Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
767/14.9T9FAR.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: PRESCRIÇÃO DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
HOSPITAL
ÓNUS DA PROVA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - O direito à indemnização facultado aos estabelecimentos hospitalares, nos casos previstos no artigo 495.º, n.º 2 do CC, não está sujeito às regras de prescrição do procedimento criminal, quanto ao início do respetivo prazo e no concernente ao prazo geral dos créditos por serviços hospitalares previsto no artigo 3.º do Decreto Lei n.º 218/99 de 15.6.

2 - O artigo 3.º do Decreto-lei 218/99 de 15 de junho, por outro lado, só é aplicável aos casos em que a prestação dos serviços hospitalares não está conexionada com os ilícitos criminais que estão na base da atribuição aos hospitais do pedido de indemnização previsto no artigo 495.º, n.º 2 do CC.

3- Só a partir de do despacho de acusação ou, não o havendo, do despacho de pronuncia, é que a entidade hospitalar passa a poder formular o respetivo pedido de indemnização, a deduzir no prazo de vinte dias, após ter sido notificada de tais despachos, conforme os casos.

4- O artigo 5.º do Decreto-Lei, n.º 218/99, dada a dificuldade das entidades hospitalares em provarem o facto gerador do dano, por não disporem dos necessários elementos de prova, conduziu à dispensa do ónus da prova quando estão em causa acidentes de viação de que resultou ilícito criminal.

5 - Em tais casos foi decidido caber ao credor/demandante tão só a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos hospitalares e outros, conexos com os cuidados de saúde prestados à vítima/segurado, e a indicação do número da apólice de seguro.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 767/14.9T9FAR do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Faro, Juiz 1, realizado julgamento foi proferida sentença:
NA PARTE CRIMINAL
a) Absolvendo a arguida (...) da prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelos artigos 15.º, alínea b) e 137.º, n.º 1 do CP;
c) Condenando o arguido (...) pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelos artigos 15.º, alínea b) e 137.º, n.º 1 do CP, na pena de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de seis euros, perfazendo o montante total de novecentos euros;
d) Condenando o arguido (...) no pagamento dos encargos do processo (artigo 514.º, n.º 1 do CPP), fixando-se a taxa de justiça em três UC (artigo 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III a este anexa), sem prejuízo do apoio judiciário concedido (cf. fls. 146 a 148).
NA PARTE CÍVEL
- Condenando a demandada “AGEAS – Companhia de Seguros, SA” a pagar ao “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE” a quantia de dez mil, cento e sessenta e seis euros e onze cêntimos, acrescida dos juros, contabilizados à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões da demandada “AGEAS – Companhia de Seguros, SA”
Inconformada com a decisão a demandada interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“A) O presente recurso sobe da sentença que condenou a Recorrente no pagamento ao CENTRO HOSPITALAR UNIVERSITÁRIO DO ALGARVE, EPE da quantia de €10.166,11 (dez mil, cento e sessenta e seis mil euros e onze cêntimos), acrescida de juros, contabilizados à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento, pois entende aquela que o Tribunal não apreciou devidamente os factos, nem deu cumprimento às normas aplicáveis ao instituto da prescrição, bem assim à impugnação de documentos, dando como provada matéria assente em documentos impugnados.
B) E assim, o presente recurso tem somente por objeto a matéria conexa com o pedido de indemnização cível e a sua apreciação em sentença (artº 403, nºs 1 e 2, alínea b) do CPPenal).
C) A Recorrente impugna a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria considerada provada e constante da parte final do Ponto 28 e o Ponto 29, por considerar que se não fez qualquer prova sobre a mesma.
D) Para prova de tal matéria articulada pelo Demandante Cível, este limitou-se a alegar nos artºs 2 e 3 do seu articulado factos, que a Recorrente referiu em sede de contestação desconhecer se eram ou não reais, por não serem do seu conhecimento pessoal, o que conduz à sua impugnação (artº 574, nº 3 do CPCivil), juntando ainda uma fatura, emitida em 24.06.2019, que indica apenas o seguinte “episódio internamento 14020377 de 10-2-2014 a 12-12-2014. GDH 558. Causa: queda. SMS 594460618”, a qual foi impugnado por esta.
