Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
344/21.8STR-B.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: CONHECIMENTO NO SANEADOR
PROVA DA VERDADE DOS FACTOS
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A sentença comporta um silogismo em que a premissa maior é a lei, a premissa menor corresponde aos factos apurados no caso concreto e a conclusão é a decisão. Num silogismo, as premissas são os juízos que precedem a conclusão e dos quais ela decorre como consequente necessário. No silogismo judiciário as premissas – ou juízos – são os fundamentos e a conclusão é a decisão propriamente dita, devendo esta inferir-se daqueles como seu corolário lógico.
2 – O conhecimento imediato do pedido em sede de despacho saneador apenas deve ocorrer se a questão for unicamente de direito, se puder ser já decidida com a necessária segurança e, sendo de direito e de facto, se o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias hipóteses plausíveis aplicáveis ao caso concreto.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 344/21.8STR-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Comércio de Santarém – J3
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
No presente apenso de reclamação de créditos relativamente à insolvência AA e BB, o reclamante CC veio interpor recurso da sentença proferida.
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A “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” havia igualmente interposto recurso, mas, na sequência da reforma da sentença, perdeu o interesse na referida pretensão recursória.
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AA e BB foram, por decisão transitada em julgado, declarados insolventes.
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Foi fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.
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Findo o prazo para a reclamação, em 18/05/2021, o Administrador da Insolvência juntou aos autos a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos nos termos do artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com a rectificação de 26/05/2021.
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No decurso do prazo previsto no n.º 1 do artigo 130.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas foi apresentada impugnação pela “Caixa Geral de Depósitos, SA” à lista de credores reconhecidos, na parte em que reconheceu ao credor CC um crédito garantido, por hipoteca, no montante de € 215.000,00.
Em benefício da sua tese, impugnou as letras e as assinaturas constantes do documento junto por esse credor, bem como contestou a exactidão da sua reprodução mecânica. Mais adianta que a escritura pública de confissão de dívida com hipoteca de 24/03/2011 é nula, por se tratar de negócio absolutamente simulado, não correspondendo à efectiva e real vontade dos seus declarantes a declaração de vontades nele constantes, não tendo igualmente ocorrido a transferência da quantia alegadamente mutuada para a esfera jurídica dos insolventes.
Por fim, afirmou que, ainda que assim não se entendesse, o mútuo seria nulo por falta de forma.
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O Administrador de Insolvência apresentou articulado em que disse que reconheceu o crédito face à reclamação apresentada e documentos a ela anexos, bem como às informações prestadas pelos insolventes e pelo credor em causa.
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O credor impugnado respondeu à impugnação nos termos que constam do requerimento de 22/11/2021, concluindo pela improcedência da impugnação.
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Por despacho de 07/01/2022, foram declarados reconhecidos e verificados todos os créditos constantes da lista junta pelo Administrador da Insolvência em 18/05/2021, com a rectificação de 26/05/2021, à excepção do crédito impugnado.
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Foi realizada tentativa de conciliação, não tendo sido possível alcançar qualquer acordo.
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Por despacho de 13/02/2022 a resposta à impugnação apresentada pelo credor CC não foi admitida, por extemporaneidade.
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Na parte que agora interessa, a sentença recorrida julgou totalmente procedente a impugnação apresentada pela credora “Caixa Geral de Depósitos, SA” e, consequentemente, excluiu da lista de créditos apresentada pelo Administrador de Insolvência em 18/05/2021, com a rectificação de 26/05/2021, o crédito de CC, no valor de € 215.000,00.
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«1. AA e BB foram, por decisão transitada em julgado, declarados insolventes nos presentes autos em 10-03-2021.
2. No prazo fixado para a reclamação de créditos, o aqui Recorrente apresentou a sua reclamação tendo o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência reconhecido, na lista provisória de créditos, um crédito no valor total de € 215.000,00 graduado como garantido.
