Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2981/17.6YLPRT.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A licença de utilização permite comprovar que determinado imóvel cumpre os requisitos ou normas legais e regulamentares ao fim a que se destinam (segurança, salubridade, normas técnicas); a conformidade da obra construída com o projeto de arquitetura e projetos de especialidades aprovados em sede de licenciamento pelas entidades competente (nomeadamente a Câmara Municipal) e a adequação aos usos previstos.
II – Se o arrendamento é para o exercício de hotelaria e actividades turísticas e a licença de utilização destina o prédio a “estalagem”, é adequado ao fim do arrendamento, já que este conceito tem subjacente a utilização para habitação e não há qualquer diferença relevante entre as actividades em causa: estalagem e hotel.
III - A alegação da nulidade do contrato pela arrendatária que reconheceu ter realizado o mesmo, efectuado alguns pagamentos e ocupando o locado, representaria um inadmissível “venire contra factum proprium”, tendo, apenas, em vista eximir-se ao pagamento das rendas peticionadas como manifestamente abusiva.
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Nos autos de procedimento especial de despejo em que BB - Sociedade de Construção e Administração …, Lda. (A), com sede em Faro, demandou CC, Unipessoal Lda. (R), com sede em Sines, a A alega que é proprietária do prédio misto sito no Cerro do Lobo, em Estói, concelho de Faro, o qual foi dado, por contrato de arrendamento não habitacional de 12.05.2016, de arrendamento à R, com início em 15.05.2016, pelo prazo de 5 anos, renovado sucessivamente por 3 anos caso não houvesse oposição à renovação, mediante a renda mensal de € 5.000,00, sendo que o contrato previa um período de carência de 12 meses e até 14.07.2017, durante o qual a R pagaria a renda de € 3.000,00, a ser entregue no primeiro dia útil do mês anterior ao que dissesse respeito, tendo a R pago a quantia de € 1.500,00, correspondente a metade da renda devida entre 15.07.2016 e 31.07.2016 e nada mais pagou desde Agosto de 2016 a Junho de 2017, encontrando-se em dívida a quantia de € 43.000,00, pelo que a A procedeu à notificação judicial avulsa da R para resolver o contrato e obter a entrega do imóvel com fundamento na falta de pagamento das rendas. Apesar de notificada em 11.08.2017, a R não entregou o imóvel nem procedeu ao pagamento das rendas em dívida acrescidas da indemnização devida pela mora, pelo que a A intentou requerimento especial de despejo para lhe ser reconhecida a resolução do contrato invocando o disposto no art.º 1083.º, n.º 3 do Código Civil.
A R deduziu oposição, invocando, a título de questão prévia, a falta de validade do contrato de arrendamento por falta de licença para o fim do contrato de arrendamento, o que determina a nulidade deste e a impossibilidade de recurso a este procedimento especial. Mais alega que, para além da quantia de € 1.500,00, pagou ainda à A a quantia de € 15.000,00, de acordo com a cláusula 5.ª do contrato.
Conclui pela improcedência do pedido de despejo.
Em resposta, alega a A a existência de licença válida e que a requerida sabia das condições de licenciamento quando subscreveu o contrato e iniciou e continua a explorar o imóvel, pelo que, conclui, o contrato não padece de qualquer invalidade e, a existir, a requerida não a pode invocar ou dela prevalecer-se, por tal constituir um verdadeiro abuso do direito, pelo que reitera a procedência do pedido de despejo.
Realizou-se a audiência de julgamento.
Foi então proferida sentença, que julgou a acção procedente por provada e, em consequência:
1 - Declarou resolvido o contrato de arrendamento;
2) Condenou a R a entregar à A, completamente livre e devoluto de pessoas e bens, o prédio misto sito no Cerro do Lobo, em Estói, concelho de Faro, descrito na CRP de Faro sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e na matriz predial rústica sob o artigo … secção AR da União das Freguesias de Conceição e Estói.
Inconformada com a sentença, veio a R interpor o presente recurso contra a mesma, extraindo as seguintes conclusões (transcrição):
1ª -. O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível – artº 1070º/1, CC.
