Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2100/20.1T8STB.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PROCESSO PENAL
ABSOLVIÇÃO EM JULGAMENTO
ABANDONO DE LUGAR
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A situação em que, por entender que existiam indícios, foi deduzida acusação, houve pronúncia, houve recurso desta decisão, que foi confirmada pelo tribunal superior, e, em julgamento, foi o arguido absolvido, traduz uma situação do funcionamento normal do sistema. Nada que o sistema não permita. Apenas o sistema a funcionar.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

(…) intentou contra o Estado Português a presente ação declarativa com processo comum, na qual peticiona a condenação do Réu a pagar-lhe € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) acrescidos do que se vier a apurar a final e segundo os critérios do tribunal, sendo € 130.000,00 (cento e trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais e € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos patrimoniais.
Alega que, foi constituído arguido, no processo crime n.º 3272/152T9STB, que correu termos no juízo Criminal de Setúbal-juiz 2 e no qual foi acusado por um crime de abandono de funções, com o fundamento de que, não tinha comparecido no novo local de trabalho designado, não tendo efetuado quaisquer consultas externas ambulatórias a partir da alteração do local de trabalho, nem as consultas externas ambulatórias no anterior local de trabalho, dada a sua deslocalização, com o que deixou os doentes que lhe estavam atribuídos sem acompanhamento, motivando a desmarcação de várias consultas.
A acusação foi proferida em tempo superior ao estipulado no artigo 103.º, n.º 3, do CPP e solicitou a nomeação de defensor ao arguido.
Alega que não havia motivos que indiciassem o preenchimento do tipo legal do crime por que foi acusado, como se demonstrou em sede de julgamento, onde não ficou provada qualquer falta ou abandono por parte do autor, antes tendo ficado demonstrado que o autor continuou a efetuar as suas consultas no Hospital de São (…), em (…), não só às sextas feiras como estava designado, mas também de segunda a quinta feira.
Houve um erro grosseiro por parte da Sr.ª Procuradora responsável pelo processo, ao ter descurado e omitido um facto publico e notório consubstanciado na manutenção do exercício de funções por parte do autor. O autor tão pouco foi ouvido na fase de inquérito nem foram efetuadas as diligencias necessárias ao apuramento da verdade.
E que esta situação fê-lo sentir injustiçado, mal acusado, ofendido, vilipendiado e também vítima de Assédio Moral e Psicológico, por parte do M.º P.º e do concelho de administração do hospital e da sua direção, danos não patrimoniais, por que pretende ser ressarcido, tal como dos danos patrimoniais que respeitam aos valores pagos a advogados, deslocações e outras despesas relativas à sua proteção jurídica.
Citado o M.º P.º, foi apresentada contestação.
Nesta sede foi excecionada a inexistência de prévia revogação da decisão danosa, concluindo-se pela absolvição do Réu do pedido.
No mais, foi impugnada a matéria alegada e refutada a tese do Autor.
O Autor apresentou articulado aperfeiçoado, onde no que ora interessa, referiu que na fase do inquérito o M.º P.º não promoveu as diligências necessárias para apurar se o autor se manteve ao serviço da entidade patronal ou simplesmente abandonou as suas funções, pois se o tivesse feito, teria apurado que não houve abandono de funções mas sim a não comparência no novo local de trabalho.
Após as delongas do inquérito, em 10-01-2017, não havia um mínimo motivo para o preenchimento do tipo legal do crime imputado. Também na fase de instrução o ministério publico não procedeu às diligências necessárias nem tão pouco ouviu o arguido ora autor nem o concelho de administração até para apurar porque não ouve procedimento disciplinar dada a alegada gravidade na acusação.
