Relativamente a tal facto não foi produzida qualquer prova na audiência de julgamento, e como melhor consta na douta sentença recorrida, (só) veio a dar-se como provado o ponto 74), sobre o qual a fundamentação do Tribunal a quo é que “os factos atinentes à imputação subjectiva (factos 69 a 78) foram considerados como provados por força da conjugação da conduta objectiva do arguido CC e da arguida BB, e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida já que, face aos primeiros, outra não pode ter sido a vontade dos arguidos”.
54) E mais adiante, mas na parte da «fundamentação de direito», vem a douta sentença recorrida esclarecer que “nos referidos documentos, o arguido fez constar factos juridicamente relevantes que não correspondiam à verdade, tais como, as funções a exercer e o local de trabalho”.
55) Ora, quanto a estes concretos factos (as funções a exercer e o local de trabalho), que são de imputação objectiva, nunca o ora Recorrente teve oportunidade de se defender, dado que deles só teve conhecimento quando lhe foi lida a douta sentença recorrida, o que afecta de imediato toda a decisão e a torna NULA, tal como dispõe o art. 379º, nº.1, alínea b), do C.P.P.
56) Até esse momento, o arguido desconhecia em absoluto quais eram os documentos a que se refere o ponto 74, o qual apenas contém uma imputação genérica que não se mostra concretizada em quaisquer outros factos da douta acusação ou entre os que resultaram provados.
57) Os documentos em causa nunca foram evidenciados no decurso da audiência de julgamento, e assim, óbvio se torna que o arguido não podia defender-se da sua alegada falsidade.
58) E como melhor se extrai da douta sentença recorrida, o Tribunal a quo conclui e dá como assentes a esses factos objectivos e juridicamente relevantes, mas só o faz em razão do mencionado ponto 74) de imputação subjectiva, o que é inadmissível, ilegítimo, e injusto.
59) Em rigor, e de acordo com as regras da experiência comum, não se vê que seja possível retirar quaisquer factos objectivos a partir de um facto de imputação subjectiva.
60) E neste particular, nenhuma dúvida pode haver, dado que tal decorre da própria douta sentença recorrida quando fundamenta que “por fim, provou-se que o arguido agiu com o propósito concretizado de produzir documentos cujo teor sabia não corresponder à verdade, ciente de que os factos constantes dos documentos eram determinantes para o pagamento das prestações patrimoniais por parte de IEFP, IP, à ..., agindo sempre com o propósito concretizado de obter do IEFP, IP, a aprovação da candidatura e o pagamento do financiamento aprovado, e de forma livre, voluntária e conscientemente, na convicção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. De salientar que, nos referidos documentos, o arguido fez constar factos juridicamente relevantes que não correspondiam à verdade, tai como, as funções a exercer e o local de trabalho”.
61) Já antes se criticou a falta de fundamentação da decisão nesta parte, porquanto a douta sentença recorrida não faz qualquer concreta menção aos referidos documentos, e apenas se sabe, tal como resultou provado no ponto 32), que os contratos em causa foram efectivamente celebrados entre a ... e as beneficiárias da medida CEI-Património, e não entre estas e arguido
62) A intervenção do arguido na elaboração e feitura de tais documentos foi apenas a de neles apor a sua assinatura na qualidade de Presidente da Direcção da ..., sendo igualmente certo que “não resultou como provado que o arguido tenha agido com abuso dos poderes que tinha enquanto Presidente da Direcção da ...”.
63) Nada foi alegado, nem resultou provado, que ele tenha falsificado, adulterado, ou alterado esses contratos, bem como não existe qualquer prova de que tenha sido ele o autor e mentor de tais documentos.
64) E se o arguido não pode ser desculpabilizado por ter mandado as beneficiárias para a Câmara Municipal ..., também tem de se admitir que não lhe era exigível que ele pudesse prever que, ao entregar os referidos contratos no IEFP, IP, estava a utilizar documentos falsos.
65) Resta acrescentar, como já antes se defendeu, que as funções a exercer e o local de trabalho das candidatas não são elementos juridicamente relevantes para a obtenção do subsídio em causa, à luz dos Regulamentos do Programa Património Activo.
66) E assim, por ser de elementar Justiça, vem pugnar-se pela absolvição do arguido.
NESTES TERMOS, DEVE CONCEDER-SE TOTAL PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E EM CONSEQUÊNCIA, ANULAR-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE DETERMINE A ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO, ORA RECORRENTE.
E DECIDINDO-SE ASSIM, SERÁ FEITA JUSTIÇA
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:
1. A douta sentença do Tribunal a quo não enferma de qualquer nulidade tal como apontado pelo recorrente, uma vez que nesta não constam quaisquer factos que não estejam na acusação pública, parecendo existir, por parte do recorrente, uma confusão entre a matéria de facto, a sua correspondente fundamentação e, bem ainda, a fundamentação de direito, pese embora todas elas consubstanciem realidades distintas.
2. Da prova acima exposta e produzida em audiência de discussão e julgamento o Tribunal recorrido certamente não poderia deixar de dar como provado os factos aqui impugnados.
3. A jurisprudência dos nossos Tribunais superiores vem sendo unânime no sentido de que só se da apreciação da prova feita pelo Tribunal Superior resultar para este claramente ter havido violação dos critérios de apreciação da prova, designadamente dos enunciados no artigo 127.º do Código de Processo Penal, deve aquele Tribunal Superior modificar a matéria de facto dada como assente.
4. A avaliação feita pelo Tribunal recorrido não foi arbitrária, encontrando-se devidamente fundamentada, em termos de expor o ciclo ou processo probatório bem como o critério lógico dedutivo que alicerçou a decisão à respetiva compreensão pública e reconstituição pelo Tribunal Superior, tudo conforme imediatamente resulta da simples leitura da sua fundamentação. As provas indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa.
5. Ao contrário do que alega o arguido recorrente, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada, uma vez que resulta dos pontos 75 e 85 a imputação subjetiva ao arguido e do ponto A que não se provou que tenha existido um plano previamente elaborado entre a arguida AA e o arguido CC, ou seja, apenas se provou que se tratou de uma atuação única e exclusiva por parte do arguido com intenção de beneficiar AA.
6. Ressalta nitidamente do texto da sentença recorrida, designadamente da fundamentação da convicção sobre a matéria de facto, ter o Tribunal a quo, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação.
7. Constata-se que a inexistência de desconformidades entre a prova produzida e a perceção que dela foi feita e que o Tribunal justificou suficientemente na sentença as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo-lhes valor positivo ou negativo de modo sempre racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo.
8. A fundamentação da sentença visa evidenciar as razões da bondade da decisão e dar satisfação à exigência da sua total transparência, facultando aos seus destinatários imediatos e à comunidade a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador, e viabilizando o controlo da atividade decisória pelo Tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto, não pode esquecer-se que não existem fórmulas sacramentais para a sua explicitação, variando em função, designadamente, do maior ou menor poder de síntese do julgador e da melhor ou menos boa capacidade de expressão do mesmo, bastando-se a lei processual com uma possibilidade efetiva de compreensão do raciocínio exposto.
9. A sentença recorrida contém a enumeração dos factos provados e dos factos não provados, a indicação das provas que serviram para fundar a convicção do Tribunal e ainda a explicação da relevância probatória atribuída a cada um dos meios de prova indicados.
10. São perfeitamente entendíveis as razões que determinaram a Mma. Juiz a quo a valorar os meios de prova num determinado sentido e não, num outro qualquer, demonstra-o o recurso interposto pelo arguido.
11. Se a valoração probatória feita na sentença é a correta ou não, do ponto de vista do arguido, é questão que nada tem já a ver com a alegada falta de fundamentação.
12. A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, não merecendo qualquer reparo.
Pelo exposto, deve negar-se provimento ao recurso apresentado pelo arguido CC e manter-se a douta sentença recorrida, assim se fazendo justiça!
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No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs Visto.
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Realizou-se a audiência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice, as questões a apreciar são:
- Nulidade da sentença
- Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão
- Contradição insanável
- Erro notório na apreciação da prova
- Impugnação de matéria de facto
- Princípio in dubio pro reo
- Preenchimento (ou não) do tipo de crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36.º n.ºs 1, alínea c), 2 e 5, alínea a), do D.L n.º 28/84, de 20 de Janeiro.
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É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos provados, factos não provados e motivação (transcrição):
“Com relevância e interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido CC é pai da arguida AA.
2. A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de ... (adiante designada apenas por ...) foi fundada em 20 de Outubro de ..., constituindo uma Associação Humanitária de Bombeiros de duração ilimitada, regendo-se pelo disposto na Lei n.º 32/2007 de Agosto (Regime jurídico das Associações Humanitárias de bombeiros), pelo Código Civil, pelos seus estatutos e regulamento interno.
3. A ... é uma pessoa colectiva de utilidade pública.
4. Os órgãos sociais da ... são compostos por uma Assembleia Geral, uma Direcção e um Conselho Fiscal.
5. A Direcção, enquanto órgão colegial, é constituída por um Presidente, Vice-Presidente, um Secretário, um Tesoureiro e um Vogal, todos com as competências definidas nos respectivos estatutos.
6. O arguido CC desempenhou, entre os anos de 2013 e 2015, o cargo de Presidente da Direcção da ....
7. O arguido CC, enquanto presidente da Direcção da ..., estava legal e estatutariamente obrigado a zelar pelo cumprimento da lei, dos estatutos e das deliberações dos órgãos da associação.
8. Através da Portaria n.º 33/2013 de 29 de Janeiro foi criado, pelo Governo, o programa de qualificação e inserção profissional nas áreas de conservação e manutenção do património, designado Património Activo.
9. O Programa Património Activo é regulado pela referida Portaria, bem como pelo Regulamento Específico.
10. O Programa Património Activo integra duas medidas: (1) Estágios e (2) Contratos Emprego Inserção, designados por CEI – Património.
11. A Medida Contrato-Emprego de Inserção – CEI Património visa promover a empregabilidade, sendo titulada por contrato a celebrar por destinatários elegíveis e especificamente regulamentada no Capitulo III daquele programa.
12. A Medida Contrato-Emprego de Inserção – CEI Património só pode ser promovida por entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, sendo que a respectiva candidatura é feita através de plataforma informática, criada e disponível para o efeito.
13. Esta plataforma informática é igualmente utilizada para realizar os restantes “inputs” relativos à execução do protocolo, nomeadamente o preenchimento e comunicação de mapas de assiduidade.
14. Para o processamento destes “inputs” na plataforma informática implica a atribuição de uma conta e “password” de acesso ao responsável da entidade promotora.
15. De forma a permitir o exercício da competência do Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP (IEFP) no acompanhamento e avaliação de projectos, prevê-se a obrigatoriedade de organização de um “dossier” técnico-financeiro, contendo designadamente documentação de natureza contabilística e do encerramento de contas.
16. Em relação às transferências financeiras prevê-se no Regulamento Específico que as entidades promotoras têm direito:
a) A um primeiro adiantamento correspondente a 40% do total do apoio aprovado a comparticipar pelo IEFP, IP no início da execução do protocolo;
b) A um segundo adiantamento correspondente a 45% do total do apoio aprovado a comparticipar pelo IEFP, IP, quando o processo estiver em execução total e for atingido um terço da duração total aprovada do projecto;
c) Ao encerramento das contas, podendo haver lugar a pagamento dos restantes 15% do apoio aprovado;
17. Para as entidades promotoras receberem o primeiro adiantamento, correspondente a 40% do total do apoio aprovado e a comparticipar, devem:
a) Devolver ao IEFP, IP, o termo de aceitação da decisão de aprovação;
b) Informar o IEFP, IP, do início efectivo do primeiro estágio ou actividade, através do envio de cópia do respectivo contrato de estágio ou contrato emprego de inserção;
c) Remeter comprovativo do NIB, bem como a cópia da apólice de seguro de acidentes de trabalho de cada estagiário ou beneficiário.
