Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
322/16.9GBCCH.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA
FURTO FORMIGUEIRO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Data do Acordão: 03/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGAÇÃO DA SENTENÇA
Sumário:
I - Não se tendo apurado o valor da energia elétrica consumida por cada um dos arguidos terá de entender-se que o seu valor é diminuto.

II - Sabendo-se que a energia foi conduzida para o espaço doméstico e familiar dos arguidos é natural e contextualmente razoável admitir que o fossem para iluminação, conservação de alimentos, para cozinhar, aquecer e assegurar a higiene das pessoas ali residentes. Destinava-se, pois, à satisfação de necessidades imediatas (por elementares à sobrevivência e dignidade humanas) e permanentes dos arguidos e respetivas famílias. A indispensabilidade da coisa subtraída para a satisfação de uma necessidade conexiona-se com a natureza do bem em causa – energia elétrica - e o que sejam necessidades básicas para assegurar a dignidade de um ser humano.

III - A própria lei considera o fornecimento de energia elétrica um «bem essencial», sujeitando-o a regras especiais, destinadas justamente a proteger os seus consumidores, nomeadamente os economicamente mais frágeis, estando provado que qualquer dos arguidos integra extrato socioeconómico desfavorecido.

IV - Deste modo, o crime de furto cometido por cada um dos arguidos, enquadra-se na previsão dos artigos 203.º, n.º1 e 207.º, n.º1, alínea b) do Código Penal e depende de acusação particular, carecendo o Ministério Público de legitimidade processual para proceder criminalmente contra eles, o que determina a revogação da sentença e a absolvição dos arguidos recorrentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. A decisão recorrida
Por sentença proferida em 10 de julho de 2019, no Juízo Local de Coruche do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, entre outros 20 arguidos, foram também condenados TP, AB, e MB pela prática, cada um deles, com autor, de um crime de furto, previsto no artigo 203.º, § 1.º do Código Penal, respetivamente nas penas de: 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano; 8 meses de prisão efetiva; e 6 meses de prisão efetiva.

2. O recurso
Por se não conformarem com a decisão dela recorreram TP, AB e MB.

TP alegou que a sentença padece de erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto. Considerando que os factos elencados entre 7 e 12 deveriam ter sido julgados não provados, porquanto à data de 18/1/2017 não residia na casa a que os mesmos se referem, como consta dos documentos que juntou aos autos. E que na graduação da pena se deveria ter valorado as circunstâncias de ter atividade profissional, estar familiarmente integrado, ser o sustentáculo financeiro dos seus filhos e viver em casa arrendada noutro bairro, sendo a pena desajustada a essas circunstâncias.

AB, por seu turno, alegou, em síntese, que a sentença não indica que autoria foi a sua, confundindo o beneficiário da eletricidade (que é ele) com o autor da subtração, devendo ser julgados não provados os factos alinhados entre 57 a 62. A mais disso considera desajustada a pena aplicada, porquanto podendo os antecedentes criminais relevar para o quantum da pena, não podem se mais arredar a mobilização das penas de substituição e, nomeadamente, o regime de permanência na habitação (artigo 43.º do Código Penal).

E o terceiro, MB, sustentou haver erro notório na apreciação da prova, porquanto os factos provados não referem concretamente onde é que ele reside, nem se descreve nos factos provados como foi feita a ligação elétrica, quem a fez e quando foi efetuada, os quais demonstrariam a (forma da) autoria, pois apesar de reconhecer ter sido beneficiário de energia elétrica, não realizou nenhum ato para subtrair a energia elétrica. Deveriam, pois, ter sido julgados não provados os factos alinhados entre 63 e 68. A mais disso, considera desajustada a pena aplicada, por entender que sete antecedentes criminais não são «excessivos», mas sobretudo porque nenhuma razão se alinhavou na sentença para justificar a não aplicação de uma pena de substituição.

