Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6865/12.6TBSTB.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
MÚTUO BANCÁRIO LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: À luz do regime vigente antes da alteração promovida pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, enquanto documento particular dotado de características de exequibilidade, o contrato de abertura de crédito poderia constituir título executivo, desde que fosse acompanhado por documentação demonstrativa de que efectivamente foi emprestada alguma quantia.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 6865/12.6TBSTB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Instância Central – Juízo de Execução de Setúbal – J2
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
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I – Relatório:
Na presente acção executiva proposta por “(…) Global Limited” contra (…) e (…), o exequente não se conformou com o despacho de indeferimento liminar proferido pelo Tribunal «a quo». *
A “(…) Global Limited” instaurou a acção executiva para pagamento da quantia de € 4.225,86 (quatro mil, duzentos e vinte e cinco euros e oitenta e seis cêntimos) e funda a sua pretensão na cessão de créditos pela “(…) Partnerchip 5 LLP”, que os havia adquirido ao credor originário “(…), SA”.
A exequente apresenta como título executivo os documentos juntos a fls. 64-65.
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O Tribunal indeferiu liminarmente o requerimento executivo por falta de título e consequentemente declarou extinta a execução.
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Inconformada com tal decisão, a recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
a) O documento apresentado à execução titula um contrato, celebrado entre a apelante e o apelado, através do qual a Exequente/apelante concedeu um crédito aos Executados, através do qual este se obrigou a reembolsar a Exequente da verba mutuada e efectivamente disponibilizada, mediante o pagamento de prestações mensais determinada no contrato.
b) O contrato de concessão de crédito constitui um documento particular assinado pelos Executados constitutivo de uma obrigação por parte daqueles de restituição da quantia financiada/mutuada nos moldes acordados, a qual é aritmeticamente determinável.
c) Não obstante, interpelada para efectuar o pagamento das prestações em dívida, os Executados não pagaram as mesmas e, em consequência, incumpriram definitivamente as condições de reembolso e o respectivo contrato, o que implicou o vencimento imediato de todas as prestações em dívida, nos termos do artigo 781º do Código Civil.
d) Os Executados assumiram a obrigação de pagamento dessa quantia pecuniária mutuada, ainda que diluída num dado período temporal, mediante a aposição das suas assinaturas no contrato, aceitando, assim, as condições particulares e gerais, aliás conforme declarado expressamente no contrato.
e) Pelo requerimento pretende-se obter o pagamento da quantia em dívida atinente ao reembolso do crédito concedido. Tal reembolso constitui obrigação assumida expressa e pessoalmente pelos devedores no contrato que titula a execução.
f) A propositura de uma acção executiva implica que o pretenso Exequente disponha de título executivo, por um lado, e que a obrigação exequenda seja certa, líquida e exigível da obrigação exequenda.
g) Do contrato de concessão de crédito resulta a certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação exequenda.
h) Ao Exequente mais não compete, relativamente à existência da obrigação, do que exibir o título executivo pelo qual ela é constituída ou reconhecida. Um contrato em que a entidade bancária concede a alguém um empréstimo, (…) alegando aquela entidade que este não pagou uma prestação vencida e todas as que lhe seguiram pode servir de título executivo em execução a instaurar contra o devedor.
i) O contrato de mútuo celebrado entre as partes é possível verificar que foi concedido, aos Executados, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), os quais seriam liquidados em prestações mensais de 12$00 (doze mil escudos), que actualmente corresponde ao montante de € 60 (sessenta euros).
j) O pagamento das mensalidades ora reclamadas constitui um facto extintivo do direito invocado pela Exequente, pelo que, nos termos do artigo 342º, nº 2, do Código Civil, o respectivo ónus compete aos Executados, ou seja, àqueles contra quem o direito é invocado, em sede de eventual oposição.
k) Do documento resulta ainda a aparência do direito invocado pela Exequente, direito que, por isso, é de presumir.
l) O Tribunal recorrido efectuou uma errada interpretação do Direito por si invocado, violando o disposto nos artigos 45º, nº 1 e 46º, nº 1, al. c), ambos do CPC de 1961, na sua actual redacção, porquanto o contrato sub judice constitui título executivo bastante.
Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. Doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada, prosseguindo a execução intentada os seus termos até final, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada Justiça!»
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Os executados contra-alegaram, sustentando o recurso apresentado deve ser julgado improcedente e que a decisão recorrida deve ser mantida. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de título executivo contra os executados.
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III – Dos factos com interesse para a causa:
A documentação apresentada tem os seguintes dizeres;
a) Na frente do documento:
- No canto inferior esquerdo encontra-se manuscrito o nome da executada (…) e no canto inferior direito está manuscrito o nome do executado (…); no topo de tal documento consta a seguinte expressão impressa: “Vida Livre; Sim, desejo beneficiar da Reserva Vida Livre; Solicito a minha reserva permanente de dinheiro no montante de; em baixo desta expressão, das quadrículas que antecedem as quantias aí referidas, encontra-se assinalada com um X a quadrícula 300.000$00, mensalidades de 12.000$00.
b) No verso do documento:
- Escrito apelidado de “CONTRATO DE CRÉDITO EM CONTA CORRENTE”, tendo, logo abaixo desta denominação, o seguinte: “Esta proposta é válida até 30/06/2000 e pode converter-se em contrato nos termos seguintes: Este contrato tem por objecto a concessão de crédito, em conta corrente e é proposto por (…) Financière pour la Distribution, (…), SA, Sucursal, Pessoa Colectiva n.º (…), matriculada na C.R. Comercial de Lisboa sob o n.º (…), com sede na Av. da (…), n.º 35 – 6.º, 1069-046 Lisboa.”
- No seu canto inferior direito este documento tem os seguintes dizeres impressos:
Vida Livre; Data: 02/12/99, e em baixo consta um rúbrica atribuída à (…);
- Subordinadas à epígrafe “CONDIÇÕES GERAIS”, deste documento constam, entre outras, as seguintes cláusulas:
2. CONCLUSÃO DO CONTRATO: A (…), recebido o contrato que lhe é destinado, reserva-se o direito de confirmar ou recusar a concessão do crédito, entendendo-se aquele por concluído na data da assinatura pelo Mutuário, caso este não tenha revogado a declaração e a (…) tenha confirmado a concessão de crédito.
7. CUSTO DO CRÉDITO: o custo do crédito varia em função das utilizações, montante e duração do saldo devedor e é composto pelo crédito utilizado, juros diários vencidos, impostos e demais encargos, correspondendo a uma Taxa Anual Efectiva Global (TAEG) actualmente de 26,5%.
9. REEMBOLSO MÍNIMO E PRESTAÇÃO MENSAL.
9.1 O mútuo deve ser mensalmente reembolsado pelo Mutuário à (…), por débito em conta ou outra forma indicada pela (…), variando a prestação em função do montante do crédito utilizado.
9.2 A prestação mensal deve ser paga até à data indicada no extracto de conta, não podendo ser inferior a uma parte fixa e pré-estabelecida no valor igual a 4% do limite máximo do crédito autorizado.
11. INCUMPRIMENTO E RESOLUÇÃO DO CONTRATO.
11.1 Caso o mutuário não faça o pagamento duma prestação na data acordada ficará em mora, acrescendo à prestação em dívida juros de mora à mesma taxa do crédito ou, quando superior, à taxa máxima legalmente permitida para juros civis ou comerciais e uma indemnização equivalente a 8% da fracção de crédito vencido.
11.2 Mantendo-se o incumprimento a (…) pode considerar antecipadamente vencidas todas as prestações emergentes do contrato, exigir o seu pagamento imediato e resolver o contrato. Neste caso a (…) pode exigir do Mutuário, para além do pagamento integral das prestações vencidas acrescidas de juros calculados nos termos do n.º 11.1, uma indemnização equivalente a 8% do montante das prestações vencidas e não pagas e das prestações vincendas.
11.3 A (…) pode ainda resolver o contrato e encerrar a conta se o Mutuário não utilizar o crédito durante 1 ano, ou deixar de cumprir alguma obrigação assumida e, em particular, se: der informações inexactas sobre a sua situação financeira e/ou pessoal; fizer uso abusivo ou ilícito do crédito, da conta ou dos meios destinados a movimentá-la; ultrapassar o limite máximo do crédito concedido.
