Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
746/20.7T8LAG-A.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL DO TRABALHO
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Para aferir se determinada questão se insere no âmbito da competência dos tribunais do trabalho, importa analisar, antes de mais, se do pedido formulado e da factualidade concreta alegada pelo autor resulta uma questão emergente de trabalho subordinado, independentemente da designação dada ao contrato ou da sua qualificação como contrato de trabalho por parte do autor na ação.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 746/20.7T8LAG-A.E1 (2ª Secção Cível)



ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


No Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Juízo de Competência Genérica de Lagos), (…) instaurou contra (…) ação declarativa de condenação com vista ao pagamento da quantia € 8.067,50 acrescida de juros de mora desde a citação, invocando ter celebrado com o réu um contrato de mútuo verbal no âmbito do qual foi transferindo, mensalmente, várias importâncias para a conta bancária deste, o qual apesar de se ter comprometido a restituir-lhas, apenas o fez em parte, encontrando-se ainda em dívida o montante peticionado.
Citado, o réu veio contestar e para além de o fazer por impugnação, veio arguir as exceções da incompetência absoluta do tribunal e a ilegitimidade do autor. No que se refere à incompetência absoluta do tribunal salienta que a competência para julgar o caso deve ser do Tribunal de Trabalho, por as quantias que lhe foram pagas são adiantamentos salarias feitos pelo autor, enquanto administrador da empresa, (…) e Filhos, Lda., para a qual trabalha, devido ao facto de não se conseguir na altura fazer a transferência de Angola para Portugal das retribuições que lhe eram devidas, o qual prestava a sua atividade, por conta de tal empresa, em Angola.
Concluiu pedindo a sua absolvição da instância ou se assim não for entendido, a absolvição do pedido.
No saneador foram julgadas improcedentes, ambas, as exceções (incompetência material e ilegitimidade ativa).
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Inconformado, com a decisão na parte em que julgou improcedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal, veio o réu interpor o presente recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as conclusões que se reproduzem:
I) O Recorrido admite na sua petição inicial, que os pagamentos que efetuou ao Recorrente, estão relacionados com o contrato de trabalho existente entre a empresa que o Recorrido é administrador e o Réu na qual este é trabalhador.
II) O Recorrido admite na sua petição inicial que os pagamentos foram adiantamentos por conta do contrato de trabalho existente entre o Recorrente e a sociedade administrada pelo Recorrido.
III) O Recorrido admite a justificação para os pagamentos que efetuou ao Recorrente diretamente em Portugal com os atrasos no pagamento dos salários em Angola.
IV) O Recorrido na sua petição inicial compensa diretamente os créditos da empresa que administra e que é a entidade empregadora do Recorrente com o crédito que vem pedir nesta ação, que ora se recorre.
V) O Recorrente nunca teve outra relação com o Recorrido que não fosse uma relação laboral e os pagamentos efetuados para a sua conta bancária foram sempre e única e exclusivamente no âmbito do contrato de trabalho entre o Recorrente e a empresa administrada pelo Recorrido.
VI) Ora e salvo melhor entendimento diverso: decorre da própria narração do Autor/Recorrido ao longo da sua petição inicial que a própria relação jurídica que fundamenta a pretensão deste, e as questões atinentes, consistem e resultam do contrato de trabalho que, quer nas datas dos depósitos referidos pelo A./Recorrente no seu artigo 3.º da p.i., quer nas datas das restituições elencadas no artigo 4.º da p.i., existia entre o Réu/Recorrente enquanto trabalhador da “(…) e Filhos, Lda.”.
VII) Tratando-se de uma relação contratual laboral, a competência para a apreciação e discussão da presente lide encontra-se legalmente acometida aos juízos do trabalho na sua competência cível – ex vi artigo 126.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, tratando-se de “questões emergentes de relações de trabalho subordinado”.