Em sede de julgamento não ficou provado qualquer falta ou abandono por parte do autor; antes ficou demonstrado que o autor continuou a efetuar as suas consultas no Hospital de São (…), em (…), não só as sextas feiras como estava designado como também de segunda a quinta feira, o que denota ter havido um erro grosseiro por parte da responsável do Ministério Público pelo Processo, ao ter negligenciado quer na fase de investigação quer na fase da instrução do processo a busca do apuramento da verdade e ter omitido um facto publico e notório consubstanciado na manutenção do exercício de funções por parte do autor, que nunca poderia ter sido acusado, como foi.
Realizou-se audiência prévia.
Após foi proferida decisão, que julgou verificada a exceção de inexistência de prévia decisão da decisão danosa, a qual importa a absolvição total do pedido (artigo 576.º, n.º 3, do CPC) e absolveu o Réu do pedido.

Inconformado com a sentença, pelo Autor foi interposto recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«43º O despacho saneador sentença esta viciado por erro na medida em que considerou a invocação de nulidade e o autor veio agir em virtude de uma omissão.
44º O segundo erro é considerar nos autos recorridos a factualidade de que a haver nulidades teriam sido ultrapassadas pelo referido despacho de pronúncia nos autos 3272/15.2T9STB onde mais uma vez não foi considerado a omissão determinante relativa ao facto do ministério publico em sede de inquérito não ter apurado que o recorrente se mantinha a trabalhar.
45º E assim de aplicar a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro onde se refere o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, veio concretizar no plano infraconstitucional o disposto no artigo 22.º da CRP, que consagra: ”O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
46º E no caso nunca é demais de repetir, verificou-se uma omissão grave.
47º E nem se diga que o recorrente atacou o despacho de pronuncia por quanto os autos sub judice são bem claros.
48º Nestes termos deve o saneador sentença de que se recorre ser anulado nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil.
49º Por erro grosseiro da apreciação da causa de pedir do autor e substituído por outro onde se entenda a responsabilidade do ministério publico pela verificação da omissão a qual inquinou o processo crime em referencia e em consequência fosse levado ate audiência de julgamento quando deveria logo ter sido arquivado em sede de inquérito.
50º O que conduziu à violação da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
51º Pelo que devem prosseguir os autos recorridos até final o caso assim se entenda ser proferido saneador sentença condenado o estado a uma indeminização conforme pedido na petição e demonstrado na audiência verificada onde o advogado do autor teve oportunidade de apresentar as razoes de facto e de direito sem oposição do Ministério Público.
50º Termos em que deve o presente recurso ser objeto de provimento e demais consequências legais»
Nas contra-alegações, o recorrido concluiu o seguinte (transcrição):
«1- Não assiste qualquer razão ao recorrente, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo, apresentando-se a mesma devidamente fundamentada e de forma clara, esclarecedora das razões que levaram à absolvição do Réu do pedido;
2- A motivação do recurso mostra-se confusa e desarticulada da fundamentação do despacho recorrido, o qual considerou verificada a exceção da inexistência prévia de decisão danosa e que levou à absolvição do Réu;
3- A motivação do recurso não possui qualquer relação com os fundamentos da absolvição do pedido, a qual teve por base a não verificação de uma circunstância que constitui um pressuposto da ação de responsabilidade civil nos termos em que o Autor a intentou;
4- O artigo 13.º, n.º 1 e 2, da Lei 67/2007 faz depender o pedido de indemnização da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o que não ocorreu;
5- Termos em que não merece provimento o recurso em apreço. Devendo manter-se a decisão recorrida.,
Contudo, Vossas Exas. farão a costumada JUSTIÇA! »
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto recursório, cumpre apreciar e decidir.
Foram considerados provados na 1.ª instância os seguintes factos:
1. Em 31.08.2017, no processo n.º 3272/15.2T9STB, o M.º P.º deduziu acusação para julgamento em processo comum com tribunal singular contra “(…), filho de (…) e de (…), nascido em 8.5.52, em Angola, solteiro, médico, residente na Rua dos (…), 336, 2.°-Esquerdo, em Lisboa”, imputando-lhe a prática de um crime de abandono de funções, p. e p. pelo artigo 385.º, por referência ao artigo 83.º da Lei n.º 35/14, de 20.06.
