Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
323/11.3TMFAR-C.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: ALIMENTOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Deve ser sempre fixada a pensão de alimentos na respectiva sentença, até para não inviabilizar o acesso à prestação existencial abonada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 323/11.3TMFAR-C.E1 (2ª Secção Cível)

ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


(…), em representação da criança (…), intentou a presente ação de alteração do exercício da regulação das responsabilidades parentais contra os requeridos (progenitores da menor), (…) e (…), que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Juízo de Família e Menores de Faro – J2) alegando, em síntese, residir a criança consigo e ser necessário que os pais contribuam com uma pensão de alimentos a favor da criança, devendo ser fixados em € 75,00 para cada progenitor, independentemente da situação laboral dos mesmos.
Citados os pais para uma conferência, os mesmos prestaram declarações, tendo também sido ouvido uma técnica que informou tribunal da situação atualizada da criança e demais intervenientes.
De seguida foi proferida sentença pela qual se julgou “infundado o pedido formulado” e se determinou “o arquivamento do processo”.
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Não se conformando, com esta decisão, veio a requerente, interpor o presente recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
I- A decisão recorrida abstém-se de fixar alimentos a cargo dos progenitores não guardiães – uma vez que os progenitores não têm qualquer condição para prestarem alimentos à menor.
II- Não obstante o progenitor se encontrar desempregado e a progenitora presa, o Tribunal podia e devia ter fixado uma prestação alimentícia a favor do menor, porque a situação do alimentando assim o reclama;
III- Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação – artigo 1878.º, nº 1, do Código Civil;
IV- Como tal, é dever dos pais esforçarem-se e diligenciarem com zelo e prontidão para proverem o sustento e manutenção dos filhos;
V- Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos, sendo certo, igualmente, que os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos – artigo 36.º, n.ºs 3 e 5, da Constituição Política da República Portuguesa;
VI- Assim, e para afastar a obrigação de alimentos, não bastará o não apuramento de rendimentos por parte do obrigado, é necessário estar provado, ainda, que não os pode obter;
VII- A situação de desemprego não dispensa o progenitor de cumprir a obrigação de alimentos a que está obrigado e que deverá, nesse caso, ser calculada de acordo com a sua capacidade laboral e de auferir rendimentos.
VIII- Só em situações de carácter verdadeiramente excecional será legítimo ao Tribunal não fixar qualquer prestação de alimentos;
IX- A não fixação da pensão de alimentos, inviabiliza de todo o acesso à prestação existencial abonada pelo FGADM, por parte da menor, põe em causa o Princípio da Igualdade, o Direito à Segurança Social e Solidariedade e o Direito a um mínimo de Dignidade existencial;
X- Ao não prescrever uma pensão alimentícia devida ao menor por parte dos progenitores, a Mmo. Juiz a quo não fez a melhor aplicação e interpretação do disposto no artigo 2004.º do Código Civil, tendo a douta decisão recorrida violado o estatuído no artigo 3.º da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das crianças, nos artigos 13.º, 36.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 1878.º, n.º 1, 2004.º, 2006.º e 2008.º, todos do Código Civil.
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Cumpre apreciar e decidir.

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a única questão que importa conhecer prende-se em saber se a decisão recorrida devia ter fixado uma prestação alimentícia a favor da menor por parte dos seus progenitores, independentemente da situação económica destes.

No Tribunal “a quo” foram dados como assentes, com relevo, os seguintes factos:
1. A criança (…) nasceu em 7.10.2007 e encontra-se registada como filha de (…) e de (…) – (doc. fls. 4 do apenso B).
2. A criança encontra-se entregue judicialmente à guarda da requerente (…), por decisão proferida em 7.3.2013 no processo 323/11.3TMFAR-­A (doc. fls. 52 a 54 do apenso A).
3. Nessa decisão quanto ao regime de alimentos consta a seguinte redação:
"Uma vez que neste momento a tia tem capacidade para suportar as despesas relativas à menor e face às condições económicas precárias dos progenitores, estes apenas contribuirão cada um com a quantia mensal de € 75,00, quando se encontrem a trabalhar, o que deverão entregar à tia até ao dia 8 de cada mês" (doc. fls. 53 do apenso A).
4. Atualmente a requerente encontra-se em situação de desemprego, auferindo € 421,20 mensais, acrescidos de 20% e subsídio de refeição tendo celebrado um contrato de emprego e inserção dentro do projeto de desemprego (declarações da técnica gestora).
5. A criança beneficia de abono de família majorado no valor de € 120,00 mensais (declarações da técnica gestora).
6. A guardiã já ativou todos os apoios sociais disponíveis, não conseguindo, contudo, acionar o apoio à renda, porquanto não preenche o requisito exigido legalmente ter idade inferior a 50 anos de idade (declarações da técnica gestora).
7. A guardiã beneficia de apoio de uma IPSS, onde recolhe diariamente uma refeição, que segundo esta garante o almoço da criança (declarações da técnica gestora).
