Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1762/18.4T8PTM.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
FIANÇA
INTERPELAÇÃO
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto, nos termos do disposto no nº 1 do art. 662º do C.P.C., impõe que se tenha chegado à conclusão que a formação da decisão devia ter sido em sentido inverso daquele em que se julgou, emergindo de um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas, o que se veio a verificar no caso em apreço, pois, no que tange a dois dos factos dados como provados (ponto 7 e 18), existiu erro notório na apreciação da prova documental e testemunhal carreada para os autos.
- No caso em apreço, foi com fundamento na ausência total de aquisição de café por parte da 1ª R. desde Fevereiro de 2018 e na não retoma do consumo (sendo que no mês seguinte já aquela estava a consumir café de uma marca concorrente) que a A. promoveu a resolução do contrato em causa, por violação manifesta e clara por parte da 1ª R. das cláusulas 2ª nºs 2 e 3 e 8ª, nº 1, do contrato aqui em análise.
- Por isso, face ao estipulado nos artigos 406º e 798º do Código Civil, forçoso é concluir que, “in casu”, existiu, indubitavelmente, incumprimento contratual da 1ª R. para com a A.
- Para que a obrigação se tenha por não cumprida e se vençam juros moratórios contra o fiador, não é necessária a interpelação deste, bastando que tenha sido interpelado o devedor principal afiançado (cfr. art. 805º do Cód. Civil).
- A fiança não se extingue, pela circunstância da A., como credora, não ter reclamado o seu crédito em processo de insolvência, no qual a 1ª R., como devedora principal afiançada, veio a ser declarada insolvente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 1762/18.4T8PTM.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) Portugal Unipessoal, Lda. intentou a presente acção declarativa, sob forma de processo comum, contra (…) e (…), tendo como fundamento a responsabilidade civil contratual derivada do incumprimento do contrato de fornecimento de café por parte da 1ª R., sendo o 2º R. fiador desta última e, por via disso, pediu a condenação de ambos a pagar-lhe as quantias de € 1.742,50 e € 7.780,00, acrescidas dos respectivos de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
Atenta a declaração de insolvência da 1ª R. no P. 1228/18.2T8OLH do J1 do Juízo de Comércio de Olhão, foi declarada a extinção parcial da instância, por inutilidade superveniente da lide, tendo a acção prosseguido os seus ulteriores termos apenas contra o 2º R., o qual foi citado editalmente e está representado pelo Ministério Público.
Atenta a simplicidade da causa veio a ser dispensado o despacho-saneador.
Oportunamente foi realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que julgou improcedente, por não provada, a presente acção e, em consequência, absolveu o 2º R. do pedido formulado pela A.

Inconformada com tal decisão dela apelou a A., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1.ª - Em face dos elementos de prova constantes dos autos, com o devido respeito, deve considerar-se errónea a decisão sobre a matéria de facto.
2.ª – Deve, portanto, ser reapreciada a prova gravada e alterada a decisão sobre a matéria de facto.
3.ª - Considera a apelante que foi incorretamente considerado como não provado que “o 2º Réu tenha declarado renunciar ao benefício da excussão prévia”.
4.ª - Da conjugação da prova documental, junta aos autos, com as declarações da testemunha (…), tal factualidade deveria ter sido dada por provada.
5.ª - Do depoimento da testemunha (…), ainda que não alegado na petição inicial, nos termos do disposto no art.º 5.º, n.º 2, do CPC, devem ser considerados como provados os seguintes factos:
a) “O 2º Réu renunciou ao benefício da excussão prévia”;
b) “Em março de 2018, no seu estabelecimento, a ré (…) encontrava-se a consumir café de uma marca da concorrência”.
6.ª – Em face dos elementos de facto que devem ter-se como assentes, não pode considerar-se que “não resulta líquido a existência de incumprimento contratual”.
7.ª - Os fundamentos que permitem a resolução do aludido contrato, não se resumem apenas ao estabelecido no n.º 2 da sua cláusula oitava.
8.ª - Foi com fundamento na ausência total de aquisição de café, desde fevereiro de 2018, e na não retoma do consumo – violação da cláusula segunda do contrato – que a apelante promoveu a resolução do contrato em causa.
9.ª - Não pode aceitar-se como correto o entendimento que a “declaração «resolutiva não opera quanto ao fiador, nem pode o mesmo ser considerado interpelado ao pagamento das quantias indemnizatórias peticionadas pela Autora”.