11.4 A resolução do contrato nos termos do n.º anterior dá lugar à imediata exigibilidade do saldo devedor, que vencerá juros à taxa em vigor à data da resolução até ao integral e efectivo pagamento, devendo o Mutuário restituir todos os meios que permitam a movimentação da conta.
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IV – Fundamentação:
A acção executiva visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado e tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (artigos 2º, 4º, nº 3 e 45º, nº 1, do CPC, a que correspondem os artigos 2º e 10º nºs 1, 4 e 5, do NCPC).
A exequibilidade extrínseca da pretensão é atribuída pela incorporação da pretensão no título executivo. Ou seja, é exigência legal a existência de um documento que formaliza a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (artigo 45º, nº 1, do CPC, a que sucedeu o artigo 10º, nºs 4 e 5, do NCPC).
Para Lebre de Freitas o título constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade, activa e passiva[1].
Rui Pinto afirma que «deve considerar-se que o título executivo é um documento, i. é., a forma de representação de um facto jurídico, o documento pelo qual o requerente de realização coactiva da prestação demonstra a aquisição de um direito a uma prestação, nos requisitos legalmente prescritos»[2].
A propósito da necessidade de título executivo, Abrantes Geraldes[3] refere que «o título executivo é, assim, condição necessária da acção executiva, já que sem título não pode ser instaurada acção executiva; se for instaurada, deve ser indeferida liminarmente; se o não for, pode ser objecto de oposição à execução.
Mas, por outro lado, o título executivo é também condição suficiente da acção executiva, uma vez que a sua apresentação faz presumir as características e os sujeitos da relação obrigacional, correspondendo à necessidade reclamada pelo processo executivo de se encontrar assegurada, com apreciável grau de probabilidade, a existência e o conteúdo da obrigação. Assim, a análise do título deve demonstrar, sem necessidade de outras indagações, tanto o fim como os limites da acção executiva».
O título executivo cumpre, no processo executivo, uma função de legitimação: ele determina as pessoas com legitimidade processual para a acção executiva e, salvo oposição do executado, ou vício de conhecimento oficioso, é suficiente para iniciar e efectivar a execução.
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O exequente invoca que foi outorgado com o executado um contrato de crédito em conta corrente, por documento particular, com o nº (…), no montante inicial de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), comprometendo-se a proceder ao pagamento da verba disponibilizada em prestações mensais e sucessivas.
Adianta ainda que, desde 23/05/2006, o executado nada paga e que ficou assim em dívida um montante global de € 2.624,00 (dois mil e seiscentos e vinte e quatro euros), acrescida de juros e de cláusula penal de 8% sobre o capital em falta no caso de resolução devida a incumprimento do devedor.
A sociedade exequente fundamenta a sua posição jurídica numa cadeia de cessão de créditos. A cessão de créditos, prevista nos artigos 577º[4] e seguintes do Código Civil, consiste numa forma de transmissão do crédito que opera por virtude de um negócio jurídico, normalmente um contrato celebrado entre o credor e terceiro e que não exige o consentimento do devedor. E, neste particular, no domínio do fenómeno da transmissão das obrigações, a posição jurídica da “(…) Global Limited” mostra-se substancialmente legitimada.
Aquilo que se trata de saber é se a convocada conta corrente e a demais documentação apresentada podem constituir um título executivo à luz da disciplina prevista no artigo 46º, al. c), do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, entretanto revogada.
Para que um documento particular se assumisse como título executivo a lei impunha que fosse assinado pelo devedor, que importasse a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes.
O Tribunal «a quo» entendeu que a documentação apresentada não reunia as características exigidas por lei. Para tanto, o julgador de Primeira Instância socorreu-se da seguinte argumentação: «decorre das condições gerais do documento apresentado como título executivo que a (…) se reserva o direito de confirmar ou recusar a concessão do crédito, entendendo-se aquele por concluído na data da assinatura pelo mutuário, caso este não tenha revogado a declaração e a (…) tenha confirmado a concessão de crédito.
