Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7316/18.8T8STB.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: RESOLUÇÃO POR FALTA DO PAGAMENTO DAS RENDAS
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O instituto do abuso do direito é de conhecimento oficioso;
Tal conhecimento, porém, apenas se impõe se do rol dos factos provados constarem factos relevantes para o efeito;
Não basta alegá-los em sede de alegações de recurso, desde logo atento o Princípio da concentração da defesa.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Réu: (…)

Recorrida / Autora: (…) – Investimentos Imobiliários, SA

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual a A. peticiona que seja decretada judicialmente a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas, seja o réu condenado à imediata entrega do locado livre e devoluto e condenado a pagar todas as rendas vencidas, desde março de 2017 a setembro de 2018, na quantia global de € 7.400,50 acrescidas de juro de mora à taxa legal de 4%, bem como no pagamento das rendas que se vencerem na pendência da ação, acrescidas de juro de mora à taxa legal de 4% e, ainda, que seja o réu condenado a pagar a indemnização pelo atraso na restituição do locado, correspondente ao valor da renda em dobro. A título subsidiário, peticiona seja declarada a nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma, seja o réu condenado à imediata entrega do locado livre e devoluto, a pagar à autora uma compensação correspondente ao gozo do imóvel desde março de 2017 a setembro de 2018, na quantia global de € 7.400,50 acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% e ainda uma compensação devida pelo gozo do imóvel na pendência da ação em montante de € 389,50 por cada mês, acrescida de sanção pecuniária compulsória de 50,00 por cada dia atraso na entrega do imóvel.
Em sede de contestação, o réu invoca a inadmissibilidade da ação de despejo por inexistir qualquer contrato de arrendamento entre as partes, concluindo que não se encontram rendas em atraso. Sustenta que existiram negociações para efetivar um contrato de arrendamento entre as partes, com a condição da autora realizar obras no locado, pelo que, com tal expetativa, pagou três rendas, respeitantes aos meses de setembro a novembro de 2018 (o que decorre de documentos juntos). Como as obras não foram realizadas, não pagou outras rendas, invocando a exceção de não cumprimento do contrato.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, decidindo-se:
«- declarar nulo o contrato celebrado em 30/10/1991, em vigor entre a autora (…) – Investimentos Imobiliários, SA e o réu (…), relativo à fração autónoma designada pela letra “K”, correspondente ao 5.º andar esquerdo, do prédio sito na Rua (…), n.º 83, tornejando para a Avenida (…), n.º 6, em Setúbal;
- condenar o réu a restituir de imediato o imóvel, entregando-o à autora livre e devoluto de pessoas e bens;
- condenar o réu a pagar à autora a quantia € 9.348,00 a título de indemnização pela utilização do imóvel entre março de 2017 e a presente data, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação;
- condenar o réu a pagar à autora a quantia mensal € 389,50 a título de indemnização pela utilização do imóvel desde a presente data e até à entrega efetiva do imóvel, a título de indemnização, absolvendo-o quanto ao demais contra si peticionado;»

Inconformado, o R apresentou-se a recorrer, pugnando pela declaração de nulidade da sentença; se assim não for entendido, pela revogação da sentença julgando-se procedente a exceção do abuso do direito. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1ª – O Tribunal “a quo”, tendo em conta os factos provados e os demais elementos dos autos, não devia ter julgado procedente o pedido de nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma legal;
2ª – Tendo o contrato de arrendamento sido celebrado em 30.10.1991 e a A dado entrada da ação onde pediu a nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma legal em 18.10.2018, após 27 anos de vigência do mesmo; e
3ª – Sem nunca ter interpelado o R para celebrar tal contrato por escritura, bem sabendo ou não podendo desconhecer que quando comprou a fração já o contrato carecia de forma legal, aceitou a A que o mesmo era válido;
4ª – A conduta da A e dos anteriores senhorios, mantida durante 27 anos, criou legitimamente no R arrendatário a convicção de que jamais seria pedida a nulidade do contrato por falta de forma;
5ª – O pedido da nulidade formulado pela A violou o princípio da confiança, configurando manifesto abuso do direito no “venire contra factum proprium”, proibido pelo art.º 334.º, do C.C.;
6ª – O abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que, contendo os autos todos os elementos suficientes, impunha-se que fosse apreciado e aplicado com as devidas consequências, julgando-se improcedente o pedido de nulidade;
7ª – Ao decidir como decidiu, a douta Sentença violou o art.º 334.º do C.C., bem como o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do C.P.C. dado não ter apreciado nem se pronunciado sobre a questão do abuso do direito.»
Em contra-alegações, a Recorrida sustenta que a sentença não enferma de nulidade porquanto, por não se tratar de questão suscitada nos autos pelas partes, não configura matéria sobre a qual o Tribunal tivesse de emitir pronúncia. Entende que deve negar-se provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida, dado que o Recorrente, que agora invoca ter sido violada a sua “convicção de que jamais seria pedida a nulidade do contrato por falta de forma”, na contestação apresentada não só não invocou tal exceção como alegou factos contrários à procedência dela, declarando que não existia qualquer contrato de arrendamento.