3. A resposta do Ministério Público
O Ministério Público junto do Juízo Local de Coruche respondeu aos recursos sustentando a decisão recorrida, alegando em síntese que os arguidos manifestam discordância face à convicção formada pelo juiz relativamente à prova dos factos, mas isso, só por si, não constitui erro notório na apreciação da prova. E que podendo a matéria de facto ser realmente ser alterada em sede de recurso, tal só pode suceder quando as provas impuserem decisão diversa, não apenas quando o permitirem.

Sustenta ainda, com assertividade e mestria, a ligação das provas aos factos provados e à demonstração da consumação do crime por cada um dos arguidos. O mesmo sucede relativamente à matéria da (também) alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; à vulneração do princípio in dúbio pro reo; e à medida das penas e sua não substituição, sustentando como isso seria desajustado em razão dos bastos antecedentes criminais dos arguidos.

4. Parecer do Ministério Público junto do Tribunal de recurso

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, na vista que se prevê no artigo 416.° do CPP, secundando a mui douta posição do Ministério Público na 1.ª instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

II. Questões a decidir no recurso
- Se a sentença padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova e se foi vulnerado o princípio in dubio pro reo;

- Se os factos integram ou não o crime de furto pelos quais os arguidos foram condenados;

- Se as penas estão desajustadas da medida da culpa, das exigências de prevenção geral e das necessidades de prevenção especial.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto provada na sentença (transcrição da parte que respeita aos recorrentes):

O arguido TP residiu até meados de 2017 numa casa situada no Bairro Desgraça, … Coruche.

Em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 18/01/2017, o arguido TP decidiu apoderar-se de energia elétrica da rede pública que pertencia à EDP Distribuição-Energia, S.A.

Assim, em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 18/01/2017, o arguido, por si, ou através de terceiros, a seu pedido e sob sua orientação, ligou um cabo elétrico ao cabo elétrico de um poste de baixa tensão do traçado aéreo da rede pública de distribuição de eletricidade pertencente à EDP Distribuição-Energia, S.A. e depois conduziu o referido cabo elétrico para a sua habitação.

Desta forma, o arguido TP logrou efetuar uma ligação direta da rede pública de eletricidade à sua residência, permitindo que esta fosse abastecida, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida EDP Distribuição-Energia, S.A.

Com a conduta supra descrita, o arguido TP apoderou-se e fez sua uma quantidade indeterminada de energia elétrica que consumiu até 18/01/2017.

O arguido TP agiu com o propósito concretizado de se apropriar e fazer sua a energia elétrica da rede pública, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida EDP Distribuição-Energia, S.A., usufruindo dela, com perfeito conhecimento que não lhe pertencia e que o fazia sem autorização do respetivo dono.
(…)
Os arguidos RS e AB residem numa casa situada no Bairro da Desgraça,… em Coruche.

Em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 18/01/2017, os arguidos RS e AB decidiram apoderarem-se de energia elétrica da rede pública que pertencia à EDP Distribuição-Energia, S.A.

Assim, em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 18/01/2017, os arguidos RS e AB, atuando em conjugação de esforços e mediante um plano previamente gizado entre si, por si, ou através de terceiros, a seu pedido e sob sua orientação, ligaram um cabo elétrico ao cabo elétrico de um poste de baixa tensão do traçado aéreo da rede pública de distribuição de eletricidade pertencente à EDP Distribuição-Energia, S.A. e depois conduziram o referido cabo elétrico para a sua habitação.

Desta forma, os arguidos RS e AB lograram efetuar uma ligação direta da rede pública de eletricidade à sua residência, permitindo que esta fosse abastecida, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida EDP Distribuição-Energia, S.A.

Com a conduta supra descrita, os arguidos RS e AB apoderaram-se e fizeram sua uma quantidade indeterminada de energia elétrica que consumiram até 18/01/2017.