E) Cabia, assim, ao Demandante Cível fazer prova em audiência, nomeadamente juntando outros documentos e/ou inquirindo testemunhas sobre os factos, o que não sucedeu, porquanto a Demandante não esteve presente, nem se fez representar pelo seu Ilustre Mandatário em qualquer uma das sessões de julgamento (vd. Atas das audiências de julgamento de 11.02.2020, 2.03.2020,29.05.20205.06.2020, constantes dos autos).
F) E relativamente à prova arrolada pelo Demandante Cível, nenhuma delas foi inquirida ou se pronunciou sobre os factos alegados pelo Demandante Cível, bastando para tanto, analisar os seus depoimentos constantes das gravações constantes do Sistema Integrado de Gravação Digital para se verificar tal.
G) Face à inexistência de depoimentos sobre a matéria hospitalar (tratamentos, intervenções, custos), não pode o Recorrente indicar concretamente os pontos dessas gravações onde as testemunhas, inquiridas, se pronunciassem sobre tais questões, porque eles inexistem, pelo que a única prova constante dos autos a analisar por V.Exªs é a fatura junta ao pedido cível e que foi impugnada pelo Recorrente, porque versava sobre matéria controvertida, que fora também por si impugnada.
H) Deste modo, cabendo ao Centro Hospitalar a prova da prestação de cuidados de saúde (artº 5 do DL 218/99) e não a tendo feito, não poderia o Tribunal a quo dar como provada tal matéria constante da parte final do Ponto 28 e ainda a matéria do Ponto 29 e, assim, face à inexistência dessa prova cujo ónus pertencia ao Demandante Cível, deveria o Tribunal a quo absolver a Recorrente do pedido.
POR OUTRO LADO,
I) A Demandada, ora Recorrente, foi citada para contestar o pedido de indemnização cível deduzido contra si em 16.12.2019, sendo essa a primeira vez tomou contacto com a reclamação do Centro Hospitalar e com a fatura junta por este, sendo que não foi em nenhum outro momento interpelado por parte da Demandante, nem o poderia ter sido antes, quando a fatura hospitalar só fora emitida em 26.04.2019 (vd. Doc. junto ao pedido de indemnização cível);
J) a Recorrente invocou a prescrição da divida, como ponto prévio, sendo que a prescrição constitui uma exceção perentória, cuja prova conduz à absolvição do pedido (artºs 576, nº 1 do CPCivil).
L) Tendo o acidente ocorreu dia 10.12.2014, tendo o menor falecido em 12.12.2014, e a Recorrente sido citada para estes autos em 16.12.2019, o pedido do Demandante Cível ocorrera, quer por força do disposto nos artºs 118, nº 1, c) e 137, nº 1 e 15, alínea b), ambos do CPenal e artº 498 do CCivil, quer por força do disposto no DL 218/99 de 15 de Junho, face ao seu artº 3.
M) A Recorrente foi citada para estes autos em 16.12.2019, não tendo sido em qualquer outro momento anterior objeto de qualquer ato por parte da Demandante, demonstrativo da sua intenção em demandar aquela, nomeadamente através de notificação judicial avulsa que nem sequer alegou, e a ter acontecido exigiria que a fatura não tivesse sido emitida tardiamente em 26.04.2019;
N) As despesas reclamadas pelo Demandante decorreram de “episódio internamento nº 14020377 de 10.12.2014 a 12.12.2014”, conforme resulta da fatura junta ao pedido de indemnização cível, internamento e tratamento que cessou no dia 12.12.2014, face ao falecimento do menor ocorrido em 12.12.2014, pelo que este conhecia já em 12.12.2014 o direito a reclamar o pagamento junto da Recorrente, não o tendo exercido atempadamente, o que sempre poderia ter feito , decorrendo o processo de inquérito , face ao disposto no artº 72, nº 1, alínea a) do CPPenal.
O) Por outro lado, a prescrição invocada – independentemente da norma – deveria ter sido apreciada face ao normativo do referido DL 218/99, diploma este especificamente publicado para regulamentar o regime de cobrança de dividas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, enquanto lei particular, impor-se-ia sempre ao instituto da prescrição definido nos termos do artº 498 do CCivil.