18. No que diz respeito ao segundo adiantamento, este é efectuado com base no total do apoio aprovado para os estágios ou projectos efectivamente iniciados.
19. No prazo de 15 dias após a conclusão dos projectos, deve ser solicitado pela entidade promotora o encerramento de contas, procedendo o IEFP, IP à verificação física e financeira do processo, podendo haver lugar ao pagamento até 15% do aprovado e a comparticipar por aquela entidade.
20. No dia 2 de Julho de 2013, o arguido CC, em nome e em representação da ..., apresentou, através da plataforma electrónica disponibilizada pelo IEFP, IP, uma candidatura à Medida de Contrato-Emprego de Inserção do projecto “Património activo” na área de vigilância e espaços florestais.
21. Nessa candidatura a ..., representada pelo arguido CC, apresentou um projecto para celebração de quatro contratos-emprego de inserção para a área profissional de sapador florestal sendo que os objectivos daquele projecto de trabalho estavam relacionados com o zelar pelo cumprimento das medidas de prevenção de incêndios nas florestas, limpando-as e informando os utentes sobre os cuidados a adoptar, bem como participar na luta contra o fogo.
22. No que diz respeito às tarefas a concretizar pelos contratados, as mesmas passariam pela observação e localização de focos de incêndio em postos para o efeito e, concomitantemente, com o contacto com as entidades responsáveis pela extinção dos mesmos.
23. A candidatura apresentada pela ... foi aprovada por decisão do Conselho Directivo do IEFP, IP de 26 de Dezembro de 2013.
24. Tendo sido atribuído o n.º de processo n.º 0203/....
25. Em data não concretamente apurada, mas entre 26 de Dezembro de 2013 e 22 de Janeiro de 2014, a ..., através do arguido CC, remeteu o termo de aceitação da aprovação, devidamente assinado por si, ao IEFP, IP, acompanhado de documento contendo o NIB da ....
26. Por força do Regulamento do Programa Património Activo, já referenciado acima, competiria ao IEFP, IP proceder à selecção dos candidatos/beneficiários da medida em conjunto com as entidades promotoras.
27. Em data não concretamente apurada, mas entre 26 de Dezembro de 2013 e 22 de Janeiro de 2014, o arguido CC comunicou ao técnico de emprego DD do Centro de Emprego do IEFP, I.P. a identificação de quatro possíveis beneficiárias das medidas de contrato emprego-inserção.
28. Nessa circunstância, forneceu quatro nomes de pessoas que se encontravam na situação de desemprego e que reuniam as condições para beneficiarem do mesmo, sendo elas:
• LL;
• MM;
• FF;
• AA.
29. Nessa ocasião, CC não informou o técnico de emprego DD, que uma das beneficiárias, a arguida AA, era sua filha.
30. Por todas as candidatas reunirem os requisitos para beneficiarem do projecto, foram as mesmas convocadas pelo IEFP, IP para se apresentarem na sede da ... no dia 22 de Janeiro de 2014, em hora não concretamente apurada.
31. No dia 22 de Janeiro de 2014, LL, MM, FF e a arguida AA apresentaram-se na sede da ....
32. Nesse dia foram celebrados entre a ..., representada pelo arguido CC e as beneficiárias acima identificadas quatro contratos-emprego de inserção, com início de vigência a 23 de Janeiro de 2014 e termo a 21 de Dezembro de 2014, para desempenho de funções na área de vigilância dos espaços florestais, designadamente no quartel dos Bombeiros Voluntários de ..., no horário das 09h00-17h30.
33. Em data não concretamente apurada, o arguido CC, em nome da ..., entregou no IEFP, IP a documentação exigida no clausulado do ponto 18.2.1 do Regulamento Especifico do Programa Património Activo, para pagamento primeiro adiantamento, ou seja:
a) Cópias dos quatro contratos de emprego-inserção celebrados com as beneficiárias da medida;
b) Cópia das apólices de seguros de acidentes de trabalho.
34. Em consequência da entrega de tais documentos, no dia 26 de Fevereiro de 2014 foi creditado, na conta bancária com o n.º ...31, do Banco Espírito Santo, titulada pela ..., o valor de € 9.130,13 (nove mil cento e trinta euros e treze cêntimos), correspondente ao pagamento pelo IEFP, IP do primeiro adiantamento correspondente a 40% do total do apoio aprovado a comparticipar pelo IEFP, IP.
35. No dia 5 de Junho de 2014 foi creditado, na conta bancária com o n.º ...31, do Banco Espírito Santo, titulada pela ..., o valor de € 10.271,39 (dez mil cento e duzentos setenta e um euros e trinta e nove cêntimos), correspondente ao pagamento pelo IEFP, IP do segundo adiantamento correspondente a 45% do total do apoio aprovado a comparticipar pelo IEFP, IP.
36. CC era sócio gerente, juntamente com a sua esposa, NN, de dois estabelecimentos comerciais, designadamente um pronto-a-vestir e um restaurante.
37. No âmbito do contrato-emprego de inserção que celebrou com a ..., foi mensalmente paga, por conta do mesmo, à arguida AA, no período de 23 de Janeiro de 2014 a 21 de Dezembro de 2014, uma bolsa de ocupação mensal, no valor de € 419,22 (quatrocentos e dezanove euros e vinte e dois cêntimos) e um subsídio de refeição, no valor diário de € 4,27 (quatro euros e vinte e sete cêntimos).
38. Neste período, a ... pagou a esta arguida a quantia total de € 5.593,70 (cinco mil quinhentos e noventa e três euros e setenta cêntimos).
39. Quantia que a arguida fez sua, utilizando-a em proveito próprio para fazer face às suas despesas pessoais.
40. As beneficiárias da medida CEI-Património LL, FF e MM não desempenharam as funções que constam da cláusula 1.ª dos contratos-emprego inserção que assinaram, funções essas que deveriam ser desempenhadas no quartel dos Bombeiros Voluntários de ....
41. A arguida BB desempenhou, desde 19 de Outubro de 2013, o cargo de Presidente da Câmara Municipal ....
42. Nessa qualidade, a arguida BB, em data não concretamente apurada no final do ano de 2013, tomou conhecimento, por intermédio do arguido CC, que a ... se tinha candidatado, em Julho de 2013, a um projecto financiado pelo IEFP, I.P. para a celebração de contratos de emprego-inserção de sapadores florestais, informando-a de que, não tendo no imediato, e por razões supervenientes, disponibilidades para assegurar a prevista ocupação de três das beneficiárias, solicitava à autarquia a disponibilidade e possibilidade da ocupação delas em serviços ou tarefas afins da entidade autárquica,
43. Em data também não concretamente apurada, mas anterior a 22 de Janeiro de 2014, a arguida BB foi contactada pelo arguido CC, o qual lhe solicitou a indicação de pessoas que preenchessem os requisitos para integrarem a candidatura supra referida, que constassem do Serviço de Intervenção Social da Câmara Municipal de ..., em concreto, LL, FF e MM.
44. Ainda que tivesse conhecimento de que LL, FF e MM iriam desempenhar funções distintas daquelas que constavam do projecto financiado pelo IEFP, IP, a arguida BB aceitou colocar as beneficiárias de tal projecto a desempenhar trabalho para o Município ....
45. No dia 22 de Janeiro de 2014, as beneficiárias LL, OO e MM foram informadas pelo arguido CC de que deveriam apresentar-se, no dia seguinte, na Câmara Municipal ..., perante a Presidente da Câmara, a arguida BB.
46. Assim, no primeiro dia de trabalho, LL apresentou-se perante a Presidente da Câmara Municipal ..., a arguida BB, que a encaminhou para a realização de serviços de limpeza e atendimento no ....
47. Para efeitos de controlo de presença, LL assinava um termo de presença no gabinete de acção social da Câmara.
48. LL nunca prestou trabalho na ..., como sapador florestal ou exercendo outra função.
49. Não obstante, no âmbito do contrato-emprego de inserção que celebrou com a ..., foi paga mensalmente a LL, no período de 23 de Janeiro de 2014 a 21 de Dezembro de 2014, uma bolsa de ocupação mensal, no valor de € 419,22 (quatrocentos e dezanove euros e vinte e dois cêntimos) e um subsídio de refeição, no valor diário de € 4,27 (quatro euros e vinte e sete cêntimos), num valor total de € 5.593,70 (cinco mil quinhentos e noventa e três euros e setenta cêntimos).
50. Cumprindo instruções que lhe tinham sido transmitidas na ..., no primeiro dia de trabalho, FF apresentou-se perante Presidente da Câmara Municipal ....
51. A arguida BB encaminhou FF para a realização de limpeza em espaços públicos, nomeadamente nos edifícios daquela edilidade
52. Para efeitos de registo de assiduidade, FF assinava um termo de presença no gabinete de acção social da Câmara.
53. FF nunca prestou trabalho na ..., como sapador florestal ou exercendo outra função.
54. Não obstante, no âmbito do contrato-emprego de inserção que celebrou com a ..., foi paga mensalmente, por conta do mesmo, a FF, no período de 23 de Janeiro de 2014 a 21 de Dezembro de 2014, uma bolsa de ocupação mensal, no valor de € 419,22 (quatrocentos e dezanove euros e vinte e dois cêntimos) e um subsídio de refeição, no valor diário de € 4,27 (quatro euros e vinte e sete cêntimos), no valor total de € 5.593,70 (cinco mil quinhentos e noventa e três euros e setenta cêntimos).
55. Também MM, conforme instruções dadas pelo arguido CC apresentou-se, no primeiro dia de trabalho, perante a Presidente da Câmara Municipal ....
56. A arguida BB deu-lhe instruções para desempenhar funções no Cine Teatro de ..., nomeadamente de limpeza e vigilância do espaço, entre outras.
57. MM nunca prestou trabalho na ..., como sapador florestal ou exercendo outra função.
58. Não obstante, no âmbito do contrato-emprego de inserção que celebrou com a ..., foi paga mensalmente, por conta do mesmo, a MM, no período de 23 de Janeiro de 2014 a 21 de Dezembro de 2014, uma bolsa de ocupação mensal, no valor de € 419,22 (quatrocentos e dezanove euros e vinte e dois cêntimos) e um subsídio de refeição, no valor diário de € 4,27 (quatro euros e vinte e sete cêntimos), no valor total de € 5.593,70 (cinco mil quinhentos e noventa e três euros e setenta cêntimos).
59. LL, FF e MM desempenharam tais funções, até ao termo dos respectivos contratos emprego-inserção, no dia 21 de Dezembro de 2014.
60. O Município ... não pagou a LL, FF e MM qualquer montante pelo trabalho desenvolvido pelas mesmas, durante tal período de tempo.
61. Em função da denúncia que deu origem aos presentes autos, que também foi remetida à Delegação Regional do Alentejo do IEFP, foi determinado por esta entidade um acompanhamento e verificação de regularidade financeira da execução daquele programa.
62. Por despacho do Delegado Regional do Baixo Alentejo do IEFP, IP de 02 de Fevereiro de 2015 foram consideradas inelegíveis as despesas referentes à arguida AA, no valor total de € 5.594,11 (cinco mil quinhentos e noventa e quatro euros e onze cêntimos)
63. Em função da não elegibilidade de despesas apresentadas com referência a AA, procedeu o IEFP, IP à diminuição do montante máximo previsto protocolado, para o valor de € 17.180,56 (dezassete mil cento e oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos).
64. Em função de tal solução, e tendo sido já transferidas as parcelas correspondentes a € 19.401,52 (dezanove mil quatrocentos e um euro e cinquenta e dois cêntimos), entendeu aquela entidade não efectuar o pagamento final dos 15% e recuperar dos valores já pagos o valor de € 2.220,96 (dois mil duzentos e vinte euros e noventa e seis cêntimos).