2. Notificado da contestação, o arguido requereu a abertura de instrução.
3. Em 15.02.2018 foi proferida a decisão instrutória constante de fls. 78 vº e ss, aqui dada por reproduzida, onde foi rejeitada liminarmente qualquer inconstitucionalidade em relação à norma incriminadora; foi julgado inexistir nulidade por falta de interrogatório do arguido, tendo-se consignado a esse propósito: ”O arguido foi notificado para interrogatório – simplesmente optou por não comparecer ou justificar a falta (…). Do mesmo modo não requereu – já nesta sede – a sua audição ou, sequer, compareceu ás sessões aprazadas para realização de atos de instrução, ou para o debate instrutório. Neste contexto, também não vislumbrou o tribunal qualquer necessidade de obrigar o arguido a comparecer”; foi decidido não ser reconhecer a existência de nulidade por falta de narração de factos, referindo-se a esse propósito: “ Os factos elencados na acusação são indubitavelmente suscetíveis de consubstanciar a prática pelo arguido, do crime que lhe é imputado. E o arguido pôde, querendo, rebatê-los, contestá-los (…). Fazê-lo ou não (…) resultou apenas de uma opção sua; não de qualquer concetual impossibilidade”.
4. Naquela sede ouviram-se 7 testemunhas, 3 das quais médicos, após o que se concluiu, além do mais: “Ficou relativamente claro, pelo menos a título indiciário – a factualidade em apreço: a discórdia do arguido (…) quanto à decisão da administração do Centro Hospitalar de Setúbal de passarem as consultas externas de ambulatório (…) para local distinto (…) conjugando estes depoimento com a prova já produzida em sede de inquérito (…) não pode deixar de se dar por indiciada toda a factualidade elencada na acusação (…). Assim, decide-se pronunciar o arguido pelos mesmíssimos factos por que vem acusado…”.
5. O arguido interpôs recurso da decisão instrutória.
6. Naquele âmbito foi proferida decisão, pelo TRE, transitada em julgado em 26.04.2019, a qual negou provimento ao recurso “mantendo na íntegra a decisão e despacho recorridos”. 7. Em 11.04.2019 poi proferida decisão, já transitada em julgado e que não foi objeto de recurso, onde o arguido (…) foi absolvido da prática do crime de abandono de funções, p. e p. pelo artigo 385.º, por referência ao artigo 83.º da Lei n.º 35/14, de 20.06, por que ia pronunciado.
8. No relatório refere-se : “Foi proferido despacho de pronúncia para julgamento…”
9. Em sede de questões prévias foi decidido: “Em sede de contestação, veio o arguido suscitar: a inconstitucionalidade da norma incriminatória, por contrariar o trabalho forçado; a nulidade a que aquela o artigo 120.°, n.° 2, alínea d), do Código de Processo Penal, por insuficiência do inquérito, com fundamento na circunstância de não ter sido praticado um ato legalmente obrigatório – o interrogatório do arguido; a nulidade da acusação, com fundamento na circunstância de não terem sido descritas, no despacho de acusação, uma a uma, as consultas médicas a que o arguido faltou, tendo, assim, sido violada a obrigação de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, conforme previsto no artigo 283.°, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
O Ministério Público pronunciou-se nos termos constantes a fls. 389 e seguintes, propugnando pela sua improcedência.
Cumpre apreciar.
O arguido com o seu requerimento de abertura da instrução havia já suscitado tais questões, que foram concreta e judicialmente apreciadas em sede de Instrução, como se alcança do teor da decisão instrutória proferida, a fls. 283 a 288, onde foram todas elas julgadas improcedentes.
Deste modo, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional desta instância quanto à (re)apreciação de tal matéria, tendo-se formado caso julgado formal, impõe-se indeferir as pretensões do arguido, ao abrigo do artigo 613.°, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal”.