8. A guardiã conseguiu em 21.09.2017, apoio social do município no valor de € 200,00, mas esse apoio é eventual, tendo de ser bem fundamentado e apenas pode ocorrer 3/4 vezes por ano, tendo esse montante, segundo a guardiã, servido para liquidar faturas que se encontravam atrasada (declarações da técnica gestora).
9. A guardiã tem como encargos mensais fixos € 350,00 de renda de casa, € 25,00 de água, € 35,00 de electricidade, € 22,00 de gás e € 56,80 do ATL que a criança frequenta (declarações da técnica gestora).
10. Foi diagnosticada hiperactividade à criança pela Dr.ª (…), pedopsiquiatra que acompanhava a criança no HCF, mas que entretanto cessou funções, continuando a criança, a ser acompanhada pela equipa do GASMI (declarações da técnica gestora).
11. A criança carece de medicação mensal (Stratera e Risperidona), que importa uma custo mensal superior a € 65,00, mesmo com receita médica e com comparticipação (declarações da técnica gestora e da requerente).
12. A criança beneficia de SASE escalão A, usufruindo apenas de um lanche de manhã e outro lanche à tarde, porquanto por aconselhamento da pedopsiquiatra a menina passou a almoçar em casa de forma a interromper o longo período de tempo que permanece em contexto escolar, minorando assim o seu mau comportamento (declarações da requerente).
13. A guardiã tem apoio de uma equipa de voluntariado, pertencente ao Banco Alimentar, onde recolhe de dois em dois meses um cabaz de alimentos (declarações da requerente).
14. A pedopsiquiatra que acompanhou a criança no HCF, ao cessar as suas funções deixou um relatório contendo o diagnóstico da criança, bem como a medicação prescrita, no entanto, nem o médico de família, Dr. (…), nem a pedopsiquiatra da equipa do GASMI prescreveram a medicação, o que já acontece desde o verão (declarações da técnica gestora e da requerente).
15. No HCF deixaram de existir consultas de pedopsiquiatria e não encaminharam a criança para o Hospital da D. Estefânia (declarações da requerente).
16. A guardiã tem receio de não conseguir controlar os comportamentos da criança por ausência da medicação, pois esta mostra-se cada vez mais revoltada, não aceitando ser contrariada (declarações da requerente).
17. A criança encontra-se a frequentar o 4º ano de escolaridade na Escola primária do (…), porquanto reprovou no ano transacto (declarações da requerente).
18. A professora atual da criança chama-se (…), mas quem acompanhou a criança durante os quatro anos do 1º ciclo foi a professora (…), a qual sempre referiu verbalmente as dificuldades sentidas pela criança, e a necessidade de apoio psicológico, mas nunca elaborou nenhum relatório escrito (declarações da requerente).
19. Já foi elaborado relatório psicológico pela equipa do GASMI com vista a ser accionado o decreto de Lei 3/2008, mas a requerente ainda não obteve qualquer resposta do agrupamento escolar (declarações da requerente).
20. Os progenitores não têm qualquer condição para prestarem alimentos à filha (declarações da requerente).
21. Encontrando-se a mãe presa e o pai a viver a expensas de familiares, não têm os progenitores condições para prestar alimentos à filha (declarações dos progenitores e da técnica gestora).
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Conhecendo da questão
Importa, desde já, salientar que estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, por via do qual, não se impõem critérios de legalidade estrita, devendo antes procurar-se a solução mais adequada ao caso concreto com vista à melhor regulação do interesse a acautelar – artºs 986º e 987º do CPC.
Conforme consta dos factos dados como provados, a criança Margarida Trindade Pereira, encontra-se entregue judicialmente à guarda da recorrente (tia paterna), por decisão proferida em 7/03/2013 no processo 323/11.3TMFAR-A.
Nessa decisão quanto ao regime de alimentos consta a seguinte redação: “Uma vez que neste momento a tia tem capacidade para suportar as despesas relativas à menor e face às condições económicas precárias dos progenitores, estes apenas contribuirão cada um com a quantia mensal de € 75,00, quando se encontrem a trabalhar, o que deverão entregar á tia até ao dia 8 de cada mês”.
Também consta dos factos dados como provados, que atualmente a recorrente se encontra em situação de desemprego, auferindo € 421,20, mensais.
A recorrente (guardiã e tia paterna da menor), tem como encargos mensais fixos, € 350,00 de renda de casa, € 25,00 de água, € 35,00 de electricidade, € 22,00 de gás e € 56,80 do ATL que a criança frequenta.
Na sentença recorrida, a Mª Juiz “a quo”, muito embora reconhecendo que a tia da menor passou a estar numa situação de desemprego, quando anteriormente exercia atividade laboral, entendeu todavia, não condenar os progenitores a contribuírem com alimentos a favor da filha (…), uma vez que os mesmos continuam sem auferir quaisquer rendimentos, a progenitora encontra-se detida e o progenitor declarou estar desempregado.
De acordo com o disposto no artº 42º, nº 1, do RGPTC, o acordo ou decisão final de regulação do exercício das responsabilidades parentais pode sempre ser alterado, a requerimento de qualquer um dos progenitores, de terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada ou pelo Ministério Público, quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido.