P) Consagrando o artº. 3º do DL nº 218/99, de 15 de Junho, que “Os créditos a que se refere o presente diploma prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem.” e que o Demandante Cível está integrado no Serviço Nacional de Saúde, deveria o Tribunal “a quo”, julgar de acordo com esta norma, face à invocada prescrição, até porque o Tribunal não está adstrito à invocação do Direito pelas Partes.
Q) Deste modo, tendo os alegados tratamentos ocorridos no período de 10 a 12.12.2014, cessando nesta data por falecimento do menor, gerou-se nesta data o direito do Centro Hospitalar Universitário do Algarve a reclamar da seguradora o pagamento da divida, pelo que o prazo prescricional inicia-se em 13.12.2014 e teve o seu termo 3 anos depois, ou seja, em 13.12.2017, logo, muito antes da data invocada pelo tribunal a quo – 07.05.2019 - como momento de interrupção da prescrição.
R) Entende-se, assim, que o Tribunal a quo ao dar como provada a matéria da parte final do Ponto 28 e ainda a matéria do Ponto 29, apenas apoiado em documento/fatura impugnado e cuja veracidade e conteúdo não resultou de prova produzida em audiência de julgamento, para além de não ter considerado a invocada prescrição , violou o disposto nos artºs 444 e seguintes do CPCivl, o artº3 do DL 218/99 de 15 de Junho, os artºs 498, nº 3 e 576, nº 1 , ambos do CPCivil, merecendo assim a sentença sindicada censura.
NESTES TERMOS,
E nos mais de Direito (…) deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso e, em consequência, julgar-se como não provada a matéria da parte final do Ponto 28 e ainda a matéria do Ponto 29 e, sempre, considerar a reclamada divida como prescrita, revogando-se a sentença recorrida nessa parte e, em consequência, absolvendo-se a Recorrente do pedido formulado pelo Demandante Cível (…)”.

2.2. Das contra-alegações do “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE”
Motivou o “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE” defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1. A total procedência do enxerto cível desta instituição pública justamente decretada pelo Tribunal “a quo” terá/deverá ser conservada na nossa rica Ordem Jurídica.
2. Já no que tange aos fracos motivos que a recorrente SA engendrou para tentar abalar esse segmento da decisão, dizer que, não podem ter um qualquer amparo nesse alto, sábio e, muito experiente Tribunal pois, esta sentença é isenta de uma qualquer crítica e/ou reparo.
3. Na verdade, da factualidade dada como provada pelo Mmª Juiz “a quo” e que não é despicienda, ficou muito bem fundamentado que, na sequência da conduta criminosa do arguido que circulava com o veículo seguro na Recorrida SA, o menor aqui assistido escorregou e, embateu contra os bancos do veículo seguro na Seguradora recorrente, tendo, em consequência disso, partido os dois fémures (vide, o ponto n.º 14 dos factos provados).
4. Por outro lado, da factualidade assente, ora sob os números 16 a 18 da douta sentença, alcançamos que, o menor sinistrado foi transportado/conduzido a este Hospital do SNS, sendo no dia do sinistro cá submetido a uma cirurgia ortopédica, que como a Recorrente bem sabe tem custos acoplados.
5. Além de que, ficou e perfeitamente evidenciado na própria documentação clinica e outra (vide, fls. 3 e 21 e ss, fls 21 e 22-A e 22-B, e fls.493) que o menor assistido acabou por permanecer internado nesta entidade assistencial do perímetro público no período compreendido entre 10.12.2014 a 12.12.2014, i.e., um internamento hospitalar de 2 dias (vide, o 19º facto provado da boa sentença) que, igualmente, não são de “borla” como a Recorrente bem sabe.
6. Na mesma dimensão, resulta e à saciedade que, na sequência direta e necessária da conduta estradal e ilícita do arguido (...), cujo veículo de matricula (…) onde circulava o menor estava seguro na AGEAS- Companhia de Seguros SA, foi esse sinistrado encaminhado para a Unidade Hospitalar de Faro (UHF), onde lhe foram prestados diversos tratamentos médicos/hospitalares urgentes, transporte, operação cirúrgica, com internamento hospitalar (cfr. factos 27 a 29 da sábia sentença).
