Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1093/19.2T8EVR.E2
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: CONCORRÊNCIA DE CULPAS
CULPA DO LESADO
EQUIDADE
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - O acto do filho dos AA. – ao conduzir com uma elevada taxa de alcoolemia no sangue – foi uma das causas do agravamento do dano sofrido, isto sem olvidar que o condutor, não identificado, do veículo terceiro (aqui legalmente representado pelo R.), também foi responsável pelo evento danoso, desde logo porque foi ele que atropelou e arrastou cerca de 2 metros o filho dos AA., quando este estava prostrado na via após o despiste da sua viatura, após ter passado com o rodado por cima do corpo da vítima, fugindo e abandonando o local, sem prestar qualquer auxílio à vítima.
- Assim sendo – face ao enquadramento fáctico acima referido e visto o disposto no artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil – temos como equilibrado distribuir a culpa na produção do sinistro em análise nos presentes autos na proporção de 50% para o filho dos AA. e de 50% para o condutor, não identificado, do veículo terceiro (aqui representado pelo R.), pelo que, em consonância com o princípio consagrado no citado preceito legal – culpa do lesado – forçoso é concluir que a indemnização que vier a ser arbitrada aos AA. deverá ser reduzida em 50%.
- Com efeito, nas situações, como a dos autos, em que o responsável pelo atropelamento é desconhecido – atropelamento esse que foi causa da morte do filho dos AA. – opera o D.L. n.º 291/2007, de 21/8 (alterado pelo D.L. 153/2008, de 6/8), o qual estipula no seu artigo 47.º, n.º 1, que "(...) A reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação do seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo Garantia Automóvel (...)".
- É entendimento actual e maioritário na jurisprudência que a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496.º do Código Civil e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar, pelo que não pode, de todo em todo, ser meramente simbólica ou miserabilista.
- Assim, o valor total dos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. ascende ao montante global de € 100.000,00, sendo que o R. terá de pagar aos AA. 50% desse valor, ou seja, a quantia de € 50.000,00, em função da redução a operar atenta a contribuição da conduta do falecido (filho dos AA) – 50% – para a produção do sinistro (cfr. citado artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1093/19.2T8EVR.E2

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) e (…) intentaram a presente acção, sob a forma de processo comum, contra o Fundo de Garantia Automóvel (FGA), pedindo a condenação deste a pagar aos AA. a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima desde o acidente até à hora da sua morte, a quantia de € 80.000,00 pela perda do direito à vida e ainda a quantia de € 40.000,00 devida enquanto indemnização pelos danos morais sofridos pelos AA. com a morte do filho.
Alegaram, em síntese, que no dia 30/5/2015, cerca das 4H50 ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional 4, ao km 98,109 (cruzamento do …), em que foi interveniente o veículo ligeiro de mercadoria com a matrícula (…), conduzido por (…), filho dos AA. O referido condutor perdeu o controlo do mesmo, deixando o veículo invadir a via de trânsito contrária (Arraiolos/Montemor-o-Novo), passou a circular na berma, indo colidir com as árvores adjacentes à mesma, até que embateu com o tejadilho na cabine de espera de autocarros, tendo o condutor sido projectado para a via anteriormente mencionada e aí ficando. Após o despiste e a projecção do sinistrado para a via de trânsito foi este atropelado por um terceiro que ali circulava. Atentas as marcas de sangue no asfalto, bem como a posição final do corpo da vítima, a mesma foi atropelada, embatida e arrastada por dois metros, sendo que o veículo conduzido por aquele terceiro, após ter passado com o rodado do carro por cima do corpo da vítima, fugiu, abandonando o local do acidente sem prestar, nem providenciar o auxílio devido à vítima. Até à data não foi possível apurar a identidade do condutor que atropelou o (…), nem tão pouco a marca, cor, ou a matrícula do veículo em causa. Em virtude do atropelamento sofrido, (…) sofreu “múltiplas lesões crânio-encefálicas, cervicais, torácicas, abdominais e dos membros”. E, em consequência das lesões supra referidas, sofreu uma “hemorragia sub-dural maciça”, tendo sido esta a causa necessária da sua morte.