65. O valor de € 2.220,96 (dois mil duzentos e vinte euros e noventa e seis cêntimos) referido foi deduzido/compensado no valor que, por força do encerramento de contas do Processo n.º 0202/..., o IEFP, IP teria que pagar à ... naquele processo.
66. Não obstante a decisão do IEFP, IP o arguido CC, na qualidade de presidente de direcção da ... nunca exigiu à arguida AA que devolvesse as quantias que recebeu.
67. Nem a arguida AA devolveu qualquer quantia à ....
68. Assim, do montante total do financiamento inicialmente aprovado no valor de € 22.825,32 o IEFP, IP pagou efectivamente à ... a quantia de € 19.401,52 (em 26/02/2014 e 05/06/2014), - à qual veio a ser descontada, por compensação com o processo n.º 0202/..., a quantia de €2.220,96 - quantias que a sociedade recebeu e empregou para fins diversos daqueles a que se destinavam já que nenhuma das beneficiárias da medida de contrato emprego-inserção, desempenhou as funções de vigilância dos espaços florestais, que estiveram na base da aprovação do financiamento e que constavam dos respectivos contratos de emprego inserção.
69. O arguido CC, que na qualidade de presidente de direcção da ... actuou, conseguiu com as condutas descritas, obter um rendimento fixo mensal, para a arguida AA.
70. O arguido CC conhecia as normas legislativas e regulamentares aplicáveis à medida CEI - Património, conhecendo as obrigações que se lhe impunham por força da aprovação da candidatura, conhecia a natureza de subsídio ou subvenção dos montantes atribuídos pelo IEFP, IP e sabia que os mesmos não podiam ser afectos a finalidades diversas daquelas a que se destinavam.
71. Sabia o arguido CC que o recebimento, pela ..., das quantias relativas ao financiamento aprovado estava dependente de avaliação a realizar pelo IEFP, IP, do cumprimento dos termos da decisão de aprovação e nas disposições legislativas e regulamentares aplicáveis, e que em função dessa avaliação os pagamentos podiam ser suspensos ou mesmo o financiamento revogado ou reduzido, aliás como ocorreu.
72. Não obstante, quis e conseguiu omitir do IEFP, IP o facto das beneficiárias, não se encontrarem a desempenhar as funções que estiveram na base da aprovação da candidatura e que constavam nos respectivos contratos.
73. Sabia também que o pagamento dos dois primeiros adiantamentos do financiamento aprovado estava dependente da entrega de documentação comprovativa do início da actividade de trabalho socialmente necessário pelas beneficiárias, e que a documentação entregue ao IEFP, IP, designadamente dos contratos emprego inserção era apta a fazer crer a quem a apreciasse que as tarefas socialmente úteis que estiveram na base da aprovação da candidatura estavam em execução.
74. O arguido agiu com o propósito concretizado de produzir documentos cujo teor sabia não corresponder à verdade, ciente de que os factos constantes dos documentos eram determinantes para o pagamento de prestações patrimoniais, por parte do IEFP, IP à ....
75. Agiu o arguido sempre com o propósito concretizado de obter do IEFP, IP a aprovação da candidatura e o pagamento do financiamento aprovado, para que dessa forma, a arguida AA, enquanto beneficiária indicada pelo arguido CC pudesse obter um rendimento mensal durante o ano de 2014, o que logrou atingir.
76. O arguido CC agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, na convicção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
77. A arguida BB sabia, ao aceitar que prestassem trabalho para o Município ..., que LL, MM e FF haviam celebrado contratos emprego-inserção com a ..., sendo tais contratos financiados pelo IEFP, I.P.
78. Sabia, pois, a arguida BB que LL, MM, FF e AA iriam auferir, no âmbito do projecto do IEFP, IP a que a ... se havia candidatado, uma bolsa mensal que lhes seria paga pelo ..., mediante o financiamento do IEFP, IP.
79. O arguido CC é chefe administrativo da ....
80. O arguido é visto pela comunidade onde se insere como pessoa honesta e íntegra.
81. A arguida AA é assistente operacional.
82. A arguida BB é professora e é vista como pessoa respeitável, séria e honesta junto da população.
83. Os arguidos não têm antecedentes criminais averbados nos seus CRCs.
84. O arguido CC, com as condutas descritas em 69), atuou com o propósito de, durante o período temporal de um ano, obter um rendimento fixo mensal, para a arguida AA.
85. O Arguido CC ao apresentar, em representação da ..., a candidatura à medida de Contrato-Emprego de Inserção do projecto “Património activo” na área de vigilância e espaços florestais, não tinha qualquer intenção em que a ... e a comunidade beneficiassem do trabalho de quatro sapadores florestais,
tendo agido apenas com a intenção de obter um rendimento mensal para a arguida AA, o que ambos quiseram e conseguiram.
Factos não provados:
A. Em data não concretamente apurada, mas anterior a Julho de 2013, os arguidos CC e AA formularam um plano com o propósito de obterem um rendimento fixo mensal, para a segunda, o qual passaria por esta vir a ser beneficiária de uma bolsa no âmbito de um contrato de emprego-inserção a celebrar com a ..., financiado pelo IEFP, IP.
C. A arguida AA não desempenhou as funções que constam da cláusula 1.ª do contrato-emprego de inserção que assinou.
D. A arguida AA, durante a vigência do contrato, ao invés de trabalhar na ..., desempenhou funções nos estabelecimentos comerciais da família.
E. O arguido CC indicou ao Município ... os nomes e LL, FF e MM.
F. A arguida BB tinha conhecimento que a arguida AA, que sabia ser filha de CC, também havia sido seleccionada como beneficiária do projecto de que a ... era entidade promotora.
G. Na circunstância descrita em 45 foram também informados por funcionárias da ..., em cumprimento de instruções do arguido CC.
H. Na vigência do contrato, LL solicitou à arguida BB mudança de local de prestação de trabalho, sendo colocada na limpeza dos espaços públicos, assinando um termo de presença na escola ....
I. Já no final do contrato, foi instruída para mudar de local de execução de trabalho, passando a prestar serviço nas instalações da Piscina Municipal de ..., onde assinava os respectivos termos de presença.
J. A arguida AA, actuou, com a conduta descrita, no âmbito de um plano formulado por si e pelo arguido CC, com o propósito de, durante o período temporal de um ano, obter um rendimento fixo mensal para si, o que fez e conseguiu.
K. A arguida AA conhecia as normas legislativas e regulamentares aplicáveis à medida CEI - Património, conhecendo as obrigações que se lhes impunha por força da aprovação da candidatura, conhecia a natureza de subsídio ou subvenção dos montantes atribuídos pelo IEFP, IP e sabia que os mesmos não podiam ser afectos a finalidades diversas daquelas a que se destinavam
M. Representaram os arguidos CC e AA que, com os comportamentos adoptados, o arguido CC abusava dos poderes que tinha enquanto Presidente da Direcção da ....
N. A arguida AA agiu com conhecimento da factualidade mencionada nos pontos 70 a 75 dos factos provados.
O. A arguida AA agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, na convicção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
P. A arguida BB sabia que LL, MM e FF foram contratadas para desempenharem funções como sapadores florestais.
Q. Sabia ainda a arguida BB que a arguida AA, filha do arguido CC também era beneficiária de tal projecto.
R. A arguida BB agiu, pois, com o propósito de, juntamente com o arguido CC, presidente da ..., utilizar, através do pagamento mensal das bolsas de LL, MM, FF, as prestações obtidas do IEFP, IP para fins diferentes daqueles a que legal e regulamentarmente se destinavam, o que logrou atingir.
S. A arguida BB representou, ainda que, com a candidatura apresentada em nome da ..., CC agia com a intenção, concretizada, de obter um rendimento mensal para a sua filha AA, superior àquele que aquela auferia a título de rendimento social de inserção.
T. Ao aceitar o trabalho de três das quatro beneficiárias de tal projecto a arguida BB sabia, pois, que prestava auxílio material à execução do plano delineado por CC e AA, o que representou como possível e aceitou.
U. BB agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
V. A circunstância relatada nos pontos 40 a 60 dos factos provados era do conhecimento e merecera o consenso do IEFP, I.P e correspondia a uma prática frequente de intercâmbio entre estruturas da comunidade de ....
Não resultaram provados, nem não provados, quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa.
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Motivação matéria de facto:
A convicção do tribunal sobre a matéria de facto provada resultou da ponderação do conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, coadunada com a prova documental constante dos autos.
No que respeita à factualidade considerada como provada, o tribunal teve por base as declarações dos arguidos CC, AA e BB e das testemunhas PP, DD, LL, MM, FF, QQ, GG, HH, RR, II, JJ, SS e KK.
Baseou-se ainda o tribunal no parecer da unidade de perícia financeira e contabilística da Polícia Judiciária constante do anexo 3, nos estatutos da ... de fls. 12 a 40, impressão do site da presidência do Conselho de Ministros de fls. 41, regulamento do programa património activo de fls. 47 a 63, comprovativo de recepção de candidatura de fls. 64 e 65, decisão de aprovação de fls. 66, termo de aceitação da decisão de aprovação de fls. 67, documento com NIB da ... de fls. 68, mapa de pagamentos de fls. 69, informação de serviço e despachos do IEFP de fls. 70, notificação do IEFP à ... de fls. 71, autorização de pagamento para encerramento de contas de fls. 72, informação de serviço de encerramento de contas e despacho de autorização de fls. 113 a 118, fichas de avaliação da formação prática de fls. 127 a 130, ficha de identificação civil de AA de fls. 152 e 153, certidão permanente da ... de fls. 154 a 169, certidão permanente da sociedade NN & Alexandre de fls. 170 a 173, certidão permanente da TT de fls. 174 a 178, auto de busca e apreensão de fls. 206 a 207, documentação apreendida na ... constante do anexo 1, documentação bancária constante do CD que compõe o anexo 2 e nos CRCs de 24.09.2021 (Ref.ªs 30990431, 30990441 e 30990452).
Relativamente ás declarações do arguido CC, o mesmo confirmou parcialmente a factualidade constante da acusação, negando que a candidatura efectuada pela ... fosse com o único intuito de obter um rendimento para a sua filha, esclarecendo que efectivamente teve a intenção de contratar sapadores florestais para a época dos fogos, sendo que a referida candidatura apenas veio a ser aprovada em Novembro, frustrando esse objectivo.
Nessa altura, o arguido mencionou que aproveitou a circunstância de já se encontrar aprovado o programa, sendo que uma das vagas, no total de 4, foi para a sua filha que estava a beneficiar do RSI e tinha uma filha pequena e as restantes vagas foram preenchidas por pessoas indicadas pelos serviços sociais da Câmara Municipal ..., após contacto com a arguida BB.
Mais referiu que a sua filha trabalhou efectivamente na ..., desconhecendo a mesma os contornos do programa ao abrigo do qual estava a ser contratada, e que as restantes três beneficiárias prestaram trabalho em espaços afectos à Câmara Municipal ....
Mencionou ainda que sempre teve a intenção de ajudar a população de ..., concelho com um elevado índice de pobreza e que achou que não estava a praticar qualquer ilícito criminal uma vez que a situação em causa era do conhecimento dos técnicos do IEFP no terreno e era prática habitual naquele concelho.
Ora, não obstante o arguido admitir a prática de alguma factualidade descrita na acusação, o tribunal considerou as suas declarações como não credíveis uma vez que a factualidade por si admitida é, na sua maioria, comprovável documentalmente e não se afigura verosímil que alguém com a experiência do arguido nas funções em causa pudesse desconhecer que estava a actuar contra a lei.
Quanto à arguida AA, a mesma prestou declarações no sentido de confirmar que efectivamente trabalhou na ... no âmbito do contrato de emprego-inserção, desempenhando tarefas administrativas várias e ainda a de vigilância de fogos, quando necessário.