7. Igualmente, ficou e muito bem patenteado que, com esta prestação de cuidados de saúde o demandante e aqui recorrido incorreu realmente nas despesas no montante de € 10 166,11 (dez mil cento e sessenta e seis euros e onze cêntimos) titulados e, suficientemente descritos na factura hospitalar n.º 19106818 (vide, fls. 420) e, que escoltou o pedido de reembolso tempestivamente deduzido e, julgado totalmente procedente como aliás, não podia deixar de o ser.
8. Tudo isto, não descurando que, esta entidade totalmente pública ministra cuidados de saúde cujos preços estão inclusivamente, tabelados (Cf. Portaria nº 207/2017, de 11 de Junho) e até muito abaixo do sector privado/convencional da saúde acrescentamos nós, pelo que, deverão os mesmos entrar na esfera jurídica da Companhia de Seguros, ora recorrente.
9. Sucede que, o recurso da Seguradora SA e que foi agora apresentado, salvo o devido respeito, ambiciona, sem critério juridicamente sério, prejudicar o interesse patrimonial público que esse Colendo Tribunal não deixará de desatender.
10. Taxativamente, reconhecer que, o recorrido deduziu um competente pedido de reembolso, ao abrigo do artigo 6º Decreto Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, juntando toda a prova testemunhal, documental e até pericial assinalada no libelo acusatório, que após demonstração em Tribunal permite suportar a bondade jurídica da nossa pretensão indemnizatória, pelo que, com todos estes meios de prova não existem quaisquer motivos para alterar o sentido da decisão do Ilustre Tribunal de Faro.
Nestes termos e nos melhores de Direito, não prescindindo do douto suprimento desse mui reputado Tribunal, deverá ser dado como totalmente improcedente o recurso apresentado pela SA Companhia de Seguros, devendo a mesma ressarcir justamente o aqui Recorrido das despesas resultantes dos cuidados de saúde ministrados ao descansado menor/sinistrado, assim, se mantendo a mais elementar e sã Justiça.”.

2.3. Da tramitação subsequente
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer por se tratar de questão de natureza meramente civil.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
No caso em apreço, atendendo às conclusões, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Apreciar se se encontra prescrito o pedido de indemnização civil formulado pelo “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE”;
- Se se encontram provados os diversos tratamentos médico hospitalares urgentes, transporte, operação cirúrgica e internamento hospitalar praticados pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve prestados à vítima do acidente de viação resultantes da conduta do arguido (...), cujo veículo estava seguro na “AGEAS -Companhia de Seguros, SA”;
- Se se encontra provado o montante das diversas despesas com os tratamentos, transporte, operação cirúrgica e internamento hospitalar praticados pelo “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE” conforme fatura discriminativa dos mesmos, apresentada pelo referido Centro.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos Provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“O menor (...) era portador de um quadro de distrofia muscular progressiva de Duchenne, do qual resulta, como sequela permanente, deficiência motora;
1. Em razão do descrito em 1), (...) beneficiava de transporte escolar ao abrigo do contrato de comodato celebrado entre o Município de Faro e a Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Faro, relativo a veículo especial de transporte de alunos com necessidades educativas especiais;
2. A médica fisiatra do menor (...) tinha dado indicação à arguida (...), mãe do mencionado menor, da necessidade de o mesmo usar um cinto de retenção na cadeira de rodas, porque não teria força nos braços para se segurar;
3. Motivo pelo qual o menor (...) devia usar o sistema de retenção quando era transportado na cadeira de rodas;
4. No dia 10.12.2014, o arguido (...) era o condutor do veículo de matrícula (…), classificada à data de 10.12.2014, de tipo A2, ambulância de transporte múltiplo, destinado ao transporte de doentes, inclusivamente em cadeira de rodas, da propriedade da Cruz Vermelha Portuguesa;
5. No dia 10.12.2014, o menor (...) tinha ido ao Hospital de Faro, a uma consulta, quando, cerca das 09h30, o arguido (...) colocou o menor (...) dentro da ambulância, sentado na sua cadeira de rodas;
6. A arguida (...) tinha esquecido em casa o cinto de segurança que prendia o menor (...) à cadeira de rodas;
7. Tal esquecimento foi verificado pelo arguido;