3. A reclamação de créditos apresentada pelo aqui Recorrente funda-se num empréstimo celebrado entre o Recorrente e os Insolventes, através do qual este mutuou a quantia de € 215.000,00 através de vários empréstimos feitos entre 2003 e 2004 e foi devidamente acompanhada de cópia da aludida escritura de Confissão de Dívida, Hipoteca Unilateral e pela certidão do referido imóvel.
4. Para garantia do bom e integral pagamento do referido montante de € 215.000,00 e através de Escritura Pública de Confissão de Dívida, Hipoteca Unilateral, celebrada em 25 de Março de 2011 no Cartório Notarial ..., os Insolventes constituíram hipoteca a favor do aqui Recorrente sobre a fracção autónoma designada pela letra ..., correspondentes ao ... e ... andar para habitação e logradouro, do prédio urbano sito no Beco ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...49 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...44... referida hipoteca está registada pela AP ...97, de 31-03-2011.
5. Em 27-05-2021, em face da Lista de Créditos a que alude do artigo 129.º do CIRE, a credora Caixa Geral de Depósitos S.A., veio impugnar o crédito reconhecido ao aqui Recorrente, exclusivamente, e em suma, com as seguintes alegações:
- Desconhecer se a letra e assinatura constante da Escritura Pública de Confissão de Dívida, Hipoteca Unilateral pertence aos Insolventes;
- Estar em causa um negócio simulado;
- Não ter existido efectiva transferência de valores do Recorrente para os Insolventes;
- Alegada invalidade do contrato de mútuo;
6. O aqui Recorrente, por resposta apresentada em 22-11-2021, defendeu e provou, em suma, o seguinte:
- Ser amigo de longa data dos Insolventes;
- Que, perante as dificuldades que os Insolventes ultrapassavam, no ano de 2000, em consequência dos problemas financeiros de que padecida a Sociedade de que era Administrador o Insolvente Marido à data, a P... – Indústria e Comércio de Produtos Têxteis S.A. acedeu aos pedidos de dinheiro que o Insolvente marido lhe fez;
- Que a quantia reclamada – € 215.000,00 – foi transferida para contas bancárias dos Insolventes através de várias transferências bancárias ocorridas entre 2003 e 2004;
- O aqui Recorrente juntou ainda, na sua resposta à impugnação de créditos, comprovativos de transferências, de contas bancárias tituladas por si para contas tituladas pelos insolventes, no montante total de € 120.085,78;
- Acrescentou ainda o Recorrente que, perante as óbvias dificuldades dos Insolventes em devolver a quantia mutuada exigiu, ainda que com alguma crispação entre as partes, mas na tentativa de salvaguardar a sua posição, a constituição de uma garantia real tendente a garantir a quantia mutuada até então;
- Foi neste contexto que os Insolventes se confessaram devedores do aqui Recorrente por Escritura Pública de Confissão de Dívida, Hipoteca Unilateral, celebrada em 23 de Outubro de 2014 no Cartório Notarial ..., da quantia de € 215.000,00;
- E, para garantia do bom e integral pagamento do montante em dívida e pela escritura supra identificada, constituíram hipoteca a favor do aqui Recorrente sobre a fracção autónoma designada pela letra ..., correspondentes ao ... e ... andar para habitação e logradouro, do prédio urbano sito no Beco ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...49 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...44;
- O Recorrente deu ainda nota na sua resposta à impugnação que, antes da declaração de insolvência dos aqui Insolventes, havia já tentado, quando ficou claro que o incumprimento era inultrapassável, uma acção executiva tendente à recuperação do seu crédito – processo que correu termos no Tribunal da Comarca ..., ... – Instância Central – Secção de ..., com o número 3147/15...., onde logrou penhora o imóvel hipotecado, registada pela AP. ...52, de 2015/07/10;
7. O Recorrente respondeu cabalmente à impugnação apresentada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., circunstanciando o mútuo celebrado com os Insolventes, provando a transferência para estes de, pelo menos, € 120.085,78, com junção dos respectivos comprovativos.