10.ª - Não pode concluir-se que, quanto ao réu fiador, a resolução do contrato e as suas consequências não operam, e que o mesmo não se considera interpelado para o pagamento das quantias devidas à apelante.
11.ª - O fiador (e principal pagador) responde pelas consequências da mora e do incumprimento do devedor afiançado, sem que para tal tenha de ser interpelado.
12.ª - Não pode ter-se por correto o entendimento que “face à declaração de insolvência da 1ª Ré e não alegando a Autora se reclamou ou não o seu crédito no referido processo – artigos 642º, nº 2, 646º, 647º, 648º, a) e b), 653º e 654º do C.C. – sempre se imporia improceder a presente acção”.
13.ª - Nos termos do disposto no artigo 653.º do Código Civil, depende a liberação do fiador da sua obrigação, de ter sido uma ação ou omissão culposa do credor a causa da impossibilidade de sub-rogação daquele, no direito (do credor) sobre o devedor principal.
14.ª - Não ocorre o pressuposto da desoneração do fiador da obrigação que contraiu, sem que se demonstre que foi por facto, positivo ou negativo, do credor, que aquele não pode ficar sub-rogado nos direitos que a esta competem.
15.ª – “A fiança não se extingue, pela circunstância de o credor não ter reclamado o seu crédito em sede insolvencial, podendo tal extinção ocorrer naquelas hipóteses em que a sub-rogação já não se afigura possível, ou se torna impossível em absoluto, com as mesmas garantias, por não ter sido deduzida uma preferência num concurso de credores e/ou não ter sido registada uma hipoteca, vg, sendo que, as meras dificuldades da realização declarativa/coerciva do crédito, quando o devedor se tenha tornado insolvente, não relevam para a aplicação do normativo inserto no artigo 653º do CCivil – ac. do STJ de 10/12/2019”.
16.ª - Perante a factualidade que deve ter-se por assente, deveriam ter-se aplicado as disposições dos artigos 406º, 627º, 640º, 798º, 810º e 811º do Código Civil.
17.ª - Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente apelação ser julgada procedente, revogando-se a douta sentença recorrida e substituída por decisão que condene o réu, Paulo Jorge Patrocínio da Venda, nos pedidos deduzidos pela autora na presente ação, fazendo-se, assim, a costumada Justiça.
Pelo 2º R. não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada e não provada;
2º) Saber se existiu incumprimento contratual por parte da 1ª R. e, em caso afirmativo, saber se, por um lado, o 2º R., na qualidade de fiador, não necessitava de ser interpelado para o cumprimento da obrigação e, por outro, saber se a fiança não se extinguiu pela circunstância da A. não ter reclamado o seu crédito em sede insolvencial.

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal “a quo” e que, de imediato, passamos a transcrever:
1. A Autora celebrou com os Réus, no exercício da atividade comercial própria da Autora e da 1.ª Ré para o estabelecimento comercial desta o contrato nº (…), datado de 29-09-2014, de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato de equipamento, nos termos descritos de fls.5 a 9, para as quais se remete e se dão por integralmente reproduzidas.
2. A vigência do contrato n.º (…) foi declarada como sendo por um período de 60 meses, com início em 29-09-2014.
3. No âmbito deste contrato, a 1.ª Ré declarou obrigar-se a consumir, em exclusivo, no seu estabelecimento comercial, entre outros produtos e café da marca CHRISTINA, nomeadamente Lote GRANDE HOTEL, comercializados pela Autora.
4. Tendo declarado obrigar-se a adquirir 1.200Kgs daquele produto de café, num mínimo mensal de 20 kgs.
5. Como contrapartida das obrigações contratuais assumidas pela 1.ª Ré, a Autora colocou no seu estabelecimento comercial, em regime de comodato, o seguinte equipamento:
a) 1 Moinho Cimbali Special, no valor de € 775,71, acrescido de IVA à taxa em vigor;
b) 1 Máquina de Café Cimbali M24 Premium, no valor de € 2.848,84 + IVA à taxa em vigor;
Tudo no valor global de € 4.458,19.
6. Como contrapartida das obrigações contratuais assumidas pela 1.ª Ré, a Autora declarou obrigar-se a entregar à 1.ª Ré, a título de comparticipação publicitária, a quantia global de € 6.150,00, IVA incluído à taxa legal em vigor.