Sucede, porém, que do documento apresentado não decorre que a (…) tenha feito tal comunicação/confirmação, nem em que data, nem as cláusulas em apreço se mostram assinados pelos executados.
Por outro lado, do documento dado como título executivo consta apenas, numa quadrícula, um montante de 300.000$00, do mesmo não resultando qualquer declaração da parte dos executados de que são devedores dessa quantia, nem que se vinculam a um determinado modo de pagamento.
Refira-se, ainda, que do documento dado à execução não resulta que o crédito solicitado foi, efectivamente, posto à disposição dos executados (o que, aliás, nem sequer foi alegado no requerimento executivo), pelo que, não obstante a consideração do constante nas aludidas condições gerais, não se pode entender que, através desse documento, se formalize ou evidencie um contrato de abertura de crédito.
Em tal documento, onde se contém um clausulado geral, não é possível delinear um qualquer contrato de mútuo – que apenas se pode ter como concluído e perfeito com a entrega da coisa mutuada –, mas antes e quando muito uma mera proposta de um contrato de abertura de crédito, tanto mais que, no proémio do respectivo clausulado se fala, de resto, “em proposta válida até 30/06/2000, que se poderá converter em contrato definitivo nos termos seguintes (…)”, e que a “(…), recebido o contrato que lhe é destinado, reserva-se o direito de confirmar ou recusar a concessão do crédito (…)” – cláusula 2.1.
Acresce que, do referido documento nem sequer consta o montante da quantia alegadamente mutuada, a respectiva taxa de juros ou os valores do seu reembolso, tendo-se clausulado apenas que o custo do crédito varia em função das utilizações, montante e duração do saldo devedor (cláusula 7ª).
Daqui decorre, inexoravelmente, que o documento apresentado não tem aptidão como título executivo, pois dele não é possível retirar que os executados, por via dele, tenham constituído ou reconhecido as obrigações pecuniárias alegadas pelo exequente no requerimento executivo».
Do ponto de vista negocial é chamado à colação um contrato de abertura de crédito, que, na prática, configura um mútuo comercial. Este é o contrato pelo qual o banco se obriga a colocar à disposição do cliente uma determinada quantia pecuniária, por tempo indeterminado ou não, ficando este obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões.
A lei portuguesa não regula, de modo expresso, a abertura de crédito mas a mesma é definida como uma operação de banco ao abrigo do artigo 362º[5] do Código Comercial. Recorda-se aqui que na situação vertente o alegado credor originário […] era uma entidade sujeita ao regime dos sujeitos e dos actos bancários.
Como afiança Menezes Cordeiro «a abertura de crédito é simples ou em conta-corrente: no primeiro caso, o crédito disponibilizado pode ser usado uma vez; no segundo, o cliente pode sacar diversas vezes sobre o crédito, solvendo as parcelas de que não necessite, numa conta-corrente com o banqueiro. Nesta última hipótese há, ainda, que lidar com as regras da conta-corrente»[6].
Este contrato de abertura de crédito desempenha uma importante função prática, servindo os interesses de ambas as partes. Para o creditado, ele assegura de antemão a disponibilização dos fundos necessários para concretizar um determinado negócio em vista em condições financeiras e operacionais mais vantajosas do que no caso de um empréstimo bancário (que implicaria o pagamento imediato de juros, além de lhe permitir mobilizar o montante disponibilizado na estrita medida das suas necessidades). Para o creditante, ele assegura o encaixe de uma remuneração sem risco, consistente na comissão de abertura de crédito (também designada comissão de reserva) acrescida, relativamente aos fundos disponibilizados não utilizados, de uma comissão de imobilização[7].
Em tese e numa dimensão abstracta, um contrato de abertura de crédito em que uma entidade bancária concede a alguém um empréstimo, alegando aquela instituição que este não pagou uma prestação vencida e todas as que lhe seguiram pode servir de título executivo dotado dos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade em execução a instaurar contra o devedor.