As questões suscitadas no presente recurso são as seguintes:
- da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
- do abuso do direito à declaração de nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. Em 30/10/1991 a Companhia de Seguros (…), S.A. cedeu ao réu a fração autónoma designada pela letra “K”, correspondente ao 5.º andar esquerdo, do prédio sito na Rua (…), n.º 83, tornejando para a Avenida (…), n.º 6, em Setúbal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…), mediante o pagamento do valor mensal de 160.000$00.
2. O réu exerce a atividade de advocacia no locado.
3. O contrato celebrado em 1) foi realizado, no ano de 1991, verbalmente.
4. Em 20/02/2017 o prédio referido em 1) foi registado a favor da autora.
5. A autora comunicou tal facto ao réu e solicitou que o pagamento das rendas passasse a ser feito a si.
6. O valor da renda em março de 2017 era no montante de € 389,50.
7. No período compreendido entre o mês de março de 2017 e o mês de setembro de 2018, o réu deixou de liquidar a prestação acordada, como contraprestação pelo uso e fruição do imóvel cedido, estando assim em dívida as prestações correspondentes a tais meses.
8. O réu transferiu para a autora a quantia de € 389,50 em 17/09/2018, 08/10/2018 e 07/11/2018.

B – O Direito

Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Na ótica do Recorrente, a 1.ª Instância incorreu na violação do disposto no art. 615.º n.º 1, al. d), do CPC dado não ter apreciado nem se pronunciado sobre a questão do abuso do direito.
Ora vejamos.
O art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC estatui que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
É que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608.º, n.º 2, do CPC.
Lançando mão dos ensinamentos de Alberto dos Reis[1], importa salientar que há que não confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões. «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.» Por conseguinte, o julgador não tem que analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Apenas tem que resolver as questões que por aquelas lhe tenham sido postas[2]. Por isso, vem sendo entendido[3] que não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da ação. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, exceto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras. Deste modo, só haverá nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia quando o julgador tiver omitido pronúncia relativamente a alguma das questões que lhe foram colocadas pelas partes ou quando tiver conhecido de questões que aquelas não submeteram à sua apreciação. Nesses casos, só não haverá nulidade da sentença se a decisão da questão de que não se conheceu tiver ficado prejudicado pela solução dada à(s) outra(s) questões, ou quando a questão de que se conheceu era de conhecimento oficioso.
No que respeita a saber quais sejam as questões a apreciar, importa atentar na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções invocadas pelo réu. Assim, as questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções[4].
No caso em apreço, constata-se que, nos articulados que instruem os autos, não foi suscitada a questão alusiva ao abuso do direito de declaração de nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma. Logo, não se trata de questão que tenha sido colocada em juízo pelas partes.
É certo, porém, que o instituto do abuso do direito previsto no art. 334.º do CC configura uma exceção perentória de conhecimento oficioso – cfr. art. 579.º do CPC. Por conseguinte, o Tribunal resulta incumbido de a apreciar, ainda que as partes litigantes a não tenham suscitado, desde que os factos alegados e provados assim o imponham.
Ora, nos termos do disposto no art. 334.º do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Tal instituto assenta na premissa de que a toda a conduta é inerente a responsabilidade e a expectativa de que cada um atue com retidão e autenticidade. Por conseguinte, o princípio da boa-fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar. Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa-fé, tem-se desenvolvido o princípio da proibição do venire contra factum proprium, princípio que tutela em primeira linha a confiança interpessoal, bem como a expectativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo por ilegítimo. Nas palavras de Vaz Serra[5], o princípio da proibição do venire contra factum proprium impede “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”. É a consagração da responsabilidade pela confiança.
A análise do processado que compõe os presentes autos revela que apenas em sede de alegações de recurso o R invoca que, atento o lapso de tempo decorrido desde a data em que passou a ocupar a fração e atenta a conduta desenvolvida pelo A e pelos anteriores senhorios, lhe foi criada, legitimamente, a convicção de que jamais seria pedida a nulidade do contrato por falta de forma. E se os factos constitutivos do abuso do direito não constavam dos autos, não integravam o rol dos factos provados, não havia como a 1.ª Instância os valorar à luz do referido instituto.
Termos em que se conclui não enfermar a sentença recorrida da referida nulidade.