7. Em Fevereiro de 2018, a 1.ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora e não mais retomou o seu consumo, sendo que, em Março de 2018, no seu estabelecimento comercial, a 1ª R. estava já a consumir café de uma marca da concorrência, relativamente à marca de café que havia sido contratada com a A. (alterada a redacção neste aresto, a qual consta a negrito).
8. Na vigência contratual a 1ª Ré comprou à Autora apenas 422kgs.
9. Em consequência, a Autora enviou aos Réus as cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 03-04-2018, numa interpelando a 1ª Ré para que corrigisse o incumprimento contratual e noutra dando conhecimento ao 2º Réu desta última carta.
10. A autora enviou a carta para a 1ª Ré para duas moradas distintas: Sítio (…) CCI 111, 550-257 Portimão, tendo a mesma vindo devolvida com menção de objecto não reclamado e para a Urbanização São (…), nº12, Quinta da (…), 8500-396 Portimão, que veio devolvida ao remetente sem menção do motivo.
11. A autora enviou a carta para o 2º Réu para a morada do (…), Corte (…), 8550-257 Monchique, que veio devolvido com menção de objecto não reclamado.
12. Face à persistência no acima descrito, a autora remeteu aos Réus cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 24-04-2018, numa comunicando à 1ª Ré a resolução do contrato e interpelando-a para que efetuasse o pagamento de valores indemnizatórios aí descritos e noutra dando conhecimento ao 2º Réu desta última carta.
13. As cartas remetidas para a 1ª Ré foram-no para duas moradas distintas: Sítio (…) CCI 111, 8550-257 Monchique, que veio devolvida com menção de objecto não reclamado e para a morada Urbanização S. (…), nº12, Quinta da (…), 8500-396 Portimão, com menção de devolução ao remetente sem motivo.
14. A carta remetida ao 2º Réu foi-o para a morada (…), Corte (…), 8550-257 Monchique, que veio devolvida sem menção de motivo.
15. O equipamento referido em 5. foi levantado pela Autora.
16. O 2.º Réu assinou o contrato identificado em 1, declarando assumir a qualidade de fiador e principal pagador solidário, à Autora, das obrigações contratuais assumidas pela 1.º Ré, ficando pessoalmente obrigado perante a Autora.
17. A 1ª Ré foi declarada insolvente no processo n.º 1228/18.2T8OLH do J1 do Juízo de Comércio de Olhão.
18. - No contrato assinado e referido no ponto 16. dos factos provados o 2º Réu declarou renunciar ao benefício da excussão prévia (aditado o facto neste aresto, o qual consta a negrito).

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela recorrente – saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada e não provada – importa dizer a tal respeito que sustenta a A. a sua pretensão tendo por base a prova documental junta aos autos conjugada com o depoimento prestado em julgamento pela testemunha (…).
Ora, a este respeito, o nº 1 do art. 662º do C.P.C., estipula o seguinte:
- “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o art. 640º do C.P.C. especifica ou concretiza qual o ónus que incumbe ao recorrente quando pretender impugnar a matéria de facto, sendo que a alínea b) do nº 1 do referido preceito legal é bem clara nesta matéria ao mencionar (também aqui) que o recorrente deve especificar quais os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, não se contentando o legislador nesta matéria com uma mera faculdade (como por exemplo “podiam dar lugar” em vez de “impunham”), mas antes consagrando um imperativo – sublinhado nosso.
Ora, no caso dos presentes autos, houve gravação dos depoimentos testemunhais prestados em julgamento e, por isso, a A., aqui recorrente, podia impugnar, com base neles, a decisão da matéria de facto, seguindo, naturalmente, as regras impostas pelo citado art. 640º do C.P.C.
Por outro lado, constata-se que, como vimos supra, a recorrente indicou, nas suas alegações e conclusões de recurso, quais os concretos meios probatórios que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, identificando o documento e a testemunha, e concretizando com exactidão as respectivas passagens da gravação, sendo que, por isso, nesta parte, deu cumprimento ao estatuído no nº 1 alíneas a), b) e c) e nº 2, alínea a) do citado art. 640º do C.P.C.
Todavia, importa, desde já, salientar que, não obstante afirmar-se que o registo de prova produzido em audiência tem por fim assegurar um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, a realidade, como todos sabemos é bem diferente, já que “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso[5].