VIII) Ou, ainda e sem conceder, e caso assim não se entenda, de “questões entre sujeitos uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente” – ex vi artigo 126.º, n.º 1, alínea n), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
IX) Tendo a presente ação sido instaurada pelo A./Recorrido no Juízo de Competência Genérica de Lagos, entende o Réu/Recorrente, com o devido respeito, que estamos perante a incompetência deste digno tribunal, em razão da matéria, logo, incompetência absoluta, considerando o disposto nos artigos 64.º, 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1 e 98.º do Código de Processo Civil.
X) Tratando-se de incompetência absoluta, consubstancia uma exceção dilatória (artigo 577.º, alínea a), do CPC), implicando a absolvição do Réu/Recorrente da instância e o não conhecimento do mérito da causa (artigos 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a) e 576.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
XI) Destarte, e com o devido respeito pela decisão do Tribunal a quo, deverá ser revogada a decisão do tribunal a quo que indeferiu a invocação da exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, substituindo-se por outra que defira a invocação da exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer do mérito da causa, absolvendo-se o Réu, aqui Recorrente, da instância e não se conhecendo do mérito da causa”.

O apelado apresentou alegações nelas defendendo a confirmação do julgado.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a questão que importa apreciar é a de saber, tendo em conta o objeto na presente ação e as partes nela referenciadas, se a competência, para o seu conhecimento, em razão da matéria, é atribuída por lei aos tribunais cíveis ou aos tribunais de trabalho;

Conhecendo da questão
Na petição inicial, o autor configurou a existência de um contrato de mútuo com o réu alegando os seguintes factos:
“1º - O aqui Autor emprestou, por diversas vezes, várias quantias de dinheiro ao aqui Réu (Docs. nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7).
2º - O Réu assumiu perante o Autor o compromisso e obrigação de restituir tais quantias e reembolsar o Autor dessas importâncias que lhe foram sendo emprestadas, logo que solicitado.
3º - No âmbito desse acordo, o aqui Autor depositou na conta bancária do Réu, por várias vezes, as seguintes importâncias:
a) € 6.000,00 (seis mil euros), em 09 de Agosto de 2016;
b) € 6.000,00 (seis mil euros), em 11 de Outubro de 2016;
c) € 3.000,00 (três mil euros), em 21 de Dezembro de 2016;
d) € 3.000,00 (três mil euros), em 25 de Outubro de 2017;
e) € 3.000,00 (três mil euros), em 15 de Dezembro de 2017;
f) € 3.000,00 (três mil euros), em 22 de Dezembro de 2017;
g) € 3.000,00 (três mil euros), em 15 de Dezembro de 2018; e
h) € 3.000,00 (três mil euros), em 16 de Abril de 2018;
Num total de € 30.000,00 (trinta mil euros) – Docs. nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8.
4º - No cumprimento – parcial – do acordado, o Réu marido restituiu já ao Autor, através de transferências bancárias para a conta do Autor no Banco (…), SA, com o IBAN (…), as seguintes importâncias:
a) € 3.000,00 (três mil euros), em 11 de Setembro de 2018;
b) € 3.000,00 (três mil euros), em 19 de Outubro de 2018;
c) € 3.000,00 (três mil euros), em 29 de Outubro de 2018;
d) € 3.000,00 (três mil euros), em 24 de Janeiro de 2019;
e) € 3.000,00 (três mil euros), em 24 de Janeiro de 2019;
Num total de € 15.000,00 (quinze mil euros), correspondente apenas às três primeiras entregas do Autor, constantes do artigo 3.º da presente peça processual – Docs. nºs 9, 10, 11, 12 e 13.
5º - Ainda não restituiu a totalidade das quantias que lhe foram entregues e que se comprometeu a restituir – Docs. nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.
6º - Falta-lhe restituir as entregas constantes das alíneas d), e), f), g) e h) do artigo 3.º da presente petição, num valor global da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) – Docs. nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.
