Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
333/16.4 T8LAG.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
REQUISITOS
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: RELATORA
Texto Integral: S
Sumário: Mais importante que a qualificação jurídica que à pretensão seja dada pelo autor, deve atender-se antes ao efeito prático que com a demanda pretende alcançar, que é afinal o que releva para determinar o conteúdo da decisão final e aferir das excepções de litispendência e de caso julgado.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 333/16.4 T8LAG.E1
Comarca de Faro
Instância Local – Secção de Competência Genérica – J2

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O recurso é o próprio, tendo sido recebido no modo e com o efeito devidos.
Afigurando-se que a questão a decidir se reveste de manifesta simplicidade, passo a proferir decisão sumária, conforme permite o art.º 656.º do CPC.
Notifique.
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I. Relatório
(…), viúva, a residir na Rua (…), n.º 6, 2º-D, em Lisboa, e (…) e mulher, (…), residentes na Rua (…), n.º 4, 3º-esq.º, em (…), Loures, vieram instaurar contra (…) e Oblíquo, SA, com sede na Av.ª dos (…), n.º 23, 1º-D, em (…), Loures, acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação da ré a:
a) fechar a janela que ilicitamente abriu sobre o prédio dos demandantes;
b) remover o telheiro que ilicitamente colocou sobre a dita janela;
c) efectuar as obras necessárias à reposição da chaminé do prédio dos AA em situação legal;
d) devolver aos AA a área do prédio de que ilicitamente se apropriou;
e) pagar aos AA o montante que se vier a apurar em sede de execução de sentença referente aos danos causados pela intervenção da ré no dito prédio.
Em fundamento alegaram, em síntese, que são, respectivamente, a usufrutuária e os nu-proprietários do prédio urbano sito no Sítio da (…), na Vila da (…), freguesia da (…), concelho de Lagos, inscrito na matriz respectiva sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do registo predial sob o nº (…), o qual confina do lado Norte com prédio hoje da ré.
Em acção anterior, que correu termos pela mesma comarca de Faro, Instância Central de Portimão, sob o n.º 1145/13.2TBLSG, e que opôs as mesmas partes, foi proferida sentença, transitada em julgado, que declarou o direito de propriedade e de usufruto dos autores sobre o prédio acima identificado, condenando a ré a restitui-lo livre e devoluto e a abster-se da prática de actos que diminuam ou impeçam a sua fruição, mais a condenando no pagamento de indemnização a favor dos demandantes.
Ocorre, porém, que tendo procedido a obras no prédio contíguo, a ré prolongou a parede meeira que partilha com o prédio dos demandantes, ocupando-a na totalidade, procedendo ainda à abertura de uma janela que deita directamente sobre o telhado deste último imóvel, em contravenção ao disposto nos art.ºs 1360.º e 1372.º, ambos os preceitos do Código Civil. Acresce que em razão das mesmas obras a chaminé do prédio dos AA ficou em situação contravencional às normas do RGEU, desconhecendo-se se ainda funciona capazmente.
A descrita actuação da Ré é violadora do direito de propriedade e usufruto dos AA, pelo que deverá ainda ser condenada a repor a situação anterior e no pagamento de uma indemnização a liquidar.
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Regularmente citada, a ré apresentou contestação na qual, para o que ora releva, invocou a excepção de litispendência quanto aos pedidos formulados sob as als. d) e e) que, em seu entender, são precisamente os mesmos formulados na referida acção declarativa que sob o n.º 1145/13.2 TBLSG corria termos pela 2.ª secção cível da instância central da comarca de Faro, e que à data se encontrava ainda pendente.
Teve lugar audiência prévia e nela pronunciaram-se os AA sobre a matéria de excepção, tendo de seguida o Mm.º juiz proferido despacho no qual, para o que ora releva, fez consignar:
“(…) Ora, in casu há identidade de sujeitos – os que se arrogam proprietários do prédio descrito sob o n.º (…), da Conservatória do Registo Predial de Lagos e a R..
Há identidade da causa de pedir – a violação do direito de propriedade.
Há, também, identidade do pedido.
Evidente, na parte em que se impetra a condenação da R. na devolução da área do prédio de que ilicitamente se apropriou e no pagamento do montante que se vier a aferir em sede de execução de sentença referente aos danos causados pela intervenção daquela no prédio.
Não tão evidente, mas ainda assim existente, no que tange ao demais peticionado.
Efectivamente, nos presentes autos, pugnam os AA., ao fim e ao cabo, pelo cumprimento da decisão em que obtiveram ganho de causa – abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a fruição do seu prédio – sendo certo que o processo próprio para tal fito é a execução, in casu, para prestação de facto negativo.
