Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4610/14.0T8ENT-A.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A adesão vedada por lei é a que consiste na mera concordância, por simples remissão e sem qualquer dialéctica, com os fundamentos alegados por uma das partes – ou seja, estamos no domínio da argumentação jurídica, e não dos factos, sendo exigível ao tribunal que desenvolva um mínimo de argumentação de sua própria iniciativa para justificar a sua decisão.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4610/14.0T8ENT-A.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Por apenso aos autos de execução comum, fundada em título de crédito (livrança), instaurados por «(…) Banco, SA» contra (…) e (…), enquanto signatários da referida livrança, deduziram os executados oposição à execução.

Na petição de oposição suscitaram os executados excepções de ilegitimidade da exequente (por terem contratado com o … e não com o … Banco) e de prescrição (por ter decorrido o prazo de 5 anos previsto no artº 310º do C.Civil, em relação ao contrato de concessão de crédito subjacente à emissão da livrança, a cujas quotas de amortização de capital e respectivos juros se aplicaria aquele prazo, conforme als. d) e e) desse preceito legal), bem como a questão da nulidade da livrança (por ter sido emitida em Euros, quando ainda era o Escudo a moeda com curso legal à data em que foi celebrado o contrato que lhe subjaz), e ainda sustentaram o preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente (alegando que esse título se refere a contrato de concessão de crédito diverso daquele que fundamentou o preenchimento de tal título), bem como o pagamento das prestações devidas no âmbito do contrato a que se refere o título.

Na contestação, a exequente impugnou especificadamente a viabilidade dos argumentos aduzidos pela executada.

Após o saneamento do processo – em que foi logo decidido não estar verificada a excepção de ilegitimidade activa (e relegada a apreciação da excepção de prescrição para a sentença final) – e a prolação de despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, teve lugar o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença (a fls. 102-110) que julgou improcedentes os embargos de executado.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: quanto à prescrição, é de atender à data de vencimento do título dado à execução, que é de 25/4/2014, pelo que não ocorre qualquer prescrição; quanto à invocação de questões relacionadas com a relação subjacente, é de notar que a exequente baseou a execução na relação cartular, pelo que, dada a literalidade e abstracção do título de crédito, não relevam aquelas questões; quanto ao preenchimento abusivo, ficou provado que o contrato incumprido tinha uma dupla identificação, não sendo essa situação relevante para a demonstração do preenchimento abusivo, que os embargantes não provaram ter ocorrido; quanto à conversão monetária adoptada no preenchimento do título, não impede a mesma a exequibilidade do título, por este ter sido assinado em branco e preenchido de acordo com o convencionado pelas partes quando já vigorava o Euro; quanto aos alegados pagamentos, não lograram os executados provar os mesmos; e porque se mostra incumprida a obrigação titulada pela livrança, deve a mesma ser satisfeita pelos executados.

Inconformados com tal decisão, dela apelaram os executados, formulando as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto, quanto à matéria de facto e de direito com reapreciação da prova gravada (artigos 638º, 639º e 640º do CPC) da douta sentença que julgou integralmente improcedente(s), de mérito, a(s) presente(s) oposições à execução/embargos de executado propostos pelos embargantes, ora recorrentes.

2. Nos presentes autos, foi apresentada à execução uma livrança, contendo inscrito, em algarismos e por extenso a importância de € 15.542,00, donde consta a data de emissão, 30.11.2001, e, no local de vencimento, a data de 25.04.2014.

3. A livrança foi assinada em branco pelos recorrentes, como garantia do contrato de crédito (…) nº (…), no montante de PTE 2.640.568,00 (€ 12.500,00), conforme documento nº 1, anexo aos dos embargos.

4. Consta das condições do contrato, com relevância, que o reembolso do empréstimo seria concretizado no prazo de 60 meses, em prestações mensais de capital e juros, por débito da conta nº (…), o que conduz a data do vencimento a 30.11.2006.