Devidamente citado para o efeito veio o R. apresentar a sua contestação, impugnando a factualidade relativa ao acidente e alegando que o filho dos AA. conduzia a viatura em causa completamente embriagado, com uma taxa de alcoolemia entre 1,86 g/l e 2,40 g/l de álcool no sangue, pelo que, com toda a probabilidade, o acidente que originou o despiste do veículo que conduzia se deveu à alta taxa de alcoolémia verificada, devendo o pedido indemnizatório ser bastante reduzido ou até mesmo excluído. Acresce que se desconhecem quais as lesões físicas que resultaram do despiste, e no qual o falecido foi projetado para fora do carro, e quais as lesões sofridas pelo atropelamento, sendo certo que o relatório de autopsia apenas refere hemorragia sub-dural maciça, consecutiva de acidente de viação. Além disso, os valores das indemnizações peticionadas pelos AA. são manifestamente exageradas. Conclui, assim, pela improcedência da acção, devendo o R. ser absolvido dos pedidos.
De seguida veio a ser proferido despacho saneador, que considerou a instância válida e regular.
Posteriormente, realizou-se a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que julgou improcedente, por não provada, a presente acção e, em consequência, absolveu o R. dos pedidos formulados pelos AA.

Inconformados com tal decisão dela apelaram os AA. para esta Relação que, por acórdão proferido em 24/9/2020, anulou a sentença recorrida, determinando a realização de várias diligências de prova e um novo julgamento.
Voltando os autos ao tribunal a quo aí foi realizado uma nova audiência de julgamento, em cumprimento do que havia sido determinado no aresto supra referido.
De seguida, veio a ser proferida pelo M.mo Juiz a quo uma nova sentença, a qual julgou parcialmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, condenou o R. a pagar aos AA. a quantia global de € 110.000,00, sendo € 50.000,00 pela perda do direito à vida, € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima e € 40.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. com a morte do filho.

Inconformado com esta decisão dela apelou, agora, o R., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo condenou, o Fundo de Garantia Automóvel a pagar aos Autores, a quantia global de € 110.000,00.
B) Salvo o devido respeito por opinião diversa, mas pela matéria dada como provada nos factos 1, 3, 5, 6, 9, 11, 13 e 14 estamos em crer que não foram apreciados todos os pressupostos essenciais ao apuramento da responsabilidade civil de cada um dos intervenientes no acidente.
C) Pois, não basta a conclusão de que a causa da morte tenha resultado do atropelamento, é essencial apurar em que circunstâncias ocorreu esse mesmo atropelamento.
D) E, por um lado, apreciada a conduta do falecido, que conduzia o seu veículo com uma taxa de álcool no sangue entre 1,86 g/l e 2,40 g/l (taxa criminal), despistou-se sozinho, invadiu a via de trânsito contrária, passou a circular na berma, colidiu com pelo menos duas árvores e foi embater no tejadilho da cabine dos autocarros e ainda foi projetado para a via, aí ficando. Sendo que muito provavelmente nem fizesse uso do cinto de segurança.
E) Por outro lado, temos a circunstância do condutor do veículo terceiro que se terá deparado com o corpo de (…) no meio da faixa de rodagem, à noite e numa estrada sem iluminação. Que, além de se desconhecer se aquele condutor teve noção de ter embatido num corpo, não poderá ser exigível a qualquer condutor que previsse esse acontecimento a muito menos que se lhe exija a destreza de poder evitar o atropelamento.
F) Pelo que, salvo o devido respeito, o Douto Tribunal a quo poderia e deveria ter aplicado o disposto no artigo 570.º do Código Civil, na medida em que o falecido contribuiu para aquele resultado, devendo o pedido indemnizatório ser excluído, absolvendo-se o FGA.
G) Ou, caso assim não se entenda, deveria ter sido aplicada uma redução significativa ao total indemnizatório, cuja parcela maior seria atribuível ao próprio falecido.
H) Por último, quanto ao montante de € 20.000,00 fixado a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima desde a hora do acidente e a hora da sua morte, cumpre salientar que o Douto Tribunal considerou terem decorrido mais do que 45 minutos de sofrimento, pois o acidente ocorre cerca das 4horas e 50 minutos e o alerta é dado cercas 5 horas.
I) Ora, desconhece-se a hora da morte e desconhece-se a hora em que o falecido terá sido atropelado pelo veículo terceiro, pois só a partir dessa hora e até à hora da sua morte é que poderá ser demandado o FGA, sendo que o primeiro acidente se dá por culpa exclusiva do falecido.