Neste horizonte valorativo, o contrato de abertura de crédito poderia constituir título executivo, desde que fosse acompanhado por documentação demonstrativa de que efectivamente foi emprestada alguma quantia[8].
Todavia, ao contrário daquilo que está vincado no articulado de recurso, a questão não se posiciona na dimensão do pagamento enquanto facto extintivo – cujo ónus compete na verdade aos executados –, antes aquilo que importa para a resolução deste caso é o da real constituição da obrigação: o da entrega da coisa mutuada.
Tal como coloca em evidência a decisão recorrida, do texto do alegado contrato de mútuo e da documentação complementar não resulta que o creditante tenha disponibilizado ao cliente qualquer importância – ou, melhor, noutra formulação, a existir essa disponibilização de fundos, a mesma não está correctamente documentada em função dos requisitos exigidos para perfectibilizar o título de crédito.
Na verdade, a conta-corrente é um mero suporte contabilístico que está desacompanhada de uma nota de débito, de um comprovativo de transferência bancária, de um extracto bancário ou de outra declaração de vontade que demonstre que efectivamente foi disponibilizada aos ora executados a quantia referida no contrato de abertura de crédito e essa omissão não permite concluir que foi perfectibilizado o mútuo negociado. E do clausulado do acordo de mútuo também não fica patenteado que ocorreu a entrega do montante perspectivado no enunciado do contrato, antes está evidenciado que se trata de um ajuste sujeito a condição.
A possibilidade atribuída à concedente do crédito de posteriormente recusar a declaração ou confirmar a concessão de crédito afasta a salvaguarda da aparência do direito, pois é desconhecido o passo contratual subsequente ao nível do desenvolvimento da condição.
Assim, para que a documentação apresentada fosse dotada de características de exequibilidade, tornava-se necessário que através da análise e interpretação da declaração negocial ou de qualquer instrumento complementar fosse patente a constituição ou o reconhecimento da existência de uma obrigação de natureza pecuniária, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes.
E, no caso concreto, seja por idoneidade do próprio título seja por incapacidade na descrição da realidade subjacente, não ficou demonstrado o preenchimento de um dos elementos essenciais do contrato de mútuo[9] que consiste na entrega a outrem de dinheiro ou coisa fungível. Com efeito, este é um contrato real quod constitutionem que se consuma – a transferência da propriedade do bem – com a sua entrega ao mutuário.
Sobre o credor impende o ónus da prova dos elementos constitutivos do direito que invoca e que judicialmente pretende ver tutelado e, assim sendo, ao não demonstrar que o documento particular apresentado comportava as características de exequibilidade necessárias a constituir título executivo, o agora exequente para fazer valer a sua pretensão terá de se socorrer dos meios declarativos que a jurisdição comum lhe disponibiliza. Diferentemente seria se tivesse sido disponibilizado o comprovativo da entrega do montante ou da coisa mutuada.
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V – Sumário:
À luz do regime vigente antes da alteração promovida pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, enquanto documento particular dotado de características de exequibilidade, o contrato de abertura de crédito poderia constituir título executivo, desde que fosse acompanhado por documentação demonstrativa de que efectivamente foi emprestada alguma quantia.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do presente recurso a cargo do apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 12/10/2017

José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário

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[1] A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª Edição, pág. 43.
[2] Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, pág. 142-143.
[3] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2007, in www.dgsi.pt.
[4] Artigo 577º (Admissibilidade da cessão):
1. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.
2. A convenção pela qual se proíba ou restrinja a possibilidade da cessão não é oponível ao cessionário, salvo se este a conhecia no momento da cessão.
[5] Artigo 362º do Código Comercial (Natureza comercial das operações de banco):
São comerciais todas as operações de bancos tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis, e em especial as de câmbio, os arbítrios, empréstimos, descontos, cobranças, aberturas de créditos, emissão e circulação de notas ou títulos fiduciários pagáveis à vista e ao portador.
[6] Manual de Direito Bancário, 3ª edição, Almedina, Coimbra 2006, pág. 542.
[7] José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra 2009, págs. 501-502.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/10/2012, in www.dgsi.pt.
[9] Nos termos do artigo 1142º do Código Civil o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.