Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1172/13.0T2STC-D.E1
Relator: ABRANTES MENDES
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS LABORAIS
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Quando a lei diz que o privilégio imobiliário incide sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, está a referir-se à ligação funcional do trabalhador a determinado estabelecimento ou unidade produtiva e não propriamente à localização física do seu posto de trabalho.
O legislador teve em mente, não um concreto ou individualizado local de trabalho, mas os imóveis em que esteja implantado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade, independentemente de essa actividade ter sido aí desenvolvida ou no exterior.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1172/13.0T2STC-D.E1

Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

No apenso de reclamação de créditos aos autos de insolvência de (…) – Cooperativa de Consumo CRL, pendentes na instância central, Secção de Comércio da Comarca de Setúbal, vieram os credores reclamantes (…) e outros (fls. 599 e ss) e (…) e outros (fls. 621 e ss), interpor recurso da sentença proferida de fls. 550 a 578 na qual se procedeu ao reconhecimento e graduação dos créditos oportunamente reclamados pelos credores da Cooperativa acima referida, já declarada insolvente.
Sustentam os recorrentes, em síntese, nas conclusões das doutas alegações apresentadas:
a) Na lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelo Senhor Administrador de insolvência este reconheceu e graduou os créditos laborais de todos os trabalhadores da insolvente como créditos privilegiados imobiliários especiais.
b) Os trabalhadores reclamantes devem gozar de privilégio relativamente a todos os imóveis integrantes do património da insolvente afectos à sua actividade empresarial e não apenas sobre um prédio específico onde trabalharam (art. 333.º n. 1 al.b) do C.Trabalho) como, aliás, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães (ac. 2534/09.2)e o Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 18.12.2013, Proc. 2805/11.8.
c) O STJ, por acórdãos de 10.05.2011 e 13.09.2011 decidiu também no mesmo sentido, considerando para o efeito o exercício de funções dos trabalhadores no complexo de edifícios constitutivos do estabelecimento industrial da falida
d) A insolvente (…) exercia a sua actividade comercial em quatro lojas, sitas em (…), (…), (…) e (…), sendo que as lojas de (…), (…) e (…) funcionavam como filiais da loja de (…).
e) Apesar de os recorrentes, enquanto trabalhadores da insolvente terem prestado serviço na loja de (…), todos eles deverão ter os respectivos créditos graduados como créditos privilegiados imobiliários especiais, incidindo nos quatro imóveis da insolvente.
f) A decisão recorrida, tendo considerado que aqueles credores, incluindo os recorrentes apenas gozam de privilégio mobiliário fez incorrecta interpretação do artigo 333.º do Código do Trabalho, devendo, em consequência, ser anulada e considerados os créditos dos trabalhadores recorrentes gozando de privilégio imobiliário especial.

Nas contra alegações oferecidas pelo credor (…) BANCO e pelos credores (…) e outros (fls. 648 e ss e fls. 675 e ss) foi sustentada a bondade da decisão recorrida.
*
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelos recorrentes (arts. 684.º n.º 3, 690.º n.º 3 e 660.º n.º 2, todos do Código de Processo Civil), da leitura das doutas alegações das apelantes resulta que a questão essencial a dirimir prende-se com a interpretação a conferir ao disposto no art. 333.º do Código de Trabalho, para efeitos da natureza do privilégio creditório reconhecido aos créditos dos trabalhadores da insolvente, agora recorrentes. Mas vejamos a factualidade dada como provada:
A.
Está inscrito a favor da Insolvente o direito de propriedade sobre os seguinte imóveis:
a) Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Santiago do Cacém sob a ficha (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…) da freguesia de (…), indicada como verba n.º 157 no auto de apreensão de fls. 3 do apenso B aos presentes autos;
b) Fracção autónoma designada pela letra “A” descrita na Conservatória do Registo Predial de Sines sob a ficha (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…), indicada como verba n.º 158 no auto de apreensão de fls. 3 do apenso B aos presentes autos;
c) Fracção autónoma designada pela letra “B” descrita na Conservatória do Registo Predial de Sines sob a ficha (…), letra A, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…), indicada como verba n.º 159 no auto de apreensão de fls. 3 do apenso B aos presentes autos;
d) Fracção autónoma designada pela letra “C” descrita na Conservatória do Registo Predial de Sines sob a ficha (…), letra B e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) da freguesia de (…), indicada como verba n.º 160 no auto de apreensão de fls. 3 do apenso B aos presentes autos.
B.

Os imóveis descritos nas verbas 157 a 158 do auto de apreensão de bens estavam afectos à actividade comercial da insolvente.

C.

A insolvente procedia ao arrendamento para fins habitacionais das verbas descritas sob os números 159 e 160.

D.

A insolvente usufruía de mais dois imóveis afectos à sua actividade: um em (…) e outro em (…), onde funcionavam dois estabelecimentos.

E.

Cessaram entre 06.06.2013 e 07.08.2013 os contratos de trabalho celebrados entre a insolvente e os seguintes trabalhadores:

a. (…);

b. (…);

c. (…);

d. (…);

e. (…).

F.