Na verdade, a recorrente põe em causa a objectividade de apreciação dos factos materiais que a Mma. Juiz “a quo” manteve como razão da sua convicção/decisão, designadamente ao não ter valorado devidamente (no seu entendimento) o depoimento da testemunha inquirida em julgamento, não obstante o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, consignado expressamente na lei – cfr. art. 607º, nº 5, do C.P.C.
Ora, ao tribunal de 2ª instância não é lícito, de todo, subverter o principio da livre apreciação da prova devendo, tão só, circunscrever-se a apurar da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau dessa mesma jurisdição, face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos e, a partir deles, procurar saber se a convicção expressa pelo tribunal de 1ª instância tem, ou não, suporte razoável naquilo que a prova testemunhal pode exibir perante si, sendo certo, que se impõe ao julgador que indique “os fundamentos suficientes para que, através da regras de ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade d(aquel)a convicção sobre o julgamento de facto como provado ou não provado[6].
Assim, a constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto, impõe que se tenha chegado à conclusão que a formação da decisão devia ter sido em sentido inverso daquele em que se julgou, emergindo “de um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas[7].
Ora, no caso em apreço, a matéria de facto dada como provada e não provada mostra-se fundamentada na sentença recorrida, com a indicação dos documentos e do depoimento da testemunha inquirida em julgamento (…) que o Julgador a quo entendeu relevante para tal.
Porém, analisando agora, em concreto, a presente apelação, quanto à reapreciação da matéria de facto, constatamos que a pretensão recursiva da A. consiste, primeiramente, em que seja dada resposta positiva (“provado”) ao ponto A) dos factos não provados.
Por isso, importa desde já transcrever qual a factualidade que consta do ponto acima referido, o que, de imediato, passamos a fazer:
- A. Que no contrato assinado e referido no ponto 16. o 2º Réu tenha declarado renunciar ao benefício da excussão prévia.
Analisando os presentes autos constata-se que a A., na sua petição inicial, alegou que o 2º R. assinou o contrato (…) na qualidade de fiador e principal pagador, solidário, à A. das obrigações contratuais assumidas pela 1ª R. ficando pessolmente obrigado perante a A., com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia (cfr. art. 23º de tal articulado), sendo certo que a fiança em causa decorre expressamente da cláusula 9ª do referido contrato, cuja reprodução se tem aqui por desnecessária.
Por outro lado, da audição da gravação do depoimento da testemunha (...), o qual veio a depor de forma isenta e credível, resulta claro que o 2º R. foi informado pessoalmente e estava consciente das reais condições do negócio e das consequências que para ele resultavam em caso de incumprimento contratual por parte da 1ª R.
Assim sendo, forçoso é concluir que a resposta dada ao ponto A) dos factos não provados não se poderá manter, pelo que se impõe a sua alteração que, desde já, se transcreve, passando a aditar-se aos factos provados o ponto 18 com a seguinte redação (a negrito):
18. - No contrato assinado e referido no ponto 16. dos factos provados o 2º Réu declarou renunciar ao benefício da excussão prévia.
Sustenta ainda a A. que seja aditado à factualidade já apurada um novo facto, a aditar à parte final do ponto 7 dos factos provados, o qual é um mero complemento daquilo que a A. já havia alegado na petição inicial e resultou da instrução da causa.
Na verdade, tal aditamento é permitido por lei – cfr. art. 5º, nº 2, alínea b), do C.P.C. – e resultou do depoimento prestado em audiência pela testemunha (…).
Com efeito, da audição da gravação de tal depoimento verifica-se que o mesmo afirmou ter constatado que, em Março de 2018, no seu estabelecimento comercial, a 1ª R. estava já a consumir café de uma marca da concorrência, relativamente à marca de café que havia sido contratada com a A.
Deste modo, ao abrigo do citado art. 5º, nº 2, alínea b), é nosso entendimento que a redacção do ponto 7 dos factos provados deverá ser alterada, aditando-se a factualidade supra referida e passando o mesmo a ter a seguinte redacção (a negrito), que, desde já, passamos a transcrever:
- 7. Em Fevereiro de 2018, a 1ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora e não mais retomou o seu consumo, sendo que, em Março de 2018, no seu estabelecimento comercial, a 1ª R. estava já a consumir café de uma marca da concorrência, relativamente à marca de café que havia sido contratada com a A.

