Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
124/14.7PATNV.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: DIFAMAÇÃO ATRAVÉS DE MEIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
LIBERDADE DE IMPRENSA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
ATIPICIDADE DA CONDUTA
Data do Acordão: 05/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I. Tanto o crime de difamação como o crime de injúria são legalmente configurados como crimes de dano, uma vez que o preenchimento do tipo depende da lesão efetiva daquele bem, como decorre da letra da lei ao exigir no artigo 180.º que os factos imputados ou o juízo formulado sejam ofensivos da sua honra ou consideração e não da mera suscetibilidade ou potencialidade de o serem.

II. Tendo presente que “A conduta típica configura sempre a concretização de uma expressão paradigmática de danosidade social intolerável e, como tal, digna de tutela penal e carecida de tutela penal” situações há em que não se mostra sequer presente o juízo de ilicitude pressuposto e indiciariamente afirmado no tipo, na medida em que a conduta respetiva não se ajusta à afirmação de danosidade social que a descrição típica encerra.

III. No caso presente como noutros semelhantes, a questão da relevância penal das palavras escritas pela arguida resolve-se ao nível da tipicidade e não no quadro das causas de justificação.

IV. Não integrando qualquer Index de palavras supostamente difamatórias ou injuriosas de per si, a ofensa da honra ou consideração da pessoa concretamente visada no caso presente depende do circunstancialismo em que as palavras foram usadas.

V. Os limites à tutela do direito à honra decorrentes da liberdade de expressão e liberdade de imprensa devem, ser tomados em conta na determinação do que sejam condutas ofensivas da honra ou consideração de outrem para efeitos de preenchimento do tipo, pois encontrando-nos perante direitos fundamentais carateristicamente conflituantes e de igual hierarquia, o sentido e alcance do tipo legal acaba por ser conformado pelo espaço reciprocamente reconhecido a cada um deles.

VI. As expressões usadas pela arguida ao referir-se ao assistente no artigo de jornal, apodando-o de “ignorante”, dizendo ainda que “pertencia a seita diabólica” e “estava possuído pelo demónio”, atento o circunstancialismo em que foram usadas, não são ofensivas da honra ou consideração do assistente/recorrido.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correu termos na Secção Criminal (J1) da Instância Local de Tomar da Comarca de Santarém, foi pronunciada E, viúva, nascida a 20-06-1950, residente em Tomar, pela prática de um crime de difamação agravada, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2 do Código Penal, na sequência de acusação particular deduzida pelo assistente, RV, que o MP acompanhou.

2. O assistente deduziu pedido civil contra a arguida, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de 7.000€, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

3. - Realizada a Audiência de julgamento, o tribunal singular condenou a arguida pela prática de um crime de difamação agravado, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos),e, julgando parcialmente procedente o pedido civil deduzido por RV, condenou ainda a arguida a pagar-lhe a quantia de 500€ (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, absolvendo-a do restante peticionado.

4. – Inconformada, veio a arguida interpor recurso da sentença condenatória, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES

O presente recurso vem interposto da sentença que condenou a arguida, um crime de difamação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º n.º 1 e 183 n.º 2 do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6,50€ num total de 780€.

1. Foi a arguida condenada por ter feito publicar a seguinte expressão: “Não tenho dúvida que além de ignorante, ele pertence a uma seita diabólica, pelas suas palavras está possuído pelo demónio”- facto 1 dado como provado (sublinhado nosso).

2. Ora tal expressão não poderá consubstanciar facto susceptível de ser considerado típico ilícito pelo que tais expressões não consubstanciam crime, pelo que estamos perante erro notório na apreciação da prova- 410º n.º 2 c) do CPP.

3. No caso concreto está em causa a prática de um crime de difamação, da previsão do artº 180º, 1, do CP, o qual se consuma mediante o preenchimento da seguinte previsão: «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.».

4. Tais expressões e imputações foram escritas e feitas publicar pela arguida, colaboradora e cronista de opinião no Jornal Cidade de Tomar desde 1988 (facto 23 dado como provado).

5. O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, a qual se pode desdobrar numa perspectiva interna, traduzida na ideia que cada um de nós tem de si, e numa outra, externa, traduzida na conta em que somos tidos por terceiros.

6. Todavia, mesmo a tutela penal do direito à honra e à consideração há-de sofrer limitações gerais (aplicáveis a todos os indivíduos, sem excepção).

7. Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.» (José Beleza dos Santos, ‘Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria’, RLJ, Ano 92, nº 3152, pag. 167).

8. Ora, analisada aquela descrição factual, v.g. a parte referente às expressões imputadas à arguida, verificamos que elas se desdobram em duas vertentes:

a)uma primeira, em que tece considerações acerca de pessoa do assistente: - “Não tenho qualquer dúvida que além de ignorante (…)”;

b) uma segunda, que embora interligada com a primeira se refere ao comportamento do mesmo e nas suas crenças: “(…) pertence a uma seita diabólica (…) está possuído pelo demónio (…)”.

9. Quanto à primeira parte destacada, “ignorante” a arguida circunstância a expressão e refere “RAZÃO QUE O LEVA A FALAR DAQUILO QUE NÃO SABE (…)” – facto 1 dado como provado.

10. Ora o significado de ignorante é precisamente, entre o mais o estado de desconhecer algo.

11. De uma mera busca em http://www.priberam.pt/dlpo/ignorante resulta que ignorante poderá ser aplicado em vários sentidos a saber:

a. Que ignora.
b. Que não tem instrução.
c. O que não sabe bastante da sua profissão.
d. adjectivo de dois géneros e substantivo de dois géneros
e. Que ou quem não tem conhecimentos ou formação suficientes.
"ignorante", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/ignorante [consultado em 25-11-2016].

12. Sentido que a arguida vinca e que está dado como provado “razão que o leva a falar daquilo que não sabe (…)”

13. Pelo que não se compreende como o Tribunal conclui que “o epíteto ignorante é uma forma de insultar”, poderá ser mas não foi essa a intenção da arguida no presente caso.

14. Ora ignorante é o estado de desconhecer, de não conhecer suficientemente, tratando-se de uma crítica, não um insulto.