7º - Por várias e diversas vezes o Autor solicitou ao Réu a restituição das quantias em falta.
8º - A última das quais através de advogado que enviou ao Réu uma carta interpelatória concedendo-lhe novo prazo para o fazer, sob pena de propositura de ação judicial, para ser ressarcido o Autor das quantias que lhe entregou a título devolutivo – Doc. n.º 14.
9º - Tal carta foi recebida – Doc. n.º 14.
10º - O Autor não obteve qualquer resposta.
11º - O Réu, apesar de não negar tal obrigação de restituir, ainda não o fez.
12º - Nem demonstra qualquer vontade de o fazer.
13º - A obrigação de restituição apenas estava dependente de interpelação para o fazer.
14º - Tais importâncias deviam ser restituídas independentemente de quaisquer condições.
15º - A motivação de tais entregas relacionam-se com a dificuldade de transferência de salários de Angola para Portugal.
16º - O Réu foi contratado para trabalhar em Angola, para a sociedade (…) e Filhos, Lda. – Doc. n.º 15.
17º - O seu salário era de € 3.000,00 mensais, a ser entregue em Portugal, quantia essa que a empresa nem sempre conseguia transferir pontualmente, por razões que lhe eram alheias, nomeadamente dificuldade de obtenção de divisas estrangeiras em Angola e envio das mesmas para o estrangeiro – Doc. n.º 15.
18º - Para obviar a tais dificuldades, de envio de divisas para Portugal, o aqui Autor na qualidade de administrador da empresa, nas datas referidas adiantou do seu próprio bolso as referidas importâncias que o Réu tinha a receber da referida empresa.
19º - Tendo-se o Réu comprometido a restituir tais importâncias.
20º - Tal restituição não estava dependente de qualquer pagamento por parte da referida empresa.
21º - No entanto, os pagamentos que tais quantias adiantavam, foram já integramente liquidados pela empresa empregadora, à exceção da quantia de € 6.932,06 (seis mil e novecentos e trinta e dois euros e seis cêntimos),
Tais € 6.932,06 (seis mil e novecentos e trinta e dois euros e seis cêntimos) referiam-se a:
a) salário de Abril de 2017, da importância de € 3.000,00 (três mil euros);
b) parte do salário de Agosto de 2017, da importância de € 932,06 (novecentos e trinta e dois euros e seis cêntimos); e
c) salário de Novembro de 2017, na importância de € 3.000,00 (três mil euros).
22º - Tais importâncias não foram pagas até ao presente pela empresa (…) e Filhos, Lda., em virtude de não terem, à data, conseguido divisas para transferir para o trabalhador tendo os bancos angolanos utilizado, à data, as divisas para outros efeitos.
23º - O Autor nada devia ao Réu, inexistindo qualquer outro fundamento para as entregas.
24º - Não existindo qualquer fundamento valido para a não restituição, de tais importâncias por parte do Réu.
25º - Resta assim ao Autor o recurso á presente ação para obter a restituição da importância que entregou ao Réu.
26º - Apesar do Autor não ser devedor de qualquer importância ao Réu, pois não era ele a sua entidade patronal, vem pela presente ação pedir apenas a restituição da quantia mutuada em falta (€ 15.000,00), deduzida daquela importância de € 6.932,06 (seis mil e novecentos e trinta e dois euros e seis cêntimos), que a empresa em Angola não chegou a transferir.
27º - O que perfaz a quantia de € 8.067,50 (oito mil e sessenta e sete euros e cinquenta cêntimos): (€ 15.000,00 - € 6.932,06).”

Na 1ª instância o Juiz não reconheceu a existência da incompetência material, nem da ilegitimidade ativa, motivando o sentido da decisão da seguinte forma:
A questão assume-se de manifesta simplicidade.