8. Ambos os arguidos concordaram em prosseguir com o transporte do menor (...) para a escola;
9. Assim, o arguido (...) fixou a cadeira de rodas do menor (...) no interior da ambulância referida em 5), ficando a mesma travada;
10. Não foi colocado qualquer cinto de segurança ao menor (...), facto do conhecimento do arguido (...);
11. Durante o trajecto para a escola, o arguido (...), teve que travar repentinamente, para evitar embate com o veículo que circulava à sua frente;
12. O que fez escorregar o menor (...) da cadeira de rodas, que estava travada, e cair no chão, contra os bancos que estavam à sua frente;
13. Tendo em consequência partido os dois fémures;
14. Verificado o descrito em 13) pelo arguido (...), alertado pelas queixas de dor do menor (...), o mesmo recolocou o menor na cadeira de rodas e encetou contacto com a arguida (...) (por intermédio dos serviços administrativos da CVP), solicitando a sua comparência no local e por ela ficando a aguardar[1];
15. Chegada a arguida (...) ao local, constatou de imediato as queixas de dor do menor, seu filho, que pedia que fosse conduzido ao Hospital;
16. Somente após o descrito em 15) e 16), o menor (...) foi transportado para o Hospital de Faro;
17. No mesmo dia, o menor (...) foi submetido a cirurgia ortopédica;
18. O menor (...) faleceu no Hospital, no dia 12.12.2014, pelas 19h00;
19. Realizada a autópsia legal ao cadáver do menor (...), concluiu o médico-legista que «a morte de (...) foi devida a tromboembolismo pulmonar; a causa da morte está em relação directa com queda e fractura dos fémures; as circunstâncias da morte foram agravadas pela doença congénita de que era portador; a consulta dos registos clínicos e os dados autópticos sugerem que a assistência prestada foi efectuada segundo a arte; não se observam outros sinais de violência externa recente»;
20. O arguido (...) sabia que o menor (...) devia ser transportado, no veículo automóvel que conduzia, com o sistema de retenção (cinto de segurança/transporte, bem como de retenção da cadeira de rodas ao piso da viatura) colocado;
21. Contudo e apesar deste seu conhecimento, permitiu o seu transporte, no veículo automóvel que conduzia, sem o sistema de retenção;
22. A arguida (...) sabia da necessidade do sistema de retenção da cadeira de rodas do seu filho (cinto de segurança/transporte, bem como de retenção da cadeira de rodas ao piso da viatura);
23. Recaía sobre o arguido (...), condutor da ambulância, o dever de cuidado que se lhe impunha de não transportar o menor (...) sem o sistema de retenção colocado (cinto de segurança/transporte, bem como de retenção da cadeira de rodas ao piso da viatura), o que não fez;
24. Ao agir conforme descrito e de forma livre, o arguido (...) não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado de que era capaz de adoptar e que deveria ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando causa à morte do menor (...);
25. O arguido (...) bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;
Do Pedido de Indemnização Civil deduzido pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE em especial
26. O Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE é um Centro Hospitalar integrado no seio do Serviço Nacional de Saúde, que presta cuidados de saúde à população em geral;
27. Na sequência directa e necessária da conduta do arguido (...), cujo veículo de matrícula (…) onde circulava estava seguro na Ageas – Companhia de Seguros SA, o menor (...) foi encaminhado para a Unidade Hospitalar de Faro, onde lhe foram prestados diversos tratamentos médicos/hospitalares urgentes, transporte, operação cirúrgica e com internamento hospitalar;
28. Com a prestação dos cuidados de saúde referidos em 28), o Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE incorreu em despesas no montante de € 10.166,11 (dez mil, cento e sessenta e seis euros e onze cêntimos);
Das Condições Pessoais e Económicas e antecedentes criminais dos Arguidos em especial
29. O arguido (...) nasceu em 03.10.1990 e está casado;
30. Tem dois filhos, com 1 e 3 anos de idade;
31. Reside com a esposa e filhos em casa própria, pela qual pagam prestação bancária no montante aproximado de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros) mensais;
32. Tem a profissão de socorrista e condutor no INEM desde o dia 15.04.2020, pela qual aufere € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) mensais;
33. A sua esposa tem a profissão de enfermeira, pela qual aufere o salário mensal de € 1.200,00 (mil e duzentos euros);
34. Despende mensalmente cerca de € 220,00 (duzentos e vinte euros) com as creches de ambos os filhos;