Prosseguirem os presentes autos, estando já o direito dos AA. titulado por sentença transitada em julgado é, assim, repetição de causa já decidida, pelo que se verifica excepção dilatória, já não de litispendência, que se verificava aquando da propositura da acção mas, face ao trânsito da decisão proferida, de caso julgado, assim se impondo a absolvição da R. da instância.
Termos são os expostos em que, renovando os fundamentos de facto e de direito expendidos, julgo procedente a aduzida excepção dilatória de caso julgado e, em consequência, absolvo a R. da instância”.
Inconformados, apelaram os AA e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentaram as razões da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões:
“1.ª- A causa de pedir em ambas as acções é o direito de propriedade e o de usufruto dos aqui recorrentes, contudo os pedidos em si são bastante díspares, os pedidos em ambas as acções contendem com aspectos diferentes da violação do direito de propriedade, tanto mais que nos autos de processo n.º 1145/13.2TBLGS a acção teve por base o estatuído no artigo 1311.° e ss. do CC enquanto a ora recorrida se funda no disposto no artigo 1360.° e ss. do CC, porquanto um visa a restituição da posse do prédio e o outro tão só que a Ré reponha a legalidade da sua construção e que seja responsabilizada por eventuais custos que advenham dessa reposição.
2.ª- O douto tribunal "a quo", ao concluir pela procedência da excepção aduzida pela Ré, foram violados, quer por erro de interpretação quer por erro de aplicação, o disposto nos artigos 580.° e 581.°, ambos do CP.C, impondo-se ao douto tribunal "ad quem" repor a legalidade.
3.ª- Os factos trazidos a juízo pelos Aa., com a presente acção, estão fora do âmbito da sentença proferida no processo n.º 1145/13.2TBLGS, não podendo ser dada à execução.
4.ª- Impondo-se primeiro que se obtenha sentença declarativa que considere procedente o peticionado pelos AA. na presente acção para salvaguarda dos seus direitos, sob pena de não os poder executar coercivamente.
5.ª- Violou assim o Mmº. Dr. Juiz "a quo" quer por erro de interpretação, quer por erro de aplicação, o disposto nos artigos 703.° e 704.°, ambos do C.P.C., o que gerou uma decisão desconforme com o direito.
6.ª- Caso assim não se entenda, deverá o douto acórdão a proferir, expressamente considerar a decisão transitada em julgado e proferida no processo 1145/13.2TBLGS, título executivo bastante para a demolição das construções identificadas na presente acção e para liquidação em execução de sentença do valor indemnizatório”.
Com tais fundamentos pretendem a revogação da decisão proferida, devendo os autos prosseguir seus regulares termos.
Tanto quanto resulta dos autos, a Ré não contra-alegou.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso constitui única questão a decidir saber se se verifica ou não a excepção dilatória do caso julgado.
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Fundamentação
Relevando para a decisão os factos relatados em I., cumpre indagar da verificação dos requisitos do caso julgado, tal como os enuncia o art.º 581.º do CPC (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).
Nos termos do preceito legal ora convocado “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”. O n.º 3 do mesmo artigo dispõe que “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico”, estabelecendo o n.º 4 estabelece que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”.
A excepção de caso julgado pressupõe portanto uma tríplice identidade: de partes, de causa de pedir e do pedido.
Não estando em causa que os AA e a Ré desta acção são os mesmos que na acção precedente, detenhamo-nos nas causas de pedir e pedido formulados num e noutro processo.
Dispondo para os requisitos da petição inicial, o art.º 552.º impõe ao autor que “exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção” e “formule o pedido” (vide als. d) e e) do n.º 1 do preceito).
Na definição legal, pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a acção (vide n.º 3 do art.º 581.º).
O pedido surge assim como pretensão material, “enquanto afirmação de um direito subjectivo ou de um interesse juridicamente relevante” e como pretensão processual “traduz-se na identificação do meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor”[1].
Numa outra formulação “o pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção, com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no art.º. 664.º, 1.ª parte, do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório”.[2]
Determinando portanto a formulação do pedido o desenrolar da instância e circunscrevendo o âmbito da decisão final[3] – em linha com a exigência, decorrente do princípio do dispositivo, de fazer recair sobre os interessados que recorrem a juízo o ónus de delimitação do objecto da lide – mais importante que a qualificação jurídica que à pretensão seja dada pelo autor, deve atender-se antes ao efeito prático que com a demanda pretende alcançar, que é afinal o que releva para determinar o conteúdo da decisão final e aferir das excepções de litispendência e caso julgado.
Mas o autor que se dirija ao Tribunal para obter determinada providência há-de ainda expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida” (vide n.º 4 do art.º 581.º).
A causa de pedir, independentemente do entendimento que se perfilhe acerca dos factos que a integram (nomeadamente se abrange todos os necessárias à procedência da acção ou apenas, conforme defende o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, aqueles que se reconduzam aos elementos essenciais de um determinado tipo legal, justificando a distinção legal entre factos essenciais e factos complementares, os quais, podendo ser necessários à procedência da acção, não integram, ao contrário dos primeiros, a causa de pedir – vide Blog IPPC, entrada de 21 de Julho de 2014), cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo.