8. O Administrador de Insolvência nomeado respondeu também à impugnação da Caixa Geral de Depósitos S.A. referindo ter recebido uma reclamação de créditos devidamente fundamentada indicando um crédito, a favor do reclamante, aqui Recorrente, de € 215.000,00, acrescentando ter confirmado todo o circunstancialismo com o próprio insolvente no âmbito da sua colaboração.
Isto posto,
9. Por sentença datada de 11 de Abril de 2022, o Tribunal a quo decidiu, em primeira linha, não admitir a resposta do Recorrente à impugnação do seu crédito apresentada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. por extemporânea.
10. No que à configuração jurídica do crédito do aqui Recorrente diz respeito – e tendo como sustento documental a Escritura Pública de Confissão de Dívida, Hipoteca Unilateral já aludida supra, bem assim como a certidão do imóvel em causa – considerou o Tribunal a quo que a escritura pública que serviu de base à reclamação do crédito do Recorrente não prova que o Recorrente/credor tenha entregado efetivamente aos insolventes as alegadas quantias mutuadas, nem a prova foi feita por outros meios.
11. Acrescentando que o reconhecimento da dívida não basta para a prova da existência do crédito atento o disposto no artigo 128.º do CIRE que exige que a documentação do crédito reclamado, acabando por julgar procedente a impugnação apresentada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. e consequentemente, excluir da lista de créditos reconhecidos o crédito de CC, no montante de € 215.000,00.
Porém, não pode o Recorrente, de forma alguma, concordar com este entendimento. Vejamos.
12. Ainda que estejamos em sede de conclusões, temos que, pela importância de contextualização que tem, transcrever um excerto do Acórdão datado de 14-04-2021 do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu que:
“O terceiro que pretenda ver destruídos os efeitos do negócio e da declaração confessória nele exarado terá, pelo menos, de alegar e provar que os factos por si impugnados, e que se mostram plenamente provados pelo documento autêntico ou pela confissão nele exarada, não são verdadeiros.
- Encontrando-se o credor reclamante munido de um documento autêntico a formalizar a confissão de dívida, o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu crédito fica satisfeito com a simples apresentação de tal documento, sendo ao credor impugnante que incumbe a alegação e prova de que não houve entrega efetiva da quantia mutuada.
13. Ora, a Impugnação apresentada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. é, em absoluto, desprovida de qualquer prova documental. Consubstanciando-se, apenas, numa série de alegações, sem qualquer concretização ou fundamentação de facto e/ou de direito.
14. Não cumprindo o ónus de prova imposto pelo n.º 1 do artigo 458.º do Código Civil.
15. Ao contrário da Reclamação de Créditos apresentada pelo Recorrente que se mostra documentalmente provada e circunstanciada.
16. O Tribunal a quo fundou a sua decisão numa mera alegação, totalmente despropositada, infundada e não provada, apresentada pela Caixa Geral de Depósitos S.A. que, ao contrário do que lhe cabia, nos termos do n.º 1 do artigo 458.º do Código Civil, em momento algum provou qualquer dos factos a que aludiu, em especial, que o Recorrente não emprestou o valor reconhecido aos aqui Insolventes.
17. Não tendo sido cumprido, pela Caixa Geral de Depósitos S.A., o ónus de prova que sobre ela impendia não podia o Tribunal a quo ter colocado em causa a relação jurídica subjacente à outorga da escritura de confissão de dívida com hipoteca em que se fundou a Reclamação de Créditos apresentada pelo aqui Recorrente, nos exactos termos do artigo 458.º do Código Civil.
