Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1624/14.4T8SLV-A.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: PENHORA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
BENS IMPENHORÁVEIS
DIREITO DE HABITAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Uma habitação não é um instrumento de tratamento de um doente; como tal, não goza de impenhorabilidade processual, por motivo de humanidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

A oposição à execução, para pagamento de quantia certa, e à penhora efetuada, deduzida por BB, em que são requeridos/exequentes CC, DD e EE, foi, liminarmente, indeferida, “(…) nos termos dos artigos 732º, nº 1, al.s b) e c) e art. 785º ambos do Código do Processo Civil, dada a sua inadmissibilidade legal e manifesta improcedência (…)”.

Inconformado com o decidido, apelou o dito opoente, com as seguintes conclusões[1]:


- O recorrente é doente cardíaco, foi sujeito a intervenção cirúrgica à coluna, tem problemas de próstata e ao nível dos joelhos e ombros;


- O prédio penhorado - prédio misto, sito na …, freguesia de …, concelho de Lagos, composto de parte urbana, destinada a habitação, e parte rústica, inscrito na matriz urbana sob o nº … e sob o nº … da secção 1D, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº …/freguesia de … - onde o recorrente reside, “ (…) é um instrumento indispensável ao seu tratamento e essencial para a sua subsistência física e psíquica”;


- “O recorrente não tem outro sítio onde residir, nem condições económicas para diligenciar pela obtenção de outra residência onde possa tratar-se;


- Assim, “(….) é um bem absoluta ou totalmente impenhorável, nos termos do artigo 736º alínea f) do CPC”;


- “A permitir-se a penhora e consequente venda do imóvel, põe-se em risco a vida e integridade física do Recorrente que são direitos fundamentais, previstos nos artigos 24º. e 25º. da Constituição da República Portuguesa”;


- “Colidindo direitos de espécies diferentes, como é aqui o caso, deve prevalecer o que se considere superior, sendo claro que o direito à vida e à integridade física do Recorrente prevalecem sobre o direito económico dos credores”;


- A decisão impugnada, ao indeferir liminarmente as oposições, viola o artigo 736º, f) do Código de Processo Civil e 335º., nº 2 do Código Civil.


- Deve a mesma ser revogada, “(…) prosseguindo as oposições, avançando-se para a produção de prova (…)”.


Contra-alegaram os recorridos, pugnando pela manutenção decidido.


O recurso tem por objeto a seguinte questão: saber se o imóvel penhorado é ou não absoluta ou totalmente impenhorável[2].



Foram colhidos os vistos legais.




Fundamentação


A- Decisão impugnada


“ (…)


Acresce que inexiste, igualmente, qualquer fundamento para considerar a penhora do imóvel propriedade do executado ilegal.


Isto porquanto a alegada situação de doença do embargante e ou dos seus animais de estimação não permite concluir que tenham sido penhorados bens pertencentes ao próprio executado que não deviam ser atingidos pela diligência.


A casa de habitação do executado não é, claramente, um bem absolutamente impenhorável com referência ao art. 736º., al. f) do Cod. Proc. Civ. Pois que não se trata de um objeto indispensável a um deficiente ou tratamento de um doente, isto ainda que o seu habitante esteja doente (ou bem assim os seus animais de estimação), resultando tal conclusão de uma leitura enviesada ou deturpada do mencionado normativo.


Acresce que quem é declarado responsável pela prática de um dano (do qual resultou a morte de uma pessoa), não pode vir invocar que o pagamento da indemnização devida aos lesados é algo menor porque coloca em causa a sua integridade física e vida. Já que tal argumentação é desprovida, não só de sensatez, mas também de total sustentação jurídica, incluindo, no plano do direito constitucional, pois que inexiste qualquer conflito entre “direitos, liberdades e garantias”, que cumpra ponderar.


(…)”


B - O direito/doutrina/jurisprudência


- O direito de ação executiva “(…) é um direito de carácter público porque se dirige e refere à atividade de órgãos do Estado, e não um direito de caráter privado, tendo em vista a conduta de um particular; é, em suma, um direito contra o Estado ou para com o Estado, representado nos órgãos executivos e não um direito contra o devedor”[3];


- O credor, desde que munido de título executivo, “(…) tem o direito ou o poder de mover a ação executiva, o que significa que os órgãos do Estado, incumbidos de exercer a atividade executiva, são obrigados a praticar os atos necessários, segundo a lei, para dar satisfação ao exequente, uma vez que este dê o impulso necessário”[4];


- “O título executivo constitui pressuposto de carácter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor”[5]; ou seja: “o título executivo autoriza a execução, porque atesta ou certifica a existência do direito do exequente”, criando, por isso, a ação executiva - “ o título tem, quanto a ela, eficácia constitutiva”[6];


- “Pela penhora o direito do executado é esvaziado dos poderes de gozo que o integram, os quais passam para o tribunal, que, em regra os exercerá através de um depositário[7];