5. Os embargantes não eram titulares de outra conta bancária, além da conta à ordem mencionada no referido contrato de empréstimo, pelo que todos os movimentos contabilísticos eram aí processados.

6. A sentença recorrida dá como provado no ponto 5) dos factos provados, que o aludido contrato encontra-se em incumprimento pelos mutuários desde data anterior a 24.10.2004, justificando a sua decisão com os fundamentos alegados nos artºs 21º a 46º da contestação do exequente e o depoimento das testemunhas (…) e (…).

7. Do nº 8 (Incumprimento) das Condições Gerais do contrato subjacente à livrança, consta o seguinte: "O não cumprimento de qualquer das obrigações de natureza pecuniária assumidas neste Contrato implicará a obrigatoriedade do pagamento de todas as prestações em falta, acrescidos de juros de mora à taxa de 2%, assim como de todas as prestações vincendas, podendo o Banco, para cobrança dos créditos, fazer uso dos direitos decorrentes dos títulos ou garantias que lhe foram prestadas pelo Beneficiário".

8. Em 04.04.2014, o Exequente comunicou aos recorrentes/executados a denúncia do contrato nº (…), e que iria preencher a livrança de caução, entregue para o efeito, em 30.11.2001, no montante de € 15,621,82, referente a capital e Juros + IS, da quantia de € 6.638,26 e € 8.983,56, respetivamente.

9. Entre a data de vencimento do contrato – 31.11.2006 – e a data de vencimento da livrança – 25.04.2014 – decorreram mais de cinco (5) anos sobre o prazo do reembolso do crédito mutuado, fixado no contrato de crédito ao consumo (…).

10. Os recorrentes/embargantes foram citados da execução da livrança em 20.04.2015, não resultando dos autos prova suficiente e inequívoca que tenham sido interpelados em data anterior à data da citação.

11. Acresce que, e sem prescindir do referido, os montantes indicados no preenchimento da livrança, não correspondem à verdade, estando incorretos, por deles não constarem os pagamentos efetuados pelos executados, por multibanco, e que o exequente (…) nunca os creditou na conta bancária supra mencionada nem fez prova contabilística dos mesmos.

12. Assim, é inequívoco que se completou o prazo de prescrição de cinco anos, previsto no artº 310º do Código Civil, alínea d) quanto aos juros, e alínea e) quanto ao capital peticionado.

13. Como explicita o Ilustre Professor Vaz Serra, no seu Estudo sobre Prescrição Extintiva e Caducidade, a razão essencial desta prescrição é proteger o devedor contra a acumulação da dívida susceptível de o arruinar.

14. Refere o Acórdão da Relação de Lisboa, de 09.05.2006, no processo 1815/2006-1: "as razões justificativas das prescrições de curto prazo do artº 310º do CC são de proteção da certeza e segurança do tráfico, a conveniência de se evitarem os riscos, a nível probatório, de uma apreciação judicial a longa distância e obstar que o credor deixe de acumular excessivamente os seus créditos, para proteger o devedor da onerosidade excessiva que representaria, muito mais tarde, a exigência do pagamento, procurando-se assim obstar a situações de ruína económica".

15. Refere, também, o Acórdão da Relação do Porto, de 24-03-2016, no processo 4273/11.5TBMTS: "1. Nos termos do artº 310º, alínea e), do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital, cujo pagamento das fracções ou quotas de capital se processe de forma adjunta com os juros".

16. Mais recentemente, escreve o Acórdão da Relação de Coimbra, de 26-04-2016, no processo 525/14.0TBMGR: "No mútuo bancário, em que o reembolso da dívida foi objecto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas, com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas prestações mensais encontra-se sujeita ao prazo prescricional privativo de cinco (5) anos, previsto na alínea g) do artº 310º do CC".

17. Ao decidir como o fez, o Tribunal a quo está a premiar a inércia do exequente (…), em desfavor do legítimo interesse dos recorrentes.

18. A interpretação do Tribunal o quo, expressa na sentença recorrida, acerca da prescrição, levar-nos-ia a concluir que o exequente (…) teria sido, até, célere demais no preenchimento da livrança, pois, poderia vir a fazê-lo dentro dos próximos 15 anos.

19. Por outro lado, o Tribunal a quo na fundamentação da sentença não tomou em consideração os factos provados por documentos, relativamente aos pagamentos a que reportam os artigos 43º e 44º dos embargos dos executados.

20. Dispõe o artº 607º/3 que o Juiz deve discriminar os factos que julga provados e os factos não provados, e tomar em consideração os factos provados por documentos, devendo o Tribunal consigná-los na sentença.

21. Ao decidir nos termos em que o fez, o Tribunal a quo baseou a sua convicção, aderindo aos elementos da contestação do exequente.

22. Prescreve o artº 154º do CPC que a fundamentação da sentença consiste na indicação das razões de facto e de direito que conduzem o julgador a decidir em determinado sentido. Essas razões deverão ser expostas em discurso próprio e não mediante a adesão aos fundamentos alegados pelo exequente.

23. Existem nos autos, nomeadamente, nos documentos juntos e nos depoimentos prestados, matéria e fundamentos que permitem e justificam a reapreciação da matéria de facto e de direito, conforme supra se expõe, de acordo com o disposto no artº 662º do CPC.

24. A sentença recorrida viola, por errada interpretação ou aplicação, a prova documental e prova testemunhal do autor, pelo que deu origem a uma sentença errada, injusta e ilegal que cumpre revogar.

25. O Sr. Juiz do tribunal a quo foi claramente parcial na apreciação das provas e análise dos documentos apresentados pelos embargantes e do depoimento de parte da executada, e abusou do livre arbítrio na formulação da decisão que tomou.

26. Por todo o exposto, a sentença recorrida está ferida de ilegalidade, e violou o disposto nos artigos 158º, 413º, 414º e 611º do CPC e os artigos 310º, als. d) e e), 341º, 342º e 370º, 371º e 376º do CC e ainda os artºs 2º, 6º e 7º e 21º do Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, e o disposto no artº 205º da Constituição da República Portuguesa.»


A exequente apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações dos executados resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar da eventual modificabilidade da matéria de facto, ao abrigo do artº 662º do NCPC, e a aferir das consequências, no plano jurídico, da eventual procedência dessa impugnação de facto, e ainda a verificar da ocorrência da invocada excepção de prescrição da livrança dada à execução e de uma alegada violação do dever de fundamentação da decisão recorrida.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. Livrança dada em execução.

2. O (…) Banco, S.A. sucedeu ao Banco (…), S.A. (que figura como credor no(s) título(s) executivo(s) que serve(m) de base a esta execução), na titularidade da(s) obrigação(ões) exequenda(s) e respectivas garantias, por força de deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014.

3. O exequente é legítimo portador de uma livrança subscrita pelos executado(s), nos exactos termos que dela se extraem, no valor de € 15.621,82 (quinze mil, seiscentos e vinte e um euros e oitenta e dois cêntimos).

4. Vencida em 25/04/2014, a livrança não foi paga pelos executado(s) apesar de, por diversas vezes, interpelado(s) para o fazer, pelos serviços do exequente.

5. Arts. 18.°, 19.°, 20.°, 21.°, 23.°, 31.°, 32.°, 33.°, 34.°, 37.°, 40.°, 41.°, 42.°, 43.°, 44.°, 45.°, 46.° da contestação da exequente [ou seja:]

– A referida livrança foi entregue pelos Executados, ora Embargantes, ao Exequente, ora Embargado, em branco, como caução, para garantia e segurança do cumprimento das obrigações para si emergentes do contrato "Crédito ao Consumo (…)", celebrado em 30/11/2001, até ao montante máximo global de Esc. 2.640.568$00 (dois milhões seiscentos e quarenta mil e quinhentos e sessenta e oito escudos) – vide doc. 1 junto com os embargos de Executado;

– Ou seja, os Embargantes ao subscrever a livrança em branco, autorizaram o preenchimento pelo Banco: "livrança esta cujo montante e data de vencimento se encontram [em branco para que o Banco os fixe na data que julgar] conveniente[mente] pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos" – vide doc. 1 junto com os embargos de Executado;

– Assim, aos 04/04/2014, o Embargado comunicou aos ora Embargantes o preenchimento da Livrança pelo montante de € 15.621,82, com a data de vencimento aos 25/04/2014, cfr. cartas que se juntam como doc. 6 e 7 e cujo conteúdo se dá por reproduzido;

– Tanto assim é que, atento ao incumprimento do contrato e previamente ao preenchimento da livrança, o Embargado, por meio de cartas datadas de 14/05/2012 e 26/10/2012, informou os Embargantes, dos montantes sucessivamente em dívida, interpelando-os para efectuar o respectivo pagamento, o que não lograram fazer – cfr. cartas que se juntam como doc. 8, 9 e 10 e cujo conteúdo se dá por reproduzido;

– E, posteriormente, por via de carta datada 04/04/2014, o Embargado: i) informou da denúncia do contrato; ii) exigiu o pagamento da totalidade do valor do contrato, incluindo o montante dos valores em atraso e o montante de capital em dívida até final do prazo do contrato, acrescido das despesas extrajudiciais incorridas; e, iii) que havia sido efectuado o preenchimento da Livrança pelo montante de € 15.621,82 – vide doc. 6 e 7 juntos com o presente requerimento;

– Reitere-se, a livrança dos autos, emitida em 30/11/2001, foi entregue ao banco como garantia do bom pagamento das obrigações decorrentes do contrato já identificado e junto aos Embargos que ora se contestam como doc. 1;

– O seu preenchimento foi objecto de autorização, pelos subscritores, em caso de incumprimento, que fosse resultante do aludido contrato – vide doc. 1 junto com os embargos de Executado;

– Mais especificamente, consta da referida autorização de preenchimento que a livrança foi entregue ao Banco: "livrança esta cujo montante e data de vencimento se encontram [em branco para que o Banco os fixe na data que julgar] conveniente[mente] pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos" – vide doc. 1 junto com os embargos de Executado;

– Fixaram ainda as partes que, "cujo montante (…) compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos" – vide doc. 1 junto com os embargos de Executado;

– O valor pelo qual se encontra preenchida a Livrança não é abusivo e conforme confessado pelos Embargantes, foi previamente comunicado e discriminado por cartas registadas com aviso de recepção remetidas em 04/04/2014 a cada um dos Executados aquando da comunicação do preenchimento da Livrança – vide doc. 6 e 7 juntos com o presente requerimento.

A saber:

Capital: 6.638,26 EUR

Juros + imposto de selo: 8.983,56 EUR

Total da Livrança a Pagar: 15.621,82 EUR;

– No que diz respeito ao contrato n.º (…), as prestações foram pagas mensalmente na conta à ordem, onde se encontra domiciliado, desde o início do contrato até à prestação n.º 13, com vencimento em 24/01/2003;

– O contrato entrou pela primeira vez para a Gestão da Recuperação, de Crédito (então … Cobranças) em 06/04/2003, com 2 (duas) prestações em incumprimento, (n.º 14 e n.º 15), vencidas e não pagas em 24/02/2003 e 24/03/2003;

– O contrato foi regularizado em 10/07/2003, com os pagamentos abaixo, ocorridos por débito automático em conta, tendo sido pagas as prestações vencidas entre 24/02/2003 e 24/06/2003 (n.º 14 à n.º 18), cfr. [quadro];

– Com o pagamento das prestações vencidas, o contrato voltou à estrutura comercial e as prestações vencidas entre 24/07/2003 e 24/05/2004, (n.º 19 à n.º 29), foram pagas mensalmente na conta à ordem onde se encontra domiciliado o contrato;

– Em 31/07/2004 o contrato voltou a entrar na Gestão da Recuperação de Crédito (então … Cobranças), com 2 (duas) prestações em incumprimento, (n.º 30 e n.º 31), vencidas e não pagas em 24/06/2004 e 24/07/2004, tendo estas prestações sido regularizadas com o pagamento abaixo, ocorrido por multibanco, cfr. [quadro];

– Contudo, o contrato reincidiu na Gestão da Recuperação de Crédito (então ainda … Cobranças) em 01/10/2004, com as prestações n.º 32 e n.º 33, vencidas e não pagas em 24/08/2004 e 24/09/2004, onde ainda se mantém, dado que se venceram prestações até à n.º 44;

– Nesta incidência, foram recebidos os pagamentos, que pagaram as prestações n.º 32, n.º 33 e n.º 34, vencidas em 24/08/2004, 24/09/2004 e 24/10/2004, cfr. [quadro];

– Até à presente data, não foram recebidos mais pagamentos para o contrato nº (…).»


B) DE DIREITO:

1. Antes de se atentar na pretensão de impugnação da matéria de facto suscitada pelos apelantes, importa tecer algumas breves considerações sobre a mencionada suposta violação do dever de fundamentação na elaboração da sentença recorrida.

Ainda que essa pretensão não seja formalmente qualificada como uma arguição de nulidade (nem seja referida a propósito disposição legal que a sustente), é de admitir que os apelantes quisessem reportar-se à nulidade de sentença prevista na alínea b) do nº 1 do artº 615º do NCPC, respeitante à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, na medida em que é possível relacioná-la com o artº 154º do NCPC, a que os apelantes aludem, ao sustentar o argumento de que o tribunal a quo se limitou, na sua fundamentação, a uma mera «adesão aos fundamentos alegados pelo exequente», o que lhe estaria vedado por esse preceito (conforme dispõe o nº 2 desse preceito: «A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (…)»).

No pressuposto de que se deve considerar arguida tal nulidade, passamos a apreciá-la de seguida – e desde logo pela sua precedência lógica relativamente às demais questões.

Neste contexto, recorde-se o que, sobre a concreta nulidade por falta de fundamentação, dizia ALBERTO DOS REIS, perante norma de teor idêntico ao actual artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC: «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).

Ora, é óbvio que na decisão recorrida não se verifica uma absoluta omissão de motivação, sendo manifesta a existência de um elenco de factos provados e a apresentação, com base neles, de uma perceptível argumentação, de que os recorrentes podem discordar, mas que foi produzida – pelo que estará arredada a suposta nulidade por falta de fundamentação. Com efeito, a discordância quanto aos fundamentos enunciados já não se resolve no plano da nulidade da sentença, mas no do eventual erro de julgamento inscrito na decisão recorrida, o que coloca a questão no plano da sua eventual revogação por ilegalidade – mas aí já estamos no domínio da discussão substantiva da decisão, a apreciar infra.

É certo que os apelantes associam a pretensa nulidade a uma invocada adesão do tribunal a quo aos fundamentos alegados pela exequente, proibida por lei, ao abrigo do artº 154º, nº 2, do NCPC – e nisso se traduziria a falta de fundamentação. Porém, se bem virmos, aquilo que os apelantes qualificam como adesão consiste apenas no acolhimento da versão factual trazida aos autos pela exequente na sua contestação de embargos (concretamente, quando no ponto 5º da factualidade provada se declararam provados um conjunto de factos descritos em determinados artigos da contestação da exequente, que são especificamente enunciados pelo respectivo número). Ora, não é esse acolhimento que a lei veda ao tribunal: como resultado da produção de prova é inevitável que sejam acolhidos factos trazidos por uma parte ou por outra (por vezes, até na totalidade dos indicados por uma das partes), ou ainda uma combinação de factos de uma e de outra proveniência, mas sempre levados pelas partes ao tribunal – e isso como natural consequência do princípio do dispositivo e dos ónus de alegação que incumbem às partes (cfr. artº 5º, nº 1, do NCPC).

A adesão vedada por lei é outra: é a que consiste na mera concordância, por simples remissão e sem qualquer dialéctica, com os fundamentos alegados por uma das partes – ou seja, estamos no domínio da argumentação jurídica, e não dos factos, sendo exigível ao tribunal que desenvolva um mínimo de argumentação de sua própria iniciativa para justificar a sua decisão. E essa justificação argumentativa autónoma não deixou o tribunal a quo de a fazer – como bem se evidenciou na resenha que dela se fez supra, no relatório do presente aresto. Não se verifica, pois, a mera adesão por remissão (ou fundamentação per relationem) que o artº 154º, nº 2, do NCPC proíbe. E, sendo assim, não poderia deixar de se concluir pela inexistência de qualquer nulidade (ainda que arguida se devesse considerar) decorrente, para a sentença recorrida, duma pretensa falta de fundamentação, que se demonstrou não ocorrer.

2. Posto isto, e passando à questão da impugnação da matéria de facto, importa, desde logo, salientar que os apelantes desenvolvem uma longa argumentação no sentido de ter havido erro na apreciação da prova, designadamente quanto à prova documental e testemunhal produzida, o qual poderia ser, em tese, susceptível de poder determinar alteração relevante da factualidade provada.

Contudo, é também essencial entender que o questionamento da forma como a prova é apreciada apenas pode ter lugar por via do instituto da impugnação da matéria de facto, e que este, por sua vez, exige uma invocação processualmente adequada, com cumprimento de específicos ónus, impostos pelo artº 640º do NCPC. Com efeito, uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto, para poder ser operante, exige, desde logo, a ocorrência de dois pressupostos essenciais: por um lado, que seja levada às conclusões das alegações de recurso a formulação da pretensão de pôr em crise a matéria de facto, na forma adequada; por outro lado, que essa formulação integre um pleno cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC ao recorrente, o que implica a indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com o estabelecimento de uma correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes.

Ora, no caso presente, atentando no teor das conclusões das alegações de recurso, se podemos afirmar que foi suficientemente expressa essa intenção de impugnação, já muito mais duvidoso é ter havido um cabal e rigoroso cumprimento das exigências do artº 640º do NCPC.

Quanto a este último ponto, é entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que estes devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto (cfr. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 61-64, em anotação ao artº 685º-B do anterior CPC, com correspondência, sem diferenças significativas nessa parte, no actual artº 640º do NCPC). É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto) do que deve ser alterado, em que sentido e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos (ou outros meios probatórios). Em particular, quanto à concreta indicação dos factos que devem ser dados ou deixar de ser dados como provados, a respectiva exigência saiu, aliás, reforçada com a versão conferida ao artº 640º do NCPC, na medida em que nele foi introduzida uma nova al. c) que expressamente impõe ao recorrente a indicação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Por sua vez, o incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC tem como inelutável consequência a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º (reiterado, quanto à indicação exacta dos trechos relevantes da prova gravada, na al. a) do nº 2 da mesma disposição legal), e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido, em anotações ao artº 685º-B do anterior CPC, LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., pp. 61-62, embora criticamente de iure condendo, e ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, p. 138; e, já à luz do actual artº 640º, igualmente ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 127-128) – mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo apelante, já no âmbito da impugnação de direito.

Como sublinha ABRANTES GERALDES, a apreciação do cumprimento desses ónus deve ser feita segundo «um critério de rigor» – e esclarece: «Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 129).

No caso dos autos, tendo presente estas considerações e o teor das conclusões das alegações de recurso, afigura-se notório que os executados-embargantes, e aqui apelantes, não indicaram os concretos factos (e em que exactos termos) que pretendiam ver declarados provados, nem procederam à devida correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes, de modo a imporem decisão de facto diversa: apenas é possível inferir que visavam sustentar uma outra realidade factual, diversa da que foi declarada provada, mas sem a especificação legalmente exigida.

Ou seja: está-se perante uma situação de manifesto incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC – o que nos leva a concluir no sentido da consequente rejeição do recurso quanto ao segmento da pretensão de alteração da matéria de facto, por não estarem reunidas as condições formais para a sua reapreciação.

Em conformidade, declara-se intocada a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância (e para a qual se remete, nos termos do artº 663º, nº 6, do NCPC).

3. Posto isto, e perante a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância, forçoso é concluir que, no plano jurídico, se deve ter por infundada a pretensão dos executados-embargantes, nos exactos termos em que a mesma foi apreciada pelo tribunal recorrido. Nesta base, pode mesmo afirmar-se que estamos perante “questão simples”, para os efeitos do disposto no artº 663º, nº 5, do NCPC, podendo bastar-se a decisão do recurso com uma fundamentação sumária do julgado, em conformidade com o citado normativo.

Com efeito, afigura-se correcto o percurso argumentativo, do ponto de vista jurídico, sustentado pelo tribunal recorrido.

Perante a matéria de facto provada e supra descrita, é evidente que os executados-embargantes não lograram demonstrar (para além do que ficou provado) ter efectuado os pagamentos que alegaram por conta da livrança exequenda, assim como ficou assente que o preenchimento da, livrança pela exequente cumpriu o convencionado entre as partes e correspondeu, quanto ao que efectivamente era devido por aqueles. E assim ficou, de pleno, arredada toda a defesa fundada na invocada excepção de pagamento e no alegado preenchimento abusivo do título.

Apenas subsiste por referenciar a questão de prescrição suscitada.

Note-se que a presente execução é fundada num título de crédito (livrança), validamente emitida e preenchida, como ficou demonstrado, tendo sido os executados-embargantes que procuraram trazer a discussão jurídica para o plano das relações imediatas, respeitantes ao contrato de concessão de crédito celebrado entre as partes e subjacente ao título dado à execução (designadamente, suscitando a aludida prescrição por referência às prestações de capital e juros devidas em cumprimento desse contrato).

Ora, é certo que estamos no domínio das relações imediatas (beneficiário e subscritores da livrança em apreço são, respectivamente, exequente e executados), mas isso não significa que a livrança deixe de valer como tal. Uma livrança constitui, por si, título executivo (como decorrência das características próprias dos títulos de crédito, como são as livranças – literalidade, autonomia e abstracção) e dispensa o seu portador de invocar a relação jurídica subjacente, ainda que o seu portador seja parte nessa relação. Claro que, ao estar-se no domínio das relações imediatas, isso permite ao subscritor da livrança invocar, perante o portador, as excepções causais, i.e., fundadas nas suas relações pessoais. Porém, no caso presente, também ficou assente (cfr. factualidade sob os nos 4 e 5 supra) que houve uma subscrição válida, e conforme ao convencionado, do título – e, nesse contexto, foi-lhe aposta uma data de vencimento (de 25/4/2014) que corresponde ao momento do incumprimento definitivo do contrato, tal como entendido pela exequente e autorizado pelos executados. E, sabendo-se que o prazo de prescrição das livranças é de 3 anos (cfr. artº 70º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, ex vi do artº 77º do mesmo diploma), é manifesto que esse prazo não estava decorrido (a contar da data do respectivo vencimento) quando a presente execução foi instaurada, ainda no ano de 2014.

De tudo isto, se deve inferir que a livrança em causa pode continuar a ser feita valer contra os executados, improcedendo a arguida excepção de prescrição – tal como entendeu o tribunal recorrido.

4. Acolhem-se, assim, os fundamentos da decisão sob recurso e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E, como tal, deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: concorda-se com o juízo decisório formulado pelo tribunal a quo, não se mostrando violadas as disposições legais invocadas nas conclusões das alegações de recurso.

*

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes (artº 527º do NCPC).

Évora, 25 / 05 / 2017

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)