18. Devendo, pelo exposto, ser a Sentença recorrida substituída por uma que reconheça o crédito do aqui Recorrente.
19. Mas, mesmo que assim não entendesse, não poderia o Tribunal, sem mais, excluir o crédito do aqui Recorrente da Lista de Créditos reconhecidos. Ao fazê-lo ficou em causa o fim último a prosseguir por todos os intervenientes: alcançar a verdade material!
Vejamos,
20. O Tribunal a quo considerou a resposta do aqui Recorrente à impugnação apresentada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. – onde constavam os comprovativos das transferências feitas por este para os Insolventes – extemporânea, não levando em consideração nenhum dos factos ali provados.
21. Ora, o dever de gestão processual previsto no artigo 6.º do Código de Processo Civil traduz-se num poder/dever de gestão processual e de flexibilização com o fim último da justa composição do litígio.
22. Este dever de gestão processual está intimamente relacionado com o princípio do inquisitório previsto no artigo 411.º do CPC que estabelece uma obrigação, ao Juiz, de “realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto a factos que lhe é lícito conhecer”.
23. Quando o Tribunal a quo foi confrontando com a impugnação apresentada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. – com a qual não é junta qualquer prova ou sequer alegado qualquer facto minimamente alicerçado numa realidade enquadrável à presente questão – deveria, sem mais, ter requerido produção de prova caso entendesse que a junta com a Reclamação de Créditos era insuficiente.
24. Produção de prova essa que, atentando aos fundamentos em que se baseia a Sentença recorrida, se bastava com os comprovativos de transferência de valores do Recorrente para os Insolventes, comprovativos esses juntos com a resposta que o tribunal a quo considerou extemporânea.
25. Tivesse essa prova sido requerida ao Recorrente, durante a instrução do processo, em corolário do princípio da gestão processual e do inquisitório a que se aludiu, prosseguindo a almejada verdade material, e não estaríamos agora a apresentar o presente recurso.
26. Ainda que a Reclamação de Créditos fosse suficiente para o Tribunal a quo decidir em sentido correcto, como resulta do já exposto, bastava, para alcançar a verdade material, respeitando o princípio da gestão processual e do inquisitório, que o tribunal tivesse requerido a junção do comprovativos de transferências do aqui Recorrente para os Insolventes, o que, porém, não fez.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, substituindo-se a Sentença a quo por douto acórdão que reconheça o crédito do aqui Recorrente.
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Não foi apresentada contra-motivação de recurso.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais por meios electrónicos.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito a apurar se o processo continha os elementos fácticos necessários a concluir que o crédito reclamado pelo recorrente deveria ter sido reconhecido e graduado.
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III – Factualidade com relevo para a justa decisão da causa:
1. Por escritura pública de 25/03/2011, denominada de “Confissão de dívida, Hipoteca Unilateral”, os insolventes declararam que se confessavam “devedores a CC (…) da importância de € 215.000,00 que dele receberam a título de vários empréstimos, sem juros, durante os anos de 2003 e 2004.
Que, para garantia do bom e integral pagamento do referido montante de € 215.000,00, constituem hipoteca a favor do referido CC sobre a fracção autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ... e ... andar para habitação e logradouro, do prédio urbano sito no Beco ..., ..., (…) descrito na Conservatória do Registo Predial ... na ficha ...49, (…) inscrito na matriz sob o artigo ...44 (…)”.
2. A referida hipoteca mostra-se registada a favor de CC mediante a AP ...97, de 31/03/2011.
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IV – Fundamentação:
No decurso do prazo previsto no n.º 1 do artigo 130.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a “Caixa Geral de Depósitos, SA” impugnou a lista de credores reconhecidos, na parte em que reconheceu ao credor CC um crédito garantido, por hipoteca, no montante de € 215.000,00.
Nessa sequência, o Administrador de Insolvência pronunciou-se nos termos avançados no relatório do presente acórdão e o credor impugnado respondeu à impugnação em causa, sustentando pela improcedência da impugnação.