2ª - Em anotação ao artº 9º do NRAU, de teor semelhante, escreveram os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, que tal preceito, pretendendo pôr ordem e imprimir certeza numa área em que, na prática, ainda imperava a desordem e a vaga confiança no fechar complacente dos olhos das autoridades ou na condenação dos excessos da burocracia, firmou de novo a exigência da licença de utilização, estendeu-a a todas as variantes do arrendamento urbano (C.CIV. ANOT., Vol.II, pg.507).
3ª - O nº 2 do artº 1070º dispõe que Diploma próprio regula o requisito previsto no número anterior, diploma esse que veio a ser o Decreto-Lei nº 160/2006 (republicado pelo Dec-Lei nº 266-C/2012, de 31 de Dezembro).
4ª -. O nº1 do artº 5º do Decreto-Lei nº 160/2006 dispõe que só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios e suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização.
5ª.- E acrescenta o nº 4 do citado artigo 5ª: A mudança de finalidade e o arrendamento para fim não habitacional de prédios ou fracções não licenciados devem ser sempre previamente autorizados pela Câmara Municipal.
6ª -.O mesmo diploma legal comina com a nulidade o arrendamento para fim diverso do licenciado sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no nº5 e do direito do arrendatário à indemnização – nº 8 do citado artº 5º.
7ª - Conforme consta do contrato dos autos – e foi transcrito no Facto provado 1 – foi mencionada pela entidade proprietária a existência da licença de utilização nº …/93, concedida pela Câmara Municipal de Faro em 02 de Dezembro de 1993.
8ª - A referida licença de utilização nº …/93 consta dos autos, nela estando escrito “destinada a estalagem” e ainda “ ocupação – Estalagem”.
9ª - É assim incontornável que a licença de utilização/ocupação referida no contrato dos autos e nos Factos Provados era uma licença de carácter específico (para um determinado tipo de estabelecimento hoteleiro – estalagem) e não de carácter genérico, como, p.ex., comércio, serviços).
10ª - À data da celebração do contrato em causa nos autos (12 de Maio de 2016), não era possível licenciar e explorar uma “estalagem”, porquanto este tipo de equipamento hoteleiro fora eliminado pelo Decreto-Lei nº 39/2008, de 7 de Março, como claramente se infere do nº 2 do seu artº 11º.
11ª – A licença nº …/93, a partir da entrada em vigor, em 7 de Abril de 2008, do Decreto-Lei nº 39/2008, uma vez que apenas atestava a idoneidade do edifício para a utilização/ocupação “estalagem”, perdeu toda a sua eficácia.
12ª - A aqui apelada, aliás, estava bem ciente de que a licença de utilização nº …/93 não cumpria os requisitos para a celebração de um contrato de arrendamento válido, tanto assim que deu início ao processo de reconversão de actividade para hotel (cfr. Ponto 7 da matéria de facto provada).
13ª - Foi agendada a vistoria final para o dia 29/01/2015, a qual não se realizou por o imóvel estar encerrado desde 2015 (cfr. Ponto 8 da matéria de facto provada).
14ª- A aqui apelada, não obstante não ter obtido nova licença de utilização correspondente à reconversão da actividade para hotel, outorgou o contrato dos autos, onde referiu a licença de utilização nº …/93, que, além de não ser genérica, atestava as condições do edifício para o exercício de um – e só um - tipo de estabelecimento hoteleiro: estalagem (então inexistente no ordenamento jurídico).
15ª - A obtenção da licença de utilização para o exercício de uma actividade genérica é da responsabilidade do proprietário do imóvel, por se tratar do licenciamento do edifício após verificação pela entidade competente do cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção quer à segurança, salubridade ou estética.
16ª – Os preceitos legais supra citados nas Conclusões 1ª e 4ª contém normas imperativas, portanto fora do âmbito da autonomia contratual, e de interesse e ordem pública (cujo desrespeito não pode ser supri do pela invocação do abuso de direito).
17ª - Impõe-se pois concluir pela NULIDADE do contrato dos autos, donde a sua inidoneidade para gerar uma relação/situação jurídica do arrendamento, bem como a obrigação de pagamento de quaisquer rendas.
18ª – Consequentemente, ao proprietário do imóvel não era lícito instaurar procedimento especial de despejo.
