Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
459/12.3GELLE.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
DESFIGURAÇÃO GRAVE E PERMANENTE
MEIO INSIDIOSO
Data do Acordão: 02/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Constitui desfiguração grave e permanente o corte de tecidos da face do ofendido, provocado pela atuação do arguido, do qual resultaram lesões permanentes, nomeadamente cicatrizes e lesões musculares e nervosas que alteram ligeiramente a abertura da boca e a mastigação, com reflexos também na linha do sorriso.

II - A utilização do objeto cortante (garrafa de cerveja em vidro partida) que o arguido preparou para utilizar na agressão ao ofendido, configura um meio desleal e traiçoeiro de levar a cabo a agressão querida e desejada por aquele, constituindo um meio insidioso.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, com o nº 459/12.3GELLE, do Juízo Local Criminal de Loulé (Juiz 1), mediante pertinente sentença foi decidido:

“A) Condenar o arguido HB pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelo artigo 144º, nº 1, aI. a), e 145º, nº 1, aI. c), por referência ao art. 132º, nº 2, aIs. e) e i), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

B) Suspender, nos termos do art. 50º, nº 5, do Código Penal, a pena de prisão supra referida, pelo período de 4 (quatro) anos, com sujeição a regime de prova, baseado em plano de readaptação social a elaborar pela DGRS no prazo de 30 dias;

C) Julgar procedentes, por provados, os pedidos de indemnização civil, deduzidos pelo Hospital de Faro e Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE e, em consequência, condenar o demandado HB, a pagar aos demandantes, a título de indemnização devida pelos cuidados médicos prestados a TT, respetivamente, a quantia de € 147,00 (cento e quarenta e sete euros) e de € 827,03 (oitocentos e vinte e sete euros e três cêntimos), acrescidas de juros moratórios à taxa legal em vigor desde a notificação para contestar e até integral pagamento;

D) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante TT e, em consequência, condenar o demandado HB, a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 1.010,26 (mil e dez euros e vinte e seis cêntimos), acrescida de juros moratórios à taxa legal em vigor desde a notificação para contestar e até integral pagamento, e a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da prolação da presente sentença;

E) Relegar para execução de sentença a condenação do Demandado nos montantes a apurar no âmbito de liquidação de execução de sentença, relativos às despesas a efetuar com os tratamentos médicos e cirurgia estética, a que o demandante se venha ainda a submeter.

F) Condenar o arguido, quanto à parte crime, em taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC's e, bem assim, nas demais custas do processo;

G) Custas cíveis, na proporção dos respetivos decaimentos”.
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Inconformado com a sentença condenatória, interpôs recurso o arguido, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões (em transcrição):

“1ª - Ao condenar o recorrente pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, sem estarem preenchidos os elementos típicos do crime, violou a meritíssima Juiz a quo o ínsito no art.144º, al. a), do CP.

2ª - Ao não enquadrar a conduta do recorrente no ínsito no art.143º do CP, violou a meritíssima Juiz a quo este legal dispositivo;

3ª - Falece a pena aplicada ao recorrente, em função da moldura penal definida no art. 145º, nº 1, al. c), do CP, dado ser inaplicável in casu o estipulado no art. 144º, al. a), do CP, sendo, nessa medida e salvo o muito respeito, errada a aplicação do previsto no art. 145º, nº 1, al. c), do CP.

4ª - Termos em que deve ser reformulada a pena aplicada ao recorrente, tendo em conta o decretado no art. 145º, nº 1, al. a), do CP, que não foi tido em consideração pelo tribunal a quo”.
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A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. O nº 1 do art. 143° do Código Penal pune "quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa".

2. A alínea a) do art. 144° do mesmo diploma legal pune "quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a ( ... ) desfigurá-la grave e permanentemente".

3. "O corte de tecidos da face do demandante, de que resultaram lesões permanentes e cicatrizes e lesões musculares e nervosas que alteram ligeiramente a abertura da boca e a mastigação" constitui "desfiguração grave e permanente".