Nega a existência de qualquer conluio com o seu pai para a obtenção deste subsídio para a sua pessoa, desconhecendo toda a situação até ao momento em que foi chamada para se apresentar na ... para a assinatura do contrato.
Refere ainda que nunca trabalhou no restaurante ou na loja de roupa que, à data, pertenciam aos seus pais, dentro do horário de expediente do seu trabalho na ....
Ora, as declarações da arguida merecem credibilidade uma vez que não se mostram contrariadas de forma definitiva nem pelas declarações das restantes testemunhas nem pelas regras da experiência comum.
Por fim, a arguida BB referiu que foi contactada pelo arguido CC, tendo este mencionado que pretendia 3 nomes para integrar num projecto do IEFP e que essas 3 pessoas podiam ficar a exercer actividade laboral na Câmara Municipal ....
Refere ainda que não tem qualquer conhecimento dos contratos e quais as funções que constavam desses mesmos contratos. Apenas declarou ter conhecimento que as pessoas em causa iam ser contratadas pela ... e que era essa entidade que estava responsável por processar os respectivos vencimentos.
Declarou ainda que ficou com a ideia que os técnicos do IEFP no terreno sabiam desta situação, apesar de não ter a certeza.
Negou peremptoriamente que tivesse existido qualquer plano entre si e o arguido CC com o objectivo de conseguir um rendimento ilegítimo para a arguida AA, sendo que a prática em questão era comum no concelho ....
Ora, não obstante o tribunal considerar as declarações da arguida como credíveis, pela forma escorreita, sem hesitações e uma vez que inexiste prova que contradiga as referidas declarações, não se pode deixar de salientar que não resultou provado que fosse prática comum haver um “intercâmbio” de trabalhadores de programas sociais entre as entidades do município.
Passando à análise da prova testemunhal, começamos pelas testemunha EE e DD, técnicos do IEFP, sendo que a primeira referiu a forma através da qual o pagamento dos apoios é processado, confirmando a factualidade descrita na acusação quanto a essa circunstância, em depoimento que se considerou credível pela forma clara e concisa como foi prestado.
Mencionou ainda que o IEFP recebeu uma denúncia anónima que, após investigação, levou à declaração de inelegibilidade das despesas relativas à arguida AA.
Mais declarou que no IEFP sempre tentaram combater situações em que beneficiários dos programas se encontrassem a realizar funções diversas das contratadas sempre que de tal se apercebessem.
Quanto a DD, o mesmo prestou depoimento também de forma clara e concisa, motivo pelo qual se considerou credível, declarando que os nomes das pessoas a integrar o programa foram-lhe indicadas pelo arguido CC, sendo que depois acabou por ter conhecimento de um problema com a execução do referido programa,
o que levou à declaração de inelegibilidade das despesas relativas à arguida AA.
As testemunhas LL, MM e FF, confirmaram que trabalharam, no âmbito deste projecto, em espaços pertencentes à Câmara Municipal ..., sendo que assinaram contrato com a ... e os seus vencimentos eram liquidados por esta entidade.
De salientar que, no que se refere ao depoimento de LL, o mesmo não mereceu credibilidade uma vez que aparentava constrangimento quando se referia à circunstância de a arguida UU ter trabalhado nos estabelecimentos pertença dos pais, enquanto referia desconhecer tal circunstância.
Quanto a MM, o seu depoimento também não revelou credibilidade, uma vez que também revelou constrangimento a falar da situação relativa à eventual actividade laboral da arguida AA e se a mesma prestou trabalho na ... ou não.
Por fim, o depoimento de FF revelou credibilidade pela forma escorreita como foi prestado, não obstante ter revelado imprecisões quanto ao período em que refere que a arguida AA se encontrava a prestar trabalho na loja de roupa. Por esse motivo, o tribunal considerou como não provado que a arguida AA não tivesse trabalhado na ....
QQ, inspector da Polícia Judiciária, em depoimento credível pela forma clara e concisa com que foi prestado, refere que diligenciou pela obtenção de documentação no âmbito deste processo e que falou com algumas trabalhadoras, não acrescentando nada de relevante para os presentes autos.
Já GG, chefe de secretaria da ..., em suma, confirmou a versão trazida aos autos pelos arguidos CC e AA, referindo que esta arguida prestou ali trabalho e que nunca houve interferência do arguido CC. Mais declarou que era normal haver troca de beneficiários entre entidades.
Ora, não obstante o tribunal entender que o depoimento em causa revela credibilidade, é de salientar que o mesmo deve ser visto de forma crítica atendendo à relação profissional existente entre esta testemunha e o arguido CC.
HH, técnica superior, foi a responsável pela inserção dos dados da candidatura ao IEFP, não se recordando dos contornos do projecto em causa nos presentes autos e quem lhe pediu para efectuar a candidatura.
Mais referiu que, apesar de ter conhecimento de existirem trocas de beneficiários entre entidades, desconhece se a prática em causa era habitual.
De referir que o depoimento em causa revestiu credibilidade pela forma escorreita e sem hesitações como foi prestado.
RR, profissional de seguros e amigo do arguido CC, depôs sobre a personalidade e carácter do arguido em depoimento credível.
II, socióloga a prestar serviço na Câmara Municipal ..., descreveu as funções e competências do Serviço de Intervenção Social daquele organismo camarário e mencionou ter-lhe sido solicitado pela arguida BB a escolha de três pessoas em situação de carência económica para integrar um projecto promovido pela ..., sendo que era normal esta troca entre entidades.
Não obstante se considerar que o depoimento em causa de revelou credível, tal como o depoimento de GG, o mesmo terá de ser visto de forma crítica atendendo à relação profissional existente entre a testemunha e a arguida BB.
JJ, jurista da Câmara Municipal ... e SS, técnico de construção civil, na prática, depuseram acerca da personalidade e carácter da arguida BB em depoimentos credíveis.
Por fim, KK, aposentado e ex-presidente da Junta de Freguesia ... à data dos factos, referiu ter celebrado programas juntamente com o IEFP e que houve uma situação, ao longo dos seus 3 mandatos, em que existiu uma troca de pessoas entre entidades, mas que tal não era habitual acontecer.
Mais depôs acerca do carácter e personalidade da arguida BB, sendo o seu depoimento considerado como credível.
Assim, no que se refere ao ponto 1, o tribunal considera o mesmo como provado por força do teor do documento de fls. 152 e 153.
Quanto aos factos 2 a 5, o tribunal teve em consideração os estatutos da ... de fls. 12 a 40 e o print de fls. 41.
Já no que diz respeito ao facto provado no ponto 7, o tribunal teve em consideração a certidão permanente da ... de fls. 154 a 169.
Relativamente aos factos considerados como provados nos pontos 8 a 19 e 26 o tribunal formou a sua convicção com base no teor do regulamento específico do Programa Património Activo de fls. 47 a 63.
Quanto aos factos mencionados nos pontos 20 a 22, os mesmos são considerados como provados por força do teor do comprovativo de candidatura de fls. 64 e 65, a qual foi aprovada conforme consta de fls. 66, assim se provando os factos referidos em 23 e 24.
No que se refere ao facto 25, o mesmo foi admitido pelo arguido CC, baseando-se ainda o tribunal no termo de aceitação de fls. 67.
Quanto aos factos 27 a 29, o tribunal formou a sua convicção com base no depoimento de DD que referiu a factualidade em causa.
Relativamente à factualidade indicada nos pontos 30 a 33, a mesma foi assim considerada como provada com base nos depoimentos de LL, MM, FF e da arguida AA.
No que se refere aos pontos 33 a 35, os mesmos são considerados como provados por força das declarações do arguido CC, que confirma tal factualidade, e da testemunha EE.
De salientar ainda que o tribunal teve igualmente em consideração o documento de fls. 68 e o mapa de pagamentos de fls. 69.
A prova do ponto 36 tem por base as certidões permanentes de fls. 170 a 173 e 174 a 178.
Os factos 37, 38, 49, 54 e 58 são considerados como provados por força da documentação apreendida na ... constante do anexo 1.
Quanto ao facto indicado no ponto 39, o mesmo resulta das declarações da arguida AA e das regras da experiência comum, uma vez que era o único rendimento que a mesma obtinha.
No que se refere ao facto indicado no ponto 40, o mesmo é considerado como provado por força dos depoimentos das testemunhas LL, FF e MM, conjugadas com as declarações dos arguidos CC e BB.
Os factos mencionados nos pontos 41 a 48, 50 a 53, 55 a 57, 59 e 60, são assim consideradas pela circunstância de terem sido admitidos pela arguida BB (sendo também admitidos pelo arguido CC quanto aos pontos 43 e 45), os quais também são confirmados por LL, FF e MM.
No que diz respeito aos factos descritos nos pontos 61 a 65 e 68, o tribunal considerou os mesmos como provados por força do teor do despacho do IEFP de fls. 70, da notificação de fls. 71, na autorização de fls. 72, na informação de serviço de fls. 113 a 118 e na demais documentação bancária constante do CD que compõe o anexo 2 e o parecer da Polícia Judiciária constante do anexo 3.
Quanto aos pontos 66 e 67, os mesmos resultam provados das declarações do arguido CC e da arguida AA, que o admitem.
Os factos atinentes à imputação subjectiva (factos 69 a 78), foram considerados como provados por força da conjugação da conduta objectiva do arguido CC e da arguida BB e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida já que, face aos primeiros, outra não pode ter sido a vontade dos arguidos.
De salientar que não revela credibilidade a versão do arguido CC quando refere que desconhecia que tal conduta era contrária à lei penal, uma vez que o regime que regula este tipo de apoios sociais já existe há vários anos sendo que, como refere a testemunha EE, sempre houve uma sensibilização para não existirem este tipo de comportamentos e que é uma regra que sempre existiu.
Os factos 79 a 82 são considerados como provados por força das declarações dos arguidos e das testemunhas abonatórias acima indicadas.
No que tange à factualidade vertida em 84) e 85) e à semelhança da fundamentação atinente aos factos 69) a 78) resultou a mesma assente por via da sedimentação da factualidade objetiva que descreve as condutas do arguido CC, também aqui conjugada com as regras da experiência comum que ditam que o homem médio, com a capacidade de compreensão e discernimento do arguido, sabe que ao agir do modo descrito age de modo contrário à lei, sendo tal conduta proibida e punida pela lei penal.
Adicionalmente, decorreu ainda das declarações prestadas pelo arguido, as quais, neste particular, mereceram acolhimento, que ao celebrar os contratos pretendia “ajudar as pessoas da comunidade de ...”, sabendo que beneficiava aquelas quatro pessoas, razão por que cumpria julgar provada a factualidade em referência, com a redação que ali se consignou.
A ausência de antecedentes criminais relativamente aos arguidos resultam dos respectivos CRCs junto aos autos.
No que se refere ao facto não provado, o ponto mencionado em A é assim considerado por força da inexistência de prova que permita concluir em sentido diverso.
Quanto aos factos mencionados em C e D, os mesmos têm por base a aplicação do princípio in dubio pro reo, uma vez que analisada a prova conjugada entre as declarações do arguido CC e a arguida AA e as testemunhas LL, MM, FF e GG, não é possível ultrapassar a dúvida quanto a esta factualidade, motivo pelo qual se considera a mesma como provada.
Relativamente ao ponto E, o mesmo é considerado como não provado por força das declarações dos arguidos CC e BB e da testemunha II.
Quanto aos factos F a I, os mesmos são considerados como não provados, por força da inexistência de prova que permita concluir de forma diversa.