Está em causa a hipotética celebração de um negócio de mútuo e da subsequente emissão de uma declaração confessória de dívida e constituição de uma hipoteca sobre um imóvel que se mostra registado a favor da massa insolvente.
Sem ter produzido qualquer prova, o Tribunal «a quo» sufragou o entendimento que «a escritura pública que serviu de base à reclamação do crédito não prova que o credor reclamante CC entregou efetivamente aos insolventes as alegadas quantias mutuadas, nem a prova foi feita por outros meios (juntos com a reclamação, considerando que a resposta à impugnação não foi admitida).
Não fazendo prova plena de que as declarações dela constantes são verdadeiras, ou seja, não fazendo prova plena da celebração dos contratos de empréstimo e das consequentes entregas pelo mutuante aos mutuários de uma quantia, a escritura pública está sujeita à livre convicção do juiz, e, portanto, às regras do ónus da prova.
Nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC, incumbe ao credor (mutuante) o ónus de prova da entrega das quantias aos insolventes, enquanto elemento constitutivo do contrato de mútuo (negócio real quoad constitutionem)».
Em contraponto, a parte recorrente convoca jurisprudência que defende a posição que «o terceiro que pretenda ver destruídos os efeitos do negócio e da declaração confessória nele exarado terá, pelo menos, de alegar e provar que os factos por si impugnados, e que se mostram plenamente provados pelo documento autêntico ou pela confissão nele exarada, não são verdadeiros[1] [2].
Estamos num domínio em que a prova do mútuo e da não restituição da quantia incumbe ao mutuante[3], podendo a documentação de suporte apresentada pelo impugnado servir para presumir que a dívida existe[4]. No polo oposto, cabe ao impugnante demonstrar que não houve entrega, total ou parcial, efectiva, da quantia mutuada e que estamos perante uma verdadeira simulação.
No entanto, a situação é controvertida e o Tribunal ad quem terá de admitir como possível a prevalência de uma ou outra tese. No entanto, tal decisão terá de estar sustentada em factos.
Como afiança Gabriel Catarino «toda a decisão judicial deflui ou é gerada numa causa que tem na sua origem uma situação factual a que, conceptualmente, corresponderá uma hipótese suposta numa norma»[5].
Nesta equação, a sentença comporta um silogismo em que a premissa maior é a lei, a premissa menor corresponde aos factos apurados no caso concreto e a conclusão é a decisão. Num silogismo, as premissas são os juízos que precedem a conclusão e dos quais ela decorre como consequente necessário. No silogismo judiciário as premissas – ou juízos – são os fundamentos e a conclusão é a decisão propriamente dita, devendo esta inferir-se daqueles como seu corolário lógico.
Aquilo que está em causa aquando da elaboração da sentença é convocar os factos pertinentes à justa decisão do litígio e não ficcionar a existência de um quadro factual não demonstrado. Dito isto, cabe ao juiz indicar, interpretar e aplicar os factos, os quais constituem o antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.
E da leitura da decisão não se encontra qualquer facto que permita suportar a conclusão contida na sentença recorrida de que «não resulta prova de que os valores reclamados foram transferidos do património do reclamante para o dos insolventes».
Os únicos factos apurados reportam-se a uma escritura pública de confissão de dívida (facto 1) e à constituição de uma hipoteca a favor do ora recorrente (facto 2), mas não resulta do acervo dos factos provados e não provados qualquer ponto de onde se possa concluir pela celebração ou não do negócio de mútuo subjacente.
Perscrutado o objecto da causa, em associação com a factualidade trazida aos autos pelas partes, verifica-se que existem questões problemáticas essenciais sobre a delimitação do hipotético empréstimo, do reconhecimento de dívida e da subsequente constituição de garantia imobiliária que não se encontram totalmente cristalizadas na fase de gestão inicial do processo e que, como decorrência, não forma transpostas para o elenco dos factos provados e não provados.