Os arguidos RS e AB agiram em comunhão de esforços e na execução de um plano previamente acordado por todos, com o propósito concretizado de se apropriarem e fazerem sua a energia elétrica da rede pública, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida EDP Distribuição-Energia, S.A., usufruindo dela, com perfeito conhecimento que não lhes pertencia e que o faziam sem autorização do respetivo dono.
(…)
O arguido MB reside numa casa situada no Bairro Desgraça, … em Coruche.

Em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 18/01/2017, o arguido MB decidiu apoderar-se de energia elétrica da rede pública que pertencia à EDP Distribuição-Energia, S.A.

Assim, em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 18/01/2017, o arguido, por si, ou através de terceiros, a seu pedido e sob sua orientação, ligou um cabo elétrico ao cabo elétrico de um poste de baixa tensão do traçado aéreo da rede pública de distribuição de eletricidade pertencente à EDP Distribuição-Energia, S.A. e depois conduziu o referido cabo elétrico para a sua habitação.

Desta forma, o arguido MB logrou efetuar uma ligação direta da rede pública de eletricidade à sua residência, permitindo que esta fosse abastecida, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida EDP Distribuição-Energia, S.A.

Com a conduta supra descrita, o arguido MB apoderou-se e fez sua uma quantidade indeterminada de energia elétrica que consumiu até 18/01/2017.

O arguido MB agiu com o propósito concretizado de se apropriar e fazer sua a energia elétrica da rede pública, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida EDP Distribuição-Energia, S.A., usufruindo dela, com perfeito conhecimento que não lhe pertencia e que o fazia sem autorização do respetivo dono.
(…)
No dia 18/01/2017, na sequência de uma ação levada a cabo por militares da GNR e técnicos da EDP Distribuição-Energia, S.A., foram retirados diversos metros de cabos que faziam a ligação dos postes da EDP às residências dos arguidos, abastecendo-as de eletricidade de forma ilícita.

Todos os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais resultou provado que:
(…)
O arguido TP encontra-se detido em cumprimento de medida de coação.

O arguido TP era vendedor ambulante, auferindo cerca de 500€ por mês e vivia com a companheira, que não trabalha, e cinco filhas com 17, 15, 13, 10 e 2 anos de idade.

O arguido TP vivia em casa arrendada, despendendo 120€ por mês a título de renda de casa.

O arguido TP tem de habilitações literárias o 5.º ano de escolaridade.

Do Certificado de Registo Criminal do arguido TP constam averbadas as seguintes condenações:

No Processo Sumário n.º ---/03.5GELSB, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 17/10/2003, transitada em julgado em 03/11/2003, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 17/10/2003, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 1,50, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Comum Singular n.º --/05.7GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 28/01/2008, transitada em julgado em 27/02/2008, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 06/06/2005, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 3€, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Sumário n.º --/09.7GACCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 20/08/2009, transitada em julgado em 21/09/2009, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 19/08/2009, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5€ e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Comum Singular n.º ---/09.3GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 13/05/2011, transitada em julgado em 13/06/2011, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, praticado em 28/11/2009, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6€, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Sumário n.º --/13.3GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 14/01/2013, transitada em julgado em 13/02/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 12/01/2013, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6€ e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses, declarada extinta pelo cumprimento.

No Processo Comum Singular n.º ---/13.1GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 18/03/2014, transitada em julgado em 28/04/2014, de um crime de condução de violação de imposições, proibições ou interdições, praticado em 26/04/2013, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 1 ano, declarada extinta pelo cumprimento.
(…)
O arguido AB aufere a título de Rendimento Social de Inserção a quantia de 100€ por mês.

O arguido AB vive com a arguida RS.

O arguido AB tem de habilitações literárias o 4.º ano de escolaridade.

O arguido AB revelou um discurso pobre, sendo também notórias as reduzidas competências pessoais e sociais básicas ao que não será alheio algumas dificuldades cognitivas.

Relativamente a factos similares aos que constam na acusação, dentro das suas limitações cognitivas, no abstrato, o arguido AB reconhece presentemente a sua ilicitude e impacto em possíveis lesados.