10. Na sentença consideraram-se provados, além do mais, os seguintes factos”:
a) O arguido é médico psiquiatra e tem com o Centro Hospitalar de …, EPE (doravante CHS), um contrato de trabalho em funções públicas, a tempo indeterminado.
b) Tem a categoria profissional de assistente graduado sénior.
c) No ano de 2005 encontrava-se adstrito ao período normal de trabalho semanal de 37 horas, em regime de jornada contínua, com dedicação exclusiva, período que se reduz em uma hora em cada ano.
d) Tinha como local de trabalho o Hospital de São (…), sito na Rua (…), em (…), onde exerce funções na Consulta Externa de Psiquiatria/Unidade de Ambulatório, de segunda a quinta-feira, e na Consulta de Psiquiatria de Ligação à Oncologia, às sextas-feiras.
e) Em maio de 2015, decidiu o Conselho de Administração do CHS (doravante CA/CHS) que a prestação de trabalho de todos os médicos do Serviço de Psiquiatria, no concernente às Consultas Externas de Ambulatório, passaria a realizar-se na Estrada Nacional n.º (…), km 37, em (…), onde passaram a estar instaladas e que distam cerca de 4 km do Hospital de São (…), a partir de 18.05.2015.
f) O CA/CHS deu conhecimento desta decisão aos médicos e funcionários através da Circular Informativa n.° 76/2015, de 8.5.15, da qual o arguido teve conhecimento.
g) O Diretor do Serviço de Psiquiatria divulgou ainda a decisão do CA/CHS a todos os médicos do Serviço, através de mensagem de correio eletrónico enviada em 14.05.2015, da qual o arguido teve conhecimento.
h) O CA/CHS garantiu ao arguido o mesmo horário de trabalho e facultaria, se o arguido assim o manifestasse, transporte para o novo local de trabalho.
i) O arguido nunca compareceu no novo local de trabalho designado, na Estrada Nacional n.° (…), km 37, em (…), não tendo aí efetuado quaisquer consultas externas ambulatórias, o que motivou a desmarcação de várias consultas.
j) O arguido continuava a efetuar consultas externas ambulatórias no Hospital de São (…), na Rua (…), em (…).
k) Em face da sua ausência na Estrada Nacional n.º (…), km 37, em (…), o CA/CHS notificou o arguido, pessoalmente, para se apresentar no novo local de trabalho, a partir de 03.08.2015, o que o arguido não acatou.
I) (…) tinha consulta agendada com o arguido, para o dia 20.05.2015, não se tendo realizado por o arguido não ter comparecido nas instalações sitas na Estrada Nacional n.º (…), tendo tal consulta sido administrativamente remarcada, tendo a paciente sido consultada e passado a ser acompanhada por outro médico, cerca de 4 a 5 meses depois. m) (…) tinha consulta agendada com o arguido, para o dia 11.06.2015, não se tendo realizado por o arguido não ter comparecido nas instalações sitas na Estrada Nacional n.º (…).
n) Neste período, o arguido compareceu de segunda a sexta-feira no Hospital de São (…), ali exercendo funções como médico psiquiatra.
o) O CHS atribuiu os doentes do arguido, que se contavam entre 400 e 600, à médica psiquiatra (…), contratada em 11.08.2015, o que aconteceu a partir de 19.08.2015.
p) Caso o arguido comparecesse no local de trabalho que lhe foi designado e aí efetuasse as consultas a que estava obrigado, a médica psiquiatra (…) acompanharia outros doentes que não os do arguido, aumentando a capacidade de resposta do Serviço de Psiquiatria, o que era a intenção do CHS quando iniciou o procedimento de contratação desta médica, em data anterior a maio de 2015.
q) Ao arguido estavam atribuídos os doentes da freguesia de São (…), de (…), freguesia esta com cerca de 60 mil habitantes.