4. "Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente ( ... ), o crime será de ofensa à integridade física qualificada" (art. 145°,nº 1, do Código Penal).

5. "São suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132°" (nº 2 do referido art. 145° do Código Penal).

6. É suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser determinado pelo prazer de causar sofrimento e de utilizar qualquer meio insidioso (alíneas e) e i) do nº 2 do art. 132° do mesmo diploma legal).

7. O objeto utilizado na agressão, a zona atingida, o modo como aquela foi perpetrada e as suas consequências integram o "prazer de causar sofrimento" e o "meio insidioso" a que se referem as alíneas e) e i), respetivamente, do mencionado preceito legal.

8. Por tudo o exposto, deve a sentença recorrida ser confirmada e, em consequência, negar-se provimento ao recurso”.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo, no essencial, à resposta dada pela Exmª Magistrada do Ministério Público na primeira instância, e concluindo também pela total improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Uma única questão, em síntese, é suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal: a qualificação jurídica dos factos.

2 - A decisão recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados):

“A) Factos Provados da Pronúncia:
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram PROVADOS os seguintes factos:

1. Na noite de 9 para 10 de agosto de 2012, pelas 06H00, o ofendido TT encontrava-se nas imediações da discoteca “Seven”, em Vilamoura, área deste município de Loulé, na companhia de um grupo de amigos.

2. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar encontrava-se o arguido HB.

3. O arguido munido de uma garrafa de cerveja em vidro, que partiu, dirigiu-se ao ofendido TT e desferiu-lhe um violento golpe que o atingiu na face, do lado esquerdo.

4. De seguida colocou-se em fuga num veículo de marca Mercedes, modelo CLK de matrícula -ZX.

5. Como consequência direta e necessária do comportamento do arguido, o ofendido sofreu dores e sangramento abundante, e as seguintes lesões permanentes: “Cicatrizes e lesões musculares e nervosas que prejudicam ou alteram ligeiramente a abertura da boca e da mastigação".

6. O ofendido TT sofreu, ainda, as seguintes lesões traumáticas: "ferida incisa suturada e afundada de 6 cms massetérica esquerda com assimetria da face na abertura da boca e ferida similar de 2 cms mandibular esquerda.

7. Em consequência o ofendido foi observado no Hospital de Faro e posteriormente transferido para o Hospital de São José em Lisboa, onde foi submetido a cirurgia maxila-facial de urgência com anestesia geral, atenta a gravidade das lesões.

8. Sofreu, ainda, doença por um período fixável em 12 dias, com 5 dias de afetação para o trabalho geral.

9. O arguido pretendeu causar todas as dores, sequelas e lesões permanentes supra descritas, ao ofendido, que previu e o que conseguiu.

10. Bem sabia o arguido que ao desferir uma violenta pancada com uma garrafa de vidro partida no rosto do ofendido, na zona das mandibulas, o mesmo sofreria lesões graves e permanentes, ficando em consequência, e de maneira gravemente afetada, a capacidade de utilização do corpo pelo ofendido (mastigação e abertura da boca).

11. Mais sabia que a utilização da garrafa de vidro, com cujo golpe surpreendeu o ofendido, era um meio insidioso, pois este não podia prever que o arguido tivesse tal objeto consigo e o fosse utilizar para a concretização da agressão.

12. O arguido agiu determinado pelo prazer de causar sofrimento, dores intensas ao ofendido, que nem o conhecia, agindo ainda sem motivo e com tal futilidade.

13. Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, ao que foi indiferente.

B) Factos não provados da Pronúncia:

Inexistem factos não provados.

C) Factos provados dos pedidos de indemnização do Hospital de Faro, EPE e Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, para além dos comuns à pronúncia:

1. Na sequência direta e necessária da conduta do arguido/demandado o ofendido foi encaminhado para o Hospital de Faro, onde lhe foram prestados cuidados de saúde no valor de € 147,00;

2. O Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, na sequência das lesões causadas pelo arguido/demandado ao ofendido prestou-lhe assistência hospitalar no valor de € 827,03.