Como se constata das divergências sublinhadas nos articulados e aqui evidenciadas na peça de recurso, as dúvidas suscitadas quanto ao conteúdo das obrigações em causa são várias e não se encontram resolvidas. Por isso, a nosso ver, ainda que a final até pudesse ser pré-visionada uma solução idêntica (ou distinta) caso estivessem preenchidos os pressupostos fácticos de suporte, no plano jurídico a matéria em apreço não poderia ter sido decidida de imediato com a segurança exigida por lei.
O princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, constituindo um poder-dever que se impõe ao juiz com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio[6].
Na sua actual configuração, a actividade de instrução não se limita aos factos alegados pelas partes, podendo dela se extraírem factos instrumentais, segundo o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil e ainda factos complementares e concretizadores daqueles que hajam sido alegados pelas partes.
Dentro dos limites do objecto da causa, a instrução da causa não assim está limitada aos factos alegados pelas partes e o julgador deve considerar os factos instrumentais que surjam da discussão contraditória.
Movendo-se a parte requerente neste âmbito, a produção dos meios de prova não só pode, como deve, incidir não apenas sobre os factos essenciais que, directa e nuclearmente se reportem ao objecto do processo, entendido este tanto na perspectiva da acção como na da defesa, mas também sobre outros que, embora mediata ou indirectamente relacionados, são necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material[7].
Na verdade, inexistem elementos factuais para promover uma decisão conscienciosa e completa relativamente a todas as questões suscitadas. E, deste modo, não podia o Tribunal «a quo» ter proferido saneador-sentença nos exactos termos exarados.
Como é natural este Tribunal da Relação de Évora desconhece se são verídicas ou falsas estas alusões fácticas. Porém, as mesmas não foram integralmente escrutinadas pelo Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal «ad quem» não dispõe de elementos que viabilizem a alteração (ou ampliação) da matéria de facto agora assente, sob pena de, assim sendo, incorrer no mesmo vício de apreciação perfunctória sobre uma realidade processualmente incerta.
A decisão jurídica tomada pelo Juízo de Comércio de Santarém corresponde apenas a um juízo abstracto-hipotético sobre matérias que se encontram controvertidas e que não viabilizam a construção de um silogismo judiciário com um grau de certeza adequado aos fins do processo civil.
Em suma, existem matérias não decifradas factualmente a propósito do apuramento da natureza, da configuração e do conteúdo negocial envolvente que poderiam eventualmente alterar (ou não) o sentido decisório tomado, caso fosse iniciada a fase de produção de prova.
Como já se antecipou, o Tribunal não poderia decidir de imediato com a segurança exigida por lei, devendo os autos prosseguir para a fase de julgamento – com a adopção dos actos instrumentais que se mostrem necessários à realização do mesmo –, revogando-se assim o saneador-sentença.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, decidindo-se revogar a decisão recorrida, devendo ser realizado o julgamento da causa.
Custas a final, a cargo da parte vencida, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 15/09/2022
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário


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[1] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/04/2021, consultável em www.dgsi.pt.
[2] A este propósito, é ainda convocado um acórdão de apoio lavrado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 26/01/2016, disponibilizado em www.dgsi.pt, que assegura que «a declaração confessória proferida pelo insolvente e constante de tal documento, de que, na sequência do empréstimo, se considera devedor da quantia mutuada, é oponível aos demais credores do insolvente, dispensando o credor reclamante de apre sentar qualquer prova complementar da entrega das quantias mutuadas, pelo menos enquanto não for posta em causa a eficácia de tal confissão».
[3] Artigo 342.º (Ónus da prova)
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
[4] Artigo 458.º (Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida):
1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.
[5] Gabriel Catarino, Decisões Judiciais/Sentença. Aspectos da sua formação, A Reforma do Processo Civil, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, pág. 104.
[6] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, Coimbra, pág. 208.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13/07/2017, pesquisável em www.dgsi.pt.