19ª – Flui do supra exposto que, salvo o devido respeito, a aliás douta sentença recorrida, violou o disposto no artº 1070º/1, do Código Civil, no nº 1 do artº 5º do Dec-Lei nº 160/2006 (republicado pelo Dec-Lei nº 266-C/2012, de 31 de Dezembro) e nº 2, artº 11º, Decreto-Lei nº 39/2008, de 7 de Março, pelo que deve ser revogada.
Pelo exposto (…) deve ser julgada procedente a apelação e, consequentemente, proceder integralmente a oposição, e, correspondentemente, ser julgado improcedente o requerimento e procedimento de despejo, com as demais consequências legais.”
Nas contra alegações a A conclui da seguinte forma:
A. A Douta Sentença Recorrida não merece qualquer censura, pois correctamente os factos ao direito.
B. Para a decisão do presente pleito encontra-se estabelecido de forma definitiva que:
“(…)
6- Com data de 2.12.1993, a Câmara Municipal de Faro emitiu a Licença de Utilização de Edificações nº …/93 para o prédio situado em Cerro do Lobo destinado a Estalagem.
7- Em face das alterações legislativas, a A. deu início ao processo de reconversão da actividade a que se refere a licença identificada em 6 para hotel.
8- Por força da insolvência da anterior entidade exploradora do imóvel este encontrava-se encerrado desde 2015, o que impediu a realização da vistoria final que se encontrava agendada para 29.01.2015.
9- À data da celebração do escrito referido em 1, a Ré tinha conhecimento do referido em 6, 7 e 8.
10- Após a assinatura do escrito referido em 1, a Ré manifestou junto do Turismo de Portugal, em Junho de 2016, a intenção de retomar o processo de reconversão para a modalidade de hotel rural de 3ª ou 4ª e chegou a obter a Placa de Hotel Rural do Turismo de Portugal.
11- Aquando da vistoria realizada pelo Turismo de Portugal em 21 de Setembro de 2016 foram apontados incumprimentos.
12- Os incumprimentos referidos em 11 reportam-se a obras levadas a cabo pela Ré.
(…)
16- A ré continua a receber clientes no imóvel identificado em 1 e a aceitar pré-reservas.”
C. É à luz desta factualidade essencial que deve ser analisado o pleito.
D. A exigência do art.º 1070º do Código Civil, impõe como requisito de validade do contrato de arrendamento a existência de licença de utilização, assente na necessidade de obrigar os proprietários dos imóveis (novos, reconstruídos ou alterados) ao cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção, quer de segurança, salubridade ou estética, como estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação – RJUE.
E. Ou seja, que o imóvel objecto de arrendamento respeita as normas técnicas de construção aplicáveis a todas as edificações, designadamente nas matérias de segurança estrutural, eléctrica, contra incêndios, salubridade e ruído.
F. Isto é, a licença de utilização não visa o licenciamento de uma actividade específica, mas sim atestar o respeito do imóvel pelo quadro legal em vigor.
G. Aliás, é requisito prévio na obtenção do licenciamento da actividade turística a existência de uma licença de utilização emitida pela Câmara Municipal.
H. In casu, o locado possuiu uma licença de utilização plenamente válida, nos termos do RJUE. Isto é, o edifício em causa não é de construção ilegal, e se encontra em conformidade com as normas legais. Logo o contrato de arrendamento é válido.
I. Mesmo que assim não se entenda, o que se faz à mera cautela de patrocínio, mesmo admitindo aquela invalidade, esta é insusceptível de destruir ou impedir os efeitos do contrato celebrado, pela Ré actuar em manifesto abuso de direito.
J. Conforme resulta da factualidade estabelecida, a Apelante conhecia toda a situação jurídica do imóvel (facto 9), antes de outorgar o contrato de arrendamento. E, tendo conhecimento do vício, em vez de optar pela resolução do contrato, optou por continuar a utilização do locado para o fim contratado (facto 13 a 16)
K. Só quando interpelada judicialmente é que a Apelante invoca o alegado vício.
L. Conforme Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, págs. 436 a 438, escreve que “há abuso de direito, segundo a concepção objectiva aceite no art. 334º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito”.