D) Factos não provados dos pedidos de indemnização do Hospital de Faro, EPE e Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE:

Inexistem factos não provados.

E) Factos provados do Pedido de indemnização do lesado TT, para além dos comuns à pronúncia:

1. O lesado esteve sujeito a internamento hospitalar durante 3 dias, e teve alta a 13 de agosto de 2012.

2. Sofreu abundantes dores e sangramento.

3. Em consequência das lesões sofridas e mencionadas no inciso 5 e 6 dos factos provados da pronúncia, o lesado sofreu cicatrizes permanentes que alteraram o rictus facial, diminuição definitiva da seção do ramo comissural do nervo facial esquerdo, e por conseguinte redução do ângulo de abertura da boca e dificuldades na ação mecânica da mastigação e do movimento expressivo do sorriso.

4. À data do PIC não tinha tido alta clínica definitiva, mantendo-se em tratamentos contínuos e em reavaliação periódica em consulta externa.

5. Em 20 de agosto de 2012, foi o lesado reavaliado na consulta externa de especialidade de cirurgia maxilofacial no Hospital de São José.

6. Após a alta tinha indicação para ser reavaliado de três em três meses.

7. O lesado teve cuidados diários que consistem na aplicação de pomada profilática "Dermatix" seguida de protetor solar com fator proteção 50+, sobre a massa cicatrizada.

8. O que se prolongou, pelo menos, por um período de 18 meses.

9. Foi também clinicamente recomendado ao lesado a realização de 3 a 6 tratamentos a laser pulsado de contraste em intervalos de 4 a 6 semanas entre cada aplicação.

10. O lesado à data dos factos tinha 18 anos de idade, de bom porte e bonita figura.

11. Gozava de boa saúde e não tinha qualquer defeito físico, nomeadamente na face.

12. O lesado era estudante no SISEF de Faro e frequentava o curso de técnico de informática - Sistemas, inserido na tipologia de Cursos de Aprendizagem.

13. O lesado é praticante atleta da modalidade de surf em sistema de aula/treino e de lazer.

14. O que ficou impedido de fazer durante um período mínimo de 18 meses.

15. Ficando, assim, impedido de participar em estágios na zona da Ericeira, Peniche e Viana do Castelo.

16. Para além das dores que sofreu, quer no momento da agressão, quer as decorrentes da recuperação cirúrgica e tratamentos subsequentes, padeceu de enorme tristeza, desilusão e medo.

17. Sente-se desgostoso.

18. Sentiu medo de sair à noite na companhia dos seus amigos por receio de experienciar acontecimentos semelhantes.

19. Sofre de perturbações do sono.

20. Tem palpitações e recorrentemente experiencia dolorosamente nos seus sonhos, os acontecimentos vividos.

21. Tinha nos seus objetivos pessoais fazer formação específica com vista à obtenção de certificado profissional de modelo.

22. Pelo que se tinha inscrito em 15 de março de 2012, na ABC Models Algarve e realizou diversos desfiles de moda ao serviço de várias marcas comerciais.

23. Quando da ocorrência dos factos, o lesado preparava-se para fazer o seu "book fotográfico", que não realizou.

24. O lesado sonha frequentemente com os acontecimentos ocorridos, com a experiencia traumática que foi a cirurgia, o internamento hospitalar, a viagem de emergência para Lisboa, com o sangramento, as dores, a revolta, a incapacidade permanente e a humilhação.

25. Os pais foram para Lisboa, para lhe dar apoio, tendo ido de carro e permanecido em lisboa.

26. O pai regressou a Faro no dia 11 e a mãe permaneceu em Lisboa até o lesado ter alta, visitando-o diariamente, deslocando-se de táxi na cidade de lisboa.

27. O lesado regressou a Faro com a sua mãe no dia 13 de agosto, de comboio.

28. As despesas supra mencionadas contabilizam-se em € 472,25.

29. À saída do hospital, o lesado viu-se obrigado a comprar um boné de pala larga para proteção do sol conforme indicação médica, pelo que pagou cerca de € 34,95.

