Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
339/21.1T8CTX-B.E1
Relator: GRAÇA ARAÚJO
Descritores: DOAÇÃO INOFICIOSA
REDUÇÃO
INCIDENTE
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – No incidente a que se reporta o artigo 1118º do Cód. Proc. Civ., prevê-se a intervenção do donatário e de todos os herdeiros legitimários, essencial para assegurar que a decisão a proferir produza o seu efeito útil.

II – Se um dos herdeiros legitimários deduzir tal incidente, é aí que qualquer outro herdeiro legitimário que também pretenda ver reduzida a doação em seu benefício deve manifestar a sua vontade, não podendo deduzir segundo incidente.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório (até à data em que foi proferida a sentença objecto do presente recurso)

A) Do processo de inventário

1. AA instaurou inventário judicial para partilhas da herança de BB, falecido em .../.../2020, no estado de solteiro, e cujos herdeiros são seus filhos, CC, o requerente e DD, nascidos, respectivamente, em .../.../1957, .../.../1961 e .../.../1967. Mais referiu que, à data do óbito, o falecido não era titular de quaisquer bens, uma vez que doara a cada um dos seus filhos um dado prédio. As doações em causa ofenderam a sua legítima, havendo necessidade de proceder à sua redução por inoficiosidade. Indicou a herdeira CC para exercer as funções de cabeça-de-casal.

2. Designada a cabeça-de-casal, veio a mesma esclarecer que o inventariado não possuía activo ou passivo à data da sua morte.

3. A interessada DD veio informar ter repudiado a herança de seu pai, juntando escritura pública de 10.2.22, onde se menciona o consentimento de seu marido e a existência de descendentes.

4. O interessado/requerente reclamou da relação de bens, acusando a falta de relacionação dos imóveis doados em vida do inventariado.

5. Mais arguiu a nulidade do repúdio, uma vez que a interessada DD já antes havia aceitado a herança.

6. A cabeça-de-casal apresentou relação de bens, descrevendo os 3 imóveis cuja falta havia sido acusada.

7. E aderiu ao requerimento apresentado pelo interessado/requerente relativamente ao repúdio da herança.

8. Julgando procedente a reclamação de bens, o tribunal consignou que a relação de bens actualizada era a apresentada pela cabeça-de-casal na sequência daquela reclamação.

9. Não obstante para tal notificada, a interessada DD nada disse sobre a arguição de nulidade do repúdio da herança.

10. O tribunal determinou a notificação da cabeça-de-casal para juntar documentos relativos aos bens relacionados e, bem assim, a notificação dos demais interessados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1105º do Cód. Proc. Civ.

11. Tais notificações foram efectuadas.

B) Do incidente que constitui o Apenso A

12. Em 22.6.22, o interessado/requerente deduziu contra a cabeça-de-casal e a interessada DD incidente de redução de doações inoficiosas, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1118º do Cód. Proc. Civ.. Alegou, em síntese, que: o inventariado doou a cada um dos seus três filhos um determinado prédio; a doação efectuada à interessada DD ofende a sua legítima em 29.833,33€. Concluiu, pedindo que esta interessada seja condenada na redução da doação inoficiosa, devendo repor, na parte que afecta a sua legítima, o prédio doado.

13. Por instrumento de 7.7.22, a cabeça-de-casal e a interessada DD foram notificadas para, querendo, em 10 dias, deduzir oposição, nos termos do artigo 293º do Cód. Proc. Civ. (aplicável ex vi do disposto no artigo 1091º nº 1 do mesmo diploma).

14. Apenas a interessada DD deduziu oposição

C) Do incidente que constitui o presente Apenso B

15. Em 14.7.22, a cabeça-de-casal deduziu contra o interessado/requerente e a interessada DD incidente de redução de doações inoficiosas, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1118º do Cód. Proc. Civ.. Alegou, em síntese, que: o inventariado doou a cada um dos seus três filhos um determinado prédio; a doação efectuada à interessada DD ofende a sua legítima em 25.333,33€. Concluiu, pedindo que esta interessada seja condenada na redução da doação inoficiosa, devendo repor, na parte que afecta a sua legítima, o prédio doado.

16. Por instrumento de 19.7.22, o interessado/requerente e a interessada DD foram notificados para, querendo, em 10 dias, deduzir oposição, nos termos do artigo 293º do Cód. Proc. Civ. (aplicável ex vi do disposto no artigo 1091º nº 1 do mesmo diploma).

