Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7/16.6GDMRA.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: ALTERAÇÃO DE MARCOS
CRIME
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
Data do Acordão: 10/02/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – Marcos para efeitos da incriminação prevista no art.º 216 n.º 1 do CP, ex vi art.º 202 al.ª g) do mesmo diploma, exigem que a sua colocação tenha sido operada por força de decisão judicial ou por acordo de quem esteja legitimamente autorizado, ou seja, os donos das propriedades confinantes;
II – Tal não se verifica e, por consequência, o arguido não deve ser pronunciado pela prática daquele crime se no requerimento de abertura da instrução o assistente se limita a alegar, a tal respeito, que dias antes havia colocado os marcos na extrema da propriedade de acordo com as coordenadas definidas pelo Instituto Geográfico e Cadastral e um levantamento topográfico.
Decisão Texto Integral: Proc. 7/16.6GDMRA.E1

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Competência Genérica de Moura, correu termos o Proc. n.º 7/16.6GDMRA, no qual foi decidido, por despacho de 19.12.2017, ao abrigo do disposto no art.º 287 n.º 3 do CPP, rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente CC, a fls. 71 a 75, em síntese:
- porque “os factos narrados pelo assistente nunca poderiam fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena e, desde logo, a sua pronúncia, posto que os mesmos não constituem crime de alteração de marcos, p. e p. no art.º 216 n.º 1 do CP… não satisfazendo o requerimento os requisitos legais previstos no art.º 287 n.º 2 do CPP, deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal” (leia-se a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 13 de janeiro de 2011, relator Arménio Sottomayor, Processo n.º 3/09.0YGLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt);
- porque “o requerimento de abertura de instrução nestas condições é insuscetível de convite ao aperfeiçoamento”, face ao acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/2005, publicado no Diário da República de 04 de novembro de 2005.
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2. Recorreu o assistente, CC, de tal despacho - que rejeitou o requerimento de abertura da instrução - concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - O Instituto Geográfico e Cadastral não define extremas nos prédios, limita-se a declarar por onde passam as mesmas de acordo com o que consta no cadastro.
2 - As extremas constam de plantas no cadastro desde os anos 40 do século XX.
3 - Não estamos perante prédios não demarcados, ou numa zona onde não há cadastro.
4 - No caso dos autos as propriedades estão legalmente demarcadas, sendo os marcos apenas a face visível dessa demarcação.
5 - A delimitação das propriedades está feita por linhas e pontos, sendo o ponto local onde os marcos que devem estar fixados no terreno.
6 - Portanto, não se trata nos autos de uma fixação de marcos por vontade unilateral do recorrente.
7 - O acordo relativo às extremas do prédio foi fixado nos anos 40 do século XX. Os marcos são a face visível desse acordo.
8 - Por isso, os marcos implantados no terreno pelo recorrente, de acordo com as coordenadas definidas pelo Instituto Geográfico e Cadastral, são marcos, nos termos do disposto no artigo 202 alínea g) do CP.
9 - Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogada a douta sentença e, como tal, ordenar-se o recebimento do requerimento de abertura de instrução, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 286, 287 e 308 do CPP.
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3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 - Insurge-se, pois, o recorrente quanto à decisão que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, considerando que tal peça processual se encontra bem alicerçada e com todos os elementos necessários à abertura da instrução.
2. À semelhança do Mm.º Juiz de Instrução Criminal, também entendemos que o requerimento do assistente, não obstante o exercício dialético feito, em que se procuram evidenciar as razões de discordância do arquivamento, não oferece factos objetivos capazes de preencher a previsão normativa do crime de alteração de marcos, conforme tipificado no artigo 216 n.º 1 do Código Penal.
3. Ora, assume-se unânime o entendimento de que o assistente terá de formular, em termos substanciais, uma verdadeira acusação, tal como resulta da remissão expressa do artigo 287 n.º 2 do Código de Processo Penal para o artigo 283 n.º 3 alíneas b) e c) do mesmo código, sendo a falta de narração dos factos a imputar insusceptível de aperfeiçoamento ou correção.
4. Ora, no requerimento de abertura de instrução, o assistente refere, nos seus pontos 5 e 6, que “solicitou aos serviços geográficos e cadastrais a delimitação do seu prédio” e, nessa sequência, foram “afixadas estacas e depois marcos”, uma vez que o assistente tinha necessidade de conhecer os exatos limites do seu prédio.
5. Por seu turno, no requerimento para abertura de instrução, argumenta que o “Instituto Geográfico e Cadastral não define extremas nos prédios, limita-se a declarar por onde passam as mesmas de acordo com o que consta no cadastro… desde os anos 40 do século XX”.
6. Conclui, portanto, que a colocação dos pretensos “marcos”, operada pelo assistente, não é fruto da vontade do mesmo, mas consequência da delimitação que lhe foi informada pelos serviços geográficos e cadastrais e, como tal, os objetos apostos em tais pontos geográficos são havidos como “marcos”, para efeitos criminais, com o que não concordamos.
7. Com efeito, o conceito de “marco”, para efeitos do preenchimento do tipo legal de crime, tipificado no artigo 216 n.º 1 do Código Penal, encontra-se contemplado na alínea g) do artigo 202 do referido código, o que não corresponde ao sinal corpóreo alegadamente derrubado pelo arguido, segundo a descrição constante nos pontos 5 e 6 do requerimento para abertura de instrução.
8. Daí que, independentemente de qualquer apreciação de mérito sobre o objeto da instrução, a verdade é que resulta, desde logo, da descrição objetiva dos factos, que os mesmos, tal como vêm narrados, não são passíveis de se subsumirem ao tipo legal de crime do artigo 216 n.º 1 do Código Penal.
9. Assim sendo, não havendo crime, deverá o sobredito requerimento ser rejeitado, nos termos do artigo 286 n.º 3 do CPP, por inadmissibilidade legal.
10. E isto vem precisamente apontado por Vinício Ribeiro, in «Código de Processo Penal – Notas e Comentários», Coimbra Editora, 2011, pág. 794, apud ac. Relação de Évora de 13/07/2017, in dgsi, em que, segundo o referido autor, «o não descrever factos, ou descrever factos que não constituem crime, não pode deixar de conduzir […] à inadmissibilidade legal [da instrução] por falta de requisitos legais».
11. Constituirá, pois, uma clara afronta à economia processual deixar protelar no tempo uma decisão que culminará em despacho de não pronúncia; tendo feito, o Mm.º Juiz, uma correta interpretação dos factos e do direito, nenhuma censura merece tal decisão.
12. Assim sendo, e sem mais considerações, entendemos que outra não poderá ser a sorte do presente recurso senão a da sua improcedência.
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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 127).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP), tendo em atenção as questões colocadas pelo recorrente nas conclusões da motivação do recurso, pois que são as questões aí sintetizadas que delimitam o seu objeto e que, no caso, se resumem a saber se, em face dos temos como se apresenta o requerimento de abertura de instrução (apresentado pelo assistente), deve revogar-se o despacho recorrido (que rejeitou liminarmente tal pretensão) e determinar-se a admissão do requerimento de abertura de instrução.
5.1. Os presentes autos tiveram origem numa queixa apresentada pelo assistente (fol.ª 3 a 5), onde, em síntese, denuncia que no dia 25.03.2016 verificou que 6 marcos que mandara colocar no seu terreno - confinante com o do denunciado – no dia 23.03.2016 “estavam derrubados” e que suspeita que o autor do crime é o arguido, “por este nunca concordar com a extremas impostas”.
Mais afirma que os marcos haviam sido colocados “depois de ter levado ao local um topógrafo que lhe efetuou a medição do terreno e lhe indicou onde colocar os marcos”.
5.2. Efetuada a investigação tida por pertinente, o Ministério Público ordenou o arquivamento dos autos (fol.ªs 64 e 65), em síntese, por entender que “a prova constante dos autos não indicia de forma suficiente a prática do crime de alteração de marcos por parte do arguido… uma vez que a versão de cada um não é corroborada por qualquer outra prova…”.
5.3. Veio então o assistente a requerer a abertura de instrução (fol.ªs 71 a 75), onde, em síntese, alega que o arguido, no dia 25.03.2016, “usou um trator a que tinha acoplado um escarificador… e derrubou 6 marcos de betão de delimitação das propriedades e que estavam enterrados no chão…”, marcos que o assistente mandara colocar “de acordo com as coordenadas definidas pelo Instituto Geográfico e Cadastral e um levantamento topográfico” para delimitar as propriedades do arguido e do assistente.
5.4. Sobre esse requerimento recaiu o despacho recorrido, no qual se decidiu:
Marco, para efeitos do preenchimento do tipo legal de crime tipificado no artigo 216 n.º 1 do Código Penal, é – em suma – um sinal destinado a estabelecer os limites entre diferentes propriedades, posto por decisão judicial ou com o acordo de quem esteja legitimamente autorizado para o dar” (alínea g) do artigo 202 do CP).
Na interpretação de tal conceito – escreve-se na decisão recorrida, trazendo à colação Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 627 e 628 – “marco é uma coisa corpórea colocada, com carácter definitivo, nos limites de duas ou mais propriedades, com o significado jurídico de estabelecer os respetivos limites, desde que quem a colocou tenha legitimidade para o fazer resultante de decisão judicial ou de acordo entre as partes interessadas”.
Os marcos que o assistente diz terem sido derrubados “foram afixados após o assistente ter solicitado aos serviços geográficos e cadastrais a delimitação do seu prédio e de acordo com as coordenadas definidas pelo instituto geográfico e cadastral e um levantamento topográfico.
Ora, simplesmente, atendendo aos factos imputados, não se pode considerar que os marcos de betão derrubados pelo arguido constituam marcos para efeitos penais.
Quer isto dizer, a circunstância de tais sinais de delimitação da propriedade terem sido afixados após os procedimentos administrativos referidos pelo assistente não permite a consideração dos mesmos como marcos nos termos da definição prevista no art.º 202 al.ª g) do CP.
Para tanto, seria necessário a existência de decisão judicial que reconhecesse ao assistente o direito a tal demarcação ou um acordo de vontades para esse mesmo efeito.
Sem uma ou outra causa que legitimasse o assistente a colocar tais sinais a delimitar a sua propriedade confinante com a do arguido teremos de considerar que, afinal, inexistem quaisquer marcos que tivessem sido derrubados.
Deste modo, os factos narrados pelo assistente nunca poderiam fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena e, desde logo, a sua pronúncia, posto que os mesmos não constituem crime de alteração de marcos, p. e p. no art.º 216 n.º 1 do CP.
E não satisfazendo o requerimento os requisitos legais previstos no art.º 287 n.º 2 do CPP, deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal…”.
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5.5. Pretende o recorrente que o arguido seja pronunciado pela prática de um crime de alteração de marcos, p. e p. no art.º 216 n.º 1 do CP, em síntese:
- porque o acordo relativo às extremas do prédio foi fixado nos anos 40 do século XX, sendo os marcos a face visível desse acordo;
- os marcos derrubados pelo arguido e implantados no terreno pelo recorrente foram implantados de acordo com as coordenadas definidas pelo Instituto Geográfico e Cadastral, nas extremas que constam das plantas do cadastro, “são marcos, nos termos do disposto no artigo 202 al.ª g) do CP”.
Mas não tem razão.
De facto, os marcos alegadamente derrubados pelo arguido – como se decidiu no despacho recorrido, e de acordo com o alegado pelo assistente - foram aí colocados pelo assistente dias antes, segundo alega “de acordo com as coordenadas definidas pelo Instituto Geográfico e Cadastral e um levantamento topográfico”, por sua iniciativa, não em consequência ou em cumprimento de qualquer decisão judicial ou com o acordo de quem estava legitimamente autorizado para o dar, o dono da propriedade confinante com a sua.
Não são, pois, marcos, para efeitos da incriminação prevista no art.º 216 n.º 1 do CP, ex vi art.º 202 al.ª g) do mesmo diploma, e face ao entendimento que a doutrina a jurisprudência vêm perfilhando quanto ao conceito de “marco”, como nos dá conta Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 14.ª edição, em anotação ao art.º 202, a propósito da definição de marco introduzida pela revisão do CP levada a cabo pelo DL 48/95, de 15.03: “Ficou bem expresso que os marcos devem ter sido postos por decisão judicial ou por acordo de quem está legitimamente autorizado para o dar… a solução resultava da doutrina e da jurisprudência então firmemente estabelecidas”.
E tal exigência – que a colocação do marco tenha sido operada por força de decisão judicial ou por acordo de quem esteja legitimamente autorizado a dá-lo, para que se possa dizer que estamos perante um marco, para efeitos de incriminação – escreve José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 22, “tem, como é fácil perceber, todo o sentido. As alterações do real social juridicamente vinculante – e a alteração de um marco modifica o conteúdo útil do direito de propriedade – só podem ser feitas, nas atuais sociedades, através de decisões judiciais ou por acordo de manifestação de vontade daqueles que para isso têm legitimidade…”, ou seja, os donos das propriedades confinantes.
Consequentemente, não contendo o requerimento de abertura de instrução factos que integrem a prática do crime imputado ao arguido, em suma, que “fundamentam a aplicação ao arguido, de uma pena ou medida de segurança” – a prova dessa factualidade, tal como alegada, não configura a prática do crime imputado ao arguido - bem se decidiu ao rejeitar tal requerimento, pois que a instrução nestas circunstâncias redundaria numa fase processual inútil; e como bem anotou o Ministério Público na resposta à motivação do recurso, citando Vinício Ribeiro, in «Código de Processo Penal – Notas e Comentários», Coimbra Editora, 2011, pág. 794, apud ac. Relação de Évora de 13/07/2017, in dgsi, «o não descrever factos, ou descrever factos que não constituem crime, não pode deixar de conduzir […] à inadmissibilidade legal [da instrução] por falta de requisitos legais». No mesmo sentido pode ver-se o acórdão do STJ de 12.03.2009, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que “… a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objeto… se, pela simples análise do requerimento para abertura de instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se deve concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação de uma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. No conceito de «inadmissibilidade de instrução» haverá, assim, que incluir, para além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de atos processuais em geral”.
Improcede, por isso, o recurso.
6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC (art.º 515 n.º 1 al.ª b) do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP).

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 02/10/2018
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Palma