30. No dia 20 de agosto de 2012, o lesado foi uma consulta externa em Lisboa para reavaliação, deslocando-se de carro com a sua mãe e gasto a quantia de € 51,45.

31. Suportou a taxa moderadora da supra mencionada consulta no valor de € 7,50.

32. No dia 12 de janeiro de 2013, o lesado teve consulta para nova reavaliação no Hospital Particular do Algarve em Faro e pagou cerca de € 70,00.

33. Ao longo deste tempo, o lesado teve de aplicar pomadas e protetores solares sobre as cicatrizes, tendo gasto a quantia de € 86,98.

34. O vestuário e calçado que o lesado tinha no dia da agressão eram novos e ficaram inutilizados, todos cobertos de sangue, e foram destruídos no hospital, o que lhe acarretou um prejuízo de € 287,20.

35. O lesado carece ainda de tratamentos médicos e quando for clinicamente definido será submetido a cirurgia plástica para correção das cicatrizes no rosto.

36. Tais consultas, medicamentos, cirurgia e respetivas deslocações, e, por conseguinte, o sofrimento a isso inerente importam danos que ainda não estão contabilizados.

F) Factos não provados do Pedido de indemnização do lesado TT:
1. O demandante iniciou tratamentos que tinha orçamentado no Britsih Hospital Lisbon XXI, no valor de € 300,00 por sessão, num total de € 1.800,00.

2. Ainda sente dores.

3. As agressões de que foi vítima foram causa da destruição de alguns sonhos.

4. A não realização do projeto mencionado no inciso 23 foi decorrente da desvalorização estética do rosto do ofendido.

G) Mais se provou:
1. O arguido está desempregado.

2. Vive num quarto de hotel, do qual o seu pai é sócio, vivendo da ajuda de familiares.

3. Declarou como habilitações literárias o 9° ano de escolaridade.

4. Do seu certificado de registo criminal constam as seguintes condenações:

a) No Proc. ---/02.5SILSB do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa por crime de condução em estado de embriaguez praticado em 30.08.2002, por decisão de 30.08.2002, transitada em 14.09.2002, na pena de 90 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir por 4 meses, já declarada extinta;

b) No Proc. ---/01.0SILSB do Tribunal Criminal de Lisboa por crime de condução sem habilitação legal, em estado de embriaguez e desobediência praticados em 13.05.2001, por decisão de 27.11.2002, na pena de 260 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir por 2 meses, já declarada extinta;

c) No Proc. ---/04.1SFLSB do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa por crime de condução em estado de embriaguez praticado em 26.03.2004, por decisão de 22.02.2005, transitada em julgado em 22.09.2005, na pena de 120 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir por 18 meses, já declarada extinta;

d) No Proc. ---/05.8SILSB do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa por crime de condução em estado de embriaguez praticado em 13.02.2005, por decisão de 18.10.2005, transitada em julgado em 23.10.2013, na pena de 200 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir por 8 meses, já declarada extinta;

e) No Proc. --/07.7SCLSB da Instância local, Secção de Pequena Instância Criminal de Lisboa J5 por crime de condução em estado de embriaguez praticado em 14.01.2007, por decisão de 15.05.2008, transitada em julgado em 26.02.2015, na pena de 7 meses de prisão suspensa por 1 ano com regime de prova e na pena acessória de proibição de conduzir por 2 meses;

f) No Proc. ---/11.3TDLSB do 3° juízo criminal do tribunal criminal de Lisboa por crime de violação de proibições praticado em 15.01.2011, por decisão de 12.03.2013, transitada em julgado em 27.11.2013, na pena de 10 meses de prisão substituída por 300 horas de trabalho;

g) No Proc. ---/02.3SGLSB do 6° juízo criminal do tribunal criminal de Lisboa por crime de ofensa à integridade tisica e crime de ameaça praticados em 28.09.2002, por decisão de 12.01.2007, transitada em julgado em 08.10.2007, na pena de 175 dias de multa, já declarada extinta;