J) Mas, mesmo que o FGA fosse responsável por todo o tempo de sofrimento de (…), que não se poderá conceber, o valor sentenciado de € 20.000,00 é manifestamente exagerado, face á realidade jurisprudencial mais recente, devendo aquele valor ser reduzido para montante não superior a € 5.000,00.
K) A douta sentença recorrida, violou, assim, o disposto nos artigos 496.º e 570.º do Código Civil.
L) Termos em que, revogando-se a douta sentença recorrida, no âmbito delimitado pelo objeto do presente recurso, se fará, como sempre, Justiça.
Pelos AA. foram apresentadas contra-alegações de recurso, nas quais pugnam pela manutenção da sentença recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo R., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se a morte do filho dos AA. por atropelamento – após ter sido projectado directamente para a estrada onde circulava, em virtude do embate da viatura por si conduzida numa cabine de espera de autocarros – foi motivada pelas bebidas alcoólicas que ingeriu, apresentando o mesmo (quando da realização da autópsia) uma taxa de álcool no sangue entre 1,86 g/l e 2,40 g/l, pelo que o acidente que o vitimou só a ele é imputável e, por isso, o dever de indemnizar por parte da R. terá de ser excluído, ou reduzido significativamente, atribuindo-se ao falecido a exclusividade ou a maior parcela de culpa na produção do acidente – cfr. artigo 570.º do Código Civil.

Antes de nos pronunciarmos sobre a questão supra referida importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal a quo e que, de imediato, passamos a transcrever:
1 - No dia 30 de Maio de 2015, na Estrada Nacional 4, ao km 98,109 (cruzamento do …) ocorreu cerca das 4horas e 50minutos um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula (…).
2 - O veículo era conduzido por (…).
3 - O veículo circulava no sentido Montemor-o-Novo / Arraiolos e ao chegar ao km 98,109 o condutor perdeu o controlo do mesmo e invadiu a via de trânsito contrária e passou a circular na berma, indo colidir com as árvores adjacentes à mesma, até que embateu com o tejadilho na cabine de espera de autocarros.
4 - O veículo ficou imobilizado a ocupar parcialmente a via de trânsito no sentido Arraiolos / Montemor-o-Novo.
5 - O condutor foi projectado para a via aí ficando.
6 - Após o despiste e a projecção do condutor para a via de trânsito foi atropelado e arrastado cerca de 2 metros, por um terceiro que aí circulava.
7 - O veículo terceiro após ter passado com o rodado por cima do corpo da vítima fugiu abandonando o local, sem prestar auxílio à vítima.
8 - Até à data não foi possível apurar a identidade do condutor que atropelou o (…), nem a marca ou matrícula do veículo.
9 - O alerta do acidente foi dado cerca das 5 horas, por um condutor de nome (…) que ali circulava no sentido São Pedro da Gafanhoeira / Évora.
10 - Em consequência do acidente o (…) sofreu múltiplas lesões crânio-encefálicas, cervicais, toráxicas, abdominais e dos membros e hemorragia sub-dural maciça consecutiva a acidente de viação, atropelamento e arrastamento quando se encontrava caído na via, sendo esta a causa da sua morte.
11 - Aquando da chegada dos Bombeiros Voluntários de Arraiolos ao local cerca de 30 minutos após o despiste e posterior atropelamento, o (…) ainda se encontrava com vida, ainda que inanimado.
12 - No local foram-lhe prestados os primeiros socorros e transportado pelos Bombeiros com apoio da VMER para o Hospital do Espírito Santo, em Évora.
13 - Durante o trajecto para o hospital o (…) entrou em paragem cárdio-respiratória e apesar das manobras de reanimação efectuadas chegou já cadáver ao serviço de urgência do Hospital do Espírito Santo, em Évora.
14 - Os exames toxicológicos (álcool e psicotrópicos) efectuados acusaram um resultado positivo para o álcool num intervalo de segurança de 1,86 g/l e 2,40 g/l e negativo para substâncias psicotrópicas com recolha de sangue periférico e da cavidade cardíaca.
15 – (…) nasceu a 07.06.1985 e era filho dos ora Autores.
16 - À data do acidente o sinistrado trabalhava na Sociedade Agrícola (…) – Herdade da (…), onde exercia as funções de "Adegueiro" e auferia mensalmente cerca de € 1.000,00.