17. E nada disseram.

18. Em 16.9.22, foi proferida sentença que julgou “verificada a inoficiosidade da liberalidade efetuada pelo de cujus à requerida DD, condenando a mesma a repor a parte do prédio que lhe foi doada pelo de cujus que afeta a legítima, nos termos do artigo 1119º, nº 1, 3 e 4, do Código de Processo Civil (conforme o valor que venha a ser aceite pelos interessados diretos na herança e a opção da requerida na composição do seu quinhão hereditário)”.

D) Do recurso

19. A interessada DD interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

a) O de cujus faleceu sem qualquer património;

b) Fez ao longo da vida doações de bens que se encontram relacionados no pedido de inventário;

c) Fez outras doações que se encontram ausentes da relação de bens no processo de inventário requerido e são objecto de reclamação no processo principal;

d) Os bens relacionados e ausentes não estão avaliados nem foi cumprido, à data da sentença, o disposto no artigo 1115º do CPC;

e) A decisão/sentença de inoficiosidade não tem objecto de partilha definido;

f) A sentença é nula, devendo o Venerando Tribunal de Évora declarar a nulidade a partir do pedido inicial da parte e aguardando este as decisões sobre as questões prévias constantes do processo principal ainda pendente.

20. Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Matéria de facto

Na sentença, foram considerados provados os seguintes factos:

1. BB faleceu no dia .../.../2020, no estado de solteiro, tendo deixado três filhos:

- CC;

- AA; e

- DD.

2. Ainda em vida, BB doou aos seus filhos os seguintes prédios:

- à filha CC, no dia 3.5.2013, doou por escritura pública, por conta da quota disponível, o prédio urbano composto de edifício de rés do chão para habitação com logradouro, sito no Largo ..., na freguesia ..., concelho de Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº ...12, daquela freguesia e inscrito na matriz urbana respetiva sob o artigo ...89, atualmente sob o artigo 397 da União das Freguesias ..., com valor patrimonial de 8.730,00€ – cf. doc. n.º 6 e 7 junto no requerimento inicial de inventário;

- ao filho AA, ora requerente, no dia 28.5.2013, doou por escritura pública, por conta da quota disponível, o prédio urbano composto de edifício de rés do chão destinado a adega e lagar, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº ...05, daquela freguesia e inscrito na matriz urbana respetiva sob o artigo ...29, atualmente sob o artigo 547 da União das Freguesias ..., com valor patrimonial de 3.240,00€ – cf. doc. n.º 8 e 9 junto no requerimento inicial de inventário;

- à filha DD, no dia 13.02.2014, doou por escritura pública, por conta da quota disponível, o prédio urbano composto por casa de rés do chão, destinada a habitação e logradouro, sito em ..., na União das Freguesias ..., concelho de Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº ...67, da extinta freguesia ... e inscrito na matriz urbana respetiva sob o artigo ...85 da União das Freguesias ..., com o valor patrimonial de 56.070,01€ – cf. doc. n.º 10 e 11 junto no requerimento inicial de inventário.

3. À data do óbito, o inventariado não dispunha de qualquer património.

4. Em face da reclamação à relação de bens, foram integrados na relação apresentada nos autos de inventário, os bens doados e supra descritos, tendo-lhes sido atribuídos os seguintes valores:

- o imóvel doado a CC com o valor de 9.500,00€;

- o imóvel doado a AA com o valor de 5.000,00€;

- o imóvel doado a DD com o valor de 90.000,00€.

5. Estes são os únicos bens que constam da relação de bens.

III - Questão prévia

Diz-se legítima a porção de bens que o legislador assegura aos herdeiros legitimários (artigo 2156º do Cód. Civ.). Essa porção é calculada tendo em conta o valor dos bens existentes no património do autor da sucessão, o valor dos bens doados, as despesas sujeitas a colação e as dívidas da herança (artigo 2162º do Cód. Civ.), variando consoante a categoria e o número dos herdeiros legitimários (artigos 2157º a 2161º do mesmo diploma).

As disposições de bens, a título gratuito, a que o autor da sucessão procedeu, em vida ou por morte, consideram-se inoficiosas se afectarem a legítima dos herdeiros legitimários (artigo 2168º do Cód. Civ.). E, se assim for, tem o/s herdeiro/s legitimário/s afectado/s o direito potestativo de ver a/s liberalidade/s reduzida/s na medida do necessário (artigo 2169º do Cód. Civ.).

Para obter esse desiderato e encontrando-se pendente inventário, poderá/ão deduzir o incidente previsto no artigo 1118º do Cód. Proc. Civ..