15. E a honra terá que ceder necessariamente face à crítica e à liberdade de imprensa e de opinião.

16. O que se passou foi que a arguida, escreveu de forma grosseira, simples, boçal, se dirigiu ao assistente, fazendo uma apreciação subjectiva acerca da sua informação acerca do caso abordado na rádio (de um deficiente).

17. O que está aqui em causa é a simplicidade da escrita da assistente e não o cometimento de um crime.

18. E dado o princípio da intervenção mínima do direito penal, nem todos os comportamentos traduzidos em falta de educação podem ser elevados à categoria de crime, apenas o podendo ser aqueles que ofendam de forma grave e irreparável o núcleo essencial tutelado pela esfera de protecção daquele direito da personalidade.

19. Ou seja, a susceptibilidade do ofendido, despoletada embora pelo comportamento grosseiro da arguida, não é suficiente para integrar o âmbito de protecção da norma penal (do artº 180º, 1, do CP), não integrando assim o conceito de interesse jurídico protegido.

20. Com efeito, não integrando o núcleo essencial daquele âmbito de protecção, não é encarado como ofensa pela generalidade dos cidadãos, mas apenas pelos mais sensíveis, pelos mais susceptíveis, razão pela qual não merece tutela penal.

21. Pelo que as susceptibilidades pessoais só merecerão tutela jurídica a partir do momento em que, passando a integrar aquelas ideias dominantes no meio social, se revistam de uma particular força de pressão, que determine a sua integração positiva no ordenamento jurídico.

22. Ora, vimos já que essas susceptibilidades não integram o núcleo duro de protecção que a sociedade pretendeu estabelecer mediante a criminalização operada pelo referido artº 180º, 1 do C. Penal.

23. Por isso, aquelas afirmações não integram a factualidade objectiva do tipo em causa.

24. Já no que toca à segunda abordagem “(…) pertence a uma seita diabólica (…) está possuído pelo demónio (…)”.

25. Estar possuído pelo demónio ou pertencer a uma seita diabólica apenas significa que professa uma religião diferente,

26. É que só nesse caso poderá o assistente ter aquele tipo de discurso, pois desconhece aquilo que fala.

27. Neste mesmo sentido acórdão do Tribunal d Relação Do Porto de 24-11-1999, “A expressão "formavam um grupo de uma Seita Religiosa" não é em si lesiva da honra e consideração dos componentes, in casu, da "Maná - Igreja Cristã", já que dizer-se que alguém faz parte de uma seita religiosa mais não é do que identificar esse alguém por referência a uma doutrina ou sistema que se afasta da crença geral, isto é, no sentido de que esse alguém professa religião diversa da geralmente seguida.”

28. Não sendo matéria capaz de caber no elemento típico objectivo do tipo de ilícito previsto pelo artigo 180.º do C. Penal.

29. Ora não tendo havido qualquer lesão da honra, caem por terra os pressupostos previstos no artigo 483.º, 487.º n.º 2, 496º n.º 1, 563.º todos do Código Civil.

Termos em que deve igualmente improceder o pedido de indemnização cível em que foi condenada por não se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar.

30. Porque, assim, se não decidiu foi violado na sentença recorrida o disposto no artigo 180.º n.º 1º, 183.º n.º 1do Código Penal, 410 n.º 2 c) do C. P. Penal e 483.º, 487.º n.º 2, 496º n.º 1, 563.º todos do Código Civil.

31. Não estando presente o elemento típico objectivo do tipo de ilícito previsto no artigo 180.º do C. Penal, impõe-se a sua absolvição.»

5. O assistente e o MP apresentaram respostas ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

6. Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, analisando detalhadamente as questões colocadas, se pronuncia no sentido da procedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do C. P. P., o assistente veio reiterar a posição antes manifestada na resposta ao recurso.

8. Transcrição parcial da sentença recorrida:
«3.1 Factos provados

Encontram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

1. Na edição de 11 de Outubro de 2013, do Jornal Semanário Regional “Cidade de Tomar”, a arguida fez publicar um artigo de opinião onde para além de outras, constavam as seguintes expressões: “A ignorância é um dom que não se compra, nem se vende, nasce com as pessoas e este senhor é realmente fértil neste dom, mais, pelo que ouvi na rádio, não tenho qualquer dúvida que além de ignorante, ele pertence a uma seita diabólica, pelas suas palavras, não é difícil perceber que este senhor está possuído pelo demónio, razão que o leva a falar daquilo que não sabe, ninguém conhece…” e “O senhor V, como atrás refiro, deve ser pertença de uma seita e, como todos sabemos, há seitas perigosas…”.

2. Sabia a arguida que as expressões que utilizava eram ofensivas da honra e consideração do assistente, RV, sobre quem falava.

3. Sabia a arguida que, ao fazer publicar essas expressões num jornal semanário regional, o fazia perante o universo de todos os leitores dessa publicação, concretamente indeterminado.

4. Agiu com o propósito de ofender o bom nome, honra e consideração do assistente.

5. Agindo de forma livre, deliberada e consciente e sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

6. A arguida agiu do modo supra descrito porquanto havia falado publicamente nos meios de comunicação social, nomeadamente na Rádio Cidade de Tomar, sobre a situação de um cidadão portador de deficiências a viver em condições desumanas, em Paialvo-Tomar.

7. E o assistente ter telefonado, posteriormente, para essa mesma rádio e, em directo, ter dito que a arguida estava a mentir.

Do pedido cível, provou-se que:

8. Ao tomar conhecimento do noticiado, o ora assistente sentiu-se chocado e ofendido, sabendo que o mesmo foi lido por várias pessoas.

Mais se provou que:

9. A arguida frequentou a escolaridade até concluir a 4ª classe. Não deu continuidade aos estudos, devido às condições económicas da família e necessidade de contribuir para a subsistência do agregado familiar.

10. A trajectória laboral iniciou-se nesta fase adolescente, ligada ao exercício de ocupações indiferenciadas no sector da agricultura. Com 15 anos foi trabalhar para casa de um senhor que a levou para Moçambique, onde esteve até aos 25 anos.