17 – (…) sempre viveu com os pais, prestando-lhes apoio, acompanhando os pais a consultas médicas, deslocações a bancos, às compras para a casa.
18 – (…) contribuía para as despesas da casa com cerca de € 250,00 mensais.
19 - A Autora após a morte do seu filho passou a ter regularmente pesadelos nocturnos, acordando a meio da noite.
20 - Os Autores passaram a sofrer de um estado de depressão, sentindo falta da sua boa disposição e dos seus afectos.

Analisando agora a questão suscitada pelo R. – saber se a indemnização a atribuir aos AA. pela morte do filho deverá ser excluída, ou significativamente reduzida, por culpa do lesado na produção do acidente (cfr. artigo 570.º do C.P.C.) – importa dizer a tal respeito que sustenta aquele que o sinistro apenas ocorreu em virtude do estado de alcoolemia em que se encontrava o falecido (filho dos AA.), ao conduzir o seu veículo com uma taxa de álcool no sangue que se apurou – no relatório de autópsia – estar situada, num intervalo de segurança, entre 1,86 g/l e 2,40 g/l (cfr. ponto 14 dos factos provados).
Ora, no caso da alcoolemia, embora se possa ter por adquirido que a ingestão de álcool, para além de certos limites (que são, ainda hoje, discutidos), afecta a capacidade de reacção e concentração, diminuindo os reflexos, é também do conhecimento geral que tais efeitos variam de indivíduo para indivíduo, de tal modo que determinada taxa de alcoolemia pode ser indiferente para uma pessoa, mas deixar outra em estado de notória perturbação.
Por isso, não é possível, apenas perante a prova de determinada taxa de álcool no sangue (a menos que seja tão elevada que não ofereça dúvidas sobre os necessários efeitos, como será, eventualmente, o caso de uma taxa entre 1,86 g/l e 2,40 g/l, verificada no caso dos autos) concluir-se desde logo pela necessária influência no comportamento ou forma de agir do respectivo portador, em termos de poder ter-se como certo (como facto notório, se quisermos) que, para o acidente em que teve intervenção e de que resultou a sua morte, contribuiu o seu estado de alcoolemia.
Porque é este o ensinamento da experiência, só casuisticamente se poderá retirar a referida conclusão, fazendo uso, se for caso disso, de presunção simples, natural, judicial, ou de experiência, que os artigos 349.º e 351.º do C.C. consentem, assente em que a condução com uma taxa de álcool no sangue elevada importa, normalmente, diminuição da aptidão para bem conduzir, com o consequente agravamento do risco de acidente.
Neste sentido, pode ver-se o Ac. do STJ de 1/7/2004, disponível in www.dgsi.pt, onde se afirma, a dado passo, que «o nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia na condução automóvel e o acidente, na perspectiva da condição consubstanciada nesse estado ser em abstracto, idónea para o efeito, apenas pode ser provado por via das regras da experiência e dedução lógica de determinados factos assentes, atentando para o efeito nas regras da experiência científica e comum».
E, a este propósito, veja-se ainda o Ac. da R.C. de 9/12/2003, também disponível in www.dgsi.pt, no qual é referido que «estando demonstrado que o condutor circulava com uma taxa significativa de álcool no sangue (1,51 g/l ), não pode deixar de se considerar, por ilação, nos termos dos artigos 349.° e 351.° do C.C., que tal factor contribuiu pelo menos para o acidente (…), sem que existam quaisquer outras razões que possam explicar o sucedido a não ser precisamente esse estado do seu condutor».
Ora, no caso em apreço, as circunstâncias em que concretamente se produziu o acidente parecem apontar no sentido de que o mesmo constitui uma típica consequência da ingestão de álcool.
Na verdade, regressando ao caso dos autos, diremos que a presença de álcool no sangue do falecido (filho dos AA.), no momento do acidente - tendo, na autópsia, acusado um resultado positivo para o álcool num intervalo de segurança de 1,86 g/l e 2,40 g/l (cfr. ponto 14 dos facto provados) – e a inexistência de qualquer motivo que explique as razões para que, sem mais, tivesse perdido o controlo do veículo por si conduzido, invadindo a via de trânsito contrária e passando a circular na berma, indo colidir com as árvores adjacentes à mesma, embatendo com o tejadilho na cabine de espera de autocarros, tendo o veículo ficado imobilizado a ocupar parcialmente a via de trânsito no sentido Arraiolos / Montemor-o-Novo e sendo o condutor projectado para a via, aí ficando (cfr. pontos 3, 4 e 5 dos factos provados), impõe necessariamente (por presunção judicial) que se possa concluir pela existência de um nexo de causalidade adequada entre a ingestão de álcool pelo falecido e o despiste da viatura.