O Autor alega na petição inicial que entregou as quantias monetárias a título de mútuo. É certo que igualmente alega que tais quantias seriam devidas pela pessoa coletiva empregadora ao Réu, contudo, em momento algum é alegado que os montantes pagos o foram a título de retribuição laboral.
Note-se que nesta sede não se cuida do mérito de tal alegação, mas apenas da forma. Tal como está alegado, a questão subsume-se a princípios e regras de direito civil. O Autor alega que mutuou quantias e estas não foram restituídas. Não pode deixar-se de concluir que este Tribunal é competente e o Autor é legítimo, pois do modo como configura a ação, tem todo o interesse em demandar, dado que alega ser titular de direito de crédito”.
Em face dos factos alegados e da configuração dada à ação, atendendo a que a competência do tribunal, sendo um pressuposto processual, afere-se pelo pedido e respetivos fundamentos, nos termos em que são configurados pelo autor (cfr. Ac. do STJ de 14/12/2016 no processo 1267/15.5T8FNC-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), não podemos deixar de reconhecer que ao tribunal de jurisdição cível cabe a competência para apreciar e julgar a ação.
O recorrente defende que a ação tal como foi configurada pelo autor cabe na previsão das alíneas b) e/ou n) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 63/2013, de 26/08 (LOSJ), nas quais se dispõe:
Compete aos Juízos de trabalho conhecer, em matéria cível:
(…)
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
(…)
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;”
Não reconhecemos que em qualquer destas alíneas se possa enquadrar o caso em apreço.
O autor apesar de ser administrador da sociedade que era a entidade patronal do réu é, como é evidente, entidade diversa daquela e não consta que fosse esta a emprestar ao réu as quantias que são reclamadas na presente ação, nem o próprio autor alega, ou aceita, que com as transferências efetuadas estivesse a pagar salários ao réu, que lhe eram devidos por terceiro, não havendo qualquer interferência da sociedade (entidade patronal), nem mesmo no que se refere à conta bancária donde saíram os montantes para o réu, bem como as restituições efetuadas por este ao autor.
Por isso, a questão posta à consideração do tribunal não emerge de relação de trabalho subordinado, que efetivamente não existe entre autor e réu, nem emerge claramente de quaisquer relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho o que afasta a integração na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 126.º da LOSJ. Também, não existe qualquer cumulação de pedidos que se possa integrar na aludida alínea n) do n.º 1 do artigo 126.º da LOSJ, não sendo o facto de se ser terceiro relativamente à questão de trabalho que implica a sujeição da questão a apreciar à instância laboral, tendo de haver sempre uma situação em que haja possibilidade de cumulação de pedidos, em que um deles deva ser apreciado nessa instância.
Como se disse, para aferir se determinada questão se insere no âmbito da competência dos tribunais do trabalho importa analisar antes de mais se do pedido formulado e da factualidade concreta alegada pelo autor resulta uma questão emergente de trabalho subordinado, independentemente da designação dada ao contrato ou da sua qualificação como contrato de trabalho por parte do autor na ação, por isso em face dos factos invocados a obrigação por parte do réu de liquidar as quantias que lhe tinham sido depositadas pelo autor não decorre diretamente da vigência de qualquer contrato de trabalho existente entre eles, pelo que o Tribunal do Trabalho não pode deixar de ser incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido, tal como o mesmo é alicerçado e configurado pelo autor, mesmo que as partes aceitem que subjacente ao contexto que levou aos empréstimos esteja uma relação de natureza laboral entre o réu e uma sociedade administrada pelo autor (cfr. Ac. do STJ de 10/12/2015 no processo 83/14).
Em face do que se deixou dito, irrelevam as conclusões do apelante, não se tendo por violadas as normas legais cuja violação foi invocada, não merecendo censura a decisão que reconhece competência ao Juízo de Competência Genérica de Lagos para apreciar e decidir a causa.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas de parte pelo apelante.
Évora, 14 de julho de 2021
Maria da Conceição Ferreira
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes
Mário João Canelas Brás