11. Nesse país, estudou à noite, onde concluiu o antigo 5º ano de liceu e trabalhou numa empresa de sucata e posteriormente como dactilografa na empresa de Champalimaud.

12. Casou em Moçambique e desta relação teve três filhos, dois deles já autonomizados e com agregados autónomos.

13. A família regressou a Portugal em 1976, tendo fixado residência em Charneca….

14. Com o intuito de melhorar a sua situação económica, a família emigrou para a Suíça, onde a arguida trabalhou num lar de idosos numa fábrica de cafés e o marido no sector da construção civil.

15. Regressaram em 2005 devido a problemas de saúde do marido que sofria de esclerodermia – doença reumática crónica. O marido da arguida faleceu há seis anos, após dois anos acamado.

16. E. reside com o filho de 34 anos, numa casa própria cujas condições são avaliadas como adequadas e suficientes.

17. A dinâmica familiar tem sido conturbada devido aos problemas aditivos do filho da arguida, que é toxicodependente desde os 14 anos. Ao momento, integra o programa de substituição opióide – Metadona -, beneficiando do acompanhamento regular do CRI – Centro de Respostas Integradas de Abrantes.

18. O filho da arguida tem um descendente com sete anos de idade, fruto de uma relação afectiva que terminou, mantendo contudo uma interacção regular com o mesmo mediante visitas quinzenais.

19. A arguida encontra-se reformada, sendo a substância da família assegurada pela pensão de viuvez no valor de €157 e pela reforma que aufere do sistema helvético no montante de €350.

20. O filho da arguida não tem trabalho regular, estando ao momento a realizar umas horas na fábrica das carnes situada na zona industrial de Tomar, recebendo €3,5/hora.

21. E. pratica uma agricultura de subsistência e faz criação de gado (coelhos, galinhas e patos), sendo coadjuvada pelo filho.

22. Como principais despesas foram reportadas as relacionadas com a manutenção da casa – água, gás e luz, pela mensalidade de €85,00 relativo a um empréstimo pessoal que a arguida contraiu para pagar dívidas do filho e €100 de prestação de alimentos do neto.

23. E. é colaboradora Rádio/ Jornal “Cidade de Tomar”, desde 1988.

24. A arguida não tem antecedentes criminais.

3.2 Factos não provados

Nada mais se provou com interesse para a boa decisão da causa, designadamente que:

I. O noticiado começou a ser divulgado e comentado por colegas e amigos e pessoas da aldeia do assistente e da cidade, que o conheciam,

II. Sentindo-se o assistente triste e magoado com tal situação.

***
Consigna-se que não foram reconduzidos aos factos provados, nem aos factos não provados, as alegações constantes das peças apresentadas pelos sujeitos processuais que se revelam redundantes, improfícuas para a decisão da causa ou estranhas ao objecto do processo, vagas, imprecisas ou conclusivas, por não contenderem com a verificação dos elementos objectivos típicos e subjectivos do crime imputado, nem com a verificação dos pressupostos que fundam a obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade civil extracontratual.

3.3 Motivação
(…)
4. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
A arguida foi pronunciada pela prática de um crime de difamação, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2 do Código Penal.

A norma que prevê o tipo legal de difamação estipula que quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias (artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal).

Acrescenta o artigo 183.º, n.º 1, alínea a) do mesmo código que se, no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação, as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo. Por outro lado, dispõe o n.º 2 da mesma disposição legal que, se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.

Com efeito, traduz-se o crime de difamação na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros (José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal – tomo II, p.608), podendo ser definida como a atribuição a alguém de facto ou conduta que encerrem em si uma reprovação ético-social ou a prolação de expressões ofensivas da honra ou consideração de outra pessoa e dirigidas a terceiro.

Com esta previsão legal, pretendeu o legislador, como resulta claro da estatuição da mesma, proteger o bem jurídico honra e consideração.

O conceito de honra concretiza-se na essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à rectidão, à lealdade, ao carácter (....), por contraposição à consideração que se traduz no património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida (...) (Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anotado, 2.º vol., p.317).

Nestes termos, distingue-se o sentimento de estima por si próprio, o sentimento de dignidade própria (honra subjectiva), o apreço e respeito de que alguém é objecto e a reputação e boa fama (honra objectiva/consideração).

Para o preenchimento do tipo, revela-se necessária a verificação dos seguintes pressupostos:

a) imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivos da honra ou consideração de determinada pessoa, que não esteja materialmente presente ou por meio de comunicação, escritos, desenhos ou outro qualquer meio semelhante (elemento objectivo);

b) consciência, por parte do agente, de que os factos são ofensivos da honra e consideração da pessoa e que a sua actuação é proibida por lei (elemento subjectivo).

No entanto, não devem prevalecer, neste domínio, concepções puramente fácticas da honra (sejam elas subjectivas ou objectivas), mas uma concepção predominantemente normativa, temperada por uma concepção fáctica, em que se atenda ao valor da personalidade moral radicado na dignidade inerente a toda a pessoa humana, mas também à reputação de que goza determinada pessoa (José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal – tomo II, p.607).

Trata-se, pois, de infracção dolosa, mas não é necessário um particular animus difamandi. Entende-se, nesta conformidade, que o elemento subjectivo se basta com a consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural em que a mesma se insere.

Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2008, Proc. 07P4817, www.dgsi.pt).

Porém, o n.º 2 do mencionado artigo 180.º prescreve que a conduta não é punível quando: a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira, sendo que a boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

Da interpretação deste normativo legal resulta que, para estarmos perante uma causa de exclusão da ilicitude, necessário se torna a verificação cumulativa das circunstâncias descritas nas referidas alíneas.

Por outro lado, como supra dito, a pena aplicável ao crime de difamação, é elevada nos casos em que o mencionado ilícito é cometido através de meio de comunicação social, atendendo à maior facilidade de divulgação e número de destinatários potencialmente atingidos.

Todavia, importa, nestes casos, ponderar a dimensão do direito à livre informação e opinião e sua conjugação com o direito fundamental à honra e consideração pessoais/bom nome e reputação.