Do abuso do direito à declaração de nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma
Por se tratar de matéria de conhecimento oficioso, assiste ao Recorrente o direito de suscitar ex novo a questão atinente ao abuso do direito em sede de recurso. Na verdade, o recurso constitui o meio processual de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Tem em vista a reapreciação ou a reponderação das questões submetidas a litígio, já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas. Donde, não cabe invocar em sede de recurso questões que não tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido, conforme resulta do regime inserto nos arts. 627.º, n.º 1 e 635.º, n.º 3, salvo se a lei expressamente determinar o contrário (art. 665.º, n.º 2, do CPC) ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2, do CPC).
O Recorrente sustenta que, tendo em conta os factos provados e os demais elementos dos autos, é de julgar procedente a exceção do abuso do direito: o contrato de arrendamento foi celebrado em 30/10/1991 e a ação onde a A pediu a nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma legal deu entrada após 27 anos de vigência do mesmo; nunca foi interpelado para celebrar tal contrato por escritura, bem sabendo ou não podendo desconhecer a A que quando comprou a fração já o contrato carecia de forma legal, aceitou a A que o mesmo era válido; a conduta da A e dos anteriores senhorios, mantida durante 27 anos, criou legitimamente no R arrendatário a convicção de que jamais seria pedida a nulidade do contrato por falta de forma.[6]
Tais circunstâncias factuais são manifestamente relevantes em face do instituto do abuso do direito. Porém, apenas em sede de recurso foram alegadas; as referidas circunstâncias factuais não foram alegadas em sede de contestação, como se impunha por via do Princípio da concentração da defesa consagrado no art. 573.º do CPC. Logo, tais factos não foram puderam ser submetidos contraditório nem a instrução nem a julgamento em 1.ª Instância. Por via do que, não integrando o rol dos factos provados, não podem ser considerados nesta Instância de recurso.
Saliente-se ainda que, tal como desde logo apontado pela Recorrida, a defesa deduzida pelo R, ora Recorrente, na contestação nem sequer é consentânea com a alegação esgrimida no recurso: veja-se que ali antes o R invocou inexistir qualquer contrato de arrendamento entre as partes, concluindo que não se encontram rendas em atraso; que existiram negociações para efetivar um contrato de arrendamento entre as partes, com a condição da autora realizar obras no locado, pelo que, com tal expetativa, pagou três rendas, respeitantes aos meses de setembro a novembro de 2018, mas como as obras não foram realizadas, não pagou outras rendas. O que, manifestamente, não é compatível com afirmação de que a A. e anteriores senhorios sempre atuaram de modo a criar-lhe a legítima convicção de que o contrato de arrendamento, que tomava por certo, vigente, firme e seguro, jamais seria declarado nulo por falta de forma.

Termos em que improcedem as conclusões da alegação do recurso.

As custas recaem sobre o Recorrente – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo:
(…)

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 21 de novembro de 2019
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] CPC Anotado, vol. V, p. 143.
[2] A. Reis, ob. cit., p. 141 e A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 688.
[3] Segue-se aqui de perto o Ac. STJ de 29/11/2005 (Sousa Peixoto).
[4] Acs. STJ de 07/04/2005 (Salvador da Costa) e de 14/04/2005 (Ferreira de Sousa).
[5] RLJ ano 105.º p. 28.
[6] Cfr. conclusões da alegação do recurso.