M. A utilização do locado sem nunca arguir a nulidade, retirando dele todas as vantagens económicas, tendo conhecimento prévio das vicissitudes do licenciamento, assumindo a sua conclusão, vir arguir agora, no decurso da presente acção, a nulidade do contrato celebrado em Maio de 2016, é manifestamente atentatório dos limites da boa-fé, para efeitos do art.º 334º do Código Civil.
N. Pelo que a actuação da Apelante constitui o exercício abusivo do direito na modalidade de venire contra factum proprium, logo obstativa dos efeitos destruidores da nulidade.
O. Em consequência, à luz do art.º 334º do Código Civil, o contrato de arrendamento em crise mantém a sua plena eficácia e efeitos.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o Recurso ser julgado improcedente, devendo, consequentemente, ser confirmada a Douta Decisão recorrida.”
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 - Por escrito datado de 12.05.2016 subscrito por A. e Ré, denominado Contrato de Arrendamento Não Habitacional por Prazo Certo, constam, entre outras, as seguintes cláusulas:
"Objecto do Contrato
Cláusula Primeira
A Senhoria é dona e legítima proprietária do prédio urbano sito no Cerro do Lobo, em Estói, freguesia de Estói, concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da dita freguesia, com a Licença de Habitação nº …/93, concedida pela Câmara Municipal de Faro em 02 de Dezembro de 1993 e Certificado Energético nº SCE…, válido até 13/05/2025.
Cláusula Segunda
1. Pelo presente contrato a SENHORIA dá de arrendamento à ARRENDATÁRIA e esta aceita, o prédio descrito na cláusula anterior.
2. O referido prédio tem como finalidade o exercício da actividade de hotelaria e actividades turísticas.
3. O local arrendado é tomado de arrendamento em estado usado, que a ARRENDATÁRIA declara conhecer, podendo proceder às adaptações que se revelem necessárias, desde que por tal autorizada pela SENHORIA.
1. O arrendamento durará por um período de 5 (cinco) anos, com início em 15 de Maio de 2016 e fim em 14 de Maio de 2021, renovando-se automaticamente por sucessivos períodos de 3 (três) anos, desde que não seja denunciado por qualquer das partes, nos termos dos números seguintes:
2. O Contrato poderá ser denunciado por qualquer das partes, desde que a parte que o pretenda denunciar informe a outra de tal, por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 60 (sessenta) dias do seu final.
3. Caso o contrato seja denunciado pela Senhoria, esta terá que indemnizar a ARRENDATÁRIA nos termos da al. e) do número 4 da cláusula sexta do presente contrato.
1. A Arrendatária poderá instalar na área objecto do presente arrendamento o seu mobiliário e equipamento, adequados ao exercício da sua actividade.
2. Carecem de autorização da Senhoria todas e quaisquer obras de alterações, de conservação e de beneficiação, interiores ou exteriores, ao imóvel objecto deste contrato (…), que se afigurarem necessários para adaptação do espaço ao fim a que se destina, a realizar pela Arrendatária e da sua conta e exclusiva responsabilidade, ficando as mesmas a fazer parte integrante do espaço locado (…)
3. (…)
4. (…)
5. (…)
6. (…)
7. A Arrendatária será ainda responsável pela obtenção das licenças e autorizações necessárias ao exercício da sua actividade.
8. A Arrendatária não poderá dar outro fim ao arrendamento que não o referido no nº2 da cláusula segunda, sem prévia autorização dada por escrito pela Senhoria.
A renda será paga de acordo com o disposto nos números seguintes:
1. Contra a assinatura do presente contrato, a Arrendatária entrega à Senhoria a quantia equivalente a 3 (três) meses de renda a título de pagamento antecipado, o que perfaz o valor de €15.000,00 (quinze mil euros);
2. A Arrendatária beneficiará de um período de carência de 60 (sessenta) dias a contar da data da celebração do presente contrato, período esse que decorrerá entre 15 de Maio de 2016 e 14 de Julho de 2016.