r) No ano de 2015, o arguido gozou férias de 9 a 30 de novembro e de 1 a 11 de dezembro e de 28 de dezembro a 31 de dezembro.
s) O arguido esteve ainda desvinculado do dever de assiduidade por ter sido candidato à eleição de deputados para a Assembleia da República, desde 08.09.2015 a 04.10.2015, mas tendo, no entanto, comparecido ao serviço, no Hospital de São (…), sito na Rua (…), em (…).
t) O arguido não se encontra em ausência às consultas externas de ambulatório, comparecendo de segunda a sexta-feira no Hospital de São (…), ali permanecendo, onde realiza funções que lhe foram atribuídas.
11. E como não provados, os seguintes factos”:
1. O arguido deixou os doentes que lhe estavam atribuídos sem acompanhamento.
2. O arguido faltou a 123 consultas no mês de maio, 157 no mês de junho, 139 no mês de julho e 68 no mês de agosto, do ano de 2015, deixando os seus doentes sem acompanhamento médico devido às carências do serviço, que tinha inclusivamente um médico em situação de incapacidade, factos que o arguido bem conhecia.
3. Em consequência de conduta do arguido, (…) e (…) ficaram sem acompanhamento, este último durante um período entre 3 a 4 meses.
4. Neste período, o arguido bem sabendo que nenhuma função poderia exercer de segunda a quinta-feira no Hospital de São (…), como não exercia.
5. Quis o arguido faltar indevidamente ao dever de se apresentar ao serviço público que lhe está atribuído, sem qualquer justificação, tendo querido faltar a tal serviço com intenção de o interromper, a fim de forçar o CA/CHS a revogar a decisão de deslocalização dos serviços de consulta externa de psiquiatria.
6. Sabia o arguido que tal conduta é proibida por lei.”.
12. E em sede de motivação de facto referiu-se além do mais:
“ Para formar a sua decisão sobre a matéria de facto provada, o Tribunal alicerçou-se na prova produzida na audiência de discussão e julgamento, mormente, nas declarações do arguido, na prova testemunhal, conjugada com a análise crítica dos documentos juntos aos autos, apreciada à luz das regras de experiência comum e atento o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 1270.º do Código de Processo Penal.
O arguido prestou declarações em audiência de julgamento sobre a factualidade imputada, especificando a sua atividade e categoria profissional, local onde a exerce, quais as funções que em concreto desenvolve.
Pormenorizou em Tribunal a sua discordância quanto à deslocalização das consultas externas do Serviço de Psiquiatria para fora de instalações hospitalares, bem como que havia, desde logo, manifestado junto do Conselho de Administração e onde as reivindicações que fez foram a pensar unicamente nos pacientes e nunca a titulo pessoal, nem tinha como intenção de revogar a decisão de deslocalização dos serviços.
Afiançou ter apresentado várias soluções nas reuniões que teve, e a seu pedido, no Conselho de Administração, especificando alguma delas – antes da tomada de decisão pelo Conselho – o que veio a ser corroborado pela testemunha (…).
Asseverou que mesmo após a deslocalização das consultas externas de psiquiatria, mantendo-se o demais do Departamento de Psiquiatria (internamento e a urgência psiquiátrica), na Rua (…), o declarante continuou a aí se apresentar ao serviço, onde efetivamente exercia funções, prestando consultas externas de psiquiatria de evolução prolongada, de psiquiatria oncológica, de obesidade mórbida e consulta de dor, de segunda a sexta-feira, nunca tendo abandonado as suas funções – concretizando onde prestava as consultas.
O arguido explicou que, atualmente e desde a tomada de posse do novo Conselho de Administração – tanto quanto julga desde 2016 –, oficialmente se encontra a fazer consultas de psiquiatria externa, de evolução prolongada, de oncologia psiquiátrica, sendo que em momento anterior também o fazia, com conhecimento do Conselho de Administração.