Como fatores de proteção é de referir a vinculação afetiva que mantém à sua família, em particular com os filhos, todos menores de idade e com problemas de desenvolvimento, e a atitude colaborante que o arguido tem apresentado nos contactos com a DGRSP.

Do Certificado de Registo Criminal do arguido AB constam averbadas as seguintes condenações:

No Processo Comum Singular n.º ---/97, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 08/03/99, pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada e dano, praticado em 27/12/96, na pena de 240 dias de multa, declarada perdoada a pena de prisão subsidiária aplicada, sob condição resolutiva, por decisão datada de 15/02/2000, julgada extinta pelo cumprimento;

No Processo Abreviado n.º ---/99.1GBCCH, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 23/10/2000, transitada em julgado em 07/11/2000, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 23/12/99, na pena de 100 dias de multa, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Sumário n.º ---/2000, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 19/09/2001, transitada em julgado em 04/10/2001, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 16/09/2001, na pena de 4 meses de prisão, suspensa por 2 anos;

No Processo Sumário n.º ---/01.7GBCCH, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 10/01/2002, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 16/09/2001, em pena englobada em cúmulo jurídico posteriormente efetuado;

No Processo Comum n.º --/2001, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 29/10/2001, transitada em julgado em 13/11/2001, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 29/01/2001, que efetuou o cúmulo jurídico das penas aplicadas em c) e d), na pena única de 7 meses de prisão, suspensa pelo período de 3 anos, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Comum Singular n.º ---/01.9GABNV, do Tribunal da Comarca de Benavente, por sentença datada de 20/10/2003, transitada em julgado em 04/11/2003, pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, praticado em 05/08/2001, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 6 meses, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Sumário n.º --/05.4GBCCH, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 18/03/2005, transitada em julgado em 11/04/2005, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 28/02/2005, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 150 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Abreviado n.º ---/06.5GBCCH, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 11/10/2007, transitada em julgado em 31/10/2007, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 10/11/2006, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 dias de multa, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Comum Singular n.º --/10.3GACCH, do Tribunal da Comarca de Coruche, por sentença datada de 20/05/2011, transitada em julgado em 20/06/2011, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 13/04/2010, na pena de 7 meses de prisão suspensa pelo período de 1 ano com a obrigação de o arguido se submeter a exame de código no prazo de 6 meses;

No Processo Sumário n.º ---/13.1GEBNV, do 2º Juízo do Tribunal da Comarca de Benavente, por sentença datada de 13/03/2013, transitada em julgado em 12/04/2013, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 13/03/2013, na pena de 7 meses de prisão a cumprir por dias livres, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Sumário n.º ---/13.0GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 15/11/2013, transitada em julgado em 18/02/2014, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 20/10/2013, na pena de 9 meses de prisão, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Comum Singular n.º --/12.0GEMMN, do Tribunal de Montemor-o-Novo, por sentença datada de 07/07/2015, transitada em julgado em 06/06/2018, pela prática de um crime de furto simples, praticado em 28/01/2012, na pena de 6 meses de prisão.

O arguido MB aufere a título de Rendimento Social de Inserção a quantia de 120€ por mês.

O arguido MB vive numa barraca com a companheira, que também é beneficiária do RSI e se encontra grávida, e os filhos com 11, 8 e 5 anos de idade.

O arguido MB tem de habilitações literárias o 1º ano de escolaridade.

O arguido esteve detido em estabelecimento prisional entre fevereiro e outubro de 2016.