3. Após esse período de carência, e durante o período de 12 (doze) meses (de 15 de Julho de 2016 e 14 de Julho de 2017), a Arrendatária pagará à Senhoria a renda mensal de 3.000,00€ (três mil euros);
4. A partir de 15 de Julho de 2017 e até ao final do contrato, a Arrendatária pagará à Senhoria a renda mensal de 5.000,00€ (cinco mil euros), não obstante o disposto no número seguinte;
5. A renda mensal está sujeita a actualizações anuais de acordo com os coeficientes de actualização, nos termos do artigo 1077º, nº1, do Código Civil, reposto pelo artigo 3º do NRAU, observando o regime de actualização estabelecido no nº 2, alíneas b) e c) daquela disposição legal.
6. As rendas serão pagas no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito, mediante transferência bancária para a conta da Senhoria (…).
VENDA DO IMÓVEL
Cláusula sexta
(…)
OUTRAS DISPOSIÇÕES
Cláusula Sétima
(…)
Cláusula Oitava
(…)
Cláusula Nona
(…)
Cláusula Décima
(…)
Cláusula Décima Primeira
(…)
Cláusula Décima Segunda
(…)
Cláusula Décima Terceira
(…).
2- Por Notificação Judicial Avulsa concretizada na pessoa do legal representante da Ré em 11.08.2017, a A. comunicou a esta, com referência ao escrito referido em 1, entre o mais, que: "(…) 7. A Notificanda realizou um único pagamento de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) em Julho de 2016, o que corresponde a metade de uma renda devida entre 15 de Julho de 2016 e 31 de Julho de 2016./ 8. Acontece, porém, que não obstante reiteradas diligências por parte da notificante à notificanda, na pessoa do seu representante legal, não foram até ao presente, efectuados os pagamentos das rendas correspondentes aos meses de Agosto de 2016 a Junho de 2017, ao valor de 3.000,00€ mês e de Julho e Agosto de 2017, ao valor de 5.000,00€ mensais. /9. Estando assim em dívida, até ao momento, a notificanda para com o notificante, a quantia de 43.000,00€ (quarenta e três mil euros)./10. Ao montante de rendas em dívida acresce a indemnização devida, nos termos do artigo 1041º nº1 do Código Civil, que actualmente é no montante de 21.500€ (vinte e um mil e quinhentos euros). /11. Pelo que, decorridos mais de três meses sobre a data que a notificanda omitiu o pagamento devido, tornou-se inexigível à notificante a manutenção do contrato de arrendamento, assistindo-lhe nessa medida o direito à resolução (artigo 1083º nº 3 do Código Civil), sendo que a resolução pela presente causa opera-se com a comunicação à contraparte, onde se invoque a obrigação incumprida (artigo 1084º do Código Civil). /12. Uma vez que esta resolução carece de ser efectuada por um dos meios referidos no artigo 9º nº 7 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, na sua versão actual./13. Pretende a aqui notificante que se efectue a presente notificação avulsa da notificanda, na estrita observância do disposto no nº1 do artigo 1084º também do Código Civil, no sentido de declarar resolvido o contrato de arrendamento.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer a V. Exa. se digne ordenar a notificação avulsa de CC, UNIPESSOAL, LDA., na pessoa do seu sócio gerente, DD, a fim de a mesma ser notificada da resolução do contrato de arrendamento iniciado em 12/5/2016, referente ao imóvel sito no Cerro do Lobo, em Estói, Concelho de Faro, por falta de pagamento das rendas, devendo o locado ser entregue livre e devoluto de pessoas e bens no prazo de 15 dias após a notificação, bem como deve ser efectuado o pagamento à notificante da quantia de 43.000,00€ a título de rendas vencidas e não pagas, de Agosto de 2016 a Agosto de 2017, inclusive, e ainda o pagamento da indemnização respectiva no montante de 21.500,00€, o que perfaz o montante global de 64.500,00€, até ao presente momento, acrescido do pagamento da compensação devida pela falta de entrega do locado, calculada nos termos do nº2 do artigo 1045º do Código Civil, ou seja, 10.000,00€ mensais, até integral e efectiva entrega do locado. (…)".
3- O escrito referido em 1 foi assinado pelo então gerente da Autora, em representação desta, EE, e o gerente da Ré, em representação desta, DD.
4- O reconhecimento das assinaturas referidas em 3 foi efectuado por advogado.
5- Em 26.05.2016, a Ré transferiu para a conta bancária da A. A quantia de 15.000,00€.