De facto, não foram apurados quaisquer factos, quer humanos, quer naturais, que permitam cogitar outra explicação para tal despiste que não seja a de que o falecido tinha as suas capacidades de atenção/reacção enfraquecidas pelo álcool que havia ingerido, o qual motivou que o mesmo apresentasse no momento do acidente uma elevada taxa de alcoolemia no sangue – entre 1,86 g/l e 2,40 g/l.
Por outro lado, após o despiste e a projecção do condutor para a via de trânsito foi atropelado e arrastado cerca de 2 metros, por um terceiro que aí circulava, sendo que o veículo terceiro após ter passado com o rodado por cima do corpo da vítima fugiu abandonando o local, sem prestar auxílio à vítima, não tendo sido possível, até à data, apurar a identidade do condutor que atropelou o filho dos AA., nem a marca ou matrícula do veículo (cfr. pontos 6, 7 e 8 dos factos provados).
Acresce que, em consequência do acidente, o filho dos AA. sofreu múltiplas lesões crânio-encefálicas, cervicais, toráxicas, abdominais e dos membros e hemorragia sub-dural maciça consecutiva a acidente de viação, atropelamento e arrastamento quando se encontrava caído na via, sendo esta a causa da sua morte (cfr. ponto 10 dos factos provados).
Ora, não obstante a morte do filho dos AA. tenha resultado do atropelamento de que foi vítima quando foi projectado e cuspido para a via, não restam dúvidas que a elevada taxa de alcoolemia com que conduzia o seu veículo (entre 1,86 g/l e 2,40 g/l), contribuíram, indubitavelmente, para o despiste do mesmo, com as graves e nefastas consequências que daí advieram.
A este propósito refere Sinde Monteiro que, «de acordo com conhecimentos científicos seguros, a partir de uma TAS de 1,0% g/l (arredondada por razões de segurança para 1,1% g/l) existe uma “quase certeza” de que qualquer condutor, mesmo dotado de particulares capacidades para a condução ou tolerância ao álcool, não está em condições de dominar suficientemente o seu veículo nas modernas situações de tráfico». Efectivamente, «as variações da capacidade de resistência ou tolerância de pessoa para pessoa situam-se abaixo daquele nível» – cfr. Cadernos de Direito Privado, n.º 2, Abril/Junho 2003, págs. 40 e segs.
Na verdade, forçoso é concluir que a elevada taxa de alcoolemia que o filho dos AA. acusou (atento o teor do relatório de autópsia) reduziram-lhe as capacidades de percepção do espaço físico e de avaliação das distâncias, causando-lhe lentidão na sua capacidade de reacção e perturbando-lhe os reflexos e a coordenação motora, pelo que não terá deixado de contribuir, sem margem para quaisquer dúvidas, para que o acidente em causa viesse a ocorrer, com as trágicas consequências que, como vimos, daí resultaram…
Considera-se, deste modo, que o acto do filho dos AA. – ao conduzir com uma elevada taxa de alcoolemia no sangue – foi uma das causas do agravamento do dano sofrido, isto sem olvidar que o condutor, não identificado, do veículo terceiro (aqui legalmente representado pelo R.), também foi responsável pelo evento danoso, desde logo porque foi ele que atropelou e arrastou cerca de 2 metros o filho dos AA., quando este estava prostrado na via após o despiste da sua viatura, após ter passado com o rodado por cima do corpo da vítima, fugindo e abandonando o local, sem prestar qualquer auxílio à vítima.
Todavia, neste cenário, o juízo de censura em que se traduz a culpa tem de dirigir-se nuclearmente à forma negligente e descuidada como um e outro dos intervenientes no acidente se comportaram, pelo que será justo penalizar ambos em partes iguais (50% de culpa para cada um deles).