No que se refere aos factos considerados como não provados em J a U, designadamente a imputação subjectiva, o tribunal considerou a mesma como tal em virtude da inexistência de prova nesse sentido, conjugado com as regras da experiência comum. Com efeito, no que se refere à arguida AA, não se apurou que a mesma se encontrasse, a nível de conhecimento, em situação diferente das outras beneficiárias deste programa, sendo que a única circunstância distintiva é o facto de a mesma ter prestado trabalho na ....
Quanto aos arguidos CC e BB, com efeito, não resultou provado que a candidatura em causa tenha resultado de um plano orquestrado entre estes arguidos com o propósito concretizado de obter um rendimento para a arguida AA nem que a arguida BB tenha prestado qualquer tipo de auxílio material a esse eventual plano.
Por fim, quanto ao facto indicado no ponto V, o mesmo é considerado como não provado, por força da conjugação dos depoimentos das testemunhas já acima escalpelizadas, não sendo possível considerar como provada tal factualidade, uma vez que as únicas pessoas que a mencionaram foram os arguidos ou alguém que se encontrava em situação de dependência funcional dos mesmos, à data dos factos.”
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Apreciando
- Da alegada nulidade da sentença
Alega o recorrente, em várias conclusões e de forma genérica, a falta de fundamentação da sentença, alegando ainda nas conclusões 51 a 55 que a sentença é nula nos termos do disposto no art. 379º, nº.1, alínea b), do CPP.
O Tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (a não ser aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras), todavia, como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
No que concerne à invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação e exame crítico da prova dir-se-á que a fundamentação da sentença, princípio com assento constitucional em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade. Por isso, todas as decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas e o seu alcance deve ser percetível para os respetivos destinatários e demais cidadãos. A garantia de fundamentação é, assim, indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial, o dever de o juiz respeitar e aplicar corretamente a lei seria afetado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz.
A fundamentação adequada da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
E é compreensível que a lei determine, taxativamente, os requisitos gerais a que, especialmente, a sentença se encontra sujeita, por ser o ato decisório por excelência, o que conhece, a final, do objeto do processo e, por isso, se reveste de crucial importância porque é através dele que, particularmente o arguido mas também os demais sujeitos processuais ficam a saber se foi proferida uma decisão absolutória ou condenatória e, neste caso, qual a medida concreta da pena.
Assim é que o art. 374º do CPP, sobre a epígrafe “Requisitos da sentença”, estabelece a estrutura a que deve obedecer a sentença – relatório, fundamentação e dispositivo – e o seu n.º 2, quanto à respetiva fundamentação, especifica o seu concreto conteúdo, impondo que dele conste «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Mas, por outro lado, se, como se assinalou, todas as decisões devem ser sempre fundamentadas, também é consensual que, contra o sustentado pelo recorrente, só importa o esgrimido vício a ausência completa de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não a sua motivação deficiente ou errada.
O recorrente, como já se disse, em várias conclusões do recurso invoca a nulidade da decisão recorrida, dizendo, em síntese, que o Tribunal a quo não fundamentou a decisão em segmentos que refere e que “ (…) na parte da «fundamentação de direito», vem a douta sentença recorrida esclarecer que “nos referidos documentos, o arguido fez constar factos juridicamente relevantes que não correspondiam à verdade, tais como, as funções a exercer e o local de trabalho”. 55) Ora, quanto a estes concretos factos (as funções a exercer e o local de trabalho), que são de imputação objectiva, nunca o ora Recorrente teve oportunidade de se defender, dado que deles só teve conhecimento quando lhe foi lida a douta sentença recorrida, o que afecta de imediato toda a decisão e a torna NULA, tal como dispõe o art. 379º, nº.1, alínea b), do C.P.P.”, sendo certo, porém, que o alegado visará tão só os meios de prova de que o Tribunal a quo se socorreu para considerar assente o acervo factual, de que o recorrente discorda, alegando que o tribunal não o justificou devidamente, e esquecendo que apenas estamos perante factos novos e portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objeto do processo, dando-lhe uma outra imagem, e que quando os factos provados da sentença recorrida se mantêm dentro do circunstancialismo de tempo, lugar e modo, descritos na acusação pública, resta concluir, sem mais considerações, por completamente desnecessárias, pela inexistência da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
Com efeito, analisando a decisão recorrida constatamos não só a inexistência de condenação por factos diversos dos descritos na acusação fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º, porquanto, e como também referido pelo Tribunal a quo no despacho de 7 de dezembro de 2022 “ (…) compulsados os autos constata-se que inexistem, na decisão recorrida, quaisquer factos que não tenham sido contemplados na Acusação Pública. Por seu turno, da alegação do arguido parece decorrer uma confusão entre a matéria de facto, a sua correspondente fundamentação e, bem ainda a fundamentação de direito, pese embora todas elas consubstanciem realidades distintas”, como também que a convicção adquirida pelo tribunal a quo se mostra suficientemente fundamentada, suportada pelos meios de prova que como relevantes e credíveis foram considerados na motivação, apresentando-se como plausível e conforme com as regras da experiência comum, não se vislumbrando, pois, no juízo alcançado pelo tribunal qualquer atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque a fundamentação da sentença tem suporte na regra estabelecida no art.127º do CPP.
É, pois, por demais patente que a alusão ao vício da nulidade em questão é completamente despida de sentido: não só inexistiram factos novos, como o vício decorrente da falta da fundamentação da decisão não a afeta, porquanto, sem margem para dúvidas, a mesma explicita, abundante e claramente, as razões pelas quais, após o exame crítico da prova produzida, o julgador formou a sua convicção para ter por adquirida e não adquirida a matéria de facto enunciada na decisão e questionada pelo recorrente.
Lendo o texto da decisão, para além dos factos apurados permitirem ao tribunal proferir uma decisão (o que mostra a sua suficiência), não se deteta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão (nem sequer foi exposto qualquer raciocínio ilógico ou contraditório na fundamentação que apontasse para decisão contrária à da condenação do arguido/recorrente), sendo certo que a apreciação feita pelo tribunal não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
Concluindo: na sentença recorrida estão expostos fundamentos suficientes que explicam o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação da prova, a razão pela qual a convicção do tribunal se formou no sentido da culpabilidade do arguido.
Da leitura da sentença recorrida, designadamente da parte da fundamentação, alcança-se, pois, que, contrariamente ao alegado, o Tribunal a quo enunciou os factos provados e não provados e não só elencou todas as provas em que se baseou, como indicou os motivos de credibilidade das mesmas. Tudo isto constando da motivação, da qual resulta percetível o raciocínio lógico que levou o Tribunal a considerar assentes os factos.
Seguidamente, consta da sentença recorrida a subsunção dos factos ao direito, após o que foi determinada a sanção.
Assim, conclui-se que o Tribunal “a quo” examinou, pois, toda a prova produzida na audiência, e verifica-se ter a mesma sido valorada e apreciada em obediência aos critérios legais, mostrando-se examinada de forma detalhada e crítica, razão pela qual há que concluir que não padece a sentença recorrida da invocada nulidade.
Termos em que, neste particular, improcede o recurso.
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- Dos alegados vícios previstos no art.410º, nº2, als.a), b) e c), do CPP
Como vem sendo entendido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: pelo âmbito, mais restrito, dos vícios formais previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que o art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma se refere.
O disposto neste art.º 410.º, n.º 2, refere-se aos vícios da matéria de facto fixada na sentença, o que não se deve confundir com os vícios do processo de formação da convicção do tribunal no apuramento e fixação da matéria de facto fixada na sentença.
É por isso que esses vícios têm de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo.
São, pois, vícios decisórios, de conhecimento oficioso, que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há de necessariamente ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma (cfr., Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., pág.873, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.III, 2ª Ed., pág.339).
Vejamos:
- Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
A insuficiência a que se refere a al.a) do art.410º, nº2, do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Assim, tal vício não tem a ver nem com a insuficiência da prova produzida, pois que, se não foi feita prova bastante de um facto e ele é dado como provado, haverá, sim, erro na apreciação da prova, nem com a insuficiência dos factos provados para a decisão proferida, em que, também, há erro, já não na decisão sobre a matéria de facto mas, sim, na qualificação jurídica desta (cfr., neste sentido, Ac. STJ, de 7/7/99, proferido no Processo nº99P348, www.dgsi.pt).
Quando os recorrentes alegam este vício, partindo necessariamente da análise do texto da decisão, devem especificar os factos que em seu entender eram necessários para a decisão justa que devia ser proferida, que o tribunal a quo devia ter indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo. Assim os recorrentes devem procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos, os quais devem identificar, necessários (fundamentando esta necessidade invocando normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles (fundamentando).
Cabe aqui desde já ter presente que a insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
Esta segunda opção tem a ver com a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º n.º 3 do Código de Processo Penal, com reapreciação da prova e não com a verificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que terão que ser visíveis no texto da decisão, sem recurso a quaisquer provas documentadas.
Também nada tem a ver com o vício da insuficiência o caso em que o recorrente enumera uma série de factos que foram dados como provados e que na sua ótica deviam ser dados como não provados.
Em face do resumidamente exposto, quando os recorrentes alegam este vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada não podem almejar um outro julgamento de um outro processo, não pode subverter-se o princípio da vinculação temática do Tribunal (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/7/2013, acessível in www.dgsi.pt).
- Relativamente ao vício de contradição insanável, dir-se-á que existe tal vício quando há oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ocorre ainda quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
A contradição de que fala o art.410º, nº2, al.b) do CPP é, pois, uma contradição entre os fundamentos da decisão ou entre estes e a própria decisão, nunca entre os meios probatórios em si mesmo considerados, ou entre a convicção formada pelo tribunal e aquela que, segundo o recorrente, devia prevalecer face às provas produzidas e verifica-se quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
Consiste, pois, na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, e, como tem esclarecido o Supremo Tribunal só se verifica quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação, não só não justifica como impõe uma decisão contrária ou, quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se concluir que a decisão não resulta suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Ou, como se decidiu no acórdão do mesmo Tribunal de 20/04/2006 «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão».
Este vício, como resulta da letra da alínea b) do art. 410º, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou seja, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
- E o vício de erro notório na apreciação da prova só existe quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal, ou seja, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos, isto é, quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum.
Para ser notório, tal vício tem de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das “legis artis”, ou ainda das regras da experiência comum, ou que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro é notório quando for ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.III, pág.341), e verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5ª edição, pgs..61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe, assim, quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., pág.341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74), não se verificando tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Ora, no caso em análise, e no que concerne à alegada insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, diga-se desde já que o recorrente se limita na conclusão 35) a referir o art.410º, nº2, al.a) do CPP, sem que concretize em que se traduz a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
E, quanto aos demais vícios, como bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso “O arguido inicia o seu recurso pondo em causa a matéria de facto provada sob os pontos 69, 72, 74, 75 e 76 e o ponto V dos factos não provados.
É a seguinte a matéria de facto provada sob tais pontos:
“69.O arguido CC, que na qualidade de presidente de direção da ... atuou, conseguiu com as condutas descritas, obter um rendimento fixo mensal, para a arguida AA.
(…)
72. Não obstante, quis e conseguiu omitir do IEFP, I.P. o facto das beneficiárias, não se encontrarem a desempenhar as funções que estiveram na base da aprovação da candidatura e que constavam nos respetivos contratos.
74. O arguido agiu com o propósito concretizado de produzir documentos cujo teor sabia não corresponder à verdade, ciente de que os factos constantes dos documentos eram determinantes para o pagamento de prestações patrimoniais, por parte do IEFP, I.P. à ....
75. Agiu o arguido sempre com o propósito concretizado de obter do IEFP, I.P. a aprovação da candidatura e o pagamento do financiamento aprovado, para que dessa forma, a arguida AA, enquanto beneficiária indicada pelo arguido CC pudesse obter um rendimento mensal durante o ano de 2014, o que logrou atingir.