6- Com data de 2.12.1993, a Câmara Municipal de Faro emitiu a Licença de Utilização de Edificações nº …/93 para o prédio situado em Cerro do Lobo destinado a Estalagem.
7- Em face das alterações legislativas, a A. deu início ao processo de reconversão da actividade a que se refere a licença identificada em 6 para hotel.
8- Por força da insolvência da anterior entidade exploradora do imóvel este encontrava-se encerrado desde 2015, o que impediu a realização da vistoria final que se encontrava agendada para 29.01.2015.
9- À data da celebração do escrito referido em 1, a Ré tinha conhecimento do referido em 6, 7 e 8.
10- Após a assinatura do escrito referido em 1, a Ré manifestou junto do Turismo de Portugal, em Junho de 2016, a intenção de retomar o processo de reconversão para a modalidade de hotel rural de 3ª ou 4ª e chegou a obter a Placa de Hotel Rural do Turismo de Portugal.
11- Aquando da vistoria realizada pelo Turismo de Portugal em 21 de Setembro de 2016 foram apontados incumprimentos.
12- Os incumprimentos referidos em 11 reportam-se a obras levadas a cabo pela Ré.
13- Em 13.04.2017, o Turismo de Portugal notificou a Ré da proposta de indeferimento da licença para Hotel Rural, ordenando a remoção da Placa por " (…) o hotel ainda não está classificado naquela tipologia".
14- O processo de reconversão ainda se encontra pendente no site do Turismo de Portugal sob o nº ….
15- A Ré explora o imóvel identificado em 1 sob o registo nacional de turismo nº …/AL, como alojamento local, sob a designação de "S… H…", com referência ao número da licença referida em 6.
16- A ré continua a receber clientes no imóvel identificado em 1 e a aceitar pré-reservas.
Não se provaram quaisquer outros factos para além dos que se acabam de descrever e, nomeadamente, que:
a) A Ré tenha efectuado um único pagamento à A., em Julho de 2016, no valor de 1.500,00€;
b) Os incumprimentos referidos em 11 fossem os seguintes: Incorrecta colocação da rede de combate e detecção de incêndios e incorrecta construção da rampa de acesso para pessoas com mobilidade reduzida.”

2 – Objecto do recurso.
Face ao disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que as questões a decidir são as seguintes:
1.ª Questão – Saber se o contrato é inválido por falta de licença de utilização adequada ao fim do contrato.
2.ª Questão – Saber se a arrendatária pode invocar tal nulidade.

3 - Análise do recurso.

1.ª Questão – Saber se o contrato é inválido por falta de licença de utilização adequada ao fim do contrato.
A licença de utilização é obrigatória tanto para fins habitacionais como para outros fins, ligados a qualquer ramo de actividade.
Trata-se do documento emitido pela câmara municipal da área da situação do imóvel que define o tipo de utilização permitida para determinado edifício ou fração: habitação ou fins não habitacionais (comércio, serviços ou indústria).
Este documento legal é emitido pela entidade responsável, neste caso a Câmara Municipal, que atesta que determinado imóvel ou fração cumpre todos os requisitos legais (segurança contra riscos de incêndio, salubridade, habitabilidade, por exemplo), para ser utilizado, tanto para fins habitacionais como para outros fins, ligados a qualquer ramo de atividade.
A licença de utilização permite comprovar que determinado imóvel cumpre os requisitos ou normas legais e regulamentares ao fim a que se destinam (segurança, salubridade, normas técnicas); a conformidade da obra construída com o projeto de arquitetura e projetos de especialidades aprovados em sede de licenciamento pelas entidades competente (nomeadamente a Câmara Municipal) e a adequação aos usos previstos.
Acresce que o fim do contrato deve coincidir com a aptidão do locado constante da licença de utilização, também sob pena de nulidade do negócio, esta prevista no art.º 5.º, n.º 8 do DL n.º 160/2006, que estabelece que “o arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo (…)”, cabendo nesta situação, quer o arrendamento não habitacional de local licenciado apenas para habitação, quer o arrendamento habitacional de local licenciado apenas para fim não habitacional.
Dispõe o artigo 1070º do Código Civil que:
"1. O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível.
2. Diploma próprio regula o requisito previsto no número anterior e define os elementos que o contrato de arrendamento deve conter."