Assim sendo – face ao enquadramento fáctico acima referido e visto o disposto no artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil – temos como equilibrado distribuir a culpa na produção do sinistro em análise nos presentes autos na proporção de 50% para o filho dos AA. e de 50% para o condutor, não identificado, do veículo terceiro, aqui representado pelo R., pelo que, em consonância com o principio consagrado no citado preceito legal – culpa do lesado – forçoso é concluir que a indemnização que vier a ser arbitrada aos AA. deverá ser reduzida em 50%.
Por outro lado, nas situações, como a dos autos, em que o responsável pelo atropelamento é desconhecido – atropelamento esse que foi causa da morte do filho dos AA. (cfr. ponto 10 dos factos provados e declarações prestadas em audiência de julgamento pelo perito médico que realizou a autópsia) – opera o D.L. 291/2007, de 21/8 (alterado pelo D.L. 153/2008, de 6/8), o qual estipula no seu artigo 47.º, n.º 1, que "(...) A reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação do seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo Garantia Automóvel (...)".
Ou seja, por outras palavras, dir-se-á que, atendendo à factualidade descrita e dada como provada, e não se apurando o responsável pelo acidente, responde o Fundo Garantia Automóvel (FGA) – aqui R. – nos mesmos termos em que responderia o próprio condutor e a companhia de seguros cuja apólice cobrisse o veículo que atropelou o filho dos AA.
Por outro lado, quanto aos danos não patrimoniais aqui peticionados pelos AA. contra o R. temos os seguintes valores:
a) € 80.000,00 pela perda do direito à vida;
b) € 40.000,00 devidos enquanto indemnização pelos danos sofridos pelos AA. com a morte do filho; e
c) € 30.000,00 a título de danos sofridos pela vítima desde o acidente até à hora da sua morte.
Ora, a tal propósito, importa ter presente que, relativamente aos danos não patrimoniais propriamente ditos, a obrigação de indemnização decorre, neste âmbito, do estipulado no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, o qual estabelece que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
No caso dos autos é pacífico que, pela sua gravidade, os danos sofridos pelos AA., merecem ser indemnizados, estando apenas em causa o quantum indemnizatório fixado na sentença a este título.
Ora, estabelece o n.º 3 do citado artigo 496.º que “o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º”. Isto é, a indemnização por danos não patrimoniais, deve ser fixada de forma equilibrada e ponderada, atendendo em qualquer caso (quer haja dolo ou mera culpa do lesante) ao grau de culpabilidade do ofensor; à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso, como por exemplo, o valor atual da moeda.
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, o montante da indemnização «deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas de criteriosa ponderação da realidade da vida» – cfr. Cód. Civil Anotado, vol. I., 3ª ed., pág. 474.
A indemnização por danos não patrimoniais é, mais propriamente, uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos, e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e nessa exacta medida, irreparáveis) é uma reparação indirecta, comandada por um juízo equitativo que deve atender às circunstâncias mencionadas no artigo 494.º” – cfr. Ac. do STJ de 14/9/2010, também disponível in www.dgsi.pt.
Este recurso à equidade não afasta, porém, «a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso» – cfr. Ac. do STJ de 3/2/2011, também disponível in www.dgsi.pt.
Na verdade, como em todas as coisas, na fixação de tais danos, deve imperar o bom senso, sem perder de vista os dados objectivos em que se apoia o juízo de equidade, como sejam a gravidade objectiva das lesões e sua extensão, o tempo de recuperação das mesmas e eventuais sequelas, os sinais externos de sofrimento, etc.
Daí que é entendimento actual e maioritário na jurisprudência que a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496.º do Código Civil e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar, pelo que não pode, de todo em todo, ser meramente simbólica ou miserabilista – cfr., nesse sentido, entre outros, os Acórdãos do S.T.J. de 16/12/93 e de 8/6/99, in CJSTJ, Ano I, Tomo 3º, página 183 e BMJ 488, página 323, respectivamente e ainda o Acórdão do STJ de 19/4/2012, disponível in www.dgsi.pt. – sublinhado nosso.
No mesmo sentido jurisprudencial podem ver-se ainda os Acórdãos do STJ de 27/1/2005, 8/3/2005 e 3/3/2009, todos disponíveis in www.dgsi.pt, onde foram fixados valores de € 100.00,00 e € 150.000,00 para tais danos.