35. Em despesas correntes e de alimentação, o agregado despende cerca de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais;
36. Despende ainda cerca de € 180,00 (cento e oitenta euros) mensais referentes a crédito para aquisição de veículo automóvel;
37. Como habilitações literárias, tem licenciatura em Biotecnologia;
38. O arguido (...) não regista antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal;
39. A arguida (...) nasceu em 15.01.1974 e está solteira;
40. Tem um filho com 10 anos de idade, que se encontra a seu cargo;
41. Exerce actividade como empregada de balcão e como empregada de limpeza, pelas quais aufere cerca de € 800,00 (oitocentos euros) por mês;
42. Aufere abono de família referente ao seu filho, no valor de € 40,00 (quarenta euros) mensais;
43. Reside com o filho em casa arrendada, pela qual paga renda mensal no montante de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);
44. Em despesas correntes e de alimentação, despende cerca de € 200,00 (duzentos euros) a € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) por mês;
45. Como habilitações literárias, tem o 10.º ano de escolaridade;
46. A arguida (...) não regista antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal.”.



3.1.2. Factos não provados na 1ª instância
O Tribunal a quo considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente causa nomeadamente que (transcrição):
“DA PRONÚNCIA EM ESPECIAL
a) Do quadro de distrofia muscular progressiva de Dûchenne, de que (...) padecia, resultasse, como sequela permanente, deficiência perceptiva e cognitiva;
b) A não colocação de qualquer cinto de segurança ou retenção ao menor (...), conforme descrito em 11), fosse do conhecimento da arguida (...);
c) A arguida (...) tivesse permitido que o menor (...) fosse transportado no veículo referido em 5) sem o sistema de retenção da cadeira de rodas (cinto de segurança/transporte, bem como de retenção da cadeira de rodas ao piso da viatura);
d) A arguida (...) não tivesse actuado com o dever de cuidado que se lhe impunha, na qualidade de mãe do menor (...), porquanto houvesse permitido o transporte do menor sem sistema de retenção colocado;
e) Ao agir conforme descrito e de forma livre, a arguida (...) não houvesse observado as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que deveria ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que de igual forma pudesse e devesse ter previsto, mas que não o previsse, dando causa à morte do menor (...), seu filho;
f) A arguida (...) soubesse que a sua conduta era prevista e punida por lei.”.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição):
“A convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida, que consistiu nas declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelos arguidos (...) e (...)[2] (relativamente à arguida, foram ainda levadas em consideração as declarações por si prestadas em sede de instrução, nos termos do disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), 292.º, n.º 2, 355.º, n.º 2 e 357.º, n.º 1, al. b), todos do CPP) e pelo assistente (…), nos depoimentos prestados pelas testemunhas (…), na prova pericial realizada (consubstanciada em autópsia médico-legal incidente sobre o menor falecido e cujo relatório consta a fls. 11 e 12), bem como no teor do conspecto documental constante dos autos (do qual se destaca o seguinte: boletim de informação clínica de fls. 3, documentação clínica de fls. 21 e 22, relatório clínico de fls. 22-A e 22-B, ofícios de fls. 40, 76 e 87, contrato de comodato de fls. 41 a 43, prints de emails de fls. 44 e 45, registo de turno da CVP de fls. 46, certificado de motorista de transporte colectivo de crianças de fls. 103, informações do IMT de fls. 107, 129 e 202, informações do INEM de fls. 125 e 241, assentos de nascimento de fls. 152 a 155, prints de fls. 180 e 205, ofício da CVP de fls. 188, contratos de trabalho de fls. 189 e 190, bem como de fls. 598 e 599, certificado de vistoria do INEM de fls. 191, licença do IMT de veículo para transporte de doentes em ambulância de fls. 192, certificado de matrícula de fls. 193, guia do IMT comprovativa de pedido de certificado de matrícula de fls. 233 e 234, factura de fls. 420, informação do CHUA de fls. 493, informação da CVP de fls. 610, 611 e 618, certificados de registo criminal de fls. 634 e 635 e apólice de seguro de fls. 645) sobre o qual todas as dúvidas foram esclarecidas em audiência, tudo devidamente apreciado com base nas regras da experiência comum e da normalidade da vida (artigo 127.º do CPP).