Mais disse que no período compreendido entre 08.09.2015 e 04.10.2015, não obstante estar dispensado de comparecer, compareceu ao serviço – conforme folha de ponto junta a fls. 551.
Confrontado com fls. 57 a 73 dos autos, referente a desmarcação de consultas de 16.05.2015 a 31.12.2015, o arguido afirmou não terem sido por si desmarcadas, desconhecendo quem o fez e porque motivos.
O arguido referiu sempre ter comparecido ao serviço, não tendo nenhuma falta injustificada, nem nada lhe foi deduzido no seu ordenado…”.


2 – Objecto do recurso.

Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso: Saber se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, imputável à função jurisdicional.


3 - Análise do recurso.

Vem o A intentar a presente acção de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado, fundamentando o seu pedido no facto de ter sido acusado e posteriormente, em sede de audiência de discussão e julgamento, ter sido absolvido, alegando que, o processo não deveria ter sido prosseguido ate ao julgamento, que a acusação não deveria ter sido proferida, tendo-o sido, apenas, devido a erro grosseiro, já que o ali arguido não foi ouvido em sede de Inquérito, nem tão pouco o foi o concelho de administração (presume-se que do Hospital de São …, em …), diligências que também não foram promovidas pelo M.º P.º na fase de instrução e que teriam ditado a sua não acusação. e por isso existe responsabilidade civil do estado por ter ocorrido um erro grosseiro por omissão da investigação em sede de inquérito.
Assim, pretende ser ressarcido de determinados danos não patrimoniais e patrimoniais, que lhe advieram de erro judiciário, consubstanciado no facto de ter sido acusado em processo crime, acusação que só se justifica pela negligência da Sra. Procuradora, que não o ouviu durante o inquérito nem encetou as devidas diligências.
Apesar de – como se refere nas contra-alegações – a motivação do recurso não se mostrar articulado com o objectivo de impugnação da decisão recorrida, sempre se dirá o seguinte:
Estamos assim no âmbito da responsabilidade do Estado por atos da função judicial.
Nos termos do artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, diz o seguinte:
«Responsabilidade por erro judiciário
1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.»
Articulando este mecanismo com o sistema de recursos, a lei vem exigir, como pressuposto da admissibilidade do pedido indemnizatório, que a decisão em causa haja sido revogada pelo tribunal competente (cfr. artigo 13.º, n.º 2) ou seja, a prévia revogação da decisão danosa.
Como refere o acórdão do STJ de 3/12/2009, processo n.º 9180/07.3TBBRG.G1.S1, Relator: Moreira Camilo, www.dgsi.pt/jstj, o novo regime exige, como condição prévia da responsabilização do Estado por actos jurisdicionais, que o pedido de indemnização deva ser fundada na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” (artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE).
Segundo este aresto importa ter em consideração o seguinte:
«1ª – A «revogação» da decisão danosa, exigida pelo n.º 2 do artigo 13.º, há-de ser naturalmente uma revogação definitiva, ou seja, constante de uma decisão transitada em julgado.
2ª – Tal revogação há-de, por via máxima, provir de um tribunal superior, e ser obtida através de recurso, não sendo de excluir que possa provir deste próprio que proferiu a decisão questionada, quando isso seja admissível processualmente.
3ª – Há-de ser na decisão revogatória que terá de reconhecer-se o carácter «manifesto» do erro de direito ou o carácter grosseiro na apreciação dos factos, que são pressupostos substantivos da responsabilidade do Estado».
É que só são susceptíveis de engendrar responsabilidade para o Estado as decisões judiciais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto (artigo 13.º, n.º 1, do RRCEE), mais se exigindo, como pressuposto da admissibilidade do pedido indemnizatório, que a decisão em causa haja sido revogada pelo tribunal competente (artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE).