Analisando agora a segunda questão levantada pela A., ora apelante – saber se existiu incumprimento contratual por parte da 1ª R. e, em caso afirmativo, saber se, por um lado, o 2º R., na qualidade de fiador, não necessitava de ser interpelado para o cumprimento da obrigação e, por outro, saber se a fiança não se extingue, pela circunstância da A. não ter reclamado o seu crédito em sede insolvencial – haverá que apreciar, desde já, se se verificou (ou não) o incumprimento do contrato por parte da 1ª R., sendo certo que se a resposta for afirmativa, então iremos apurar, de seguida, qual a responsabilidade do 2º R. no que tange à fiança por ele prestada no aludido contrato.
Ora, da factualidade apurada nos presentes autos constata-se que a Autora celebrou com os Réus, no exercício da atividade comercial própria da Autora e da 1.ª Ré para o estabelecimento comercial desta o contrato nº (…), datado de 29-09-2014, de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato de equipamento, nos termos descritos a fls. 5 a 9, para as quais se remete e se dão por integralmente reproduzidas.
E, no âmbito deste contrato, a 1.ª Ré declarou obrigar-se a consumir, em exclusivo, no seu estabelecimento comercial, entre outros produtos e café da marca CHRISTINA, nomeadamente Lote GRANDE HOTEL, comercializados pela Autora, tendo declarado obrigar-se a adquirir 1.200Kgs daquele produto de café, num mínimo mensal de 20 kgs.
Em Fevereiro de 2018, a 1.ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora e não mais retomou o seu consumo, sendo que, em Março de 2018, no seu estabelecimento comercial, a 1ª R. estava já a consumir café de uma marca da concorrência, relativamente à marca de café que havia sido contratada com a A.
Na vigência contratual a 1ª Ré comprou à Autora apenas 422 kgs e, por isso, a Autora enviou aos Réus as cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 03-04-2018, numa interpelando a 1ª Ré para que corrigisse o incumprimento contratual e noutra dando conhecimento ao 2º Réu desta última carta, tendo sido as cartas enviadas para as moradas que constavam do aludido contrato.
Porém, face à persistência do acima descrito, a Autora remeteu aos Réus cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 24-04-2018, numa comunicando à 1ª Ré a resolução do contrato e interpelando-a para que efetuasse o pagamento de valores indemnizatórios aí descritos e noutra dando conhecimento ao 2º Réu desta última carta, sendo que as cartas foram enviadas para as moradas constantes do contrato em causa – cfr. pontos 1, 3, 4, 7, 8, 9 e 12 dos factos provados.
Por outro lado, no contrato celebrado entre a A. e a 1ª R., na sua cláusula 8ª, foi estipulado o seguinte:
1 – Qualquer das partes pode pôr termo ao presente contrato, com efeitos imediatos, se a outra parte estiver em incumprimento contratual e não corrigir tal incumprimento no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis a contar da notificação por escrito feita pela parte lesada.
2 – As partes expressamente convencionam que se considera incumprimento contratual e, consequentemente, fundamento de resolução do contrato um desvio dos consumos mensais acordados nos termos do número dois da Cláusula Segunda superior a 20%, por um período de 6 meses consecutivos.
Assim sendo, resulta claro que os fundamentos que permitem a resolução do mencionado contrato, não se resumem, apenas, ao estabelecido no nº 2 da cláusula 8ª supra transcrita (como parece ter entendido a Julgadora “a quo” na sentença recorrida).
Com efeito, deve entender-se que a previsão genérica cujo preenchimento permite a qualquer das partes opor à outra a resolução do contrato reside na estipulação do nº 1 da referida cláusula, isto é, no facto de se encontrar um dos contraentes em incumprimento contratual e não corrigir tal incumprimento no prazo máximo de 10 dias úteis após interpelação pela parte lesada.
Por isso, não será apenas o desvio de consumo de 20% de café por 6 meses consecutivos, por parte da 1ª R., que poderá fundamentar a resolução do contrato.
Na verdade, o incumprimento contratual pode resultar, nomeadamente, da violação de outras disposições contratuais.
Ora, nos termos do estabelecido no nº 1 da cláusula 8ª do contrato em análise, a ausência de qualquer compra de café pelo cliente e/ou aquisições inferiores ao contratado durante um ou mais meses, faz a parte incorrer em incumprimento, uma vez que, de acordo com o estipulado nos pontos 2) e 3) da cláusula 2ª do contrato celebrado entre as partes, foi estabelecido o seguinte:
2 – O SEGUNDO CONTRATANTE obriga-se a adquirir à (…), ou a distribuidor por esta indicado, a quantia de 1200,00 quilogramas de café, devendo tal aquisição ser efetuada através de uma compra mínima mensal de 20,00 quilogramas.