h) No Proc. ---/02.1SGLSB do 5° juízo criminal do tribunal criminal de Lisboa por crime de ofensa à integridade física praticado em 28.09.2002, por decisão de 16.07.2007, transitada em julgado em 31.07.2007, na pena de 180 dias de multa, já declarada extinta;

i) No Proc. ----/04.3SILSB do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa por crime de condução em estado de embriaguez praticado em 26.11.2004, por decisão de 04.03.2009, transitada em julgado em 30.03.2009, na pena de 9 meses de prisão suspensa por 1 ano e na pena acessória de proibição de conduzir por 2 anos, já declarada extinta;
j) No Proc. --/11.4SILSB do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa por crime de condução em estado de embriaguez praticado em 15.01.2011, por decisão de 08.02.2011, transitada em julgado em 28.02.2011, na pena de 10 meses de prisão suspensa por 1 ano e na pena acessória de proibição de conduzir por 18 meses, já declarada extinta.

Ao nível da fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal não se pronuncia sobre as demais afirmações contidas nos pedidos de indemnização civil, por constituir matéria conclusiva e de direito, que não podem ser objeto de pronúncia, em termos de serem considerados provados ou não provados”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

Alega o recorrente, em breve resumo, que o tribunal a quo, face aos factos provados, não devia ter concluído pelo enquadramento de tais factos no crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, p. e p. pelos artigos 144º, nº 1, al. a), e 145º, nº 1, al. c), do Código Penal (ex vi artigo 132º, nº 2, als. e) e i), do mesmo diploma legal).

Cumpre apreciar e decidir.

A propósito do “enquadramento jurídico dos factos”, escreve-se, no essencial, na sentença revidenda:

“(…) Comete o crime de ofensa à integridade física agravada quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: (. .. ) desfigurá-lo grave e permanentemente. Em termos latos, o crime de ofensa à integridade física grave estrutura-se como um delito qualificado pelo resultado, que representa, justamente pelo resultado a que conduz, uma ilicitude mais grave do que a que subjaz ao tipo matricial. (…) Não basta, porém, ao preenchimento da factualidade típica considerada que, em consequência da conduta do agente, venha aquele resultado danoso a ser provocado. É necessário ainda que o evento desvalioso concretamente ocasionado se encontre abrangido tanto pelo conhecimento como pela vontade do agente. Volvendo ao caso dos autos, resultou provado que o arguido agrediu fisicamente o ofendido, com uma garrafa de vidro partida, cortando-lhe o rosto e, por conseguinte, causando-lhe dores, sangramento, e as seguintes lesões permanentes: cicatrizes e lesões musculares e nervosas que prejudicam ou alteram ligeiramente a abertura da boca e da mastigação. O ofendido sofreu, ainda, as seguintes lesões traumáticas: ferida incisa suturada e afundada de 6 cms massetérica esquerda com assimetria da face na abertura da boca e ferida similar de 2 cms mandibular esquerda, foi observado no Hospital de Faro e posteriormente transferido para o Hospital de São José em Lisboa, onde foi submetido a cirurgia maxila-facial de urgência com anestesia geral, atenta a gravidade das lesões, sofrendo doença por um período fixável em 12 dias, com 5 dias de afetação para o trabalho geral. Efetivamente as lesões descritas, foram qualificadas como permanentes pelo perito médico, e traduziram-se em cicatrizes e lesões musculares e nervosas que alteraram ligeiramente a abertura da boca e a mastigação, com reflexos ainda que ligeiros na linha do sorriso. Na al. a) do art. 144° do CP fala-se em desfigurar grave e permanentemente; ora, quanto a este último aspeto, resultou demonstrado que o ofendido ficou com lesões permanentes que o afetam na mastigação e na linha do sorriso e cicatrizes. Mas exige-se simultaneamente que tal circunstância seja grave, ou seja, não poderá ser insignificante ou transitória, muito embora se não exija a permanência das lesões (cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense ao Cód. Penal, V.I, pg.228). Ora, ainda que as cicatrizes não tenham uma dimensão ostensiva, e atualmente não sejam exuberantes, o certo é que estão localizadas numa zona do corpo particularmente sensível e exposta - o rosto -, o que permite, quanto a nós, considerar-se preenchida a aI. a) do art. 144° do CP. Porém, para que em função da especial gravidade do dano produzido venha a conduta do agente a ser valorada no âmbito da moldura penal agravada prevista no art. 144°, não basta que a atuação em causa tenha provocado na vítima uma lesão do tipo das que aí são descritas. É necessário ainda que aquele resultado particularmente gravoso se possa considerar em si mesmo abrangido pela previsão e pelo querer do agente. Exige-se, pois, que o agente tenha atuado com o propósito de produzir no corpo ou na saúde do agredido um dano idêntico ao efetivamente verificado ou que, não tendo embora sido direta e imediatamente determinado por essa intenção, tenha representado e aceite a lesão ocasionada como resultado necessário da sua atuação, ou como uma consequência apenas possível do seu comportamento, conformando-se, neste último caso, com a possibilidade da respetiva verificação. No sentido suposto pela realização do respetivo tipo legal é, em suma, necessário que, para além do mais grave desvalor do resultado ocasionado, esteja presente um maior desvalor de ação. Ora, tendo ficado demonstrado que o arguido, ao partir previamente a garrafa de vidro e atingir com a mesma o rosto do ofendido, previu que da agressão por si praticada viessem a resultar para o ofendido as lesões que sofreu e a necessidade de se sujeitar, subsequentemente, a intervenção e tratamentos médicos, podendo-se assim, quanto à especial gravidade do dano produzido, ser o dolo afirmado, e, consequentemente, reconduzida a atuação em causa ao agravamento de responsabilidade previsto no art. 144° do CP. Destarte, em face das consequências que resultaram para o ofendido, designadamente lesões que o desfiguram grave e permanente, afigura-se-nos que o arguido, com sua conduta, preencheu a aI. a) do art. 144º do C.P . (…) No caso, o arguido, partiu uma garrafa de vidro e com ela atingiu o rosto do ofendido, causando-lhe as lesões demonstradas, podendo surpreender-se no processo executivo escolhido a manifestação da especial perigosidade que não deixará de reconhecer-se numa garrafa de vidro partida, quando direcionada no rosto da vitima. Ao que acresce que a conduta do arguido foi gratuita, e por isso fútil, o que permite a conclusão que o arguido agiu tão só pelo prazer de ferir e marcar o rosto do ofendido, o que também preenche a aI. e) do nº 2 ao art. 132º do CP. Porém, em face do princípio da proibição da dupla incriminação, apenas se valorará a circunstância agravante que respeita ao meio utilizado, por, quanto a nós, ser relativamente a este que se consubstancia o maior desvalor da ação. Desencadeado, portanto, o efeito padrão adveniente da especial perigosidade do meio de execução empregue, por ser insidioso, vejamos se circunstâncias existem suscetíveis de inviabilizar a convocação da moldura agravada. De um modo geral pode dizer-se que apenas circunstâncias excecionais, atinentes ao facto ou à pessoa do agente, podem atenuar substancialmente o conteúdo de ilicitude ou de culpa, impondo a revogação do efeito indício desencadeado pela presença do exemplo padrão, o que não se verifica in casu. Confirmado o efeito indício, a responsabilidade criminal que se afirma será determinada dentro da moldura prevista no tipo do art. 145º, nº 1, aI. c) (anterior art. 145º, n° 1 aI. b), do Cód. Penal)”.

Com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, assiste inteira razão à Exmª Juíza nas considerações tecidas na sentença revidenda (e acabadas de transcrever, na sua parte fundamental) e nas conclusões retiradas a propósito do “enquadramento jurídico dos factos” (do qual resulta, obviamente, a moldura penal abstrata encontrada na sentença em causa e questionada na motivação do recurso).

Senão vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal, comete o crime de ofensa à integridade física simples “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”.

Por sua vez, pratica um crime de ofensa à integridade física grave, nos termos do preceituado no artigo 144º, al. a), do mesmo diploma legal, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente”.