Consagra o artigo 26.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Também no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, e com o mesmo grau na hierarquia destes, encontra-se plasmada, no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa a liberdade de expressão e informação, que se concretiza no direito atribuído a todos de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

A liberdade de expressão, assim definida, encontra assento, também, nos artigos 19.º e 29.º, n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, normas aplicáveis no ordenamento jurídico português e reflectidas na jurisprudência não só dos tribunais superiores como do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Com efeito, a liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das principais condições para o seu progresso e desenvolvimento de cada indivíduo, devendo, por isso, ser preservada e respeitada, designadamente na confrontação com outros direitos fundamentais.

Importa pois, com recurso ao princípio da proporcionalidade, aferir em cada caso concreto os exactos termos de compressão de cada um dos direitos em análise. “Do confronto frequente destes dois direitos de igual valia constitucional – direito de expressão e informação, por um lado, e direito à honra, por outro – ressalta a necessidade de procurar, em cada momento, a composição dos interesses em litígio, em obediência ao princípio júridico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais e segundo o qual se deve obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua optimização, traduzida numa mútua compressão, por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível” (Jorge Figueiredo Dias, Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português, Revista de Legislação e Jurisprudência, 115.º Ano, p. 102).

Como anteriormente decidido, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.05.2007 (Proc. 0710027, www.dgsi.pt), “o direito à liberdade de expressão (artigo 37.º Constituição da República Portuguesa), o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, não pode ser exercido sem limites, designadamente os impostos por outros direitos constitucionais. (…) Havendo colisão entre o direito de informar e os direitos inerentes à pessoa humana deve dar-se prevalência a estes por serem superiores, isto é, a colisão de ambos conduz, em princípio à necessidade de compressão daquele”.

Expõe o artigo 30.º, n.º 1 da Lei 2/99 de 13 de Janeiro que a publicação de textos ou imagens através da imprensa, que ofendam bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais, sendo que, no que respeita a artigos de opinião, só o autor da mesma pode ser responsabilizado pela sua divulgação (artigo 31.º, n.º 5 da Lei 2/99 de 13 de Janeiro).

Assim, não obstante a liberdade de expressão e informação que deve ser conferida aos órgãos de comunicação social, esta não pode extravasar os limites previstos no Código Penal, nomeadamente os elementos típicos dos crimes contra a honra. Reforçando a ideia da concordância prática, supra explicitada, entendemos que “os crimes cometidos através da comunicação social constituem limites extrínsecos à liberdade de imprensa. Na verdade, tendo de coexistir com outros direitos fundamentais, a liberdade de imprensa sofre as restrições que decorrem da necessidade de respeitar esses outros valores, cessando no momento em que o seu exercício acarreta a violação de bens constitucionalmente protegidos que possam considerar-se prevalecentes” (Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. I, p. 528).

Ora, no caso concreto, dúvidas não há de que a arguida proferiu/escreveu as afirmações descritas, imputando ao assistente juízos de valor, dirigindo-se a terceiros, através de órgão de comunicação social, sabendo que os mesmos (juízos de valor) são passíveis de ofender a honra e consideração de qualquer pessoa a que respeitem.

Não existem, também, dúvidas de que a arguida escrevia sobre a pessoa do assistente e, ainda, que todo o texto é elaborado por forma a concluir que o assistente é pessoa “sem conhecimentos” e cujo comportamento é pelo menos “descontroladamente agressivo e bizarro”, o que, objectivamente, e sem qualquer margem de discordância social, é ofensivo da honra e da consideração de qualquer pessoa.

Na verdade, é do conhecimento geral que atribuir a outra pessoa o epíteto de “ignorante” é uma forma de o insultar e que a expressão “seita diabólica” tem, na língua portuguesa, conotação negativa. Acresce que a arguida acrescentou, ainda, que o assistente “estava possuído pelo demónio”, deixando, assim, clara a sua intenção exclusiva de ofender.

Com efeito, não podemos restringir-nos à definição linear das palavras em causa – ignorante, seita diabólica, no sentido de desconhecedor de certos factos e pertencente a um grupo que professa religião diversa da dominante e, por outro lado, considerar que possuído pelo demónio é ofensa impossível, por não corresponder à realidade.

Efectivamente, as expressões não podem ser descontextualizadas e retiradas das circunstâncias em que foram proferidas, sendo que, no caso, foram usadas com o objectivo único de ofender o assistente.

De facto, assim é porque, pretendendo a arguida repor a verdade, no que respeita ao cidadão a viver em condições desumanas em Paialvo, bastaria ter dado conta da verdade desses mesmos factos, sendo totalmente desnecessária a utilização das expressões em causa, que nenhuma relação têm com tal factualidade mas apenas com a pessoa do assistente.

Assim, está, pois, preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime de difamação, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2 do Código Penal.

“Para o direito de informação operar como causa de justificação torna-se indispensável, à correcta justificação pelo exercício do direito de informação, que a ofensa à honra se revele como meio adequado e razoável de cumprimento da função pública da imprensa. Por isso, o meio utilizado não só não pode ser excessivo como deve ser o menos pesado possível para a honra do atingido. Qualquer excesso implicará a ilicitude da conduta” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.05.2004, Proc. 10217/2003-5, www.dgsi.pt).

No caso vertente, muito embora, da leitura do escrito em questão, resulte que o propósito da mesma é repor a verdade no que toca às condições desumanas em que um cidadão de Paialvo vivia, a verdade é que a arguida, utilizou expressões – ignorante, seita diabólica e possuído pelo demónio – excessivas, desnecessárias e com o único objectivo de ofender, tendo em conta a finalidade do referido escrito.

De facto, para efectivar o seu direito de livre expressão da opinião, não necessitava a arguida de se referir ao assistente como ignorante, pertencente a uma seita diabólica e possuído pelo demónio, pois que elencar a factualidade em causa bastaria para exercer o seu direito de crítica.

Pelo exposto, por ter a arguida extravasado o necessário para exercer o direito de livre expressão e crítica, imputando ao assistente juízos de valor ofensivos da honra e consideração, entendemos que é forçoso concluir que a arguida praticou um crime de difamação agravada.