3 - O SEGUNDO CONTRATANTE obriga-se ainda a não adquirir a terceiros os produtos referidos no nº1, nem publicitar ou revender no seu estabelecimento café e descafeinado de outras marcas durante o período de vigência do presente contrato.
Acresce que, por outro lado, veio a apurar-se que a 1ª R., em Março de 2018, já se encontrava a consumir café de uma marca concorrente (relativamente à marca de café que havia sido contratada com a A.).
Ora, quanto a nós, tal factualidade constitui, inexoravelmente, uma violação contratual por parte da 1ª R. e, como tal, é fundamento de resolução do contrato por parte da A.
Daí que, no caso em apreço, foi precisamente com fundamento na ausência total de aquisição de café por parte da 1ª R. desde Fevereiro de 2018 e na não retoma do consumo (sendo que no mês seguinte já aquela estava a consumir café de uma marca concorrente) que a A. promoveu a resolução do contrato em causa, por violação manifesta e clara por parte da 1ª R. das cláusulas 2ª, nºs 2 e 3 e 8ª, nº 1, do contrato aqui em análise.
Nestes termos – face ao estipulado nos artigos 406º e 798º do Código Civil – forçoso é concluir que in casu existiu indubitavelmente incumprimento contratual da 1ª R. para com a A.
Ora, atenta a conclusão supra referida, importa apurar, de seguida, qual será então a responsabilidade do 2º R. no que tange à fiança por ele prestada no aludido contrato.
E, a tal propósito, convém averiguar, desde logo, se o 2º R., na qualidade de fiador, não necessitava de ser interpelado para o cumprimento da obrigação e, por outro lado, se a fiança não se extinguia, pela circunstância da A. não ter reclamado o seu crédito em processo de insolvência (uma vez que a 1ª R. foi declarada insolvente – cfr. ponto 17 dos factos provados).
Analisando a matéria fáctica apurada resultou claro que o 2º R. constituiu-se fiador e principal pagador, solidário, à A. das obrigações contratuais assumidas pela 1ª R., ficando pessoalmente obrigado perante a A., com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia, pelas consequências do incumprimento contratual da afiançada – cfr. pontos 16 e 18 dos factos provados.
E mesmo que se pudessem considerar como não recebidas as comunicações que a A. remeteu ao 2º R. (por cartas registadas com aviso de receção), não pode, por essa razão, concluir-se que a resolução do contrato e as suas consequências não operam quanto a este último e que o mesmo não se considera interpelado para o pagamento das quantias devidas à A.
Na verdade, o fiador (e principal pagador) responde pelas consequências da mora e do incumprimento do devedor afiançado, sem que para tal tenha de ser interpelado. Isto porque o fiador não se obriga ao cumprimento das obrigações contratualmente assumidas pelo devedor afiançado, apenas garante o seu cumprimento.
Com efeito, no caso dos presentes autos, o 2º R. não se obrigou a comprar café à A. mas, tão somente, a suportar as consequências da não aquisição pela 1ª R. das quantidades de café a que esta se vinculou.
Neste sentido, pode ver-se o Ac. da R.L. de 16/5/2013, disponível in www.dgsi.pt, no qual se afirmou o seguinte:
- Em termos gerais o fiador responde, sem necessidade de interpelação para o efeito, desde que essa interpelação seja feita junto do devedor afiançado, pelas consequências da mora do devedor.
Em sentido idêntico ou similar veja-se o Ac. do STJ de 1/7/2008, também disponível in www.degsi.pt, onde é referido o seguinte:
- Para que se tenha por incumprida a obrigação e verificada a responsabilidade do fiador pelo incumprimento, seja pela mora seja por indemnização fundada no incumprimento culposo do devedor principal, não é necessária a sua interpelação, bastando que esta seja efectuada na pessoa do devedor (…).
Por último, veja-se ainda o Ac. do STJ de 4/12/2003, também disponível in www.degsi.pt, no qual, a dado passo, é afirmado o seguinte:
- Para que a obrigação do fiador se considere incumprida e se vençam juros moratórios da sua responsabilidade, não é necessária a sua interpelação, bastando que esta tenha ocorrido em relação ao devedor principal afiançado (…).