Exerciam funções no estabelecimento comercial explorado pela insolvente em (…) os seguintes trabalhadores:

- (…);

- (…);

- (…);

- (…);

- (…);

- (…);

- (…).

G.

Exerciam funções no estabelecimento comercial referido em A. b) os seguintes trabalhadores:
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…).
H.
Exerciam funções no estabelecimento comercial explorado pela insolvente em (…) os seguintes trabalhadores:
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…).
I.
Exerciam funções no estabelecimento comercial referido em A. a) os seguintes trabalhadores:
- (…), esta previamente à cessação do contrato de trabalho em momento anterior à declaração de insolvência;
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…);
- (…), esta previamente à cessação do contrato de trabalho em momento anterior à declaração de insolvência;
- (…);
- (…);
- (…);
- (…).
J.
(…) exercia as suas funções no estabelecimento comercial referido em A. b).
K.

(…) e (…) exerceram, até 12 de Dezembro de 2013, funções no estabelecimento da insolvente sito em (…), após o que exerceram funções cerca de dois dias no estabelecimento de (…) e a partir de 15 de Dezembro até 24 de Janeiro de 2014 (data do encerramento do estabelecimento de …) tendo exercido as suas funções no estabelecimento referido em A. b).


*
Mantendo-se válidos os pressupostos formais da instância, cumpre decidir:
Estando em discussão o sentido interpretativo a conferir ao que dispõe o art. 333.º do Código do Trabalho, vejamos o que se consigna em tal preceito legal:

“1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.”

Como muito linearmente aponta o (…) BANCO nas contra alegações oferecidas, a questão a conferir incide sobre a extensão interpretativa da agora mencionada alínea b), isto é, saber se o privilégio existe nem função do imóvel onde o trabalhador exerce a sua actividade ou se abrange todos os imóveis onde a entidade empregadora desenvolve a sua actividade.

Com o respeito devido, a questão a resolver não se deverá processar apenas nos moldes interpretativos sustentados na douta sentença recorrida, antes devendo a problemática partir da natureza do estabelecimento comercial da falida, entendido de forma una e indivisível e não como mero somatório das várias unidades que o compõem. Em nossa opinião, o referido privilégio imobiliário especial deve abranger os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador exercia a sua actividade profissional, exigindo-se uma conexão entre esta actividade e o prédio onde a mesma era exercida. Tal conexão, porém, exige e pressupõe que o imóvel, qualquer que seja, faça parte integrante da empresa e de forma estável, em perfeita sintonia com a própria noção de empresa, ou seja, unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma actividade de produção para a troca, donde ressalta, no dizer do Prof. Pereira de Almeida, ". . . a conjugação de factores de produção – pessoas e bens –, o exercício de actividades económicas nos diversos sectores – primário, secundário e terciário –, e a existência de um complexo organizacional estável" – Sociedades Comerciais, 3.ª ed., pg.19. Daí que, neste contexto interpretativo, não tenhamos dúvidas em perfilhar o entendimento sustentado no Ac. STJ de 13.11.2014, Proc. 1444/08.5, em que foi relator o ilustre Conselheiro Pinto de Almeida, onde, de forma exemplar, se sublinha (para além de vária jurisprudência citada), que “a citada conexão entre a actividade profissional do trabalhador e os imóveis do seu empregador deve ser entendida em termos funcionais e não naturalísticos. Isto é, quando a lei diz que o privilégio imobiliário incide sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade está a referir-se à ligação funcional do trabalhador a determinado estabelecimento ou unidade produtiva e não propriamente à localização física do seu posto de trabalho. O legislador teve em mente, não um concreto ou individualizado local de trabalho, mas os imóveis em que esteja implantado o estabelecimento para o qual o trabalhador prestou a sua actividade, independentemente de essa actividade ter sido aí desenvolvida ou no exterior".

Naturalmente que ao trabalhador/reclamante de um crédito se exige, nos termos do disposto no art. 342.º, n.º 1, Código Civil, a alegação e prova não só da sua qualidade de trabalhador da entidade insolvente como também do facto de prestar a sua actividade laboral num dos imóveis da entidade patronal.
Cumprido, no caso concreto, um tal ónus por parte dos trabalhadores ora recorrentes, naturalmente que, dentro do quadro conceptual agora defendido, merece provimento o recurso interposto que, além do mais, tem a virtude de obstaculizar a tratamentos diferenciados a trabalhadores da mesma empresa, nalguns casos com o mesmo tipo de funções exercidas (art. 13.º da Constituição da República).
Impõe-se, assim, a revogação da sentença proferida, devendo o Tribunal recorrido, face à orientação agora afirmada, proceder a nova decisão de graduação de créditos como meio de assegurar o equilíbrio e igualdade dos credores reclamantes anteriormente acolhidos na decisão ora recorrida.
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar as apelações procedentes, determinando a baixa dos autos à 1.ª instância para o efeito atrás consignado.
Custas pela massa insolvente.
Notifique e Registe.

Évora, 26 de Março de 2015

Abrantes Mendes

Mata Ribeiro

Sílvio Sousa