A apreciação da matéria de facto reveste relativa simplicidade, não obstante algumas contradições (em questões decisivas) entre as versões factuais apresentadas pelos arguidos, assim como algumas precisões que cumpre efectuar quanto ao teor de determinados depoimentos (dos quais se destaca o que foi prestado pela testemunha …), de modo a não permitir a subsistência de dúvidas que se afigura haverem perdurado até à data, que destarte melhor se abordarão infra. Não obstante o sobredito, afigura-se pertinente começar por sumariar o essencial das declarações e depoimentos prestados, que seguidamente se apreciarão criticamente e de modo a melhor expor a convicção almejada.
Em síntese, confirmou a arguida o quadro de distrofia muscular de que padecia o seu falecido filho, salientando, contudo, resultarem do mesmo somente sequelas ao nível muscular, já não perceptivo e/ou cognitivo (relativamente ao conhecimento do arguido acerca da patologia de que padecia o seu filho, revelou desconhecer). No que tange ao cinto de retenção que lhe caberia colocar ao seu filho quando acomodado na cadeira de rodas (a qual usaria desde os 9 anos de idade, ou seja, 3 anos antes do seu falecimento), confirmou a insistência pela sua aquisição por parte da fisioterapeuta e da médica fisiatra do menor (respectivamente, as testemunhas … e …), assim como as chamadas de atenção feitas pelas mesmas quando se apresentava com o menor sem o cinto colocado, salientando a arguida, ainda assim, que tal cinto serviria somente para a deslocação do menor em cadeira de rodas, de modo a obviar a que resvalasse ou caísse da mesma, porquanto não teria força muscular para se segurar e suportar alguma trepidação ou travagem, não servindo assim tal cinto para o uso em veículos, sendo a seu ver inadequado/insuficiente para o efeito. Relativamente ao transporte do seu filho, contratualizado com a CVP (por intermédio da Câmara Municipal de Faro), mencionou que pelo menos 6 condutores efectuaram o transporte do seu filho, ao longo de cerca de 2 anos, afiançando que nunca nenhum deles tinha falado nesse cinto, nunca lhes tendo fornecido o mesmo (ainda que por vezes entregasse o seu filho com o mesmo colocado), ademais sempre confiando que o seu filho fosse correctamente acomodado nos veículos nos quais foi sendo transportado (note-se que, além de vários condutores (cf. aliás resulta da informação da CVP de fls. 610 e 611), foram vários os veículos em que o menor foi sendo transportado ao longo do tempo, o que se aceita pacificamente, porquanto mencionado por ambos os arguidos e corroborado pelas testemunhas (…), sendo o primeiro coordenador da Unidade de Emergência da CVP, que mais informou acerca das diferentes valias dos mesmos, no sentido de que estariam dotados de diferentes sistemas de retenção de e à cadeiras de rodas, ou até da ausência de tais sistemas, o que foi igualmente mencionado pelo arguido). Quanto ao momento de aferimento das condições em que o menor foi acomodado no veículo, mencionou a arguida desconhece-las, somente havendo presenciado a colocação do sistema de retenção da cadeira ao veículo, abandonando o local nesse momento, com o seu outro filho, de tenra idade, com quem se encontrava, não percepcionando assim a colocação ou não do cinto de retenção (neste ponto, afiançou a arguida estar certa de não ter estado presente nesse momento, porquanto caso estivesse decerto não teria permitido que o transporte do seu filho fosse efectuado nas condições que depois constatou terem sido proporcionadas, tendo até tempo e condições, naquele momento, para efectuar o transporte do seu filho pelos seus próprios meios, mais reiterando que confiava, não só naquele momento mas sempre, que, sendo os condutores profissionais na área de transporte de doentes e de pessoas com mobilidade reduzida, diligenciariam pela correcta acomodação dos mesmos; de resto, referiu ainda que chegou a presenciar, noutras ocasiões, a colocação de cinto de segurança ao