Do Certificado de Registo Criminal do arguido MB constam averbadas as seguintes condenações:

No Processo Comum Singular n.º --/07.4GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 11/03/2009, transitada em julgado em 20/04/2009, pela prática de um crime de furto na forma tentada, praticado em 17/02/2007, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 3€, substituída por pena de admoestação;

No Processo Comum Singular n.º --/09.2GACCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 19/02/2010, transitada em 22/03/2010, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 28/01/2009, na pena de 00 dias de multa, à taxa diária de 6€, declarada extinta por prescrição;

No Processo Comum n.º ---/08.6GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 22/10/2010, transitada em 22/11/2010, pela prática de um crime de roubo, praticado em 30/10/2008, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade, posteriormente revogada, tendo o arguido cumprido a pena de prisão efetiva de 9 meses e 16 dias, declarada extinta pelo cumprimento;

No Processo Comum n.º --/12.0GEMMN, do Tribunal de Montemor-o-Novo, por sentença datada de 07/07/2015, transitada em 06/06/2018, pela prática de um crime de furto simples, praticado em 28/01/2012, na pena de 3 meses de prisão;

No Processo Sumário n.º --/18.0GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 09/01/2018, transitada em 09/02/2018, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 09/01/2018, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6€;

No Processo Sumaríssimo n.º --/17.8GBCCH, do Tribunal de Coruche, por sentença datada de 06/09/2018, transitada em 06/09/2018, pela prática de um crime de recetação, praticado em 01/03/2017, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5€;

No Processo Comum Coletivo n.º ---/16.3GBCCH, do Tribunal de Santarém, por acórdão datado de 05/11/2018, transitado em 05/12/2018, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, praticado em 03/12/2016, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa por igual período.
(…)»

2. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Este vício, previsto no artigo 410.º, § 2.º, al. a) do CPP, ocorre nas situações em que da simples leitura da sentença, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, se permite concluir que a matéria de facto provada na sentença não suporta a decisão de direito, quer quanto à culpabilidade quer quanto à determinação da pena. Verifica-se quando a conclusão a que se chega não é suportada pelas respetivas premissas, isto é, quando a matéria de facto apurada não é a suficiente para fundamentar a solução correta exigida pelo direito. Tal sucede quando os factos dados como provados não permitem concluir se o arguido praticou ou não um crime; ou não constam os dados necessários para a graduação da pena ou para a verificação de causa exclusiva da ilicitude, da culpa ou da imputabilidade do arguido. Tal sucedendo, nomeadamente, quando o tribunal, podendo fazê-lo, não esgotou todos os seus poderes funcionais de indagação da matéria de facto essencial - de que podia conhecer - para a decisão da causa. Daí que por insuficiência de substrato factual não seja possível a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal[1].

Nas circunstâncias do presente caso a insuficiência esgrimida consiste em o tribunal de julgamento não ter apurado e por isso não se referir ao modo e ao tempo concretos e à identidade da pessoa ou pessoas que fizeram ou mandaram fazer a ligação por cabo da rede pública a cada uma das casas, confundindo beneficiário com autor da subtração. No recurso de TP acresce a alegada circunstância de no período relevante ele residir noutro local…

Sucede que perscrutando no acervo fáctico provado encontram-se suficientemente descritos os factos necessários e relevantes para a decisão. É certo que não se refere em que dia se realizaram as ligações clandestinas da rede pública a cada um dos espaços de habitação, nem o exato modo como tal se efetuou, mas atribui-se a ligação aos próprios beneficiários. E, no que mais releva, descrevem-se suficientemente os factos que relevam para aferir quem é que com conhecimento do caráter ilícito da conduta subtraiu energia da rede pública e se locupletou com o consumo da mesma, que são os residentes nas casas em que as «puxadas» clandestinas de energia se mostram feitas e operacionais.