Se apenas existir um herdeiro legitimário afectado ou se, existindo mais, apenas um deles pretende a redução da liberalidade inoficiosa, naturalmente apenas esse deduzirá o incidente no confronto com o donatário/legatário visado (artigo 1118º nº 1 do Cód. Proc. Civ.). Trata-se, naturalmente, de estabelecer o contraditório entre quem tem interesse em demandar e quem tem interesse em contradizer (artigo 3º nº 1 e 30º do Cód. Proc. Civ.). Todavia, porque a decisão do incidente implica o cálculo da legítima (sendo indispensável ter por assente, como cima dissemos, o valor dos bens existentes no património do autor da sucessão, o valor dos bens doados, as despesas sujeitas a colação e as dívidas da herança) e porque é evidente que todos esses valores não podem ser diferentes consoante se esteja no âmbito do inventário ou em sede incidental, aqui se prevê, também, a intervenção dos restantes herdeiros legitimários (artigo 1118º nº 2 do Cód. Proc. Civ.). No fundo – e ainda que não se possa falar numa típica situação de litisconsórcio necessário – está em causa assegurar a participação de todos os interessados na definição de aspectos essenciais à partilha, ou seja, está em causa assegurar que a decisão a proferir produza o seu efeito útil, ao vincular todos os interessados (artigo 33º do Cód. Proc. Civ.).

Assim sendo, deduzido o incidente por um dos herdeiros legitimários, os demais podem, quando forem ouvidos, manifestar, também eles, a intenção de que a liberalidade seja reduzida em seu benefício, isto é, em ordem ao preenchimento da legítima a que têm direito, acompanhando a alegação do requerente do incidente ou invocando circunstancialismo fáctico diverso ou complementar. O que importa é que, quer os herdeiros legitimários, quer o/s donatário/s/legatário/s visados esgrimam, no mesmo processo, as suas posições, só assim se alcançando uma decisão que resolva em definitivo e perante todos (pois que todos por ela são afectados) o litígio.

Daqui decorre que, deduzido o incidente por um dos herdeiros legitimários, não pode outro herdeiro legitimário deduzir segundo incidente, havendo, como dissemos, de expressar a sua posição no incidente pendente.

Tal conclusão parece-nos expressivamente ilustrada pelo presente caso.

Com efeito, estando a ser tramitados paralelamente dois incidentes de inoficiosidade, verifica-se que, no Apenso A, a interessada DD deduziu oposição, mas, no presente Apenso B, nada disse. Mais: não tendo neste Apenso sido oficiosamente determinada avaliação dos bens (artigo 1118º nº 3 do Cód. Proc. Civ.) – dando-se por assente a factualidade invocada pela cabeça-de-casal no requerimento inicial – no Apenso A veio a reconhecer-se a importância de tal avaliação, entretanto determinada no âmbito dos autos de inventário. Por último, neste Apenso foi proferida sentença (embora sem definição do real valor de cada bem à data da abertura da sucessão), ao passo que no Apenso A foi determinada a suspensão da instância até à avaliação dos bens no inventário, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 272º do Cód. Proc. Civ..

É manifesto que não pode ser e que o presente incidente não pode existir.

Ao optar por deduzir incidente de inoficiosidade – quando, aliás, decorria o prazo para se pronunciar no âmbito do Apenso A (cfr. pontos 13. e 15. do Relatório) – a cabeça-de-casal lançou mão de uma via processual inadequada. Não obstante a situação não ter sido imediatamente atalhada, como se imporia, pode/deve, ainda, ser oficiosamente corrigida (artigo 193º nº 3 do Cód. Proc. Civ.). Assim, sendo o requerimento inicial apresentado pela cabeça-de-casal aproveitável enquanto manifestação da sua vontade no âmbito do Apenso A, para aí deverá transitar. Consequentemente, desaparecendo o impulso que levou à constituição e tramitação do Apenso B, não podemos deixar de concluir pela nulidade de todo o processado (artigo 186º nº 1 e nº 2-a) do Cód. Proc. Civ., por maioria de razão).

IV – Queda, por conseguinte, prejudicada a apreciação do mais que suscitado foi.

V – Dispositivo

Por todo o exposto, acordamos em julgar procedente a apelação e, em consequência:

A) Determinamos o desentranhamento do requerimento inicial apresentado pela cabeça-de-casal em 14.7.22, a fim de ser incorporado no Apenso B;

B) Declaramos nulo todo o demais processado.

Custas pela apelada/cabeça-de-casal.

Évora, 30 de Março de 2023


Maria da Graça Araújo

Maria Adelaide Domingos

José Penetra Lúcio