No caso em apreço, houve da parte da recorrente, guardiã da menor, ocorrência de circunstâncias de facto supervenientes que justificam a alteração no que ao dever de alimentos diz respeito.
Pois, se, anteriormente (decisão proferida em 7/03/2013), a tia da menor tinha capacidade para suportar as despesas relativas à mesma, atualmente, o mesmo não acontece, dado encontrar-se desempregada, além de que a menor também já tem 10 anos de idade, sendo do senso comum que as despesas com a mesma serão mais elevadas, pois com 10 anos as suas necessidades nada têm que ver com as que tinha quando foi tomada a decisão proferida em 7/03/2013.
Conforme determina o artº 1878º, nº 1, do CC, compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento.
A fixação de alimentos é uma das três questões essenciais a decidir na sentença que regula o exercício do poder paternal, não devendo os progenitores a eles obrigados ficarem desresponsabilizados do dever de contribuir para a alimentação do seu filho.
Depois, como decorre do artigo 2008º, nº 1, o direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido.
Se resulta assente que o progenitor se encontra a viver a expensas de familiares, isso não será suficiente para inviabilizar a fixação de uma pensão alimentícia, pois não resultou provado que o progenitor sofra de qualquer incapacidade para o trabalho, que o iniba de procurar uma atividade profissional ou laboral que lhe permita cumprir os seus deveres para com a menor, sua filha.
Também a progenitora apesar de presentemente se encontrar detida poderá, querendo, exercer atividade laboral no interior prisão, como decorre até das declarações por si prestadas em 02/11/2017, retirando dessa atividade rendimento que poderá destinar, na totalidade ou em parte, ao sustento da sua filha.
Importa também salientar que a CRP, no seu artº 69º, consagra o direito das crianças à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral.
Neste sentido, o legislador ordinário, através da Lei nº 75/98, de 19/11, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 164/99, de 13/05, estabeleceu o acesso dos menores a condições mínimas de subsistência, atribuindo-lhes prestações existenciais.
Mas, a atribuição dessas prestações, pressupõe a prévia fixação da pensão de alimentos (cfr. os artºs 1º, 2º e 3º da aludida Lei e 3º, nº 1, a), do referido Decreto-Lei, donde mais se impõe que o tribunal fixe no caso em apreço uma pensão à menor a suportar pelos progenitores, mesmo que estes tenham uma débil situação económica, pois não se poderá olvidar que também é fraca a situação económica da guardiã à menor não deverão deixar ser prestadas as condições mínimas de sustento, educação e saúde.
A não fixação da pensão de alimentos na respetiva sentença, inviabiliza o acesso à prestação existencial abonada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM).
No âmbito da Lei 75/98, o FGADM assume uma posição de garante legal do devedor principal, ao qual, no momento, não há possibilidade de exigir o pagamento coercivo, sendo, por tal responsável pelo incumprimento deste, substituindo-se a este e, muito embora, agindo autonomamente, a sua obrigação garantística nasce no momento em que o devedor entra em situação de incumprimento, pois, a prestação de alimentos a cargo do Fundo pressupõe a existência de uma prestação de alimentos fixada em sentença, que não é paga, voluntária ou coercivamente, que só subsiste enquanto esta e o seu não cumprimento subsistirem – cfr. Disposições combinadas dos artºs 1º e 3º, nº 4, da Lei 75/98 e 3º, nº 1, do Dec-Lei 164/99.
Não se pode deixar de ter em consideração que para além do seu caracter de prestação garantística, a prestação do Fundo, que visa assegurar, a necessária proteção da criança, no que se refere ao acesso às condições mínimas de subsistência com vista a proporcionar-lhe um desenvolvimento saudável e uma vida digna, assume, também, natureza de prestação social (natureza social reconhecida pelo legislador no preambulo do Dec. Lei 164/99, de 13/05 que regulamenta a Lei nº 75/98, de 19/11) reforçando a proteção social do Estado devida aos menores, no âmbito da politica social que cabe ao Estado desenvolver e incrementar com vista a tornar efetivos os direitos da criança, constitucionalmente consagrados no artº 69º da Constituição da República Portuguesa.
Nesta conformidade merece censura a decisão recorrida, havendo, pois, que fixar pensão a cargo dos progenitores da criança, no montante de € 75,00 mensais, a pagar por cada um, que deverão entregar à tia, guardiã, até ao dia 8 de cada mês, a que disserem respeito, sendo a mesma anualmente atualizada de acordo com a taxa de inflação publicada pelo INE.
Nos termos do artº 2006º do CC, os alimentos são devidos desde a proposição da ação, sendo que no caso concreto são devidos desde Agosto de 2017.
Assim, tendo em vista o pagamento dos alimentos em atraso até á presente data (Fevereiro de 2018), correspondente a sete meses no montante total de € 525,00 para cada um dos progenitores, entendemos que a prestação mensal a pagar por cada um, até liquidação total dos montantes atrasados, deverá ser de € 100,00 mensais, passando, após essa liquidação, a ser então de € 75,00 mensais.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, condenando-se cada um dos progenitores no pagamento de alimentos nos termos supra explicitados.
Sem custas.
Évora, 08 de Março de 2018
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes