Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1340/14.7TAPTM.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: DECLARAÇÕES DA VÍTIMA
APRECIAÇÃO CRÍTICA DAS PROVAS
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSAS CORPORAIS AGRAVADAS
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Num sistema de prova livre, nada obsta a que os factos da acusação resultem demonstrados exclusivamente das declarações da vítima, mesmo quando desacompanhadas de outros meios de prova e opostas à negação do arguido.
2. Perante provas de sinal contrário – declarações do arguido versus declarações da vítima – deve, porém, o tribunal justificar especialmente na sentença a maior credibilidade que estas tenham em concreto merecido.
3. Os recursos são remédios jurídicos que visam a detecção e correcção de erros de julgamento, devendo a Relação limitar-se à sindicância da sentença com vista à detecção desses erros de julgamento, abstendo-se de efectuar “segundos julgamentos”.
4. Justifica-se a confirmação, em recurso, da decisão da matéria de facto quando inexistam desconformidades entre a prova produzida e a percepção que dela foi feita pelo juiz de julgamento, provas proibidas ou produzidas fora das regras legais, mostrando-se suficientemente objectivadas na sentença as opções feitas na valoração das provas, de acordo com os princípios da livre apreciação e do in dubio pro reo.
5. A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui.
6. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva.
7. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e sim dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP.
8. Também a decisão sobre a “qualificação” das ofensas à integridade física não se bastaria com a identificação do exemplo-padrão da al. b) do nº 2 do art. 132º (ex vi nº 2 do art. 145º) e a constatação da ausência de razões que afastassem o seu efeito agravante de “indício”.
9. Exigir-se-ia a demonstração de concretas circunstâncias de facto que, simultaneamente, integrassem a cláusula geral de agravação constante do n.º 1 do art. 145º, ou seja, que permitissem concluir pela presença de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 1340/14.7TAPTM.E1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo Comum Singular nº1340/14.7TAPTM, da Comarca de Faro, Instância local de P, Seção Criminal – Juiz 1, foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido AAT da prática de um crime de violência doméstica agravado, do art.º 152.º, n.º 1, al. a) e c) e n.º 2 do CP.
Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo:
“1- O presente recurso é interposto da douta sentença proferida pela qual o arguido foi absolvido da prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido 152 nºl alínea a) e c) nº 2 do Código Penal.
2- O mesmo recurso é interposto porque o Ministério Público entende que parte da factualidade dada como não provada deveria ter sido dada como provada;
3- Com base nas declarações da assistente e no depoimento prestado pela testemunha de acusação na audiência de julgamento deveriam ter sido dados como provados os factos 3, 4, 6, 9 e 11 (indicados nos factos não provados, artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal)
4- Face ao teor de tais depoimentos, não pode naturalmente a ora recorrente conformar-se com o julgamento da matéria de facto efectuado pelo Tribunal a quo.
5- Por conseguinte, a recorrente requer a V. Exas. se dignem a dar como provados tais factos com base no depoimento daquela testemunha e da assistente.
6- Discorda o Ministério Público quanto à forma como o Tribunal valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência de julgamento, pese embora a valoração seja livre de harmonia com o preceituado no art. 127º do Código Penal a mesma não pode ser arbitrária.
7- Salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal fez uma incorrecta apreciação da matéria de facto produzida perante si em audiência.
8- Consideramos que a prova produzida se mostrava adequada para condenar o arguido pelo crime de que vinha acusado na douta acusação e que ao decidir em contrário, não fez o Tribunal uma boa apreciação da prova;
9- Da prova produzida em audiência de julgamento resultou que a assistente foi objecto de vários actos de agressão física e psicológica, pelo que deveriam ter sido dados como provado que nessas discussões o arguido dizia à assistente que a mesma não soube dar educação aos filho, que não educou bem, que não era uma boa mãe, e que era uma merda, que não valia nada e que saía à mãe dela , "és um nojo de mulher" , que és a pior das mulheres que já conheci ", "que estás gorda, acompanha de agressões físicas, não proferidas uma única vez, mas várias.
10 - Entende o Ministério Público que face aos factos dados como provados, bem como aqueles que o deveriam ter sido com base nos depoimentos supra-indicados, deveria o Tribunal ter condenado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido no artº 152,nº 1 alínea a), c) e nº 2 do Código Penal, devendo o douto Tribunal da Relação revogar a douta sentença, e condenar o arguido pelo crime de violência doméstica p. e p. no artº 152 ,nº 1 alíneas a) e c) e 2 , do Código Penal;
11- Entendemos que a Mmª Juiz ao absolver o arguido violou o artº 127 do Cod. Penal e o artº 152 nº 1 alíneas a) e c) e 2 do Código Penal.
12- Tendo incorrido com a decisão proferida também em erro de julgamento.
13- Pelo exposto, a ora recorrente requer a V. Exas, se dignem proceder à alteração do julgamento e dar como provados, os factos que foram dados como não provados pela douta sentença, números 3, 4, 6, 9 e 11, requerendo-se, consequentemente, a condenação do arguido.”
Recorreu também a assistente MART, concluindo:
“1- Vem o arguido absolvido de crime de violência doméstica agravada , p.e p. pelos artºs 152 nº 1 e alª a) e nº 2 do Código Penal ;
2- Para assim julgar o Tribunal “ a quo “ não fez correta apreciação da prova feita na audiência de julgamento, caindo em erro de julgamento;
3- Dando como não provada que o arguido atirou o comando á cabeça da assistente e só não atingiu, porque esta desviou –se .
4- Se o Tribunal alicerçou a prova nas declarações da assistente e no depoimento da Testemunha Sílvia SRM, desses depoimentos transcritos em sede de recurso, (Ficheiros áudio : 2015011910 – 29313582184-2870850 - , no intervalo 2:19 a 44:51 ) e (Ficheiros áudio 201501 10111657 3582184 2870850 Intervalo 1:19 a 6:00 ) , resulta que de tais declarações e depoimentos deveria ter sido dado por provado que o arguido no dia 29 de maio de 2013 atirou à cabeça da assistente , só não a atingiu porque esta se desviou , pelo que se impugna a parte final do ponto 19 dos factos provados no relatório da sentença , devendo ser reapreciado pelo Tribunal “ a quo “ , por erro de julgamento ;
5- Igual entendimento tem a recorrente quanto aos factos dados como não provados no ponto 3.4 e 5 , do relatório da sentença , das declarações da assistente e do depoimento da testemunha SRM , transcritos no recurso em sede de motivação nos Ficheiros áudio : 2015011910 – 29313582184-2870850 - , no intervalo 2:19 a 44:51 ) e (Ficheiros áudio 201501 10111657 3582184 2870850 Intervalo 1:19 a 6:00 ) , todos estes deveriam ter resultado como provados , deve tais pontos da matéria de fato serem reapreciados pelo Tribunal “ a quo “ por erro de julgamento e considerados por provados ;
6- Entende o recorrente que a prova produzida nos autos vai em sentido contrário à fundamentação apresentada pelo tribunal “ a quo “ para justificar a solução de direito aplicada , a decisão , nomeadamente a desqualificação e absolvição do arguido do crime de que vinha acusado , de violência doméstica p.e.p pelo artº 152 nº 1 alíneas a) e c) e nº 2 do Código Penal ;
7- As provas produzidas e valoradas pelo Tribunal “ a quo “ impunham decisão diversa da decisão que ora se recorre ;
8- Discorda o recorrente quanto à forma como o Tribunal valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência de julgamento, pese embora a valoração é livre de harmonia com o preceituado no artº 127 do Código Penal, mas não é arbitrária, o texto da decisão ora recorrida, por si só conjugada com a prova produzida, conjugada com as regras de senso comum, das regras de experiência comum, facilmente se dá conta que o Tribunal “ a quo “ não fez boa apreciação da prova produzida, e violou também o disposto no artº 127 do Código Penal, baseou – se em conclusões, juízos arbitrários, que desrespeitam regras sobre o valor da prova vinculada ou da legis artis.
9- Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal desvalorizou e fez incorreta apreciação da matéria de facto produzida perante si em audiência de julgamento, recorrendo a justificações de forma arbitrária, e a mera impressão gerada no espirito do julgador, sendo que, é o próprio arguido que nada justificou , limitou – se a negar a prática dos factos , cujo depoimento foi colocado em causa pelo próprio Tribunal .
10- A prova produzida vai em sentido contrário, tal como foi realizada na audiência de julgamento mostra –se adequada para condenar o arguido pelo crime de que vinha acusado na douta acusação de fls. , ao decidir em contrário , não fez o Tribunal boa apreciação da prova ;
11- Considerou o Tribunal que a matéria descrita na acusação , tal como vem narrada , seria abstratamente adequada a revelar uma conduta maltratante do arguido à assistente . Porém considerou que as coisas não se tivessem passado exatamente , Considerou que havia discussões entre o casal , que encontravam num plano de reconhecida igualdade , e que tal circunstância constitui um inegável indício da existência da tal superioridade de um à custa da diminuição da dignidade do outro , pressuposto pelo tipo penal em apreço
12- Ora dos autos desconhecem – se os concretos termos em que traduziam tais desentendimentos, por parte da assistente e arguido, sabe – se que existia desentendimento frequente sobre alguns assuntos familiares nomeadamente quanto ao futuro do filho de ambos ponto 6 , 12 do relatório da sentença factos dados por provados , e mais considerou o Tribunal “ a quo na fundamentação “ Ora , algumas dessas discussões relacionavam –se com o futuro do filho do casal “ , “ ademais passou por uma a fase de consumos de drogas “ .
13- Da prova feita em audiência de julgamento e junta aos autos , resultou provado que por parte do arguido os desentendimentos , acabavam – se por traduzir em actos de agressão física e psicológica , resultou provado , que nessas discussões o arguido dizia á assistente que a mesma não soube dar educação aos filho , que não educou bem , que não era uma boa mãe , e que era uma merda , que não valia nada e que saía à mãe dela ,não foi uma só vez , mas várias vezes e de forma reiterada e mais resultou da prova produzida em audiência de julgamento que a assistes foi por várias vezes agredida , chapadas e empurrões ;
14- Da prova feita em audiência de julgamento e junta aos autos, resultou provado que por parte do arguido os desentendimentos , acabavam – se por traduzir em actos de agressão física e psicológica , resultou provado , que nessas discussões o arguido dizia á assistente que a mesma não soube dar educação aos filho , que não educou bem , que não era uma boa mãe , e que era uma merda , que não valia nada e que saía à mãe dela , “ és um nojo de mulher “ , que és a pior das mulheres que já conheci “, “que estás gorda “, acompanha de agressões físicas , não proferidas uma única vez , mas várias .
15- Resulta do contexto social e da prova dada por provada e produzida em audiência de julgamento , que a forma e a reiteração pelo arguido ao longo do tempo ao proferir tais expressões é adequada a atingir a personalidade da assistente , por forma a sentir – se uma mulher inferior e sem valor , o que logrou conseguir , acabando a mesma por necessitar tratamento médico , conforme de encontra relatado nas transcrições supra ;
16- Isto reiterado várias vezes ao longo dos anos , aliado ao facto do arguido se encontrar totalmente ausente como pai na educação do filho , não tendo qualquer grau de proximidade , conforme resulta das declarações da assistente e corroboradas no depoimento da testemunha SRM, resulta da experiência comum , que qualquer mulher e mãe no mínimo que se sentiria era magoada , pois que , constantemente pelo marido era posta em causa a sua capacidade para ser mãe , assim como as expressões proferidas de forma reiterada contra a mesma no sentido que “era uma merda “ , “ que não valia nada e que saía à mãe dela “ ,dentro do contexto em que foram proferidas reiteradamente , conforme prova que se encontra junto aos autos , resulta aos olhos de qualquer homem médio , bom pai de família e à luz da experiência comum que é uma atuação maltratante por parte do arguido contra a assistente perpetuada ao longo dos vários anos .
17- Actuação do arguido que atentava com a dignidade pessoal e saúde da assistente ;
18- Confrontando os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica previsto e punido no artº 152,nº 1 alínea a) e nº 2 do Código Penal , pelo que outra não pode ser a decisão , a não ser a de que a matéria de facto provada é por si só suficiente para preencher os elementos integrativos do crime de violência doméstica , sendo factos subsumíveis no elemento objetivo do tipo criminal imputado ao arguido na douta acusação de fls. devendo o Tribunal ad quo revogar a douta sentença de fls , e condenar o arguido pelo crime de maus tratos a cônjuges p. e p. no artº 152 , nº 1 alíneas a) e c) e 2 , do Código Penal ;
19- Da fundamentação da decisão para desqualificar o tipo de crime , salvo o devido respeito , que é muito , resulta que foi deficientemente aplicado o principio de livre apreciação da prova , consagrado no artº 127º do C.P.Penal , considera a ora recorrente que a prova foi apreciada de forma arbitrária e com a mera impressão no espirito do julgador pelos diversos meios de prova , uma vez que a prova carreada para os autos à luz da experiência comum e aos olhos de qualquer homem médio , vai em sentido contrário , conforme melhor se encontra fundamentado em sede de motivação ;
20- Entende a recorrente ao abrigo do principio da experiência comum que a prova produzida nos autos vai em sentido contrário à fundamentação apresentada pelo tribunal “ a quo “ para justificar a solução de direito aplicada , nomeadamente a desqualificação do crime de violência doméstica , considerando que estava na presença de factos provados subsumíveis ao tipo legal de crime de injúrias e de ofenda à integridade física . p.e p. pelo artº 143, nº 1 e artº 181 , nº 1 todos do C.Penal .
21- Violou deste modo o Tribunal a “ quo “ o artº 127 do Cod. Penal e o artº 152 nº 1 alíneas a) e c) e 2 do Código Penal . .
22- Incorreu o Tribunal “ a quo “ com a decisão proferida também em erro de julgamento .
23- Assim sendo , deverão os pontos sobre a matéria de facto impugnados serem reapreciados , e considerados por provados.”
O arguido respondeu aos recursos, concluindo:
“1. A douta sentença recorrida não merece reparos.
2. Em processo penal, no que respeita à apreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Juiz - artº 127º do Código de Processo Penal, não sendo a livre apreciação da prova uma operação puramente subjectiva.
3. Na apreciação da matéria de facto o Tribunal de Recurso deve apenas “controlar” a convicção do julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
4. Bem andou a Meritíssima Juiz a quo ao dar como não provados os factos constantes dos nºs 3, 4, 6, 9 e 11 dos factos não provados, já que a prova produzida em julgamento não permite considerar provados tais factos.
5. Não incorreu a douta sentença em qualquer erro de julgamento, pois que a matéria considerada provada e não provada mostra-se conforme com a prova produzida e não produzida, não devendo, assim ser alterado o julgamento da matéria de facto.
6. Não incorreu a douta sentença em errada qualificação jurídica.
7. Os factos considerados provados, quanto muito, integram a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artº 143º, nº 1 do Código Penal e um crime de Injúrias, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, e não a prática de um crime de violência doméstica.
8. Apesar de tal não ter sido posto em crise pela Recorrente, por não se mostrarem preenchidas as necessárias condições de procedibilidade, não poderia o arguido ser penalmente responsabilizado pelos crimes referidos em 8. das conclusões, pelo que bem andou a Meritíssima Juiz a quo ao absolver o arguido.
9. O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica (artº 152º do Código Penal) reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesam essa dignidade, não sendo suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima para que esteja preenchido o tipo de crime.
10. O crime de violência doméstica exige a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos, ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja apto e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral de modo incompatível com a dignidade humana.
11. O importante é pois analisar e caracterizar o quadro global de agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos que, por si, constitui um risco “qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima.”
12. No caso sub judice, nem se provou qualquer conduta reiterada, quer ao nível da agressão física quer ao nível da agressão verbal, nem a conduta do arguido, considerada como acto único pode de alguma forma ser entendida como ofensa à integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável, com intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja apto e bastante a molestar o bem jurídico protegido – ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral de modo incompatível com a dignidade humana.
13. Bem andou a douta sentença ao ter decidido como decidiu, ao absolver o arguido do crime de violência doméstica.
14. Devendo ser mantida tal decisão, nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso interposto.”
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência, pronunciando-se pela confirmação integral da sentença e da absolvição.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. O arguido e MAT casaram um com o outro no dia 17.07.1990, tendo vivido maritalmente, desde 1987 até se casarem e tiveram um filho, WKRT, nascido a 06.07.1988.
2. Nos últimos anos, o casal fixou a sua residência na Urbanização (…), em P.
3. Desde o início da relação que o arguido e a assistente se desentendiam e acabavam por discutir.
4. Um dos motivos da discórdia tinha que ver com o futuro do filho do casal.
5. Com efeito, o mesmo deixara de estudar, sem concluir o 9.º ano, não trabalhava, e em 2007/2008 passou a consumir drogas, que lhe provocaram problemas do foro psicológico, designadamente, ataques de pânico.
6. Ora, o arguido insistia que o seu filho deveria ir trabalhar, ao que a assistente se opunha, invocando a debilidade do seu estado de saúde, pelo que era frequente discutirem por causa disso, altura em que o arguido dizia à assistente que a mesma não educava bem o seu filho, que não o sabia educar e que não era uma boa mãe.
7. A partir de 2010, a relação do casal deteriorou-se, sendo mais frequentes as discussões entre ambos.
8. Nessas discussões, que ocorriam em casa, o arguido costumava dizer à assistente que esta era “uma merda”, que não valia nada e que saía à mãe dela.
9. Numa ocasião, em que o arguido pretendia ir passear para Lagos e a assistente antes preferia ir a Albufeira ou a Vilamoura, o arguido disse-lhe “Não estou para ir gastar gasóleo contigo para te levar a Albufeira. Tu não mereces”.
10. Nesse período, o arguido, em duas ocasiões, quando se dirigiu, com a assistente, ao “Retail Park”, em P, e numa outra, quando se dirigiram ao centro Comercial da Guia, em Albufeira, estacionou a viatura em lugares reservados a grávidas.
11. A assistente, que havia aumentado o seu peso, concluindo que o arguido queria insinuar que a mesma estava gorda, chamava-lhe a atenção, ao que o mesmo respondia que tinha uma grávida ao seu lado.
12. No dia 10.06.2011, data do aniversário da assistente, depois de terem regressado a casa porque o seu filho havia tido um ataque de pânico no restaurante, tendo ambos discutido, por causa do filho e do que iriam afinal jantar, o arguido disse à assistente que tinha nojo desta, tendo-lhe desferido duas chapadas na cara e empurrado a mesma.
13. A partir dessa data, o arguido passou a dormir noutro quarto, tendo acabado por sair de casa alguns meses mais tarde.
14. O casal, porém, veio a reconciliar-se cerca de alguns meses após o arguido ter saído de casa.
15. Todavia, as discussões conjugais reiniciaram-se passado pouco tempo da reconciliação.
16. Com efeito, a assistente passou a desconfiar que o arguido andasse envolvido com outras mulheres, até porque, em data não apurada, a assistente viu, numa página do facebook do arguido, uma fotografia onde o mesmo aparecia acompanhado de outra mulher.
17. Tendo a assistente confrontado o arguido com a dita fotografia, o arguido, zangado com o facto de a assistente ter espreitado a sua página, disse-lhe que a mesma era “uma mulher sem princípios, de baixo nível, e que era a pior mulher com quem já tinha vivido”.
18. No dia 29 de Maio de 2013, o arguido, no interior da residência do casal, disse à sua mulher que iria abandonar a casa, e que tinha chegado à conclusão que tinha sido uma asneira ter regressado a casa, que já não tinha sentimentos por si.
19. Fazendo menção de sair de casa, o arguido quis levar consigo um aparelho de televisão, ao que a assistente se opôs, tendo ambos discutido sobre quem deveria ficar com o referido aparelho, altura em que o arguido jogou o comando da televisão pelo ar, na direcção da assistente, não lhe acertando.
20. Nesta data o casal separou-se definitivamente, tendo a assistente proposto acção de divórcio contra o arguido, a qual ainda se encontra pendente.
21. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as expressões proferidas à assistente eram ofensivas e que a atingiam na sua honra, mas quis atingir o corpo da assistente, o que conseguiu.
22. Sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
23. A assistente manifestou vontade de proceder criminalmente contra o arguido em 23.05.2014.”
Foi ainda consignada a matéria de facto não provada:
“1. Desde o início da relação do casal que o arguido vinha dizendo à assistente, e quase diariamente, concretamente que: “és uma merda que andas para aí”, “tu não vales nada”, “tu não prestas como esposa”, “és uma estúpida”, “só serves para trabalhar e trazer dinheiro para casa”.
2. O arguido dizia ainda à assistente, quando discutia com a mesma por causa do futuro do filho de ambos, que a mesma era uma “porcaria de mulher”.
3. O arguido, quando saía com a assistente, estacionava sempre a viatura nos lugares reservados a grávidas, e com o intuito de a achincalhar, por saber que o aumento de peso era um motivo de desgosto para a sua mulher, respondendo-lhe ainda que podia ali estacionar porque estava “acompanhado de uma grávida gorda”.
4. Nos últimos seis anos, em datas não apuradas, o arguido, na sequência as discussões que mantinha com a sua mulher, passou também a agredir aquela, desferindo-lhe murros e empurrões e atirando-lhe o comando da televisão à cabeça, situações ocorridas quando ambos se encontravam no interior da residência onde habitavam.
5. No dia 10.06.2010, o arguido desferiu mais do que duas chapadas na cara da assistente, projectou-a contra a parede da cozinha, e disse-lhe também “és uma merda, não vales nada”.
6. O arguido dizia ainda, quase diariamente, à assistente, as concretas expressões “és uma merda de mulher”, “tu não prestas”, “das mulheres com que já vivi tu foste a pior”, “vai-te tratar, tu és doente da cabeça, vai-te tratar, precisas de um psiquiatra”.
7. O arguido nunca levava a assistente a passear ou a tomar refeições fora de casa quando esta o sugeria, dizendo-lhe, sempre, concretamente, que “tu não és merecedora de um almoço” e que não iria gastar gasóleo para a levar onde ela queria, que não o merecia.
8. O arguido quando regressava a casa de madrugada, depois de saídas nocturnas, gritava “não sei como vivo com uma louca durante 25 anos”.
9. Quando a assistente confrontou o arguido com a fotografia que vira no facebook, o arguido disse-lhe ainda, concretamente, “és um nojo de mulher, tu não vales nada”.
10. No dia 29 de Maio de 2013, o arguido disse ainda à assistente que esta era “um nojo de mulher”.
11. O arguido agiu com o propósito concretizado de lesar a integridade física da sua mulher, de a vexar, amedrontar e manter num permanente estado de constrangimento, indiferente o facto de ser a mãe do seu filho e à relação conjugal que com ela mantinha e ao dever de respeito que dessa relação para si nascia quanto à mesma, relação e dever de que estava bem ciente, agindo a coberto do resguardo da residência, que aproveitou como quis fazer.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), o objecto dos dois recursos é a impugnação da matéria de facto, concretamente, da matéria de facto não provada.
Peticionam, os dois recorrentes, a alteração da matéria de facto e a consequente condenação do arguido pelo crime da acusação.
Mesmo no caso de improcedência do recurso da matéria de facto, visa ainda o MP a reapreciação da integração jurídica dos factos provados da sentença, numa óptica da sua eventual suficiência para a realização do crime de violência doméstica.

Da impugnação da matéria de facto (não provada)
É nítido que os recorrentes usam a via do recurso amplo da matéria de facto (art. 412º, nº3, 4 e 6 do CPP), pretendendo sindicar a sentença “de facto” para além do que resultaria logo visível do seu texto.
Para tanto, impõe o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.
Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando o recorrente as passagens em que se funda a impugnação (nº4 do art. 412º, nº3 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com o AFJ nº 3/2012.
Na sua discordância, os recorrentes apelaram à prova gravada consistente nas declarações da assistente (que terá confirmado a generalidade dos factos imputados na acusação) e no depoimento de uma testemunha (que terá confirmado uma pequena parte deles).
E essencialmente com base nas declarações da assistente e no depoimento da testemunha de acusação prestados em audiência consideram, a assistente, que deveria ter sido dada como provada a generalidade dos factos não provados, e o MP, os factos com os nºs 3, 4, 6, 9 e 11.
Procederam a transcrições pontuais dos excertos destes dois meios de prova.
Adianta-se que, da leitura dessas transcrições, no confronto da argumentação explanada nos recursos e da apreciação desenvolvida no exame crítica da prova na sentença, nada resulta no sentido da demonstração de um eventual erro de julgamento.
É certo que a assistente confirmou muito dos factos dados como provados do modo como efectivamente resulta das transcrições. Mas essas transcrições são apenas excertos das declarações, a cuja audição integral se procedeu nesta Relação, ao abrigo do disposto no art. 412º, nº 6 do CPP. Esses excertos não abalam a consistência da “sentença de facto”, pois eles têm de ser complementados na sua parte remanescente (ou seja, com a parte não transcrita), mostrando-se as declarações em causa devidamente avaliadas nessa integralidade, na sentença, como não poderia deixar de suceder.
E a avaliação que delas é feita na motivação revela-se perfeitamente compatível com o que foi dado ouvir, a esta Relação, nas gravações da prova.
Inexiste assim, desde logo, qualquer desconformidade entre as provas produzidas e as provas percebidas pela senhora juíza de julgamento. Inexiste, depois, violação de regra ou princípio de apreciação/valoração da prova.
Das provas transcritas e da argumentação desenvolvida nada se retira no sentido de fragilizar de modo sensível a fundamentação da matéria de facto patente na sentença, pois resulta desta que o tribunal tudo ouviu correctamente e em tudo atentou, designadamente na prova especificada, que avaliou de acordo com os princípios da livre apreciação e do in dubio pro reo.
Na sentença explica-se devidamente por que razão as declarações em causa não serviram de suporte a uma convicção mais alargada, ou seja, a uma convicção positiva sobre a factualidade restante (sobre a matéria que se considerou como não provada). Procedeu-se, pois, justificadamente a uma redução dos factos inicialmente imputados na acusação para um núcleo mais restrito de factualidade – os factos provados da sentença.
Tudo se encontra detalhadamente explicado na motivação da matéria de facto, que foi a seguinte:
“Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova, nos termos do art.º 127.º do CPP, deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:
a) Declarações do arguido: que negou a prática dos factos, apresentando uma versão dos mesmos segundo a qual, pese embora tivessem vivido juntos durante mais de 25 anos, nunca se entenderam muito bem dada a incompatibilidade de feitios. Porém, apesar das discussões que mantiveram, nunca agrediu ou insultou a sua mulher. Acrescentou ainda que, tendo havido uma breve separação da assistente, acabaram por se reconciliar, porém, alguns meses depois, a assistente andou a “coscuvilhar” o seu computador pessoal, ali tendo visto uma fotografia do arguido a dançar e a divertir-se numa festa, passando a acusá-lo de ter amantes, o que não correspondia à verdade, tendo-se a relação do casal deteriorado muito desde essa altura. Mais concretamente, negou ter sequer havido qualquer discussão no dia do aniversário da assistente, ao contrário do que dos autos consta. A respeito do estacionamento nos lugares reservados a grávidas, admitiu tê-lo feito uma vez, por não haver outro lugar vago, tendo apenas respondido à assistente, quando esta reparou nisso, que ninguém sabia se a mesma estava ou não grávida (para justificar a infracção estradal). Que discordava do modo de vida do seu filho, que não estudava nem trabalhava, o que era motivo de discórdia do casal. E que se separou no dia 29.05.2013, saindo de casa, por não suportar mais a convivência com a assistente, que constantemente o acusava de ter outras mulheres e se comportava de modo muito ciumento, tendo, apesar disso, tentado manter uma relação de amizade com a assistente, amizade essa que julgava existir, até ter sido surpreendido pela queixa que a mesma apresentou nestes autos, nunca mais a tendo contactado desde então. A sua versão, porém, foi directamente contrariada pelas declarações da assistente, que descreveu os factos, na sua maioria, de modo consistente, a qual mereceu, por isso, credibilidade. Por outro lado, negou o arguido ter algum dia sequer dito que a sua mulher estaria gorda, algo que a testemunha SRM contrariou, já que o ouviu dizer isso numa ocasião. Acresce que, quanto aos factos ocorridos no dia 10.06.2011, sem que tal sequer estivesse descrito na acusação, foi o arguido quem contou o que se passara no restaurante como filho do casal e que, ao chegar a casa, já não quis ir buscar comida fora, como lhe fora pedido pela assistente. Ora, tal versão bateu certo com o relato da assistente. Porém, o arguido afirmou que nem sequer discutiram nessa noite. Ora, se assim fosse, porque razão se recordaria o arguido de tantos pormenores se nada tivesse sucedido? A sua versão não faz pois, sentido. Por todo o exposto, não foi a mesma adequada a gerar dúvidas sobre a realidade dos factos que a assistente contrariou.
b) Declarações da assistente MAT: a qual descreveu os factos narrados nos autos, descrevendo a sua relação com o arguido desde o início até à sua separação, com particular enfoque para os factos ocorridos posteriormente a 2010, altura em que notou uma alteração no comportamento do arguido e dos quais tinha uma memória mais presente. A respeito desses factos, a assistente esclareceu os mesmos de modo sentido e pormenorizado que conferiram à sua narrativa um contexto descritivo compatível com o relato dos factos ocorridos. É certo que não passou despercebido um certo ressentimento contra o arguido. Porém, logrou a mesma revelar suficiente objectividade para conferir ao seu relato a necessária credibilidade, mesmo apesar do facto de estar pendente uma acção de divórcio proposta por si contra o arguido e de existirem divergências entre ambos a respeito das partilhas dos bens do casal, e de se ter atentado no facto de ter a mesma denunciado os factos que deram origem aos presentes autos quando já havia decorrido um ano desde a separação do arguido. Tais circunstâncias, ainda assim, não foram adequadas a afastar a referida credibilidade. Porém, tendo a assistente sido questionada a respeito das agressões descritas na acusação, para além da ocorrida no dia do seu aniversário, a mesma escudou-se em declarações genéricas e vagas, sem conseguir sequer descrever qualquer acção espontaneamente (limitou-se a confirmar vagamente hipóteses colocadas pelo próprio tribunal). Por outro lado, apenas conseguiu descrever os factos do seu aniversário e um outro episódio, em que começou por referir que o arguido a tinha atingido e lhe tinha provocado um ferimento na testa, quando, mais adiante no seu depoimento, acabou por referir que talvez ela tivesse escorregado e, portanto, batido com a testa em algum lado, ou seja, não fora o arguido que a atingira desse modo). Quando a isto se junta o facto de a assistente ter começado por qualificar a sua relação com o arguido como normal até 2010, sendo que as tais agressões (que não concretizou) teriam sido frequentes e ao longo do casamento, “não bate a bota com a perdigota”. Por isso que, nesta parte dos factos, o relato efectuado pela assistente não foi suficientemente consistente para, com base nele, se pudesse o tribunal legitimamente convencer da veracidade de tais afirmações para dar como provados os respectivos factos.
c) Depoimento da testemunha Sílvia SRM: amiga do filho do casal, a qual também privava regularmente com o arguido e a assistente, e que esclareceu que, numa ocasião em que a mesma estava a trabalhar numa loja de roupa, tendo-se ali dirigido o casal, estando a assistente a experimentar umas calças, que não lhe serviam, ouviu o arguido dizer à assistente que a mesma estava gorda. Não tendo assistido a qualquer situação de ofensa física ou verbal, limitou-se a acrescentar que chegou a ver a assistente alimentar-se mal, tendo-lhe dito, então, que o seu marido achava que a mesma estava gorda. Não revelou conhecimento directo de qualquer outro facto. A testemunha depôs de modo coerente, tendo sido valorado o seu depoimento.
d) Depoimento da testemunha OB: amiga da assistente, desde há cerca de 8 anos, a qual chegou a trabalhar no escritório desta em algumas ocasiões, e que esclareceu o que a mesma lhe passou a contar nos últimos dois anos sobre os desentendimentos com o arguido. Encontrando-a a chorar numa ocasião, a mesma contou-lhe que tinha visto uma fotografia do arguido com outra mulher e que ao confrontá-lo com isso tinham discutido. Mais lhe contou que numa ocasião de um aniversário, que o arguido lhe tinha dito que a mesma era uma “merda” e que não valia nada, e que a chamava de grávida quando ia aos Centros Comerciais e estacionava nos lugares reservados a grávidas. Esclareceu ainda que as confidências se referiam ao período posterior ao da reconciliação do casal. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, porém a mesma não presenciou qualquer dos factos narrados nos autos, limitando-se a relatar o que a assistente lhe contou, e que, por sua vez, corresponde a parte da narrativa feita por esta em audiência, conferindo-lhe credibilidade dada a coerência do relato.
e) Depoimento da testemunha WKRT: filho do casal, o qual, ao abrigo do disposto no art.º 134.º do CPP, não quis prestar declarações.
f) Depoimento da testemunha VC: amigo do casal, o qual esclareceu que desde há vários anos convivia frequentemente com os dois, frequentando a casa destes e indo com os mesmos a restaurantes, nunca, nessas ocasiões, tendo assistido a qualquer conflito ou discussão, antes lhe parecendo haver bom ambiente entre o casal, pelo que foi até com surpresa que soube que os mesmos se haviam separado. Mais abonou em favor da personalidade do arguido. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, porém, o seu depoimento não é adequado a confirmar a versão do arguido, nem a contrariar a versão da assistente, já que o comportamento do casal em público, perante o círculo de amigos, não afasta o que possa ter ocorrido dentro casa, a sós. Por isso que, tendo sido o seu depoimento valorado a respeito da personalidade social do arguido, no mais não foi o seu depoimento relevante para o apuramento dos factos.
g) Depoimento da testemunha LMMJ: empregado de mesa, o qual, por trabalhar num restaurante onde era habitual o casal tomar refeições, esclareceu ser habitual vê-los nesse restaurante. Mais abonou em favor da personalidade do arguido, o que foi valorado.
h) Depoimento da testemunha VCG: amigo do arguido, o qual, por ter tido um escritório nas imediações do escritório do arguido, apercebeu-se da relação do casal, quando com eles ali convivia, ficando com a percepção de que se davam bem e que gostavam muito um do outro, nunca tendo presenciado qualquer conflito entre os dois. Mais abonou em favor da personalidade do arguido, o que foi valorado. No demais, como acima se referiu, não é o seu depoimento adequado a comprovar a versão do arguido ou a contrariar a versão da assistente, já que apenas esteve com o casal num contexto social, não sendo do mesmo possível concluir quanto ao modo do casal se comportar na intimidade e no seu lar.
i) Prova documental: Cópia de fotografias de fls 6 a 9; registo clínico de consulta do Centro de Saúde de P, de fls 10; receita médica de fls 11; guia de tratamento de fls 12; recibo de farmácia de fls 13; recibo do Centro de Saúde de fls 14; recibo de consulta de psiquiatria de fls 15; recibo de farmácia de fls 16; receita médica de fls 17; cópia do assento de casamento de fls 88.
Os factos dados como provados resultam do sentido da prova produzida, conjugada entre si e avaliada à luz das regras da experiência comum, que os confirmam.
Os factos dados como não provados resultam da falta de prova em audiência (por não terem sido especificamente relatados pela ofendida) da insuficiência da prova produzida em audiência (como sucedeu a respeito das alegadas várias agressões cometidas pelo arguido, face à exiguidade do relato da assistente) e, bem, assim, do sentido contrário da prova produzida (atento o enquadramento contextual dos factos tal como resultou das próprias declarações da assistente).”
Como se constata, a senhora juíza de julgamento procedeu ao exame minucioso de todas as provas produzidas, de todas elas, relacionando-as entre si, destacando e apreciando todo o comportamento do arguido e da assistente, avaliando-os ainda num quadro de normalidade e de racionalidade, a tudo procedendo de acordo com regras de lógica e de experiência comum.
Procedeu, particularmente, ao exame e avaliação detalhada das declarações da assistente, explicando por que razão elas foram suficientes para considerar determinados factos provados, mas apenas estes. Sendo claro por que já não bastaram para demonstrar os factos não provados.
Em julgamento, foram efectivamente apresentadas duas versões (opostas) dos factos da acusação, interessando agora em recurso particularizar apenas os factos não provados, que são aqueles que constituem objecto de impugnação: a versão do arguido, que negou a sua prática, e a da ofendida, que a confirmou, mas de determinado modo, ou seja de um modo não convincente.
Daí que parte dos factos inicialmente imputados ao arguido tenham sido dados como não provados, apesar da assistente aparentemente os ter confirmado.
Em abstracto, nada impedia que a prova dos factos da acusação assentasse, exclusivamente, nas declarações da ofendida, mesmo se opostas à versão do arguido e se desacompanhadas de outras provas corroborantes.
Esta problematização não é nova, pois no âmbito da criminalidade que ocorre na reserva da vida privada e do lar, a prova possível consistirá predominantemente no depoimento da vítima. Daí que este possa surgir naturalmente no processo como a única fonte de conhecimento (e tal conhecimento revelou até, aqui, para prova dos factos dados como provados).
Porém, daí não resulta que esse meio de prova deva merecer, só por isso, uma credibilidade especial. Dessa circunstância não derivam regras especiais de valoração de prova que conduzam a uma sobreavaliação injustificada de determinado depoimento, por contraposição a uma negação dos factos pelo arguido. E perante provas de sinal contrário – declarações do arguido versus declarações da vítima – o tribunal não está desobrigado de justificar a maior credibilidade que estas tenham eventualmente merecido.
A livre apreciação da prova significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3), não podendo tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional, curando-se sempre de uma convicção pessoal mas necessariamente objectivável e motivável.
A prova por depoimento de vítima é livremente valorada, também quando se confronta com o resultado da prova por declarações de arguido. A lei não proíbe que possa, por si só, conduzir à condenação, como se disse. Não o reconhecer, seria não só uma prática contra legem, como um retrocesso ilegal ao sistema da prova vinculada ou tarifada. Inviabilizaria também a perseguição de crimes que ocorrem na absoluta privacidade, como sucede frequentemente com o crime de violência doméstica.
No entanto, as declarações do arguido não serão, em abstracto, menos credíveis do que as da vítima. As declarações de arguido, reconhecidamente consideradas como um meio de defesa, corolário do direito a ser ouvido, a falar e/ou a não falar, são também um meio de prova. Foi esta a opção do legislador, na disciplina do art. 344º do Código de Processo Penal, por via do qual atribuiu à confissão efeitos de prova plena.
E aceitando-se que o arguido tenha um especial interesse no desenrolar do processo, há que reconhecer que tal interesse também se verificará do lado da vítima. Seria, pois, juridicamente errado justificar um eventual menor peso probatório das declarações de arguido (versus declarações do ofendido) com a ausência de juramento (o assistente também não presta juramento) ou com um interesse pessoal no desfecho do processo (que também existe, do lado do ofendido).
Acresce que do princípio do in dubio sempre decorre que ao arguido basta fragilizar a prova da acusação, já que acusação e defesa não se encontram, no enfoque probatório, em situação de igualdade. Inexiste repartição de ónus de prova em processo penal.
Daí que o julgador, na decisão sobre a matéria de facto, quando se depare com provas de sinal contrário e abstractamente de igual peso probatório, se preocupe em procurar socorrer de outros elementos probatórios corroborantes do facto controvertido da acusação. Na ausência destes, deverá justificar de um modo especial a maior verosimilhança da versão da acusação. Fazendo-o, por exemplo, com base na própria racionalidade da versão apresentada pela testemunha-vítima (de acordo com regras da lógica e da experiência comum), na superior credibilidade (devidamente objectivada) merecida pela testemunha-vítima, sob pena de, não o alcançando, dever fazer operar o princípio do in dubio pro reo.
Foi precisamente o que se mostra ter sucedido no caso presente. As declarações da assistente revestiam particular importância, no que respeita à demonstração de todo o desenrolar do episódio de vida em apreciação, nas suas particulares vicissitudes ocorridas ao longo do “tempo dos factos”. Essas declarações encontravam-se em grande medida desacompanhadas de outras provas e contaram com uma oposição de sentido das declarações do arguido. Desacompanhadas por outras provas, pois, por exemplo, os documentos médicos apresentados atestam danos psicológicos que são também compatíveis com uma vivência de uma relação conjugal degradada duradoura, independentemente da ocorrência dos factos não provados.
Neste contexto, as declarações da assistente deveriam ter alcançado uma consistência que o tribunal, por razões que na sentença bem explicou, não lhes reconheceu.
Aproveitou-as (positivamente), por razões que também objectivou, apenas na formação do juízo de convicção (positivo) quanto aos factos provados, mostrando-se justificada a dúvida razoável em que permaneceu relativamente aos factos não provados, concluindo: “Os factos dados como não provados resultam da falta de prova em audiência (por não terem sido especificamente relatados pela ofendida) da insuficiência da prova produzida em audiência (como sucedeu a respeito das alegadas várias agressões cometidas pelo arguido, face à exiguidade do relato da assistente) e, bem, assim, do sentido contrário da prova produzida (atento o enquadramento contextual dos factos tal como resultou das próprias declarações da assistente).” Juízo de convicção que as “razões do recurso” e as provas especificadas não abalam: os excertos das declarações especificadas são afinal excertos de relatos que o tribunal bem apreendeu e devidamente valorou (em parte alguma da motivação se lê que a assistente ou a testemunha tenham dito algo diferente do que efectivamente disseram, ou que o tribunal tenha esquecido ou ignorado os excertos em causa).
Por último, reitera-se que os recursos são remédios jurídicos, que visam detectar e corrigir erros de julgamento, devendo a Relação conter-se no âmbito dos seus poderes de sindicância da sentença com vista à detecção de erros de julgamento, e abstendo-se de efectuar “segundos julgamentos”.
Constatando-se que não são detectáveis desconformidades entre a prova produzida e a percepção que dela foi feita, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, e que o tribunal justificou suficientemente na sentença as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo-lhes valor positivo ou negativo de modo sempre racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta assim, à Relação, manter a decisão da matéria de facto.

Do erro de subsunção: integração jurídica dos factos provados
O recorrente MP, independentemente do resultado que merecesse a impugnação da matéria de facto, visou também a reapreciação da integração jurídica dos factos provados da sentença, numa óptica da eventual suficiência para a realização do crime de violência (mesmo no caso da improcedência do recurso da matéria de facto).
Cumpre, assim, sindicar a sentença também em matéria de direito, apreciando a avaliação que ali se fez dos factos provados, à luz do art. 152º do CP.
E essa apreciação, na parte ora relevante, foi a seguinte:
“O arguido veio acusado pela prática de um crime de violência doméstica, porquanto, desde o início do seu relacionamento com a assistente, mesmo antes de se casarem, aquele tê-la-ia maltratado, física e psicologicamente.
Dispõe o art.º 152.º do CPenal (…)
Ora, no caso dos presentes autos, provou-se que o arguido e a assistente começaram por viver como marido e mulher em meados de 1987, até 17.07.1990, data em que contraíram matrimónio, tendo tido um filho, nascido em 1988.
A relação conjugal, porém, não foi harmoniosa e pacífica, sendo frequentes os desentendimentos e discussões do casal.
Vejamos então quais os factos apurados que ocorreram durante o casamento do arguido e da assistente, para aferir da sua relevância penal, à luz do tipo incriminador em evidência:
- o casal discutia frequentemente (ora, uma discussão, como é consabido, implica uma discórdia entre os intervenientes, cada um dos quais com uma posição extremada e oposta à do outro, com afirmações e respostas recíprocas, esgrimindo razões, e com exteriorização de emoções relacionadas com zanga e raiva);
- nessas discussões, o arguido dizia à assistente: que a mesma não soube dar educação ao filho, que não o educou bem, que não era uma boa mãe; e que a assistente era uma merda, que não valia nada e que saía à mãe dela.
- numa ocasião, o arguido, que não desejava ir passear aonde a assistente queria, disse-lhe que não iria gastar gasóleo só para a levar aonde esta queria, até porque a mesma não o merecia;
- em três ocasiões, o arguido estacionou a viatura em lugares reservados a grávidas e disse à assistente que tinha uma grávida ao seu lado.
- no dia do aniversário da assistente, em 2011, durante uma discussão entre os dois, o arguido desferiu duas estaladas na cara daquela e empurrou-a.
- no dia em que a assistente descobriu uma fotografia do arguido acompanhado com outra mulher, o arguido, julgando que a assistente andara a bisbilhotar a sua página do facebook, discutiu com a mesma e disse-lhe que era uma mulher sem princípios, de baixo nível e que era a pior mulher com quem já tinha vivido.
- no dia em que o arguido saíu definitivamente de casa o mesmo explicou à assistente que já não sentia nada por si e, disputando ambos um televisor, tendo discutido por causa disso, o arguido jogou o comando na direcção da assistente.
Foram estes os factos que se lograram comprovar.
Importa, agora, adensar os mesmos, para aferir se, como estatui o preceito incriminador em evidência, se tratam de modos de agir reiterados ou suficientemente graves para se qualificarem como condutas maltratantes, seja ao nível físico ou seja ao nível psíquico (sendo que a factualidade em causa não convoca uma qualquer situação de castigos corporais, privações da liberdade ou ofensas sexuais, pelo que está excluída esta parte da norma), tendo ainda presente que uma conduta será qualificada como maltratante na medida em que seja de tal forma desvaliosa que vá para além da afectação apenas da integridade física ou psicológica e emocional, ou da honra da ofendida, porquanto assume um carácter de maior perfídia, de maior lesão, ao atentar contra o núcleo central da personalidade humana, ou seja a sua própria dignidade.
Não é, pois, do mero facto de um dado agente ter desferido, em algumas ocasiões, uma bofetada no seu consorte, que, por se verificar uma situação de repetição da conduta, tanto bastará, sem mais, para qualificar a mesma como um maltrato no sentido tipificado neste preceito incriminador. Antes essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal.
E o mesmo se dirá quando, não estando perante uma situação de repetição de condutas, se trate de um acto isolado, o qual terá que assumir uma gravidade mínima para atingir o patamar da qualificação como maltrato, sendo que, ainda aqui, para além da dita gravidade, terão as circunstâncias concretas, que revelar aquela maior censurabilidade por atingir a dignidade do outro.
E é precisamente este elemento que permite destrinçar este tipo penal de todos os outros que se encontram previstos no Código Penal e que tutelam bens jurídicos que acabam por também ser aqui tutelados. É que o crime de violência doméstica não é um tipo de crime correspondente a uma espécie de somatório de crimes contra as pessoas desde que cometidos numa relação afectiva. O crime de violência doméstica não é um conjunto de crimes de injúria e/ou de ofensas à integridade física, etc. Não basta uma pluralidade de crimes, apenas unificados pelo facto se terem sido cometidos no âmbito de uma relação afectiva para que, sem que algo mais se comprove, automaticamente se integrar tal conduta como maltratante e, portanto, como um único crime, mas de violência doméstica.
Aliás, significativa, é desde logo a própria moldura penal. Por alguma razão o legislador decidiu punir o crime de violência doméstica mais gravemente do que os restantes crimes que podem ser convocados parcelarmente. É que a diferença assenta, como se disse, no específico bem jurídico e na necessidade da adequação da conduta global a atingir o referido bem jurídico, revelando uma significação bem mais abrangente e mais censurável que a soma das várias condutas criminosas e, por isso, se revela como muito mais grave que a mera conjunção desses crimes “parcelares”.
Posto isto, atentemos no caso concreto.
Atomisticamente, os actos praticados pelo arguido convocariam os crimes de injúria e de ofensa à integridade física, para além de violações ao dever de respeito a que os cônjuges estão vinculados, bem como actos que, não assumindo aquela gravidade, perturbam o bem estar e o equilíbrio emocional do outro.
A matéria descrita na acusação, tal como vem narrada, seria abstractamente adequada a revelar uma conduta maltratante do arguido à assistente. Porém, não se provou que as coisas se tivessem passado exactamente assim, nem quanto a todos os aspectos ali descritos.
Como acima se mencionou, o arguido e a assistente, apesar de estarem casados há tanto tempo, não se deram sempre bem. Pelo contrário. Muitas vezes entravam em conflito, divergindo de opiniões e discutindo um com o outro, o que fizeram várias vezes ao longo dos anos. Ora, se o casal discutia entre si, é porque havia um espaço de autonomia e de reconhecimento do outro para essa discussão. Com efeito, se um ordena e o outro acata, não há aqui qualquer discussão. Não há espaço para resposta. Só há discussão/resposta entre iguais. Se um tiver um ascendente sobre o outro, há-de acabar por impor ao mesmo a sua vontade e os seus argumentos vencendo-o, anulando-o. Donde, se o casal não se entendia e se discutiam é porque ambos se encontravam num plano de reconhecida igualdade, ou pelo menos, nenhum dos dois permitia que o outro lhe não reconhecesse essa igualdade (impedindo a supremacia de um sobre o outro e, portanto, a sua anulação enquanto pessoa). Tal circunstância constitui já um inegável indício da inexistência da tal superioridade de um à custa da diminuição da dignidade do outro, pressuposta pelo tipo penal em apreço.
Ora, algumas dessas discussões relacionavam-se com o futuro do filho do casal, o qual, pese embora já fosse adulto, se mantinha desocupado, sem trabalhar e sem prosseguir os seus estudos (que interrompera no 9.º ano). Ademais, passou por uma fase de consumos de drogas, que lhe deixaram sequelas do foro psicológico. Ora, enquanto que a mãe contemporizava com a situação do seu filho, compadecendo-se com a debilidade da sua saúde, “defendendo-o” perante a opinião do pai, de que o mesmo deveria encontrar um emprego, este, era de parecer de que seria essa uma forma de o filho crescer e de se tornar autónomo. Neste contexto, em que ambos discordavam acerca do que seria o melhor para o seu filho, o arguido dizia-lhe, durante as discussões que a este propósito mantinham, que a assistente não educava bem o seu filho, que o não sabia educar e que não era uma boa mãe.
Ora, é natural que a assistente, ao ouvir tais palavras, se sentisse magoada, já que sentira posta em causa a sua capacidade de ser uma boa mãe, à luz do que é socialmente tido como tal. Porém, as palavras que o mesmo comprovadamente proferiu, revelam a sua opinião crítica a respeito do modo, a seu ver excessivamente proteccionista e desculpabilizante, que a assistente tinha para com a conduta do filho. Neste contexto, não se afigura que o que o arguido disse seja achincalhante ou atentatório da dignidade da assistente. O que disse, e perante oque estava em causa, mostra-se adequado a atingir a personalidade da assistente, por forma a fazê-la sentir-se uma mulher inferior e sem valor? Afigura-se que não. O que o arguido disse revela apenas que o mesmo dissentia do modo como a assistente vinha contribuindo para a desocupação do filho, que não tinha um rumo definido na vida, preocupação essa natural para qualquer pai e mãe. Assim, mesmo que o tivesse dito várias vezes, não se pode qualificar esta actuação como maltratante.
Mais se provou que, numa ocasião, quando ambos pretendiam passear, o arguido disse à assistente que não estava para gastar gasóleo para a levar até Albufeira ou Vilamoura, já que a mesma não o merecia.
Na verdade, em abstracto, desgarrado do contexto, dizer à sua mulher e mãe do seu filho, que não merece que se gaste dinheiro em gasóleo para a levar a passear até um dado local, parece revelar que o valor que se dá a essa pessoa é ainda menor que o valor que se dá ao dinheiro, no caso o custo do gasóleo, ou seja, uma simples dezena de euros.
Como é evidente, se assim fosse, tratar-se-ia, sem dúvida, de uma conduta atentatória da dignidade da assistente, pois que a qualificaria como uma pessoa de muito pouco valor.
Porém, importa, como não podia deixar de ser, enquadrar o que o arguido disse, no contexto relacional em que o disse. Numa relação desgastada pelas frequentes discussões, ao longo de vários anos, discussões essas que não poderão deixar de afectar o tipo de sentimento que os une e o modo como cada um vem, reactivamente, a tratar o outro, dizer o arguido, à sua mulher, que acha que a mesma não merece que vá com ela aonde ela quer, para lhe fazer a vontade, sendo que a vontade do arguido é outra e a assistente não lhe quer fazer a vontade a si, confere toda um outro significado à concreta expressão do arguido. Não seria, pois, por não o merecer enquanto pessoa, mas por não o merecer face ao tipo relacionamento que vinham mantendo, que o arguido disse o que disse, sendo que o fez apenas numa única ocasião.
E porque assim é, esta concreta actuação do arguido não se configura como degradante para a personalidade da assistente.
Ficou ainda demonstrado que o arguido, quando foi confrontado pela assistente com a fotografia que vira no facebook, em que este aparecia acompanhado de outra mulher, acusou-a de ser uma mulher sem princípios, de ter baixo nível e que era a pior entre todas as mulheres com quem tinha vivido.
A comparação depreciativa com outras mulheres e o juízo sobre o carácter da assistente seriam, em si mesmas, adequadas a atingir a dignidade desta. Sucede que, o arguido disse o que disse quando percebeu que a assistente, para o confrontar com a referida fotografia, tinha que a ter visto na sua página pessoal do facebook, o que fizera sem o seu conhecimento. Sentiu-se, pois, devassado na sua intimidade, e foi a suposta atitude da assistente, também ela desrespeitadora da sua personalidade (não respeitou a sua privacidade, não lhe pediu autorização para ver a página, não confia em si) que o levou a dizer-lhe o que disse. O arguido, não se dirigiu, pois, ao carácter da assistente para a rebaixar mas zangou-se com aquela atitude, que sub-repticiamente lhe andava a espreitar e a vasculhar as suas coisas para o apanhar em falso.
Também aqui, atento o acima referido, e dado o contexto em que foram proferidas aquelas expressões, o que lhes confere toda uma outra significação, não se afigura que a conduta do arguido se assuma como maltratante.
No que respeita ao estacionamento em locais reservados para mulheres grávidas, apurou-se que o arguido o fez em três ocasiões, numa altura em que a assistente teria engordado, tendo-se esta ressentido com a atitude do arguido, que entendeu como uma alusão à sua silhueta.
Na verdade, tendo as mulheres grávidas o ventre saliente e uma figura mais alargada, ficarão, quando nesse estado, com uma figura semelhante à de uma mulher com peso mais excessivo. Uma vez que a assistente não se encontrava grávida, o facto de o arguido lhe dizer que tinha uma mulher grávida ao seu lado enquanto estacionava a viatura em locais às mesmas reservados, bem compreendeu a mesma que o que o arguido pretendia significar é que a assistente se encontrava com peso a mais, ou seja, gorda.
Ora, sobre a imagem do corpo feminino, sobretudo nos tempos actuais, existe uma pressão social no sentido dos corpos deverem ser esbeltos e magros, para corresponderem ao ideal de beleza feminina. Daí que, quem não tenha um corpo que obedeça aos cânones de beleza vigentes, possa sentir-se afectado na sua auto-estima. A assistente, no período em questão sofreu um aumento de peso, pelo que, é natural que pudesse sentir-se menos bem por causa disso e, portanto, mais sensível a qualquer alusão a esse facto, sobretudo se provinda do seu marido, de quem se espera não ser tão incisivo nas críticas pessoais, sobretudo em assuntos mais melindrosos como possa ser a aparência pessoal. Porém, o que o arguido fez, insinuando que a assistente estaria, portanto, com peso a mais, sendo indelicado ou mesmo já algo grosseiro, não assume ainda um cariz injurioso, nem, por outro lado, se mostrou adequado a atentar contra a dignidade da assistente, sendo certo que foram apenas três as ocasiões apuradas. Assim, pese embora a conduta do arguido não tenha contribuído positivamente para o bem-estar e a auto-estima da assistente, não assume a mesma a gravidade necessária para a atingir nessa auto-estima e provocar-lhe danos na sua integridade psíquica, pelo que não tem relevância para integrar o crime imputado ao arguido.
Ainda, quanto ao apurado relativamente ao dia 29 de Maio de 2013, acabou o arguido por decidir separar-se da assistente, tendo-lhe dito que fora até uma asneira ter regressado a casa pois que não nutria já sentimentos por ela.
A assistente, ao ouvir tal, naturalmente que se terá sentido magoada e triste, não só pela expectativa de refazer o seu casamento após a reconciliação do casal, mas pelo arrependimento que este revelou nessa mesma reconciliação, pondo em causa todo o período de reconciliação e revelando que já não gostava dela o suficiente para continuar casado com a mesma. Sem dúvida que terá sido motivo de sofrimento a rejeição, deste modo, do arguido. Porém, a justificação que o mesmo lhe deu para se querer separar não é adequada a atentar contra a dignidade da assistente, pelo que não tem esta conduta relevância penal.
É certo que, quando o arguido arrumava os seus pertences para sair definitivamente de casa, quis levar consigo um aparelho de televisão, arrogando-se de ser seu, ao que a assistente se insurgiu, pretendendo que não o levasse, tendo ambos discutido a pretexto do referido aparelho. E neste contexto, o arguido jogou o comando pelo ar, em direcção à assistente, não a tendo atingido. Ainda que não fosse intenção do arguido atingir a assistente com o dito comando, o que não se provou, sempre revelaria tal conduta um acto de desprezo para com esta (como quem pretende significar “queres a televisão? Apanha o comando se o quiseres”). Não se afigura é que o desprezo porventura contido nesta concreta actuação, e no contexto da mesma (disputa pelo televisor numa situação de separação do casal), seja adequada a atentar, de modo inadmissível, contra a dignidade da assistente, pelo que não assume relevância penal.
Vejamos agora as condutas restantes, dadas como provadas, levadas a cabo pelo arguido contra a assistente: desde, pelo menos, 2010, durante as frequentes discussões do casal, o arguido costumava dizer à assistente que a mesma “era uma merda” e que “não valia nada” e, no dia 10.06.2011 desferiu duas chapadas à assistente e empurrou-a.
No que respeita àquelas expressões dirigidas à assistente, o arguido fê-lo, sem dúvida, várias vezes, ou seja, reiteradamente.
Que tais expressões são insultuosas e que são adequadas a atingir a honra e a consideração da assistente, dúvidas não existem. Porém, note-se, o arguido não o dizia quando e sempre que lhe apetecia. O arguido dizia-o quando estava a discutir com a assistente. Ou seja, num contexto de zanga e de incompreensão mútua. Neste contexto, de menor controlo das respostas emocionais, o que daqui se conclui é que o arguido insultou a assistente, ao dirigir-se à mesma naqueles termos. No entanto, as referidas palavras constituem uma resposta temporalmente definida, ou seja, não traduzem um juízo genérico e definitivo sobre o carácter e a personalidade da assistente, qua tale, mas antes um juízo sobre uma concreta conduta da assistente (a que motivou a discussão, ou a mantida durante a discussão). Concluir daqui algo mais, salvo o devido respeito por opinião contrária, seria ponderar os factos contra reo, o que está vedado ao tribunal fazer.
Face ao exposto, a conduta do arguido assume relevância penal, todavia, não revela o tal elemento de adequação à afectação da dignidade do seu consorte exigido pelo tipo penal da violência doméstica. Diferente seria, se o arguido, fora de qualquer situação de discussão, costumasse apelidar sistematicamente a assistente de “merda”, pois que, aí, sim, para além da intenção manifesta de atingir a honra e consideração, verificar-se-ia o desprezo pela pessoa – enquanto tal – da assistente, sendo adequada a atingir o cerne da sua dignidade pessoal.
No que concerne à situação ocorrida no dia 10.06.2011, apurou-se que o arguido, no âmbito de mais uma discussão, acabou por desferir duas chapadas na cara da assistente e empurrou a mesma.
Tal conduta revela que o arguido, ao assim agir, ofendeu o corpo da assistente e fê-lo tal como foi de sua vontade, livre e esclarecida.
Porém, nem se apurou que o arguido tivesse atingido a integridade física da assistente noutras ocasiões (pelo que não se trata de uma conduta reiterada), nem esta concreta conduta do arguido releva a gravidade necessária para, só por si, se qualificar como maltratante, nos termos acima já referidos.
Assim, que, sem prejuízo da apreciação que se segue a respeito da relevância autónoma destes factos, não podem os mesmos subsumir-se ao tipo penal imputado ao arguido.
Finalmente, mesmo apreciando, afinal, os únicos factos com relevância criminal (injúrias e ofensas à integridade física), ponderando os mesmos numa perspectiva global, ainda aqui, dado o que já acima se evidenciou, não se mostram os mesmos adequados, dado o contexto relacional em que foram praticados, a revelar uma qualquer superioridade dominante e anulatória sobre a personalidade da assistente, pelo que, não é possível retirar do comportamento do arguido o tal elemento unificador da sua conduta que revelasse uma diminuição/ desvalorização grave da personalidade e da dignidade da pessoa da assistente. Por isso que tais factos devam ser autonomamente valorados, sempre fora do quadro da violência doméstica.
(…) Nestes temos, ante tudo o que acima fica exposto, não sendo os factos apurados subsumíveis no elemento objectivo do tipo criminal imputado ao arguido, e não podendo o tribunal conhecer dos crimes autonomizados de ofensa à integridade física e de injúrias, importa absolver o arguido, tal como se decide fazer.”
Não cabe avaliar agora da susceptibilidade dos factos provados integrarem ou não outros crimes (em sentido positivo se pronunciara já a sentença, não tendo havido no entanto condenação, por falta de condições de procedibilidade: de apresentação tempestiva de queixa, no caso da ofensa à integridade física, de queixa e acusação particular, no caso das injúrias).
Cabe tão só ajuizá-los à luz do art. 152º do CP.
Importa começar por precisar as fronteiras do tipo “violência doméstica”, sendo que estas se encontram também no confronto com os tipos de crime mais próximos. Destes, relevam essencialmente no presente caso a ofensa à integridade física e a injúria, sendo que, como bem se notou na sentença, um conjunto de injúrias ou de ofensas à integridade física entre cônjuges não ditará, por si só, a realização do crime de violência doméstica.
O tipo incriminador do art. 152º do CP protege a pessoa individual num contexto especial, sendo inquestionável que com a nova incriminação se pretendeu aumentar o nível de protecção de determinada vítima, que ocupe determinada posição, numa determinada relação.
A criminalização autónoma dos “maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges” surgiu na lei portuguesa sob esta epígrafe com o Código Penal de 1982. E surgiu como consequência duma progressiva consciencialização da reprovação ético-social de certos comportamentos ocorridos em determinado contexto de proximidade. Conferia-se, pela primeira vez, dignidade penal às situações mais perturbantes de maus tratos a cônjuge e a crianças. O tipo foi sofrendo alterações ao longo do tempo, nos seus elementos e na sua natureza, foi mexido em cinco revisões ao CP e teve já natureza pública, semipública e híbrida.
É a reforma de 2007 (Lei nº 59/2007) que autonomiza a violência doméstica dos outros maus-tratos e da violação de regras de segurança. Procede ao aditamento dos actos designados como castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, bem como dispensa expressamente o elemento típico “reiteração”.
Com a dispensa do elemento reiteração, não se pretendeu passar a tratar todas as ofensas à integridade física, as ameaças, as coacções, as injúrias, ocorridas num contexto de relação ímtima, como crime de violência doméstica.
Com a dispensa do elemento reiteração, pretendeu o legislador manter a situação que vigorava até 2007, mas agora com a clarificação normativa de que a reiteração não seria exigida desde que a conduta maltratante, ocorrida nesse peculiar contexto de relação, revestisse uma intensidade especial. Assim resulta da “exposição de motivos”. Assim vinha sendo já a prática jurisprudencial anterior. E essa interpretação que se consolidara na jurisprudência contava com o apoio da doutrina.
“Reiteração” ou “intensidade” serão, pois, exigências alternativas (e, não, cumulativas) do tipo. “Uma acção isolada de pouca gravidade, mesmo que in se configure uma infracção criminal, não deve ser qualificada como crime de violência doméstica” (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 519). Mas este compreende os casos de “micro violência continuada”, caracterizados pela “opressão … exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que, apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação” (Nuno Brandão, A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica, Julgar 12, p. 21).
Assim, na sua redacção actual, o art. 152º, nº 1-al. a) do CP (na parte que agora releva) pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge.
Trata-se de um crime específico, em que agente e vítima se encontram, ou encontraram, em determinada relação. Identifica-se uma especial conexão entre agente e vítima, relação que “é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (actual ou anterior) de afectos, e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-activa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante” (Lamas Leite, A Violência Relacional Íntima, Julgar 12, p. 51). Essa especial relação entre agente e vítima – actual ou passada – fundamenta e/ou agrava a ilicitude, releva também ao nível da culpa e justifica a punição do agente.
Identifica-se a protecção da “saúde”, como bem jurídico, complexo, abrangendo a saúde física, psíquica, mental e moral, orientada para o desenvolvimento harmonioso da personalidade (assim, Taipa de Carvalho, Nuno Brandão e Lamas Leite, nos locs cits).
Este bem jurídico é uma “concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25º CRP), do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26º CRP), ambos emanações directas do princípio da dignidade da pessoa humana” (Lamas Leite, loc. cit. p. 49/50). A abrangência do tipo, “permite recobrir a integridade física e psíquica, a liberdade, a autodeterminação sexual, entre outros”. Em suma, o livre desenvolvimento da personalidade humana no âmbito de “uma relação interpessoal dominada por vínculos familiares ou análogos” (idem). “O fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo” (idem).
A ratio do tipo não reside, pois, na protecção da família, da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual na família, da pessoa que integra a comunidade familiar ou conjugal, na tutela da sua dignidade.
Quanto ao conceito de maus-tratos e à identificação de comportamentos susceptíveis de o enquadrar, “devem estar em causa actos que pelo seu carácter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da imagem global do facto para se decidir do preenchimento do tipo (Nuno Brandão, loc. cit.).
Toda esta avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” se revela muito importante no momento subsuntivo.
A fronteira entre as condutas que têm dignidade punitiva e merecem punição à luz do tipo violência doméstica e aquelas que não devem ser aqui relevantes para o direito penal, nem sempre é fácil de traçar, na prática.
Vários factores convergem para isso: trata-se de um tipo ainda “em construção” (por contraposição aos tipos de crime mais clássicos e mais estabilizados), que mantém relações de muita proximidade com outros tipos congéneres, e que tem subjacentes histórias de vida a subsumir juridicamente que não se esgotam em actos precisos, assumindo contornos imprecisos e difíceis de concretizar.
Porém, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de protecção de última ratio, resistindo-se a prosseguir, através dela, a modelagens de comportamentos (aqui, no âmbito de relações de conjugalidade) que apenas sejam merecedores de censura ético-moral.
Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal e que não a obtenha de outra forma menos lesiva), não a perseguição de comportamentos que se afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes.
O art. 152º do CP protege determinado tipo de vítima, de determinado tipo de agressor, com quem aquela se encontre em determinada relação (actual ou passada), mas as situações de violência familiar em causa têm que ser concretamente reveladoras de um abuso de poder na relação afectiva.
Por tudo o que se disse, não é possível contrariar o decidido na sentença quanto ao juízo de incompletude da realização do tipo da acusação, Os factos provados em julgamento mostram-se insuficientes para a realização do crime imputado.
Os factos em apreciação, observados à luz do tipo de violência doméstica, situam-se perto da fronteira de punibilidade. Mas eles não atingem a intensidade exigida no tipo material. Não devem, por isso, relevar penalmente à luz do art. 152º do CP.
“Intensidade”, no sentido aqui da conduta do agente, considerada individualmente e também na sua globalidade, configurar uma efectiva situação de expressão de um abuso de poder na relação afectiva, susceptível de atingir a integridade pessoal da vítima nessa relação e por via dessa posição de poder.
O episódio de vida em apreciação é tão só revelador de um quadro de relacionamento conjugal deteriorado, que se foi degradando ao longo do tempo. Apesar dessa degradação, os cônjuges foram-se mantendo no casamento, de comum acordo, sem que seja visível aí qualquer relação de dominância, de um sobre o outro. Foram-se relacionando entre si e interagindo em condições de relativa paridade e/ou igualdade conjugal.
As agressões físicas e psíquicas constantes dos factos provados são merecedoras de censura penal, pois atingem bens jurídicos penalmente relevantes. Atingem a integridade física e o bom nome da assistente, e encontrariam tutela penal à luz dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP. Mas a falta de condições de procedibilidade obstou aqui à condenação.
Também, nesta parte, a decisão será de manter.
Disse-se, correctamente, na sentença:
“Como acima se referiu, as condutas do arguido, tal como comprovadas nos autos subsumir-se-iam ao tipo criminal da ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do CPenal (quanto aos factos ocorridos no dia 10.06.2011), bem como ao crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do CPenal (quanto às expressões ofensivas que o arguido dirigia à assistente aquando das discussões).
Com efeito, mos termos do disposto no citado n.º 1 do art.º 143.º do CPenal, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
E, tal como dispõe o art.º 181.º, n.º 1 do CPenal, «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.»
Sucede que o crime de ofensa à integridade física tem natureza semi-pública, dependendo o respectivo procedimento criminal da apresentação de queixa (cfr. art.º 143.º, n.º 2 do CPenal), a qual terá que ser apresentada no prazo de 6 meses a contar da data do conhecimento dos factos e do seu autor por parte do titular do direito de queixa (art.º 115.º, n.º 1 do CPenal), sob pena de se extinguir o referido direito.
E no que concerne ao crime de injúria, tendo o mesmo natureza particular, para além de estar sujeito ao mesmo prazo para a apresentação da queixa, deverá ainda o ofendido constituir-se como assistente e deduzir acusação particular, cfr. art.º 188.º, n.º 1 do CPenal e art.º 50.º do CPP).
Ora, como evidenciam os autos, a assistente, titular do direito de queixa apenas manifestou a sua vontade de proceder criminalmente contra o arguido em 23.05.2014, quando os factos que integrariam o crime de ofensa à integridade física ocorreram em 10.06.2011, ou seja, quando há muito se extinguira o direito de queixa.
E o mesmo se dirá a respeito dos crimes de injúria. Sendo certo que não se apuraram as datas concretas da prática dos factos que integram o referido crime, mesmo dando de barato que o arguido teria cometido um só crime de injúrias na forma continuada e, atendendo a que o casal se separou definitivamente no dia 29.05.2013, ainda que se tomasse por referência esta data, face à data em que a assistente manifestou vontade no procedimento criminal contra o arguido, há muito se extinguira, também o direito de queixa, sendo que a mesma também não deduziu acusação particular.
Como assim, por não se mostrarem preenchidas as necessárias condições de procedibilidade, não tendo o Ministério Público legitimidade para proceder criminalmente contra o arguido por tais factos, não poderá o arguido ser penalmente responsabilizado pelos mesmos.
Nestes temos, ante tudo o que acima fica exposto, não sendo os factos apurados subsumíveis no elemento objectivo do tipo criminal imputado ao arguido, e não podendo o tribunal conhecer dos crimes autonomizados de ofensa à integridade física e de injúrias, importa absolver o arguido, tal como se decide fazer.”
De acrescentar apenas que, na fundamentação da sentença, se deveria ter procedido ainda ao afastamento (justificado) do tipo de ofensa à integridade física grave do art. 145º, nºs 1- al. a) e 2 do CP, este de natureza pública.
Pois a ofensa à integridade física em contexto de conjugalidade convoca o exemplo-padrão da al-b) do nº2 do art. 132º, por via do art. 145º, nº 2 do CP.
“O efeito qualificador conferido à circunstância de a vítima ser cônjuge do agente (…) decorre de uma exigência intensificada de respeito pela vida (aqui, integridade física) do outro com quem se resolveu constituir família ou formar uma comunhão de vida” (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código penal, I., 2ª ed., p. 58).
Assim, a “qualificação” teria de resultar de circunstâncias encontradas nos factos provados que integrassem (positivamente) a cláusula geral de agravação constante do n.º 1 do art. 145º do Código Penal e (simultaneamente) o exemplo-padrão previsto na alínea b) do nº 2 do art. 132º (ex vi nº 2 do art. 145º).
Na verdade, a uma interpretação do tipo assente numa presunção de qualificação (se bem que elidível) quando em presença de um dos exemplos-padrão previstos no nº 2 do art. 132º do CP, prefere-se o reconhecimento da especial censurabilidade ou perversidade do agente pela positiva e a par da identificação de qualquer uma das alíneas do n.º 2 do art. 132º.
Dito de outro modo, importaria sempre confirmar o preenchimento da previsão do nº 1 do art. 145º do CP, independentemente de se reconhecer que o “efeito padrão” possa “fornecer o indício da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, p.67). Fornece o indício que, precisamente por o ser, carece de complementação.
Divergimos assim, com todo o respeito, daquela que nos parece ser a jurisprudência do STJ no acórdão de 10-12-2008 (Rel. Pires da Graça), no sentido de que “a partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, como “efeito de indício”, interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado”. Esta é também a posição defendida por Teresa Serra: “o efeito dos exemplos-padrão fundamenta como que uma presunção ilidível” implicando a “contraprova do efeito de indício” (Homicídio Qualificado, loc cit, 2000, p. 87).
Figueiredo Dias pronuncia-se no sentido dos exemplos-padrão constituírem elementos do tipo de culpa, mas concluindo não haver “objecções de princípio a que se defenda que a agravação da culpa é em todos os casos suportada por (ou se reflecte necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo de ilícito” (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2ª ed. p. 49).
Já Fernanda Palma (cit. por Figueiredo Dias, Coment. p. 51) distingue nas circunstâncias do nº 2 do art. 132º as “circunstâncias relativas ao modo de ser objectivo da acção e circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente da acção”, concluindo que, também nesta segunda espécie de circunstâncias, “embora o íntimo do agente surja em primeiro plano como objecto de valoração, também o desvalor por elas indiciado é directamente desvalor da acção”. Para Fernanda Palma, o conjunto das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º é, todo ele, definidor de um grau mais grave de ilícito. Mas, no sentido em que essas circunstâncias terão que “pesar na censurabilidade ou perversidade do agente” é que se podem considerar como relativas à culpa, sendo a gravidade da culpa o fundamento da agravação.
A decisão (sobre a qualificação) não se bastaria com a identificação do exemplo-padrão e a constatação da ausência de razões que afastassem o seu efeito agravante, de “indício”.
Exigiam-se concretas circunstâncias encontradas nos factos que positivamente integrassem também a cláusula geral de agravação constante do n.º 1 do art. 145º, ou seja, que permitissem concluir pela presença de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Tendo ficado provado apenas que, no dia 10.06.2011, no âmbito de uma discussão, o arguido desferiu duas chapadas na cara da assistente e a empurrou, comportamento censurável, é certo, mas não especialmente censurável, ficando por comprovar o tipo de culpa agravado que careceria de demonstração (assim, acórdãos STJ de 16-09-2008, Rel. Henriques Gaspar, de 09-06-2011, Rel. Pais Martins, de 14-10-2010, Rel. Manuel Braz, e de 27-05-2010, Rel. Souto Moura).

4. Face ao exposto, acordam as juízas da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.
Custas pela recorrente assistente que se fixam em 4UC (arts 515º /1-b) CPP e Tab. III RCP).
Évora, 30.06.2015
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)