Com efeito, o crime de furto, que é o ilícito em causa, é constituído pelos seguintes elementos: a subtração; a natureza móvel e alheia da coisa subtraída; e a ilegítima intenção de apropriação. O primeiro dos referidos elementos implica a violação da posse do lesado e a integração da coisa na esfera patrimonial do agente ou de terceira pessoa. É esse sentido da maioria da doutrina e da jurisprudência[2]. Pelo segundo elemento entende-se toda a substância corpórea, material, suscetível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um valor juridicamente relevante. E a ilegítima intenção de apropriação é preenchida pelo dolo específico, traduzido na intenção do agente de contra a vontade do dono haver a coisa para si integrando-a no seu património. A coisa subtraída é, neste caso, a energia elétrica, que é juridicamente uma coisa, na medida em que é apropriável; não sobrando também dúvida que é alheia porquanto não pertence a nenhum dos arguidos, mas à EDP – Distribuição-Energia, S. A., que é quem a produz e fornece aos seus clientes, mediante o pagamento de um preço por certa unidade de medida, aferida num mecanismo contador. Ora, a subtração da energia não ocorre quando se faz a ligação clandestina da rede pública a uma habitação ou a outro cómodo, esse é apenas o modo que a permite, ela ocorre sempre e quando intencionalmente e com conhecimento da natureza alheia da energia e caráter ilícito dessa subtração se utiliza a mesma (se consome a mesma). Ora, tudo isso consta dos factos provados, estando igualmente estabelecida a ligação de cada casa (ou cómodo) a cada um dos arguidos. Mesmo relativamente ao arguido TP, afirmando-se na sentença que era ele quem vivia no respetivo cómodo e nele consumia a energia que bem sabia não lhe pertencer nem ter a ela qualquer direito. Não há, pois, qualquer insuficiência relevante para a decisão da matéria de facto provada.

3. Erro notório na apreciação da prova
Também este vício se reporta à lógica jurídica ao nível da matéria de facto, isto é, a circunstâncias que inviabilizam uma decisão logicamente correta e em conformidade com a lei. Assenta numa deficiência no apuramento da matéria de facto, que prescinde da prova concretamente produzida no caso concreto para se ater à conexão lógica do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, porquanto ele tem de resultar da própria decisão recorrida. Constituem casos de erro notório na apreciação da prova: o erro sobre facto históricos ou incontroversos que são do conhecimento geral; a desconformidade com as leis da natureza; o atropelo elementar às regras da lógica; ou a ofensa aos conhecimentos científicos, criminológicos ou vitimológicos adquiridos[3]. A jurisprudência dos tribunais superiores é pródiga na caracterização deste vício, convergindo nos parâmetros citados[4]. Por todos louvamo-nos em extrato de aresto deste Tribunal da Relação de Évora[5], onde se refere que o erro notório na apreciação da prova ocorre quando «… as provas revelam claramente num sentido e a decisão recorrida extrai ilações contrárias, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto ou excluindo dela algum elemento. Trata-se, assim, de uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se passou, provou ou não provou. Existe um tal erro quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis. Não se podendo incluir no erro notório na apreciação da prova sindicância que os recorrentes possam pretender fazer/efetuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no art.º 127.º, do CPP. Ou dito de outro modo, o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao vício do erro notório sobre matéria de facto.» Ora, perscrutando o texto da decisão recorrida constata-se que a conexão lógica existente entre a factualidade que o tribunal recorrido julgou provada, os meios de prova em que se baseou e a valoração que fez de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, a que concretamente se refere o segmento relativo à «III - Motivação da decisão de Facto:», não só não indiciam o alegado erro, como do cotejo daqueles se infere, de modo aliás cristalino, exatamente o contrário. E a alegação do recorrente TP, respeitante à versão nova e alternativa que resolveu construir, diversa da que o tribunal julgou provada, ao contrário do alegado, foi devidamente ponderada, julgada e logicamente fundamentada, não sobrando dúvida que no espaço temporal relevante era ele quem residia no cómodo, sendo ele também quem durante mais de 10 anos subtraiu (consumiu) energia elétrica, com conhecimento do caráter ilícito da sua conduta. O tribunal justificou especificadamente a razão pela qual não deu credibilidade à sua nova versão (cf. fls. 49 da sentença). Não se verifica, pois, erro notório na apreciação da prova, a que se reporta o artigo 410.º, § 2.º, al. c) do CPP.