76. O arguido CC agiu sempre livre, voluntaria e conscientemente, na convicção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
(…)
84. O arguido CC, com as condutas descritas em 69, atuou com o propósito de, durante o período temporal de um ano, obter um rendimento fixo mensal, para a arguida AA.
(…)
Factos não provados:
(…)
V. A circunstância relatada nos pontos 40 a 60 dos factos provados era do conhecimento e merecera o consenso do IEFP, I.P. e correspondia a uma prática frequente de intercâmbio entre estruturas da comunidade de ....”
Resulta da sentença do Tribunal a quo que “os factos atinentes à imputação subjetiva (69 a 78) foram considerados como provados por força da conjugação da conduta objetiva do arguido CC e da arguida BB, e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, já que face aos primeiros, outra não pode ter sido a vontade do arguido.” e, ainda, “no que tange à factualidade vertida em 84) e 85), e à semelhança da fundamentação atinente aos factos 69) a 78) resultou a mesma assente por via da sedimentação da factualidade objetiva que descreve as condutas do arguido CC, também aqui conjugada com as regras da experiência comum que ditam que o homem médio, com a capacidade de compreensão e discernimento do arguido, sabe que ao agir do modo descrito, age de modo contrário à lei, sendo tal conduta proibida e punida por lei penal. Adicionalmente, decorreu ainda das declarações prestadas pelo arguido, as quais, neste particular, mereceram acolhimento, que ao celebrar os contratos pretendia “ajudar as pessoas na comunidade de ...”, sabendo que beneficiava aquelas quatro pessoas, razão por que cumpria julgar provada a factualidade em referência, com a redação que ali se consignou”. Ora, não podia estar o Ministério Público mais de acordo com a fundamentação da douta sentença do Tribunal a quo, o arguido sabia, e não tinha como não saber, que beneficiava as pessoas em causa.
c) Erro notório na apreciação da prova
Por outro lado, não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova.
(…)
No caso sub judice, alega o recorrente que o tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova, já que deu como provados factos contraditórios, referindo-se aos pontos 75 e 85 dos factos provados e ao ponto A dos factos não provados.
É o seguinte o teor de tais pontos:
“75. Agiu o arguido sempre com o propósito concretizado de obter do IEFP, I.P. a aprovação da candidatura e o pagamento do financiamento aprovado, para que dessa forma, a arguida AA, enquanto beneficiária indicada pelo arguido CC pudesse obter um rendimento mensal durante o ano de 2014, o que logrou atingir.
(…)
85. O arguido CC ao apresentar, em representação da ..., a candidatura à medida de Contrato-Emprego de Inserção do projeto “Património Ativo” na área de vigilância e espaços florestais, não tinha qualquer intenção em que a ... e a comunidade beneficiassem do trabalho de quatro sapadores florestais, tendo agido apenas com a intenção de obter um rendimento mensal para a arguida AA, o que ambos quiseram e conseguiram.
A. Em data não concretamente apurada, mas anterior a julho de 2013, os arguidos CC e AA formularam um plano3 com o propósito de obterem um rendimento fixo mensal para a segunda, o qual passaria por esta vir a ser beneficiária de uma bolsa no âmbito de um contrato de emprego-inserção a celebrar com a ..., financiado pelo IEFP I.P.”.
Não lhe assiste razão, pois não existe qualquer contradição entre a matéria de facto dada como provada e os factos não provados a qual, desde já, se deve manter.
Vejamos.
Resulta dos pontos 75 e 85 a imputação subjetiva ao arguido e do ponto A que não se provou que tenha existido um plano previamente elaborado entre a arguida AA e o arguido CC, ou seja, apenas se provou que se tratou de uma atuação única e exclusiva por parte do arguido para beneficiar AA.
Ora, analisado o texto da douta sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do apontado vício posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou, assim como nele não se deteta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto o conhecimento geral ou ofensivo das leis da lógica, nem qualquer contradição entre os factos provados e não provados.
Assim, face ao exposto, resta concluir que não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova, nem qualquer contradição.
Impugna ainda o arguido os factos que resultaram provados sob os pontos 72 e 74, contestando que tenha querido ou conseguido omitir do IEFP o facto das beneficiárias não se encontrarem a desempenhar as funções que estiveram na base da aprovação da candidatura e que constavam nos respetivos contratos, isto é, que tenha sido essa a sua intenção, acrescentando que a imputação subjetiva de tal omissão deve recair não sobre ele, mas sobre a ....
Também aqui não assiste razão ao arguido recorrente.
Ora vejamos.
O Tribunal a quo fundamentou os referidos factos dados como provados da seguinte forma:
“Os factos atinentes à imputação subjetiva (factos 69 a 78), foram considerados como provados por força da conjugação da conduta objetiva do arguido VV e da arguida BB e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida já que, face aos primeiros, outra não pode ter sido a vontade dos arguidos.
De salientar que não revela credibilidade a versão do arguido CC quando refere que desconhecia que tal conduta era contrária à lei penal, uma vez que o regime que regula este tipo de apoios sociais já existe há vários anos sendo que, como refere a testemunha EE, sempre houve uma sensibilização para não existirem este tipo de comportamentos e que é uma regra que sempre existiu.”.
Ora,
Tendo resultado provado, como resulta da sentença recorrida, com a qual se concorda que “ 42.Nessa qualidade, a arguida BB, em data não concretamente apurada no final do ano de 2013, tomou conhecimento, por intermédio do arguido CC, que a ... se tinha candidatado, em Julho de 2013, a um projeto financiado pelo IEFP, I.P. para a celebração de contratos de emprego-inserção de sapadores florestais, informando-a de que, não tendo no imediato, e por razões supervenientes, disponibilidades para assegurar a prevista ocupação de três das beneficiárias, solicitava à autarquia a disponibilidade e possibilidade da ocupação delas em serviços ou tarefas afins da entidade autárquica, Câmara Municipal ..., em concreto, LL, FF e MM.
43. Em data também não concretamente apurada, mas anterior a 22 de janeiro de 2014, a arguida BB foi contactada pelo arguido CC, o qual lhe solicitou a indicação de pessoas que preenchessem os requisitos para integrarem a candidatura supra referida, que constassem do Serviço de Intervenção Social da
44. Ainda que tivesse conhecimento de que LL, FF e MM iriam desempenhar funções distintas daquelas que constavam do projeto financiado pelo IEFP, I.P., a arguida BB aceitou colocar as beneficiárias de tal projeto a desempenhar trabalho para o Município ....
45. No dia 22 de janeiro de 2014, as beneficiárias LL, OO e MM foram informadas pelo arguido CC de que deveriam apresentar-se, no dia seguinte, na Câmara Municipal ..., perante a Presidente da Câmara, a arguida BB.
70. O arguido CC conhecia as normas legislativas e regulamentares aplicáveis à medida CEI - Património, conhecendo as obrigações que se lhe impunham por força da aprovação da candidatura, conhecia a natureza de subsídio ou subvenção dos montantes atribuídos pelo IEFP, I.P. e sabia que os mesmos não podiam ser afetos a finalidades diversas daquelas a que se destinavam.
71. Sabia o arguido CC que o recebimento, pela ..., das quantias relativas ao financiamento aprovado estava dependente de avaliação a realizar pelo IEFP, I.P., do cumprimento dos termos da decisão de aprovação e nas disposições legislativas e regulamentares aplicáveis, e que em função dessa avaliação os pagamentos podiam ser suspensos ou mesmo o financiamento revogado ou reduzido, aliás como ocorreu.”, matéria não impugnada pelo arguido e como tal considerada assente, não se vislumbra como poderia o Tribunal a quo não dar como provados os factos constantes dos pontos 72 e 74 aqui impugnados, que se devem manter.
Não se concorda também com o arguido quando refere que a imputação subjetiva da omissão da comunicação ao IEFP, I.P., do facto das beneficiárias não se encontrarem a desempenhar as funções que estiveram na base da aprovação da candidatura e que constavam nos respetivos contratos não deve recair sobre ele, mas sobre a ..., pois, sendo tal associação representada pelo arguido, era efetivamente ao arguido recorrente, que competia tal comunicação ao IEFP, I.P.
Por tudo o que fica dito, manifesto se torna concluir que não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova.”
Com efeito, analisando a sentença recorrida, da mesma não decorre omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, não se vislumbrando, pois, na mesma sentença, insuficiência da matéria de facto.
Na verdade, os meios de prova detalhadamente expressos na motivação, devidamente conjugados e criticamente avaliados, são suporte bastante dos factos assentes como provados e não provados.
E não se deteta na matéria de facto considerada assente na decisão recorrida qualquer contradição insanável nem erro notório na apreciação da prova.
Analisando tal decisão, é manifesto que a mesma está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
Assim, não obstante o recorrente imputar à decisão recorrida tais vícios formais, na respetiva motivação logo denuncia que o seu real inconformismo visa o modo como o Tribunal de 1ª instância apreciou e valorou os meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Realmente, quanto a esses vícios, a que alude o art. 410º, n.º 2, do CPP, seria suposto que a impugnação deduzida incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável . Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer desses vícios, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar.
Nesses e nos demais aspetos versados no recurso, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente não se conforma com a circunstância de o Tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos que lhe era desfavorável sobre a matéria de facto, pois que, o que verdadeiramente ilustra toda a impugnação do recorrente nesta vertente é apenas o seu inconformismo pela sua condenação, aí fazendo radicar os aludidos vícios que aponta à decisão recorrida e que expressamente apoda, concomitantemente, de contradição, de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida os vícios (formais) que o recorrente lhe assaca, pois, para além de os factos considerados assentes sustentarem cabalmente a decisão, também não são contraditórios em si mesmos ou com aqueles que foram dados como não provados ou com a fundamentação que sobre eles incidiu, assim como também não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer principio jurídico ou as regras da experiência comum.
Destarte, é forçoso concluir, face à argumentação, que o recorrente invoca a existência destes vícios fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto do sentença recorrida, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Por conseguinte, improcede a deduzida invocação de vícios formais.
*
- Da impugnação da matéria de facto
Não basta aos recorrentes na impugnação da decisão por erro de julgamento de facto proceder à delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos que consideram incorretamente julgados, têm ainda que proceder à especificação das provas e fazer referências ao conteúdo concreto dos depoimentos que os levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida.
No nosso modelo recursivo do processo penal, em que a instância de recurso não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a uma correção cirúrgica de erros de procedimento ou de julgamento, a lei processual impõe ao recorrente que impugne a decisão proferida em matéria de facto a obrigação de proceder a uma tripla especificação (n.º 3 do art.º 412.º do Código de Processo Penal):
- especificação dos “concretos pontos de facto”, que se traduz na indicação necessária dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados;
- especificação das “concretas provas”, o que só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida; e
- especificação das provas que devem ser renovadas.
Deve entender-se que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.
O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou das questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito).
Assim, o julgamento em 2ª instância não o é da causa mas sim o do recurso, e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objeto da causa, em que estão presentes, face ao Código atual, alguns apontamentos da imediação e da oralidade.
Ora, no presente recurso, o recorrente limita-se a afirmar a sua própria análise da prova, num juízo global, sem ensaiar a concretização das razões da discordância, nem indicar quais os específicos meios de prova que impõem um juízo probatório distinto, ou seja, o recorrente, cumprindo a primeira especificação do nº3 do art.412º do CPP, não cumpriu as outras duas.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 2006, processo 06P461, a omissão das indicações e especificações da prova e dos meios de prova não permite convite ao aperfeiçoamento se a omissão se verifica nas motivações e nas conclusões, conduzindo a manifesta inviabilidade do recurso de impugnação da decisão em matéria de facto: Se o recorrente se dirige à Relação limitando-se a indicar alguma prova, com referencia a suportes técnicos, mas na totalidade desses depoimentos e não qualquer segmento dos mesmos, não indica as provas que impõem uma decisão diversa quanto a questão de facto (…), pois o recurso de facto para a Relação (…) é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. 2 - Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação as especificações ordenadas pelos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP, não há lugar ao convite a correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite a correção das conclusões da motivação.
Nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efetivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspetiva subjetiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada ou não provada, sendo que, em julgamento o que tem que ficar provado, para além de qualquer dúvida razoável, é a participação do arguido nos factos, o que resultará naturalmente do facto de o tribunal se convencer, com base em toda a prova produzida e na sua análise crítica, à luz das regras normais da experiência e da sua livre apreciação, de que os factos ocorreram tal como plasmados na matéria de facto assente.
Atendendo ao escopo que está subjacente à imposição dos deveres impostos pelo art.412º, nºs 3 e 4 do CPP, a alínea b) do referido nº3 deste artigo deve ser interpretada não apenas no sentido de impor ao recorrente o dever de especificar as provas que não foram devidamente levadas em conta pelo tribunal a quo, mas também no sentido de impor ao recorrente o dever de indicar e apreciar criticamente as provas que estiveram na base da decisão recorrida.
Com efeito, só haverá verdadeira impugnação da decisão relativa à matéria de facto, e consequente possibilidade de confirmação ou não da mesma, se o tribunal superior conhecer ao mesmo tempo as provas que estiveram na base da decisão recorrida e as provas que, na opinião do recorrente, deveriam ter estado na base de decisão diversa.
E o legislador apenas consente a modificação da decisão de facto quando ficar demonstrada prova que impõe sentido diverso, não bastando oferecer razões que apenas consintam outro entendimento. Como salienta o STJ, casos há em que, “face à prova produzida, as regras de experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras de experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção” Ac. do STJ de 17/02/2005, Pº04P4324, relator Conselheiro Simas Santos, www.dgsi.pt..
Na verdade, não é a circunstância de o recorrente fazer uma análise própria da prova produzida que permite conclui ter o tribunal “a quo” feito um errado julgamento da matéria de facto.
Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indireta, nem das declarações de uma única testemunha, desde que credíveis e coerentes, as quais, ainda que opostas, em maior ou menor medida, a outras, designadamente do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória ou absolutória, se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias apresentadas se considerar verdadeira a contida naquelas declarações, em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.
Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjetivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objetiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente ou inalcançável sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objetivos.
Por outro lado e decisivamente, também não podemos deixar de assinalar que o recorrente apenas coloca em causa a convicção formada pelo Tribunal de 1ª Instância.
Ora, a crítica à convicção do tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se alicerçada apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida e avaliada de modo parcial e descontextualizado.
Na verdade, como vimos, o recorrente apenas esteia a sua discordância na leitura que o próprio faz da prova produzida, limitando-se a fazer a sua análise da prova sem apelo ou transcrição seja de depoimentos de testemunhas seja de documentos, concluindo que deveriam ter sido dados como provados ou não provados factos que expressamente refere nas conclusões supra transcritas.
E tal discordância prende-se unicamente com as razões da convicção formada pelo julgador.
Ora, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes é necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum ou uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
Passando à apreciação da impugnação da decisão por erro de julgamento, dir-se-á que aquilo que o recorrente caracteriza como suposições ou justificações intoleráveis do tribunal de julgamento, são afinal o resultado da perceção, pelo Tribunal a quo, das declarações e dos depoimentos prestados no contexto complexo em causa com um acervo documental.
Na verdade, o recorrente vem tão só manifestar a sua discordância, sendo porém inquestionável que a decisão da matéria de facto do tribunal a quo decorre de uma ponderação global, envolvendo não só o resultado da prova por declarações, depoimentos, por documentos, mas também de elementos indiciários ou de prova indireta.
E o recorrente não pode passar pela fundamentação da sentença como se esta tivesse sido omitida, antes se lhe impunha que tivessem procurado demonstrar, rigorosamente, a razão, de facto, pela qual se impunha, uma outra decisão. É que não pode validamente impugnar-se a decisão relativa à matéria de facto passando ao lado das provas valoradas pelo tribunal a quo, por configurarem discrepâncias com a interpretação que o recorrente faz das mesmas.
Mais, surge-nos também como inequívoco que a discordância do arguido recorrente perante a decisão do tribunal em matéria de facto incide sobre a valoração dos elementos de prova entendidos na doutrina e jurisprudência como de prova indiciária, indireta ou circunstancial.
Salvo melhor opinião, basta ler com cuidado o vertido na motivação/convicção da sentença recorrida, para se concluir sem margem para qualquer dúvida que a condenação do recorrente resultou da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, também através do recurso a um conjunto de indícios concordantes e que, na sua conjugação, permitem formar um quadro lógico-factual ao qual não se opõem regras de experiência comum, antes pelo contrário o confirmam, porque nem sempre a prova direta é possível, designadamente no que respeita ao foro íntimo da vontade.
Foram também esses indícios, a cujo recurso é lícito recorrer mesmo em processo penal (ver, neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 4/07/2011, Relator Conselheiro Santos Cabral), que conjugados de forma lógica, segura e objetiva com a demais prova produzida, permitiram as conclusões a que chegou o tribunal, que determinaram a condenação do recorrente em 1ª instância.
Na verdade, olvida o recorrente que “Conhecimento direto dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos próprios sentidos. No testemunho indireto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos” (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, editorial Verbo 2008, pág. 180), e que consta na motivação da decisão:”
A prova do facto típico e ilícito juspenalmente pertinente tanto pode resultar de uma perceção imediata decorrente dos sentidos como derivar de ilações que o julgador retira de meras circunstâncias conhecidas em função de um raciocínio lógico assente nas regras da experiência comum – a denominada prova indireta.
«Na prova indireta a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção. A prova direta faz-se por perceção, a indireta por perceção e presunção» Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III volume, edição de 1999, páginas 93 e 94.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.06.2010, o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova direta do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta, só por si, conduzir à sua convicção.
Em sede de apreciação, a prova pode ser objeto da formulação de deduções ou induções, bem como da correção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.
Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o art.127º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
É conhecida a clássica distinção entre prova direta e prova indireta ou indiciária – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 99. Aquela incide diretamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.
Embora a nossa lei processual não faça qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, terá que ser sempre objetivável e motivável.
A apreciação da prova indireta ou indiciária incide sobre factos diversos do tema de prova (sujeita à livre apreciação nos termos do art. 127º do CPP, que deve ser devidamente fundamentada) mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar. Exigindo que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 100/1001.
Nesta perspetiva, decidiu-se no Ac. do STJ de 11-11-2004, Proc. n° 04P3182, in www.dgsi.pt, que o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indireta se faz valer através de uma espécie de presunções. O recurso às presunções naturais não viola o princípio do in dubio pro reo.
A prova indireta é assim cada vez mais frequente, nada impedindo até que a convicção assente exclusivamente nela.
“As regras da experiência ou regras da vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efetuar a generalização.
Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária” (Cfr. Santos Cabral, revista Julgar, nº17 (Prova Indiciária e as novas formas de criminalidade).
Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, acessível in www.tribunalconstitucional.pt, publicado no Diário da República n.º 224/2015, Série II de 2015-11-16, “ (…) na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.”
Com efeito, em sede de apreciação, a prova pode ser objeto da formulação de deduções ou induções, bem como da correção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência, valorando-se os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos que permitem estabelecer um “ (..) substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons.Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
E é sabido que os factos subjetivos, porque insuscetíveis de prova direta, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objetivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade, pois que, sendo o dolo um elemento de índole subjetiva que pertence ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento (com exclusão de uma situação em que o agente admite a intenção direta) ter-se-á de apreender do contexto da ação desenvolvida, cabendo ao julgador - socorrendo-se, nomeadamente, de indícios objetivos, das regras de experiência comum e daquilo que constitui o princípio da normalidade - retirar desse contexto a intenção por ele revelada.
E, no caso sub judice, todas as regras de experiência conduzem à conclusão lógica de, como consta na motivação do Acórdão recorrido: “Os factos atinentes à imputação subjectiva (factos 69 a 78), foram considerados como provados por força da conjugação da conduta objectiva do arguido CC e da arguida BB e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida já que, face aos primeiros, outra não pode ter sido a vontade dos arguidos.
De salientar que não revela credibilidade a versão do arguido CC quando refere que desconhecia que tal conduta era contrária à lei penal, uma vez que o regime que regula este tipo de apoios sociais já existe há vários anos sendo que, como refere a testemunha EE, sempre houve uma sensibilização para não existirem este tipo de comportamentos e que é uma regra que sempre existiu.
Os factos 79 a 82 são considerados como provados por força das declarações dos arguidos e das testemunhas abonatórias acima indicadas.
No que tange à factualidade vertida em 84) e 85) e à semelhança da fundamentação atinente aos factos 69) a 78) resultou a mesma assente por via da sedimentação da factualidade objetiva que descreve as condutas do arguido CC, também aqui conjugada com as regras da experiência comum que ditam que o homem médio, com a capacidade de compreensão e discernimento do arguido, sabe que ao agir do modo descrito age de modo contrário à lei, sendo tal conduta proibida e punida pela lei penal.
Adicionalmente, decorreu ainda das declarações prestadas pelo arguido, as quais, neste particular, mereceram acolhimento, que ao celebrar os contratos pretendia “ajudar as pessoas da comunidade de ...”, sabendo que beneficiava aquelas quatro pessoas, razão por que cumpria julgar provada a factualidade em referência, com a redação que ali se consignou.
(…)
Por fim, quanto ao facto indicado no ponto V, o mesmo é considerado como não provado, por força da conjugação dos depoimentos das testemunhas já acima escalpelizadas, não sendo possível considerar como provada tal factualidade, uma vez que as únicas pessoas que a mencionaram foram os arguidos ou alguém que se encontrava em situação de dependência funcional dos mesmos, à data dos factos.”
Assim, nunca a matéria de facto provada ou não provada, poderia ser alterada, nos termos do art.º 412º do CPP, sendo certo que toda a “impugnação” efetuada pelo recorrente se reconduz a uma mera manifestação da discordância deste com a forma como foi apreciada a prova em 1ª instância, esquecendo que em processo penal vigora o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º do CPP), princípio que se traduz em que a apreciação da prova não é feita com base em regras legais predeterminadas do valor a atribuir-lhes, mas antes com base da livre valoração do juiz e da sua convicção pessoal, mesmo quanto a declarações de co-arguido, implicando no seu significado positivo, que a apreciação da prova “…seja recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo… “, sendo, pois, “…uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material…”(Prof. Figueiredo Dias no I Volume do “Direito Processual Penal”).
E é ao julgador e não aos sujeitos processuais, que cabe apreciar quais as declarações e depoimentos que merecem credibilidade e se o merecem na totalidade ou só parcialmente, já que, «A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode (…) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão» - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 184/2004, de 24/11/2004.
O raciocínio feito na decisão recorrida, quer quanto à credibilidade ou não credibilidade da totalidade das declarações e dos depoimentos prestados, quer quanto ao teor dos documentos a que se ateve, quer quanto à prática pelo ora recorrente do crime pelo qual foi condenado, é perfeitamente lógico, coerente e compreensível aos olhos do cidadão comum, tendo em conta indícios existentes nos autos e as regras de experiência comum, pelo que o que o recorrente pretende com a arguição desta questão é tentar impor a sua versão dos acontecimentos, sendo inquestionável que o tribunal a quo descreveu com minúcia o “iter” da sua convicção, fazendo um exame crítico da prova que não indicia qualquer arbitrariedade ou qualquer impressão subjetiva criada no julgador, mas antes uma apreciação em obediência às regras de experiência e à lógica do homem comum suposto pela ordem jurídica, motivando a decisão de facto, de uma forma clara e que permite aos intervenientes processuais, à comunidade em geral e ao tribunal de recurso perceber o percurso lógico e racional que esteve subjacente à sua convicção plasmada nos autos, resultante de uma análise cuidada e global da prova produzida, assim obtendo a positividade da prova, e que culminou na condenação do arguido.