Ou seja, como se lê no Ac. do TRC, de 13-11-2019, processo n.º 2519/18.8T8LRA.C1, em www.dgsi: “só há responsabilidade civil do Estado perante decisões manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou quando tenha ocorrido um erro grosseiro na apreciação dos factos” , sendo que “O erro grosseiro é o que se revela indesculpável, intolerável, constituindo, enfim, uma “aberratio legis”. Terá de se traduzir num óbvio erro de julgamento, por divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão, a interferir no seu mérito, resultante de lapso grosseiro e patente” «Ac. STJ 8/9/2009, (Sebastião Póvoas)».
Com efeito, para que não se corra o perigo de entorpecer o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova.
É preciso ter em conta que o sistema de recursos, e a hierarquia dos instâncias, visam o sucessivo aperfeiçoamento da decisão, reduzindo substancialmente a possibilidade de uma sentença injusta.
E suma: A responsabilidade do Estado também implica a ilicitude e, neste caso, a mesma tem de advir da prévia revogação da decisão danosa (pré-requisito).
Ora, o caso dos autos traduz uma situação do funcionamento normal do sistema, em que por entender que existiam indícios foi deduzida acusação e mais, não só houve pronúncia como houve recurso desta decisão que foi confirmada pelo tribunal superior. Após de acordo com a prova produzida em julgamento foi o arguido absolvido.
Nada que o sistema não permita.
Apenas o sistema a funcionar.
Não há responsabilidade do Estado por actos de simples interpretação do direito e valoração dos factos, que consubstancia a própria essência da função jurisdicional e que prevê diferentes apreciações fáctico-jurídicas – ambas formadas com base nos elementos factuais do processo, que comportam diferentes soluções jurídicas, igualmente legítimas (como reflexo da autonomia e do princípio da independência).
Voltando ao caso concreto, não se constata que a decisão de acusação fosse claramente desrazoável, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de desconhecimento do direito e de uma actuação com culpa grave.
Ao contrário do que refere o Autor não se vislumbra qualquer erro grosseiro por parte da Sra. Procuradora que acusou.
Basta, aliás, pensar que tal decisão foi confirmada na pronúncia e no recurso da mesma.
A circunstância de o recorrente ter sido absolvido a final do crime por que foi pronunciado é insusceptível, só por si, de revelar o referido erro.
Numa boa síntese pode ler-se no Ac. RC de 01-03-2016, processo n.º 588/12.3TBMGL.C1, Relatora: Maria João Areias :
«Por outro lado, o juízo absolutório que venha a ser proferido na sentença final não retira, sob qualquer forma, o fundamento lógico da atuação lícita do julgador, nem o transforma em erro judiciário.
Existindo um mecanismo específico para procurar evitar a consumação de decisões erradas, a reação contra uma decisão judicial ferida de erro deve assentar, em primeiro lugar, no sistema de recursos instituído pelo ordenamento jurídico.»
E por isso concordamos com o Ac. Recorrido ao concluir que: «embora o autor tenha uma decisão absolutória, a mesma não pode ser considerada como decisão revogatória do despacho de acusação, numa situação em que houve instrução (que é meio de impugnação legalmente previsto como reação às nulidades da acusação) onde foi proferida decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos factos de que vinha acusado, decisão esta que foi confirmada pelo TRE.
A partir do momento em que a decisão instrutória se consolidou, a acusação deixou de ter autonomia, tudo se passando por reporte ao despacho de pronúncia e não de acusação, tendo o arguido sido absolvido não do crime por que vinha acusado, mas sim daquele por que vinha pronunciado.
Pelo exposto, somos a concluir que inexiste prévio reconhecimento judicial do erro invocado, o que, nos termos sobreditos constitui a omissão de pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional, que, de acordo com a jurisprudência citada e a que aderimos por entendermos que é a posição que melhor compagina os interesses em confronto, impede que se considere verificada a ilicitude.»
Em suma: não estão verificados os pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar, improcedendo o recurso.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 12.05.2022
Elisabete Valente
Cristina Dá Mesquita
José António Moita