Além disso, o agente incorre no cometimento de um crime de ofensa à integridade física qualificada, tal como estabelecido no artigo 145º, nº 1, do Código Penal, “se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”.

Nos termos do consignado no nº 2 do mesmo preceito legal, “são suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º”.

Ora, estipula o artigo 132º, nº 2, al. e), do Código Penal, que é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente “ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil”.

E, a alínea i) deste mesmo normativo legal prevê ainda que, do mesmo modo, é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso”.

Colocado, assim, o enquadramento legal aqui em apreciação, cabe avaliar, à luz do mesmo, os factos destes autos.

Dúvidas não se suscitam de que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física (tal não é, sequer, questionado na motivação do recurso).

A primeira questão que se coloca é, isso sim, saber se da atuação do arguido resultou, ou não, uma desfiguração grave e permanente do corpo do ofendido (artigo 144º, al. a), do Código Penal).

A nosso ver, o corte de tecidos da face do ofendido, provocado pela atuação do arguido, do qual resultaram lesões permanentes, nomeadamente cicatrizes e lesões musculares e nervosas que alteram ligeiramente a abertura da boca e a mastigação, com reflexos também na linha do sorriso, não pode deixar de considerar-se como uma desfiguração grave e permanente.

É que, e contrariamente ao alegado na motivação do recurso, nada resultou provado, por um lado, no sentido de poder considerar-se que a desfiguração sofrida pelo ofendido possa ser corrigida no futuro, através, por exemplo, de operações estéticas (ou seja, nada legitima a conclusão de que a desfiguração não seja permanente), nem, por outro lado, a desfiguração em causa se traduz numa simples cicatriz ou em lesões ligeiras (isto é, nada nos permite afirmar que a desfiguração não seja grave), sendo ainda certo que a cirurgia plástica a que o ofendido possa vir a ser submetido (conforme dado como provado na sentença sub judice sob o nº 35) corrigirá apenas as cicatrizes no rosto e não a deficiência (maior ou menor - é irrelevante para o efeito que agora nos ocupa -) na abertura da boca, na mastigação e no sorriso.

Por conseguinte, e em nosso entendimento, estão preenchidos os requisitos do crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. no artigo 144º, al. a), do Código Penal.

A segunda questão, colocada também pelo recorrente, respeita à existência, in casu, da especial censurabilidade ou perversidade do agente (artigo 145º, nº 1, al. c), e nº 2 do Código Penal), essencialmente pelo uso, na agressão perpetrada sobre a pessoa do ofendido, de meio insidioso (artigo 132º, nº 2, al. i), do mesmo diploma legal) - subscreve-se, neste ponto, a argumentação aduzida na sentença recorrida, nos ternos da qual “em face do princípio da proibição da dupla incriminação, apenas se valorará a circunstância agravante que respeita ao meio utilizado, por, quanto a nós, ser relativamente a este que se consubstancia o maior desvalor da ação -.

Em relação a tal circunstância qualificativa do crime (prevista na al. i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal - ou seja, a utilização de meio insidioso -, entendemos que a expressão “meio insidioso” tem uma grande amplitude, compreendendo naturalmente os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais.

No caso dos autos, o arguido, sem que nada o justificasse (face à factualidade tida como provada na sentença revidenda - e não questionada na motivação do recurso -), agrediu o ofendido com um objeto cortante (uma garrafa de cerveja em vidro, que previamente partiu para efeitos de agressão), atingindo-o com um golpe na face, não dando ao ofendido qualquer possibilidade de defesa em relação ao dito golpe desferido com tal instrumento.

O meio usado é, assim, insidioso e é índice revelador de maior censurabilidade e perversidade do arguido.

Como bem se refere no Ac. da R.P. de 02-07-1986 (in BMJ nº 359, pág. 775), o conceito de meio insidioso é “um conceito amplo, que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais. As armas brancas (faca, punhal, navalha de barba e comuns, foice, gadanha, machado, etc.) devem considerar-se, em atenção à experiência comum, como instrumentos de agressão gravemente perigosos e insidiosos”.