Atentando no circunstancialismo em que os factos ocorreram e com base nos quais se concluiu pela participação do arguido, outra não podia ser a conclusão à luz das regras da experiência comum e do que é normal ocorrer neste tipo de criminalidade, não se vislumbrando pois que a convicção obtida pelo tribunal recorrido a respeito da factualidade assente constitua uma impossibilidade lógica, uma violação das regras da experiência comum, razão pela qual não merece qualquer reparo.
Por tudo o exposto, sem necessidade de outras considerações, não merecendo o raciocínio do tribunal recorrido qualquer reparo no que tange à convicção que formou a respeito da factualidade questionada, mantém-se inalterada toda a factualidade da decisão recorrida.
*
- Do princípio in dubio pro reo
O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de prova, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, constitucionalmente consagrado, no art. 32º, nº2, da CRP, que impõe que o julgador valore sempre a favor do arguido um non liquet - na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu, e ainda que em processo penal não é admitida a inversão do ónus da prova.
Na verdade, e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual parece imposta (ou ficcionada) pela lei, o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.
Em segundo lugar, do referido princípio da presunção de inocência do arguido (embora não exclusivamente dele) decorre um princípio in dubio pro reo, princípio que, procurando responder ao problema da dúvida na apreciação do caso criminal (não a dúvida sobre o sentido da norma, mas a dúvida sobre o facto), e partindo da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, determina, que na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido.
A Jurisprudência do STJ tem vindo a entender que a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova mas a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, v. g., na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional no Processo nº102/96, decidiu-se:
“ (…)
III - A fundamentação
1. No Código de Processo Penal, Livro III, 'Das provas', Título I, 'Disposições gerais', o artigo 127º consagra a regra da livre apreciação da prova, ao determinar que 'salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente'.
Este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstratos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta.
A valoração da prova segundo a livre convicção do juiz não significa uma valoração contra a prova ou uma valoração que já se desprendeu dos quadros da legalidade processual [a legalidade dos meios de prova, as regras gerais de produção da prova]. Esta livre convicção é 'objetivável e motivável' (Figueiredo Dias): existe conjugada com o dever de fundamentar os atos decisórios e de promover a sua aceitabilidade, com a imediação e a publicidade da audiência.
Radicando na lógica da investigação que estrutura o processo penal, que é uma investigação virada à descoberta da verdade objetiva do caso, a prova livre centra-se 'no mérito objetivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo (pelas alegações, respostas, meios de prova utilizados, etc.)' (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-68, pp. 47-48).
2. Sem dúvida, como sublinha Figueiredo Dias, o princípio da livre apreciação da prova adquiriu um lugar no sistema de processo 'pela deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstratas para as circunstâncias concretas do caso'. A liberdade do juiz é um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão. É uma certeza sobre os factos da existência e tudo o que neles 'de material e espiritual participa' (Castanheira Neves).
Esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso 'mediante fundamentos que a 'razão prática' reconhece como tais' (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso está 'apta para o consenso'. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça.
A liberdade do juiz de que aqui se fala é, como diz Castanheira Neves, uma 'liberdade para a objetividade (...) não é uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros' (ob. cit., pág. 50).
A norma do artigo 127º do Código de Processo Penal não é, pois, contrária ao artigo 32º da da Constituição da República. Também assim decidiu o acórdão nº 1165/96, do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 6-2-1997, com apoio num longo excurso sobre a doutrina. É a jurisprudência desse acórdão que aqui se reitera. “
“ A doutrina tem agasalhado e compactado o critério operante de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência (cf. n.º 2 do art. 32.º da CRP) e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável. (…)
Os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados pelo Tribunal de julgamento em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido/acusado, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o arguido/acusado e o crime, quer os “contra indícios”, isto é, os indícios de cariz negativo que a partir de máximas de experiência, exaurem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível descoincidente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao arguido/acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo” (cfr. Ac.TRL. de 04.07.2012, acessível in www.dgsj.pt).”
Ora, do texto da decisão recorrida não resulta que o Tribunal tenha dado como provados factos que como tal especificou, tendo dúvidas sobre a verificação de algum ou alguns deles, e, por outro, do mesmo texto, conjugado com as regras da experiência comum, não ressalta que outra deveria ter sido a decisão sobre a matéria de facto.
Com efeito, pela conferência do texto da decisão recorrida, não se vislumbra que o julgador tenha tido dúvidas sobre a verificação dos factos que considerou assentes. Ao invés, a motivação da decisão de facto é esclarecedora quer quanto aos meios de prova que sustentaram a convicção formada, quer quanto ao percurso lógico seguido na sua formação. De facto, aí vêm explicadas as razões pelas quais declarações de arguido e relatos de testemunhas mereceram ou não credibilidade, e a conjugação de tais declarações e depoimentos com documentação junta aos autos, não se extraindo minimamente da fundamentação da decisão recorrida que o julgador tenha tido dúvidas sérias e razoáveis sobre a prova de qualquer dos factos que considerou assentes.
Do exposto resulta que não se mostram violados os sobreditos princípios in dubio pro reo e de presunção de inocência.
*-
- Do preenchimento (ou não) dos elementos do tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo artigo 36.º n.ºs 1, alínea c), 2 e 5, alínea a), do D.L. n.º 28/84, de 20 de Janeiro
Vejamos:
Subsídio ou subvenção, no sentido dos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, é unicamente a prestação feita a empresa ou unidade produtiva, à custa de dinheiros públicos, quando tal prestação (artigo 22º): a) Não seja, pelo menos em parte, acompanhada de contraprestação segundo os termos normais do mercado, ou quando se tratar de prestação inteiramente reembolsável sem exigência de juro ou com juro bonificado; e b) Deva, pelo menos em parte, destinar-se ao desenvolvimento da economia.
O termo "economia" deve ser aqui entendido como o conjunto das atividades levadas a efeito de forma empresarial e dirigidas tanto à criação ou à produção como à distribuição de bens ou de outras prestações destinadas à satisfação de necessidades humanas.. A subvenção deverá assim destinar-se, pelo menos em parte, ao desenvolvimento económico e isso acontece quando, de uma forma ou doutra, se prossegue essa apontada finalidade, bastando-se a lei com a destinação parcial da subvenção ao desenvolvimento económico - é o seu limite funcional.
O subsídio aparece assim como um instrumento de conformação da economia pelo Estado, concedido em função de metas previamente definidas. A afetação do subsídio a outra finalidade frustra esse objetivo e, desse modo, lesa o bem jurídico protegido pela incriminação.
Dispõe o artigo 36.º n.ºs 1, alínea c), 2 e 5, alínea a), do D.L n.º 28/84, de 20 de Janeiro: “ “Artigo 36.º
(Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção)
1 - Quem obtiver subsídio ou subvenção:
(…)
c) Utilizando documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexactas ou incompletas;
será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
2 - Nos casos particularmente graves, a pena será de prisão de 2 a 8 anos.
(…)
5 - Para os efeitos do disposto no n.º 2, consideram-se particularmente graves os casos em que o agente:
a) Obtém para si ou para terceiros uma subvenção ou subsídio de montante consideravelmente elevado ou utiliza documentos falsos.”
O preâmbulo do Decreto-Lei nº 28/84 justifica a criação de ilícitos desta natureza pela gravidade dos seus efeitos e pela necessidade de proteger o interesse da correta aplicação de dinheiros públicos nas atividades produtivas (alínea l) do nº 6), devendo aquele tipo de ilícito classificar-se como um crime económico, já que visa tutelar a economia: estão em causa "valores, metas, funções ou instituições essenciais à subsistência, funcionamento e desenvolvimento do sistema económico" (Jorge de Figueiredo Dias/Manuel da Costa Andrade, Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, RPCC 4 (1994), p. 355).
“O bem jurídico protegido pela norma penal em causa é, como assinalam os Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade, citando Lenckner, “o subsídio ou subvenção enquanto instituição, isto é, como instrumento fundamental de conformação da economia pelo Estado e, para além disso e sobretudo, as próprias metas de política económica pré-definidas e almejadas pelo legislador” (cfr. AC, TRP de 26-01-2011, acessível in www.dgsi.pt), sendo que “:
I - O tipo do artigo 36.º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, configura-se como um crime comum, susceptível de ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de ser ou não a promotora ou beneficiária do subsídio ou subvenção.
II - Quanto à sua natureza, trata-se de um crime de execução vinculada (…)” (cfr. Ac. TRC de 10/07/2013, acessível in www.dgsi.pt).
Por outro lado, dispõe o art.255º, al.a), do CP que se considera documento a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.
"Documento é, pois, a declaração de um pensamento humano que deverá ser corporizada num objeto que possa constituir meio de prova; só assim se compreende que o crime de falsificação de documentos proteja o específico bem jurídico que é a segurança e credibilidade no tráfego jurídico-probatório" - Helena Moniz, in Comentário Conimbricence do Código Penal, Tomo II, pág.667.
A falsidade de um documento pode revestir uma natureza meramente intelectual ou uma natureza material. Aquela verifica-se quando num documento existe divergência entre o que o documento relata e o que de facto ocorreu. Por sua vez, a falsificação material verifica-se quando o documento não corresponde ao genuíno originariamente e é posteriormente alterado.
"(...) Um documento é falso quando não corresponde à realidade; na falsidade intelectual existe divergência entre o que o documento relata e o que aconteceu (cfr. Marques Borges, Dos Crimes de Falsificação de Documentos, Moedas, Pesos e Medidas, pág.30); a falsidade repousará, então, num substrato ético-psicológico; a mentira, a inverdade (cfr. Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos, pág.134); cria-se um documento, no todo ou em parte, integrando-se nele um elemento declarativo diferente do que foi realizado; na falsidade material o documento é genuíno originariamente, mas posteriormente alterado; não há correspondência ao genuíno na parte extrínseca (...)" (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.10.2011, in www.dgsi.pt.).
Como referido nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/05/2009, Processo:457/07.9TASCD, e de 07/02/2007, Processo:1540/05.0TAAVR.C1, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/11/2009, Processo:1289/06TAVCT.G1, in www.dgsi.pt, falsificação de documentos é uma falsificação da declaração incorporada no documento, podendo assumir a forma de uma falsificação material ou uma falsificação ideológica.
Na material, o documento não é genuíno, na ideológica o documento é verídico. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.
Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Na intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento.
Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, tratando-se, pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica se desenha sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício (cfr., neste sentido, Helena Moniz "Comentário Conimbricence do Código Penal, Tomo II, pág.667).
Ora, face à explanação dogmático-jurídica a que se procedeu e revertendo ao caso dos autos e recapitulando a factualidade assente como provada, é manifesto ter o arguido/recorrente, com a sua conduta, praticado o crime por que se mostra condenado.
Consequentemente, o recurso improcede também neste particular.
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Na sentença recorrida verifica-se um lapso de escrita na identificação do diploma legal que prevê o tipo legal de crime imputado ao arguido/recorrente e pelo qual se mostra condenado, pois que se trata do D. L. n.º 28/84, de 20 de Janeiro e não Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, como ali se refere.
Assim, nos termos do disposto no art.380º, nºs 1, al.b) e 2, do CPP, procede-se à correção de tal lapso, pelo que onde se lê “Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro” deve ler-se “ D. L. n.º 28/84, de 20 de Janeiro”
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Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido CC, mantendo-se a sentença recorrida, com a ressalva do lapso de escrita supra corrigido.
- Condenar o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 28 de março de 2023
Laura Goulart Maurício
J.F. Moreira das Neves
Maria Clara Figueiredo
João Manuel Monteiro Amaro