- Em princípio, estão sujeitos à penhora todos os bens do devedor suscetíveis de penhora[8];


- Os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis “(…) são aqueles que em nenhuma circunstância pode ser penhorados”; assim, não podem ser penhorados bens que não possam ser transmitidos em execução, nem os que estão isentos, por lei especial (impenhorabilidade substancial); não são, também, suscetíveis de penhora, por motivos de humanidade, os instrumentos indispensáveis aos deficientes e os objetos destinados ao tratamento de doentes (impenhorabilidade processual) [9];


- “Meio de oposição privativo do executado (…) constitui o incidente de oposição à penhora. Trata-se, desta vez, de casos de impenhorabilidade objetiva, visto ser pressuposto que os bens penhorados pertencem ao executado. Três são as situações que (…) podem fundar a oposição do executado à penhora: a) Inadmissibilidade da penhora dos bens (do executado) concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada; b) Imediata penhora de bens (do executado) que só subsidiariamente respondam pela divida exequenda; c) Incidência da penhora sobre bens (do executado) que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência” [10];


- “Quanto às alíneas a) e c) visam cobrir todos os outros casos de bens objetivamente impenhoráveis. Mas, enquanto a al. c) se reporta às causas de impenhorabilidade, especifica ou derivada dum regime de indisponibilidade objetiva, resultantes de direito substantivo (…), a al. a) visa as causas de impenhorabilidade enunciadas na lei processual, derivem delas situações de impenhorabilidade absoluta e total, de impenhorabilidade relativa ou de impenhorabilidade parcial (…)”[11];


“II- A casa de morada de família não consta atualmente do elenco dos bens impenhoráveis do art. 822º. do CPC e deve ter-se como um bem sujeito a penhora de acordo com a regra enunciada no art. 821 do mesmo diploma. III - O direito à habitação do cidadão e família, consagrado no art. 65º. da CRP, não se confunde com o direito a ter casa própria, sendo que o legislador ordinário, não obstante estar ciente da sua importância, não estabeleceu, em homenagem àquele direito, a impenhorabilidade da casa de morada de família, mas apenas algumas defesas (art.834º., nº 2 do CPC e atual art. 751º.,nº 3, als. a) e b), do NCPC (2013))” [12].





C - Aplicação do direito aos factos


No presente recurso, questiona-se, apenas, a legalidade da penhora do imóvel, por razões processuais.


O executado/opoente, ora recorrente, BB alicerçou a oposição à penhora do imóvel apreendido, onde reside, na impenhorabilidade processual deste, por se tratar de “ (…) um instrumento indispensável ao seu tratamento e essencial para a sua subsistência física e psíquica”, atenta a circunstância de ser pessoa doente e não ter “(…) outro sítio onde residir, nem condições económicas para diligenciar pela obtenção de outra residência onde possa tratar-se”.


Acontece, porém, que uma habitação não é um instrumento de tratamento de um doente.


Não se verifica, assim, qualquer impenhorabilidade de índole processual, por motivo de humanidade.


Nada obsta, pois, que o Tribunal incumbido de exercer a atividade executiva consinta a agressão ao imóvel em causa do devedor BB, a fim de dar satisfação aos exequentes/credores CC, DD e EE.


Deste modo, não é de subscrever a pretensão do dito recorrente, veiculada através do recurso.


Em síntese[13]: uma habitação não é um instrumento de tratamento de um doente; como tal, não goza de impenhorabilidade processual, por motivo de humanidade.


Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter o despacho recorrido, na parte referente à rejeição da oposição à penhora.


Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.


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Évora, 12 de julho de 2018


Sílvio José Teixeira de Sousa


Manuel António do Carmo Bargado


Albertina Maria Gomes Pedroso

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[1] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das prolixas “conclusões” do recorrente.
[2] Apesar do recorrente requerer a admissão das “oposições apresentadas” (aposição à execução e à penhora), não indica, nas suas alegações e “conclusões”, qualquer referência aos fundamentos da requerida admissão da primeira das oposições.
[3] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Processo de Execução, vol. I, 3ª edição, pág. 16.
[4] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Processo de Execução, vol. I, 3ª edição, pág. 16.
[5] Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 87.
[6] Prof. Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. I, 3ª edição, págs. 95 e 108.
[7] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, pág. 264.
[8] Artigos 601º. do Código Civil e 735º., nº 1 do Código de Processo Civil.
[9] Artigo 736º., a) e f) do Código de Processo Civil e Frenando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 10ª edição, págs. 198 a 202.
[10] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, pág. 277, e artigo 784º., nº 1, a), b) e c) do Código de Processo Civil.
[11] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, pág. 278.
[12] Acórdão do STJ, de 5 de março de 2015 (processo nº 3762/12.9 TBCSC-B.L1.S1), in www.dgsi.pt..
[13] Artigo 713º., nº7 do Código de Processo Civil.