No dizer de Leal-Henriques e Simas Santos (in “Código Penal Anotado”, 2ª ed., Ed. Rei dos Livros, 1996, 2º Vol., pág. 47), merecem a qualificação como meio insidioso “os instrumentos incomuns de agressão, que deixam à vítima uma margem de defesa reduzida (v. g. faca de ponta e mola, gadanha, machado, etc.)”.

Assim, “meio insidioso” é todo aquele que, objetivamente, é meio traiçoeiro e desleal, e, além disso, constitui meio com virtualidade de, no seu uso, poder vir a causar perigo para a vida de outrem ou vir a causar graves lesões a outrem.

No caso em apreço, a agressão teve lugar com um objeto cortante (uma garrafa de vidro partida), que o arguido logo ali preparou para o efeito (partindo tal garrafa), e, além disso, tal agressão, efetuada nos termos em que o foi, objetivamente é suscetível de provocar no ofendido lesões graves ou perigo para a vida, sendo, por isso, de considerar o meio empregue pelo arguido como insidioso.

Acresce que essa circunstância (utilização de meio insidioso), perante os demais elementos dos autos, revela especial censurabilidade e perversidade do arguido na produção da ofensa à integridade física em causa.

Com efeito, a utilização do objeto cortante que o arguido preparou para utilizar na agressão, configurou, no caso concreto, um meio desleal e traiçoeiro de levar a cabo a agressão querida e desejada pelo arguido, na medida em que reduziu a margem de defesa do ofendido, revelando-se, por isso, na atuação do arguido, uma especial perversidade e censurabilidade.

Constitui hoje em dia aquisição pacífica na doutrina e na jurisprudência a afirmação de que as diversas situações elencadas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal não são de preenchimento automático.

Isto é, a existência, no concreto caso, de alguma das circunstâncias referidas no nº 2 do artigo 132º não conduz necessariamente à especial censurabilidade ou perversidade da cláusula geral do nº 1 do mesmo artigo, como é também incontestável que outras circunstâncias não catalogadas podem conduzir a tal censurabilidade ou perversidade, o que, porém, não significa que as circunstâncias não previstas possam ser descobertas discricionariamente pelo julgador. Ainda então, como nos parece correto, tendo presente que se está perante uma moldura penal agravada, em conexão com os princípios da legalidade e do Estado de Direito, a relação do juiz não se estabelece com o nº 1 do artigo 132º sem mediação do seu nº 2.

A especial censurabilidade ou perversidade do agente é, pois, uma especial culpa por referência à que é pressuposta na moldura penal do crime de ofensa à integridade física grave (no caso em apreço nestes autos).

Para o preenchimento valorativo do conceito indeterminado “especial” revelará, atenta a noção material de culpa, a vontade culpável e o seu objeto, nas manifestações concretas do caso.

Como bem salienta Teresa Serra (in “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, págs. 63 e 64), “com referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto, pois, um recurso a uma conceção emocional da culpa e pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder. Assim, poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor (...), atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente”.

Na situação dos autos, ficou demonstrado que, perante coisa nenhuma (ao que ficou provado, nem sequer ocorreu, previamente à agressão, uma simples disputa verbal entre o arguido e o ofendido), e com um objeto cortante (uma garrafa de vidro partida) - que o arguido preparou (partindo tal garrafa de vidro) -, o arguido agrediu o ofendido, com um golpe violento, na face.

Ora, o emprego de tal objeto, perante motivo nenhum (relevante ou irrelevante), e a frieza com que a conduta foi desencadeada, revelam, assim, uma especial perversidade da conduta do arguido, ou seja, um especial grau de culpa que excede manifestamente o que está pressuposto na moldura penal da ofensa à integridade física grave, pelo que o crime de ofensa à integridade física (grave) cometido o é de forma qualificada, tal como vem o arguido condenado.

Encontram-se, por todo o exposto, reunidos os elementos necessários à punição do arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, pela qual foi (e muito bem) condenado em primeira instância.

E, por isso, o recurso é totalmente de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, consequentemente, a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 05 de fevereiro de 2019
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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Laura Goulart Maurício)