A lei – já citado n.º 4 do art.º 581.º – parece todavia apontar para as normas de direito material que estatuem o efeito pretendido, impondo à parte a alegação dos factos contidos na respectiva previsão. Conforme se explicita no muito recente aresto do STJ de 17/1/2017, proferido no processo 3844/15.5T8PRT.S1, recorrendo à lição do referido Professor “(…) Muito embora se entenda que a causa de pedir é representada por factos concretos, não se trata de factos “brutos”, independentes de qualquer previsão normativa. Na esclarecedora lição de Miguel Teixeira de Sousa, “os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica” acrescentando o mesmo Autor que “o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais”. Por outro lado, o conceito de causa de pedir não deve ser entendido de forma extensa já que uma visão mais restrita – “deflacionada” – é a que melhor se adequa tanto ao princípio dispositivo, que apesar de temperado ou mitigado continua a imperar no nosso sistema processual civil, como à opção do legislador pelo sistema da substanciação da causa de pedir. Os factos concretos que constituem a causa de pedir – e que nem sequer serão, porventura, para Miguel Teixeira de Sousa, todos os necessários para assegurar a procedência da acção – são pois “iluminados” e selecionados por uma certa previsão legal”.
Conforme sintetizou o mesmo STJ no acórdão de processo 291/14.7TVPRT-C.P1.S1, em www.dgsi.pt: “I. A figura da excepção de caso julgado – que a reforma de 1995/96 qualificou expressamente como dilatória – tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de esse mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado.
II. Ocorre identidade de pedido quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo.
III. A essencial identidade e individualidade da causa de pedir tem de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial das causas petendi invocadas numa e noutra das acções em confronto, não sendo afectada tal identidade, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções, nem pela invocação na primeira acção de determinada factualidade, perspectivada como meramente instrumental ou concretizadora dos factos essenciais.
IV. Não ocorre a excepção de caso julgado quando as pretensões materiais formuladas nas duas acções em confronto, para além de representarem vias jurídicas alternativas e estruturalmente diferenciadas para alcançar a tutela jurídica de determinado interesse, assentes em pressupostos legais perfeitamente autónomos, implicaram a formulação de pedidos estruturalmente diferentes (…)”
Isto dito, e voltando ao caso que nos ocupa, afigura-se clara a razão dos apelantes, uma vez que a presente acção não comunga com a anterior, nem da causa de pedir, nem dos pedidos, entendidos uma e outros nos termos acabados de expor. Com efeito, a primeira acção, conforme os apelantes bem fazem notar, é uma típica acção de restituição de posse, ao passo que a presente encontra o seu fundamento na violação de normativos que regulam as relações entre proprietários de prédios vizinhos (cf. os art.ºs 1360.º, n.º 1 e 1373.º, n.º 1), sendo distintos os efeitos jurídicos pretendidos numa e noutra. Aliás, nem sequer o pedido indemnizatório assenta nos factos anteriormente alegados, encontrando fundamento em diferentes actos ilícitos, projectando-se em distintos prejuízos. Deste modo, a genérica condenação da aqui ré, proferida na primeira acção, numa prestação de non facere – “abster-se da prática de actos que perturbem o uso e fruição do imóvel por banda dos AA” – terá que ser interpretado de acordo com a causa de pedir naquela acção, que individualizou a pretensão formulada, não se dirigindo tal comando à proibição de abrir janelas ou à ocupação de parede meeira, aspectos que ali nunca foram discutidos e aqui se encontram controvertidos.
Resulta do exposto que não se verifica a excepção do caso julgado em relação a nenhum dos pedidos formulados nesta acção, que assim deverá prosseguir seus regulares termos.
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III. Decisão
Atento o exposto, julgo procedente o recurso interposto pelos AA e improcedente a excepção dilatória do caso julgado invocada pela Ré, determinando que os autos prossigam os seus regulares termos.
Custas pela apelada.
Évora, 23 de Novembro de 2017
Maria Domingas Alves Simões
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[1] Abrantes Geraldes, in “Temas da reforma do processo civil”, I vol, 2.ª ed. revista e ampliada, pág. 119 e, em sentido idêntico, aludindo a uma determinação material e uma determinação processual da pretensão, Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais”, 2.ª ed., pág. 56.
[2] Do aresto da Rel. de Lisboa de 6/1/2010, proferido no âmbito do processo n.º 405/07.6 TVLSB.L1-7, sendo Relator o então Exmº Sr. Des. Tomé Gomes, hoje Exmº juiz C.º, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Na formulação do Prof. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, págs. 201 e seguintes, o pedido aparece “como o círculo dentro do qual o Tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir”.