4. Vulneração do princípio in dubio pro reo
O princípio da presunção de inocência traduz-se na garantia in dubio pro reo, que é consabidamente um princípio de direito probatório, segundo o qual na dúvida sobre a prova de um facto deve ser sempre valorada favoravelmente ao arguido. Encontra tutela constitucional no § 2.º do artigo 32.º da Lei Fundamental, onde se preceitua que: «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação». A presunção de inocência atravessa todo o desenvolvimento do processo penal, desde a matéria das medidas de coação (como é exemplo o carácter excecional ou subsidiário da prisão preventiva) até à apreciação da prova. A garantia in dubio pro reo significa que a dúvida razoável sobre os factos que interessam à definição da responsabilidade do arguido, se resolve, sempre, a favor deste: respeitem eles à comissão do ilícito ou de alguma das suas agravantes; às causas de exclusão da ilicitude, da culpa ou da própria pena; ou às circunstâncias atenuantes, modificativas ou gerais). Este princípio integra o conceito de processo equitativo ou justo, por isso mesmo tendo assento nos principiais textos de direito internacional que versam ou incluem matéria de processo criminal, como sucede com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º), com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 14.º), com a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 48.º).

O arguido MB considera que o tribunal a quo vulnerou esta garantia fundamental por na ausência de prova sobre como, quando e quem fez a ligação do cabo do poste da EDP para a sua casa, concluiu ter sido ele quem subtraiu a energia! Visando evitar repetir o que dito já ficou, mas fazendo luz sobre o que ainda possa mostrar-se turvo sobre este aspeto da alegação remete-se para as considerações supra relativas à subtração relevante no crime de furto. E deste modo se tem de concluir pela inverificação da apontada vulneração.

5. O valor da coisa e a ilegitimidade do Ministério Público para o processo

Tal como se considerou na sentença recorrida não sobra dúvida quanto ao cometimento dos crimes de furto e autoria por cada um dos arguidos recorrentes. Sucede que as circunstâncias de facto provadas indicam que estamos perante caso enquadrável na al. b) do § 1.º do artigo 207.º do CP, que faz depender o procedimento criminal de acusação particular. Para tanto a lei estabelece três requisitos: o valor diminuto da coisa; a pretensão de utilização imediata do bem subtraído; e a indispensabilidade da coisa para a satisfação de uma necessidade do agente ou de um dos familiares (indicados na al. a).