No caso dos autos, o arrendamento é para o exercício de hotelaria e actividades turísticas e a licença de utilização destina o prédio a “estalagem”.
“Estalagem” é casa de hóspedes dotada de condições e de um serviço de dormida e de refeição mediante remuneração estipulada em função da categoria a que pertence, albergaria, hospedaria. (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia da Ciências de Lisboa Verbo, 2001)
Entendemos que este tipo de utilização é perfeitamente adequado ao fim do arrendamento, já que não há qualquer diferença relevante entre as actividades em causa: estalagem e hotel.
Não vemos como se possa defender - como faz a recorrente - que existe uma desconformidade entre a ocupação prevista na licença de utilização – estalagem – e a finalidade do arrendamento: exercício da actividade de hotelaria e catividades turísticas.
A existir qualquer diferença, será ao nível da dimensão (a “estalagem”, enquanto tipo de equipamento hoteleiro, foi eliminada pelo n.º 2 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, onde só estão previstos “hotéis”, “hotéis-apartamentos” – aparthotéis - e “pousadas”) e, mesmo assim, cremos que hoje em dia, na prática, não se encontra muito rigor na diferenciação, permanecendo muitas vezes o termo como elemento do próprio nome do estabelecimento para acentuar o carácter típico do mesmo.
Assim, não se pode propriamente dizer que esta licença não é do tipo genérico, para o exercício de uma actividade genérica (habitação, comércio, profissão liberal), já que este conceito tem subjacente a utilização para habitação.
Existiria nulidade se a licença de utilização se destinasse, por exemplo, a fins habitacionais e o imóvel tivesse sido arrendado para outros fins (não habitacionais), o que não é o caso.
Entendemos que a licença de utilização tem por finalidade atestar a que uso se destina o imóvel e se este se encontra apto para o respectivo fim (habitacional comércio, indústria ou profissão liberal). A referida licença não se destina a licenciar a concreta actividade acordada pelas partes no contrato que celebraram (hotel ou estalagem, por exemplo).
Em suma: Não existe qualquer desconformidade que justifique / fundamente a nulidade do contrato nos termos invocados, pelo que improcede, nesta parte, o recurso.

2.ª Questão – Saber se a arrendatária pode invocar tal nulidade.
Ainda que assim não se entendesse, esta alegação da arrendatária representaria um inadmissível “venire contra factum proprium”, tendo apenas em vista eximir-se ao pagamento das rendas peticionadas e, como tal, a invocação da nulidade do contrato pela R. mostra-se manifestamente abusiva (art.º 334.º do Código Civil), uma vez que reconheceu ter realizado o mesmo e ocupou o locado, com a sua utilização efectiva e só agora, ao ser proposta a acção de despejo por falta de pagamento de rendas, se lembra de invocar a nulidade do contrato, pelo que a invocação da nulidade sempre corresponderia à violação do principio da boa- fé.
Verifica-se o incumprimento da R no pagamento da renda por período superior a 3 meses, o que baseia o fundamento para a resolução do contrato.
Não há, pois, qualquer razão para alterar a sentença recorrida.

Sumário:
I - A licença de utilização permite comprovar que determinado imóvel cumpre os requisitos ou normas legais e regulamentares ao fim a que se destinam (segurança, salubridade, normas técnicas); a conformidade da obra construída com o projeto de arquitetura e projetos de especialidades aprovados em sede de licenciamento pelas entidades competente (nomeadamente a Câmara Municipal) e a adequação aos usos previstos.
II – Se o arrendamento é para o exercício de hotelaria e actividades turísticas e a licença de utilização destina o prédio a “estalagem”, é adequado ao fim do arrendamento, já que este conceito tem subjacente a utilização para habitação e não há qualquer diferença relevante entre as actividades em causa: estalagem e hotel.
III - A alegação da nulidade do contrato pela arrendatária que reconheceu ter realizado o mesmo, efectuado alguns pagamentos e ocupando o locado, representaria um inadmissível “venire contra factum proprium”, tendo, apenas, em vista eximir-se ao pagamento das rendas peticionadas como manifestamente abusiva.

4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Évora, 28.06.2018
Elisabete Valente
Ana Margarida Leite
Silva Rato