5. MEDIDA DA PENA
(…)
6. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Objeto do recurso e poderes de cognição do tribunal de recurso
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Sem questionar a factualidade provada, a arguida e recorrente vem pôr em causa a tipicidade da sua conduta, concluindo dever ser absolvida do crime de difamação, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2 do Código Penal, pelo qual vem condenada, bem como do pedido indemnizatório por perdas e danos emergentes daquele mesmo crime. É esta a questão a decidir.

2. Decidindo.

Tendo subjacente a caraterização do crime de difamação como crime de perigo, o tribunal a quo considerou que as expressões “ignorante”, “pertencente a seita diabólica” e “possuído pelo demónio” são típicas, por serem suscetíveis de ofender a honra ou consideração do assistente, e que a sua utilização pela arguida não se encontra coberta por causa de justificação. Máxime o direito à liberdade de expressão e de informação, na vertente do direito à livre expressão de opinião e crítica, por serem tais expressões desnecessárias para a prossecução destes direitos, desde logo porque elencar a factualidade tal como entendia que se passara era suficiente para repor à verdade no que toca às condições desumanas em que vivia um cidadão de Paialvo.

Apreciemos, então, o enquadramento jurídico-penal assumido pelo tribunal a quo, tendo em conta que a arguida defende no seu recurso que aquelas expressões não são típicas e ilícitas, conforme aludido.

Para tanto, veremos em primeiro lugar alguns aspetos da caraterização dogmática do crime de difamação que nos parecem relevantes para compreender a lógica interna da sentença recorrida e melhor fundamentar a decisão do presente recurso.

2.1. Em primeiro lugar, tanto o crime de difamação como o crime de injúria são legalmente configurados como crimes de dano, uma vez que o preenchimento do tipo depende da lesão efetiva daquele bem, como decorre da letra da lei ao exigir no artigo 180º que os factos imputados ou o juízo formulado sejam ofensivos da sua honra ou consideração e não da mera suscetibilidade ou potencialidade de o serem. Como refere Pinto de Albuquerque, embora seja um crime de mera atividade [e não um crime de resultado], de acordo com o critério da forma de consumação do ataque ao objeto da ação, o crime de difamação é um crime de dano, segundo o critério do grau de lesão do bem jurídico (cfr P. Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, p. 496).

A suscetibilidade ou potencialidade lesivas das palavras ou dos factos é, pois, condição necessária mas não suficiente para o preenchimento do tipo de ilícito, pois este depende de a potencialidade lesiva se traduzir, atentas as circunstâncias concretas em que as palavras (no que agora importa) foram produzidas, em ofensa efetiva da honra e consideração do lesado (bem jurídico protegido).Neste sentido, diz Augusto Silva Dias:

- “A reprodução de um facto objetivamente adequado para desacreditar socialmente outrem e que é como tal compreendido pelos destinatários, viola (não coloca meramente em perigo ) a sua pretensão ao bom nome. (…) A comprovação da lesão assim entendida não se basta com a aptidão da expressão proferida para lesar o bem jurídico: a frase «ofensivo da honra ou consideração» usada na descrição típica dos crimes de difamação e de injúrias, não significa apenas e principalmente – ao contrário do modo que sustentava Beleza dos Santos – que a expressão tem que ser adequada ou suscetível de ofender, mas que tem de ofender, de prejudicar a honra de outrém.” – cfr ob. cit. pp. 22-3.

Não podemos, assim, acompanhar o essencial do sumário do Ac STJ de 30.04.2008 (Proc. 07P4817, relator Rodrigues da Costa), citado pelo senhor juiz a quo, na parte em que refere não ser necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano

Não basta, pois, no plano objetivo, que as palavras usadas sejam abstratamente suscetíveis de ofender o bom nome ou a reputação, exigindo-se que ofendam efetivamente o bom nome e reputação da pessoa visada, o que se harmoniza com a exigência, comum na jurisprudência[1], de que as palavras em causa devam considerar-se lesivas da honra ou consideração do visado nas circunstâncias concretas em que foram proferidas.

2.2. Em segundo lugar, há que proceder à indagação cuidada sobre o preenchimento do tipo no caso presente, como aludido, visto que a questão da relevância penal das palavras escritas pela arguida - que poderia, à partida, colocar-se em sede de tipicidade ou de ilicitude -, resolve-se no caso presente, como noutros semelhantes, ao nível da tipicidade e não no quadro das causas de justificação, contrariamente ao caminho seguido pela sentença recorrida.

Com efeito, o tribunal a quo considerou evidente que as palavras proferidas preenchem o tipo legal, e só no quadro das causas de justificação (plano da ilicitude) abordou o conflito entre liberdade de expressão, concluindo não se mostrar afastada a ilicitude indiciada pela tipicidade porque, tal como se tem entendido em situações semelhantes, considerou que face aos critérios da proporcionalidade, idoneidade e necessidade do meio utilizado em relação ao fim pretendido, a arguida extravasou, sem necessidade, os limites da liberdade de expressão.

Como se diz na sentença, “… pretendendo a arguida repor a verdade, no que respeita ao cidadão a viver em condições desumanas em Paialvo (…), utilizou expressões – ignorante, seita diabólica e possuído pelo demónio – excessivas, desnecessárias e com o único objectivo de ofender, tendo em conta a finalidade do referido escrito (…) pois que elencar a factualidade em causa bastaria para exercer o seu direito de crítica [pelo que] por ter a arguida extravasado o necessário para exercer o direito de livre expressão e crítica, imputando ao assistente juízos de valor ofensivos da honra e consideração, entendemos que é forçoso concluir que a arguida praticou um crime de difamação agravada”.

A sentença recorrida parece, pois, privilegiar a linha de abordagem e de decisão própria do paradigma que, conforme dá notícia Costa Andrade, foi cunhado pelo Tribunal Federal Alemão em decisão de 1951 (só mais tarde ultrapassado) e cuja doutrina parte da tipicidade do juízo crítico, mesmo da crítica objetiva que, de qualquer forma, direta ou reflexamente, acabe por atingir o autor da obra ou prestação criticada, fazendo-se depender «… a justificação – a título nomeadamente de exercício de um direito (a liberdade de expressão…) ou de prossecução de interesses legítimos – de pressupostos tão exigentes que se alargava desmesuradamente o campo da crítica ilícita, mesmo da crítica criminalmente punível. Concretamente só poderia considerar-se justificada a crítica que “pelo seu conteúdo, forma e demais circunstâncias fosse objetivamente necessária à prossecução de interesses juridicamente reconhecidos» - cfr ob. cit. p. 234.

2.3. Não é esta, porém, a linha de abordagem que entendemos ajustada a casos como o presente, desde logo por consideraremos, como aludido, que a decisão da questão suscitada não pode dispensar a análise cuidada do tipo legal, pois estamos longe de acompanhar o tribunal recorrido na conclusão de que “ é do conhecimento geral que atribuir a outra pessoa o epíteto de “ignorante” é uma forma de o insultar “ e que ao usar as expressões “seita diabólica e “estava possuído pelo demónio”, a arguida deixou clara a sua intenção exclusiva de ofender.

Com efeito, tendo presente que “A conduta típica configura sempre a concretização de uma expressão paradigmática de danosidade social intolerável e, como tal, digna de tutela penal e carecida de tutela penal” (Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora-1996, p. 218), situações há em que não se mostra sequer presente o juízo de ilicitude pressuposto e indiciariamente afirmado no tipo, na medida em que a conduta respetiva não se ajusta à afirmação de danosidade social que a descrição típica encerra.

Assim, impõe-se averiguar em primeiro lugar se as palavras em causa são objetivamente típicas, como aludido, o que depende da definição do bem jurídico protegido com a incriminação que, por sua vez, tem o seu horizonte de referência na Constituição em sentido material, do que resulta uma adequação hermenêutica dos preceitos penais com o valor constitucional que tutelam (vd., por todos, Augusto Silva Dias, Alguns aspetos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, AAFDL-1989, p.p. 16-24)

Esta exigência vale plenamente para o caso presente, não podendo as expressões utilizadas pela arguida ser descontextualizadas e retiradas das circunstâncias em que foram proferidas (assim também a sentença recorrida) logo ao nível da indagação sobre o preenchimento do tipo, pois não integrando qualquer Index de palavras supostamente difamatórias ou injuriosas de per si, a ofensa da honra ou consideração da pessoa concretamente visada depende do circunstancialismo em que as palavras foram usadas e, antes disso, da definição do bem jurídico protegido, matéria sobre a qual não se registam divergências significativas na doutrina e jurisprudência, entre nós.

Lembramos apenas que o art. 26º nº1 da CRP consagra o direito ao bom nome e reputação, entre os vários direitos de personalidade, o que representa um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação), cujo conteúdo é constituído basicamente pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, ou seja, a pretensão de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade, independentemente do reconhecimento real ou merecido de que uma pessoa goza ou deve gozar (vd Augusto Silva Dias, ob. e loc. cit.), ainda que em nosso ver este último dado não possa deixar de ser levado em consideração pelo menos quando se trate da imputação de factos, se não ao nível do tipo pelo menos ao nível da apreciação de causas de justificação como seja a prossecução de interesse legítimo (v.g. exceptio veritatis) ou exercício de um direito (v.g. liberdade de expressão e direito à informação).

Por outro lado, se é certo que o nosso C. Penal adota uma conceção normativo-pessoal de honra em que esta é vista como bem jurídico complexo que abrange quer o valor interior ou subjetivo de cada indivíduo, quer a sua reputação ou consideração exterior, não se discute igualmente o caráter fragmentário ou de última ratio do direito penal, sendo ainda verdade para o nosso ordenamento jurídico-penal que nos arts 180º e 181º o C. Penal tutela a dignidade e o bom nome do visado e não a sua especial suscetibilidade e melindre.

Assim, impõe-se levar devidamente em conta logo ao nível do preenchimento do tipo de ilícito que o direito penal tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito, e que nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético, ou que “….envergonha e perturba ou humilha, cabe na previsão das normas dos arts 180º e 181, ...“ (Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37, citado no parecer do MP que vimos invocando).

Deste modo, são lesivas da honra e consideração as palavras que violem o direito de cada um ao bom nome e reputação, com o conteúdo ora referido, pelo que é a esta luz que se apreciará com mais detalhe a tipicidade das palavras usadas pela arguida a propósito do assistente no artigo jornalístico em questão, não sem antes fazermos algumas referências à liberdade de expressão (grosso modo) que reputamos relevantes em sede de tipicidade.

2.4 Assim, ainda em sede de preenchimento do tipo legal, importa chamar explicitamente à colação o direito à liberdade de expressão e à liberdade de informar e ser informado bem como a liberdade de imprensa, que C. Andrade considera manifestação paradigmática das liberdades de expressão e informação nas sociedades contemporâneas, pois pode dizer-se com o autor alemão citado por Costa Andrade (ob. cit. p. 222), que, “ … os tipos legais contra a honra terão de ser interpretados a partir do âmbito da área de tutela (da liberdade de expressão) e dos limites (…) A liberdade de expressão terá, por isso, de ser considerada já ao nível do tipo e não apenas em sede de justificação”.

Com efeito, conforme resulta do descrito sob os nºs 6 e 7 da factualidade provada e de fls 5 e 6 dos autos, estamos perante texto que a arguida publicou na imprensa regional com o título «Resposta ao sr. RV, de Torres Novas. Esclarecimento ao ouvintes/leitores da empresa Rádio/Jornal Cidade de Tomar» do qual resulta, tal como do conteúdo respetivo, que o mesmo foi efetivamente escrito pela arguida em reação a telefonema feito pelo assistente para uma rádio local em que aquele tomou posição crítica sobre a participação da arguida em anterior programa radiofónico, que teve como objeto “a situação de um cidadão portador de deficiências a viver em condições desumanas em Paialvo-Tomar”, sendo certo que a arguida foi pronunciada e vem condenada pelo crime de Difamação agravado pelo nº2 do art. 183º do C. Penal, ou seja, por ter sido cometido através de meio de comunicação social.

Parece-nos, pois, dispensar mais ampla fundamentação a afirmação de que o texto jornalístico escrito pela arguida naquele jornal encontra-se abrangido pela especial proteção concedida pelo art. 37º da CRP à liberdade de informação, para além da liberdade de expressão reconhecida a todos os cidadãos, tal como o estava a participação da arguida em programa da Rádio Cidade de Tomar onde é colaboradora desde 1988, conforme referido em 6. e 23. da factualidade provada.

Os limites à tutela do direito à honra decorrentes da liberdade de expressão e liberdade de imprensa devem, assim, ser tomados em conta na determinação do que sejam condutas ofensivas da honra ou consideração de outrem para efeitos de preenchimento do tipo, pois encontrando-nos perante direitos fundamentais carateristicamente conflituantes e de igual hierarquia, o sentido e alcance do tipo legal acaba por ser conformado pelo espaço reciprocamente reconhecido a cada um deles.

Como refere Jónatas Machado, Liberdade de Expressão, Interesse público e Figuras públicas e equiparadas in BFD, Vol. LXXXV-2009 p. 84, “No quadro de uma ordem constitucional livre e democrática os direitos fundamentais constituem limites uns dos outros, estabelecendo entre si uma relação de mutuo condicionamento, devendo por esse motivo os conflitos entre eles ser harmonizados de acordo com uma lógica de ponderação proporcional, concordância prática e máxima efetividade”.

Assim, apelando aos desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais referidos por Costa Andrade que levaram a que as situações de exercício do direito de crítica objetiva cuja relevância jurídico-penal esteja à partida excluída por razões de atipicidade (Costa Andrade, ob. cit. p. 232 e sgs), também em casos como o presente, em que através da comunicação social a arguida apreciou criticamente intervenção anterior do assistente em telefonema feito para programa radiofónico, não pode deixar de atender-se à especial relevância que no nosso ordenamento jurídico-constitucional é reconhecida à liberdade de expressão e ao direito de participação e crítica que lhe está associado, para concluirmos igualmente pela atipicidade, como regra, deste tipo de intervenções.

Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito da distinção entre o direito de expressão do pensamento e o direito de informação (a que se refere o art. 37º da CRP), esta distinção assenta na distinção comum entre, por um lado, a expressão de ideias ou opiniões e, por outro lado, a recolha e transmissão de informações, embora o seu regime jurídico-constitucional seja essencialmente o mesmo (cfr CRP Anotada, 4ª ed.- 2007 p. 572).

Tomando como referência a apontada distinção, no caso sub judice está em causa o direito à livre expressão de opiniões, na medida em que ao apelidar o assistente de “ignorante” e afirmar que está “possuído pelo demónio” e que “pertence a seita diabólica”, a arguida manifesta daquela forma a sua opinião sobre a credibilidade e relevância da posição assumida pelo assistente, dadas as palavras que lhe ouviu na rádio, ao mesmo que reafirma a verdade dos factos que tornara públicos no programa radiofónico em que participou.

Ora, como explica Costa Andrade para o direito de crítica objetiva por ele devidamente caraterizado (cfr ob. e loc. citados pp. 232 a 240), entendemos que desde que a valoração e crítica de outras intervenções através da comunicação social se foque no conteúdo dessas mesmas prestações e não se dirija direta e preferencialmente à pessoa do seu autor, os juízos de valor emitidos cairão fora da tipicidade de incriminações como a Difamação, seja porque não atingem a honra pessoal do visado pela crítica, seja porque não a atingem com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a área de tutela típica do crime contra a honra. Como conclui Costa Andrade, num e noutro caso, a atipicidade afasta, sem mais e em definitivo, a responsabilidade criminal do crítico, não havendo, por isso, lugar à busca da cobertura de uma qualquer dirimente da ilicitude. (cfr p. 233).

Na verdade, a liberdade de expressão, maxime quando exercida através de meio de comunicação social, assume uma posição preferencial como elemento constitutivo de uma sociedade democrática, cuja centralidade tem sido reafirmada pelo TEDH na interpretação do art. 10º da CEDH, ao apontar claramente para que se interpretem de forma restritiva os direitos de personalidade, maxime o direito à honra, no que agora importa, que não comprometa o papel central da liberdade de expressão, de informação e de imprensa numa sociedade democrática. – Cfr J. Machado est. cit. p. 80.

É este o entendimento das coisas que temos vindo a expor e que se afasta, na metodologia e no resultado, do caminho seguido pela sentença recorrida e outras decisões judiciais que têm concluído pela responsabilidade penal do acusado por considerarem que este invadiu de forma típica e ilícita o direito à honra da pessoa visada por extravasar, sem necessidade, os limites da liberdade de expressão. Conforme referem Helena Leitão e Pacheco Ferreira in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol.I, UCP, 2010, p. 529, em 2010 o TEDH condenara já por oito vezes o Estado Português por violação do art. 10º da CEDH, por considerar que os tribunais portugueses subvalorizaram a liberdade de expressão no conflito entre direitos de personalidade e a liberdade de expressão ou liberdade imprensa, referindo os mesmos autores trecho de Teixeira da Mota em que este afirma que “os nossos tribunais, repetidamente, condenam os portugueses pelo crime de injúria só por considerarem que poderia ter sido utilizadas outras palavras ou expressões menos agressivas ou violentas e que serviriam igualmente para exprimir as ideias ou opiniões em causa…”, numa abordagem que se assemelha à seguida no caso presente, como aludido.

2.5. Passamos agora a concluir a exposição das razões que nos levam a afastar a tipicidade das expressões usadas pela arguida, sendo certo que se justifica alguma autonomia na apreciação da expressão ignorante,por um lado, e possuído pelo demónio e pertença a seita diabólica, por outro, dada a forma como foram encaradas pelo tribunal a quo.

2.5.1.Assim, relativamente à primeira daquelas expressões, importa deixar claro que entendemos não poder concluir-se com o tribunal a quo ser do conhecimento geral que atribuir a outra pessoa o epíteto de “ignorante” é uma forma de o insultar, pois nem sempre assim é, dependendo a concretização do potencial lesivo daquela palavras das circunstâncias em que a expressão é utilizada.

Com efeito, embora possa dizer-se que, em regra, apelidar alguém de ignorante tem um sentido depreciativo, tal não equivale a poder afirmar-se que é sempre um insulto e que, nessa medida, constitui expressão ofensiva da honra e consideração devida a qualquer pessoa pelo facto de o ser, em nome do respeito pela dignidade humana.

Muitos são os contextos em que a utilização daquela expressão, como outras semelhantes, é socialmente aceite como forma de expressar mero desacordo, divergência mais profunda e até como modo de afirmar crenças, convicções e certezas, no confronto com o seu interlocutor. Apelidar o assistente de ignorante, em texto jornalístico motivado por intervenção pública em que aquele afirma que a arguida mentiu num programa radiofónico ao relatar factos e tecer considerações sobre a situação de um cidadão que viveria em condições desumanas, é uma dessas situações, dados os termos em que a arguida o faz.

No texto sob escrutínio a arguida foca-se claramente na situação humana que anteriormente levara à rádio, reafirmando factos, adiantando argumentos, invocando conhecimento e experiência de vida que, na sua perspetiva, conferem credibilidade à sua pessoa e versão e descredibilizam a pessoa e a versão do assistente, que fala sem saber do que fala, e, por isso, diz ser ignorante.

Não pode afirmar-se, pois, que neste circunstancialismo a arguida ofendeu o direito do assistente à honra ou consideração, ou seja, ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros, à pretensão de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade, ao apelidar o assistente de ignorante.

2.5.2. Menos clara é a lógica intrínseca que levou a arguida a utilizar as expressões “pertencer a seita diabólica” e “estar possuído pelo demónio” no texto em causa, embora estas possam significar, na economia do texto, que o assistente não estava em si, mas sob o controlo do demónio, ao apodar de mentirosas as anteriores afirmações da arguida em programa radiofónico.

Em todo o caso, seja esse ou outro semelhante o sentido que a arguida possa ter querido atribuir àquelas expressões, nada permite lê-las fora do quadro geral que carateriza o texto da arguida, com destaque para o enfoque na situação humana que anteriormente levara à rádio e a descredibilização da posição assumida telefonicamente pelo assistente a respeito daquela mesma situação, sendo certo que, como diz o MP nesta Relação, aqueles trechos denotarão ironia ou mesmo sarcasmo por parte da arguida, mas nada permite interpretá-los literalmente como se a arguida afirmasse que o assistente está efetivamente possuído pelo demónio ou que pertence realmente a uma qualquer seita diabólica.

Nomeadamente, entendemos não poder afirmar-se com a sentença recorrida que a arguida quis exclusivamente ofender o assistente, conclusão que, se bem vemos a questão, o senhor juiz a quo extrai a partir do raciocínio que esquematicamente enunciamos assim: pressupondo que as expressões são ofensivas, em abstrato, e não se descortinando em que medida as mesmas poderiam contribuir para a arguida prosseguir a finalidade de repor a verdade dos factos com o texto jornalístico em causa, a arguida só pode ter tido o intuito exclusivo de ofender o assistente.

Todavia, mesmo tomando como certo que a arguida pretendeu incomodar o assistente com aquelas expressões, ou mesmo irritá-lo ou apresentá-lo como pessoa associada a forças maléficas e diminuída na sua autonomia, nos dias de hoje e no nosso espaço de vivência social tal não significa ofensa ao bom nome e reputação do assistente, constitucionalmente reconhecido (art. 26º CRP). Isto é, lembremo-lo, não estamos perante juízos de valor de sentido e alcance imediatamente reconhecíveis que pudessem ser tomados pela generalidade das pessoas do nosso tempo e do nosso espaço vivencial comum como atingindo a honra, a dignidade ou consideração social, do assistente, dado o contexto próximo e remoto em que a arguida usou as expressões em causa.

2.5.3. Posto isto, resta-nos concluir que não consideramos as expressões usadas pela arguida ao referir-se ao assistente no artigo de jornal de que se transcreve o trecho que pode ler-se sob o nº 1 da factualidade provada, ou seja, “ignorante”, pertencia a seita diabólica” e “estava possuído pelo demónio, ofensivas da honra ou consideração do assistente, contrariamente ao entendimento assumido pelo tribunal a quo,pelo que se julga procedente o recurso, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo a arguida tanto da prática de um crime de difamação agravada, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2 do Código Penal, como da condenação a pagar ao assistente a importância de 500 euros a título de indemnização por danos não patrimoniais, dado que esta indemnização se fundava na prática do crime por parte da arguida.

III. Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder total provimento ao recurso interposto pela arguida, E, revogando a sentença recorrida e decidindo, em substituição, absolvê-la da prática do crime de difamação agravado, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2 do Código Penal, pelo qual vinha condenada, bem como de todo o pedido cível que fora deduzido pelo assistente.

Custas pelo assistente, que deduziu oposição ao recurso, fixando-se a taxa de justiça em 3UC – cfr art. 514º do CPP e art. 8º nº5 do RCP e Tabela III a que se refere aquele preceito.

Évora, 16 de maio de 2017

(Processado em computador. Revisto pelo relator)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete)
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[1] Vd, por todos, o Ac RP de 09.03.2011 (rel. Melo Lima) e acórdãos aí referidos, em cujo sumário pode ler-se:

“I. Só são crime as injúrias que, pela sua natureza e circunstâncias, sejam tidas na comunidade por graves.

II. A verificação do ilícito não se pode circunscrever ou limitar à valoração isolada e objectiva das expressões, exigindo-se que as mesmas sejam analisadas e valoradas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas.

III - Não preenche a tipicidade (objectiva) do crime de injúria, do artigo 181.º, do CP, a expressão “Este advogado deve estar louco”, proferida pela executada no âmbito de uma diligência de restituição de posse de servidão de passagem, num momento em que surgiram divergências entre os intervenientes a respeito da configuração do leito dessa servidão.”.