Vejamos então cada um deles por sua vez. O valor da «coisa» subtraída nos crimes contra o património releva de tal maneira que o enquadramento jurídico-penal difere em conformidade, consoante o valor concreto se integre nos conceitos de «valor diminuto», valor não elevado, «valor elevado» e «valor consideravelmente elevado». Ponto nevrálgico em termos dogmáticos, como explana Faria Costa na anotação aos artigos 202.º, 203.º, 204.º e 207.º do CP[6], é a norma constante do § 4.º do artigo 204.º do CP, que consubstancia um contratipo. Isto é: se houver por exemplo uma circunstância qualificativa do ilícito, por força de um qualquer elemento previsto no artigo 204.º e, para além disso, a coisa for de diminuto valor, em caso algum se verificará um furto qualificado, mas antes um furto simples. E no caso concreto qual é o valor (ainda que aproximado ou estimado) da energia furtada? Apesar de o objeto do processo respeitar a crime contra o património nada a este propósito (a propósito do valor do bem subtraído) se indicou! Nestes termos afigura-se-nos evidente, ademais por força do princípio de presunção de inocência dos arguidos, que as contingências que levaram à total ausência de quantificação do valor do bem subtraído não pode ser àqueles imputável e por isso mesmo não os poderá desfavorecer. Donde, terá inexoravelmente de entender-se que o seu valor é diminuto[7]. O bem subtraído foi energia elétrica, a qual se destinou a ser utilizada nos espaços que os arguidos utilizam como sua habitação e das respetivas famílias, pois as «puxadas» clandestinas estão feitas para os espaços onde têm instaladas as respetivas habitações. Não se apurou concretamente, é certo, que tipo de consumos terão feito, mas sabendo-se que a energia foi conduzida para o espaço doméstico e familiar é natural e contextualmente razoável admitir que o fossem para iluminação, conservação de alimentos, para cozinhar, aquecer e assegurar a higiene das pessoas ali residentes. Destinava-se, pois, à satisfação de necessidades imediatas (por elementares à sobrevivência e dignidade humanas) e permanentes dos arguidos e respetivas famílias[8]. A indispensabilidade da coisa subtraída para a satisfação de uma necessidade conexiona-se com a natureza do bem em causa – energia elétrica - e o que sejam necessidades básicas para assegurar a dignidade de um ser humano. Ora, a própria lei considera o fornecimento de energia elétrica um «bem essencial», sujeitando-o a regras especiais, destinadas justamente a proteger os seus consumidores (Lei n.º 23/96, de 26 de julho), nomeadamente os economicamente mais frágeis, estando provado que qualquer dos arguidos integra extrato socioeconómico desfavorecido. Deste modo se conclui pela verificação dos aludidos requisitos, daí resultando que o crime de furto cometido por cada um dos arguidos depende de acusação particular, carecendo o Ministério Público de legitimidade processual para proceder criminalmente contra eles, o que determina a revogação da sentença e a absolvição dos arguidos (ainda que por razão diferente dos fundamentos por eles indicados nos recursos). E, como assim, não importará conhecer do (também) alegado desajustamento das penas concretas aplicadas a cada um dos arguidos recorrentes.

IV. Decisão

1. Destarte e por todo o exposto não se concedendo provimento aos recursos, revoga-se, contudo, a sentença recorrida por falta de legitimidade do Ministério Público para promover a ação penal pelo crime de furto praticado pelos arguidos, nos termos do artigo 207.º, § 1.º, al. b) do Código Penal.

2. Sem custas.

Évora, 10 de março de 2020
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J. F. Moreira das Neves (relator)
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José Proença da Costa (adjunto)

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[1] Neste sentido decidiram entre muitos outros os seguintes arestos:
Ac. TRLisboa, de 29/1/2020, proc. 5824/18.0T9LSB-3; A. RPorto, de 9/1/2020, proc. 1204/19.8T8OAZ.P1; Ac. TRÉvora, de 7/5/2019, proc. 112/14.3TAVNO.E1 , todos disponíveis em www.dgsi.pt .

[2] Maia Gonçalves CPP, 3.ª ed., pp. 705; Eduardo Correia, BMJ n.º 182, pp. 314 ; Beleza dos Santos, Rev. de Leg. Jur., 58.º, pp. 252; Ac. do STJ, de 27/3/2003, Cons. Simas Santos, processo n.º 03P361, disponível em: www.dgsi.pt .

[3] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa Editora, 2007, pp. 1101-1102.

[4] Cf. Acórdãos do STJ de 4/10/2001 (CJ-STJ, ano IX, 3.º, pp.182) e acórdão da Rel. Porto de 27-9-95 (CJ, ano XX , 4.º, pp. 231).

[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21/5/2019, proc. 61/15.8E.AEEVR.E1 , disponível em www.dgsi.pt .

[6] Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, sobretudo pp. 8, 14, 87 e 130.

[7] Neste sentido, por todos, Ac. STJ, de 12/11/97, in CJ-STJ, ano V, tomo III, pp. 232.

[8] Sobre o preenchimento dos requisitos legais pode ver-se na jurisprudência: Ac. TRLisboa, de 19/9/2008, proc. 7216/2008-3; A. TRLisboa, de 29/11/2010, proc. 479/07.0TABRB.L1-3; Ac. TRPorto, de 26/10/2016, proc. 149/14.2TAMAI.P2, todos disponíveis em: www.dgsi.pt .