Voltando agora ao caso em apreço (e a propósito dos referidos danos não patrimoniais) ficou provado nos autos que:
- Em consequência do acidente o (…) sofreu múltiplas lesões crânio-encefálicas, cervicais, toráxicas, abdominais e dos membros e hemorragia sub-dural maciça consecutiva a acidente de viação, atropelamento e arrastamento quando se encontrava caído na via, sendo esta a causa da sua morte.
- Aquando da chegada dos Bombeiros Voluntários de Arraiolos ao local cerca de 30 minutos após o despiste e posterior atropelamento, o (…) ainda se encontrava com vida ainda que inanimado.
- No local foram-lhe prestados os primeiros socorros e transportado pelos Bombeiros com apoio da VMER para o Hospital do Espírito Santo, em Évora.
- Durante o trajecto para o hospital o (…) entrou em paragem cárdio-respiratória e apesar das manobras de reanimação efectuadas chegou já cadáver ao serviço de urgência do Hospital do Espírito Santo, em Évora.
- (…) nasceu a 07.06.1985 e era filho dos ora Autores.
- À data do acidente o sinistrado trabalhava na Sociedade Agrícola (…) – Herdade da (…), onde exercia as funções de "Adegueiro" e auferia mensalmente cerca de € 1.000,00.
- (…) sempre viveu com os pais, prestando-lhes apoio, acompanhando os pais a consultas médicas, deslocações a bancos, às compras para a casa.
- (…) contribuía para as despesas da casa com cerca de € 250,00 mensais.
- A Autora após a morte do seu filho passou a ter regularmente pesadelos nocturnos, acordando a meio da noite.
- Os Autores passaram a sofrer de um estado de depressão, sentindo falta da sua boa disposição e dos seus afectos.
Assim sendo, no que tange ao dano morte sofrido pela vítima que faleceu no acidente dos autos, considerando a idade dela (29 anos) e toda a esperança de vida que tinha pela frente afigura-se como justa e adequada a indemnização, no valor de € 50.000,00, fixada na 1ª instância.
Por outro lado, os AA. sabem o que aconteceu com o seu filho, e o seu trágico desaparecimento, o que lhes causa depressão, sofrimento, tristeza, dor, angústia, desgosto e abalo. Em especial, a perda de um filho com 29 anos de idade é um acontecimento deveras traumático na vida dos seus progenitores – in casu, os AA. – que lhes provoca, seguramente, um enorme sofrimento ao “acordar” para essa dura realidade na sequência do acidente e não deixará de os marcar negativamente durante o resto da vida. Por essa perda e esse sofrimento, afigura-se como equilibrada a indemnização fixada pelo tribunal a quo, no montante de € 40.000,00.
Finalmente, apurou-se ainda que a vítima mortal do acidente dos autos se apercebeu do desenrolar do acidente e do seu atropelamento, bem como das suas nefastas consequências, tendo sofrido muitas dores pelas graves lesões sofridas antes da sua morte. Tratou-se, contudo, de sensações que duraram cerca de 30 a 45 minutos, razão pela qual o montante que os AA. peticionaram e que veio a ser fixado na sentença recorrida, a este título, afigura-se-nos algo exagerado, pelo que entendemos como justo e adequado fixar tal indemnização no valor de € 10.000,00.
Temos, assim, que o valor total dos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. ascende ao montante global de € 100.000,00, sendo que o R. terá de pagar aos AA. 50% desse valor, ou seja, a quantia de € 50.000,00, em função da redução a operar atenta a contribuição da conduta do falecido (filho dos AA.) – 50% – para a produção do sinistro (cfr. citado artigo 570.º, n.º 1, do C.C.).
Nestes termos, forçoso é concluir que a sentença recorrida não se poderá manter in totum, revogando-se a mesma parcialmente e, em consequência, condena-se o R. a pagar aos AA. uma indemnização, a título de danos não patrimoniais por estes sofridos, no valor total de € 50.000,00.
***
Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação interposto pelo R. e, em consequência, revoga-se parcialmente a sentença recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas em ambas as instâncias pelo R./apelante e pelos AA./apelados, na proporção do respectivo decaimento (sem prejuízo do apoio judiciário de que os AA. são beneficiários).
Évora, 23 de Setembro de 2021
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

__________________________________________________
[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, n.ºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, pp. 286 e 299).