Assim sendo, resultando provado nos autos que a 1ª R. foi interpelada (como afiançada) pela A. da resolução do contrato, por incumprimento do mesmo, torna-se evidente que é desnecessária a interpelação do 2ª R., como fiador, para que a obrigação deste seja considerada incumprida (não obstante se tenha apurado que, “in casu”, tal interpelação ocorreu mesmo – cfr. pontos 12 e 14 dos factos provados).
Finalmente, importa averiguar se a fiança em causa não se extinguiu, pela circunstância da A. não ter reclamado o seu crédito em processo de insolvência (uma vez que a 1ª R. veio a ser declarada insolvente).
Ora, a este propósito sempre se dirá que a Julgadora “a quo” sustentou na decisão sob censura que, pelo facto da A., como credora, não ter reclamado o seu crédito no processo de insolvência da 1ª R., como devedora, o fiador – o 2º R. – ficava automaticamente desonerado da sua obrigação de garantir o pagamento do crédito em causa.
No entanto, e salvo devido respeito, não podemos concordar com tal raciocínio uma vez que, aderindo à fundamentação explanada no Ac. da R.L. de 16/5/2019, disponível in www.dgsi.pt – o qual se pronunciou sobre uma situação análoga à dos presentes autos (na qual a A./apelante também figura como recorrente) – a extinção da fiança, ex vi art. 653º CC, pressupõe um facto voluntário (acção ou omissão) do credor afiançado que inviabilize a sub-rogação do fiador nos direitos que lhe assistem.
Por isso, a insolvência do devedor originário em nada contende com a sub-rogação do crédito do credor primitivo traduzindo-se, tão só, numa eventual impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.
Em sentido idêntico ao aresto supra transcrito veja-se ainda o Ac. do STJ de 10/12/2019, também disponível in www.dgsi.pt, no qual foi afirmado o seguinte:
- Se um credor, podendo fazê-lo, não reclama o seu crédito contra a devedora insolvente, nos autos de insolvência desta, nem no prazo da reclamação, nem subsequentemente em sede de verificação ulterior de créditos, nos termos do artigo 146º do CIRE, assume o gravame da sua omissão, ficando impossibilitada de poder vir a perceber da massa, o seu crédito, ou parte dele.
- Contudo, essa circunstância não o impede de vir em acção própria demandar os fiadores daquele mesmo crédito, os quais, em relação a si, detêm uma divida pessoal decorrente das obrigações assumidas, isto é, a garantia de que iria obter o resultado da obrigação principal, mesmo que o devedor a não satisfizesse.
- A fiança não se extingue, pela circunstância de o credor não ter reclamado o seu crédito em sede insolvencial (…).
Deste modo, pelas razões e fundamentos explanados no presente aresto, forçoso é concluir que, tendo a 1ª R. incumprido o contrato celebrado com a A. e esta tenha interpelado aquela da resolução de tal contrato, tornava-se despiciendo a interpelação do 2º R., na qualidade de fiador, para cumprir a obrigação (apesar da interpelação ter ocorrido), sendo certo que a fiança não se extinguiu pelo facto da A., como credora, não ter reclamado o seu crédito no processo de insolvência em que a 1ª R. foi declarada insolvente.
Nestes termos, resulta claro que a sentença recorrida não se poderá manter – de todo – revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, ao abrigo do disposto nos arts. 406º, 627º, 640º, 798º, 810º e 811º todos do Cód. Civil, condena-se o 2º R. a pagar à A. as quantias constantes dos pedidos por si deduzidos na presente acção (ou seja, o valor de € 1.742,50 a título de restituição da comparticipação publicitária, relativa ao contrato identificado nos autos e o valor de € 7.780,00 a título de indemnização por café não consumido, no âmbito do mesmo contrato, a que acrescem os respectivos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data limite fixada pela A. – 11/5/2018 – até integral pagamento, devendo o 2º R., na sua qualidade de fiador, proceder ao pagamento da respectiva obrigação).

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Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

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Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela A. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pelo 2º R., aqui apelado.
Évora, 04 de Junho de 2020
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
[5] - Preâmbulo do Dec. Lei 39/95 de 15/02.
[6] - Cfr. M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Cód. Proc. Civil, 1997, 348.
[7] - cfr. Desembargador Pereira Batista, em muitos acórdãos desta Relação nomeadamente na Apelação n.º 1027/04.1, disponível em www.dgsi.pt.