seu filho aquando de transporte em ambulância, confiando assim que tal seria sempre e invariavelmente feito). Finalmente, quanto ao sucedido logo após, a arguida manifestou a sua perplexidade e indignação quanto à conduta do arguido, não só na medida em que o mesmo não teria acomodado devidamente o seu filho, mas igualmente quanto ao seu modo de actuar após o acidente descrito em 12) e 13), considerando ser elementar que não se mexe num corpo acidentado, como o arguido terá feito, acomodando o menor novamente, após a queda, na cadeira de rodas em que se encontrava, mas atendendo igualmente que, ao invés de proceder ao seu imediato transporte ao Hospital ou chamada de equipa médica ao local, limitou-se a diligenciar junto dos serviços administrativos da CVP para que contactassem a arguida a fim de se deslocar ao local. No mais, referiu que, após contacto de tais serviços da CVP, informando que teria ocorrido uma travagem e que, em consequência, o seu filho estaria assustado e chegaria atrasado à escola, deslocou-se de imediato ao local, onde chegou após breves minutos, deparando-se com o seu filho, sentado na cadeira de rodas, a berrar de dor, e com o arguido a indaga-la sobre como proceder, tendo aí decidido pelo que seria o óbvio para a mesma, ou seja, pela imediata condução do menor ao Hospital.
Quanto às declarações prestadas pelo arguido (logo após a arguida), começou por manifestar discordância quanto ao relato feito pela arguida, no sentido de que esta não soubesse que o menor estaria a ser acondicionado no veículo sem colocação de cinto de segurança, que acrescentou inexistir naquele veículo em específico. Sobre este tema, a verdade é que apresentou versão factual totalmente discrepante com o relato feito pela arguida. Em síntese, segundo se depreendeu das suas palavras, a situação ocorrida no dia 10.12.2014 não era nova, no sentido de que já havia sucedido anteriormente por algumas ocasiões. Assim, referiu que não só a arguida sabia que tinha que trazer o cinto de retenção, para acautelar a hipótese de a carrinha/ambulância atribuída para o dia em causa não estar equipada com outro, mas igualmente que, em situações em que, não se apresentando com o aludido cinto e na falta dele na carrinha, o transporte havia sempre sido feito com a anuência da arguida, talqualmente teria sucedido na data dos factos. Acrescentou que tal teria sucedido não só consigo mas também com outros colegas, nunca tendo o transporte do menor deixado de ser efectuado por ausência de cinto de retenção, tendo havido igualmente situações em que, tendo a arguida esquecido o aludido cinto em casa, lhe solicitou que o fosse buscar para permitir o transporte do menor em segurança. Confirmou que à data efectuava já o transporte do menor falecido há cerca de dois anos, tendo na data dos factos conhecimento que o mesmo padecia de doença degenerativa muscular, ainda que sem um conhecimento aprofundado sobre as sequelas daí advenientes para o mesmo, a não ser que efectivamente não possuía força para se segurar sozinho na cadeira de rodas em que sempre se fazia transportar. Relativamente ao episódio em concreto, mencionou que se limitou a prender a cadeira de rodas ao chão da carrinha, fazendo uso do sistema de retenção disponível na mesma, nada mais tendo feito em razão do esquecimento, por parte da arguida, do cinto de retenção à cadeira e atento facto de a carrinha que lhe havia sido atribuída nesse dia (não cabendo nunca ao condutor a escolha do veículo, mas sim à coordenação da CVP, que fazia a atribuição das várias carrinhas aos vários condutores em razão das necessidades para cada dia específico) não estar equipada com outro. Reiterou que tal situação não era inédita e que, talqualmente havia já sucedido, a mãe do menor anuiu em que o transporte fosse efectuado naquelas condições. Já no que toca ao sucedido após iniciar o transporte do menor, que foi feito sem qualquer assistente, confirmou que teve que efectuar uma travagem brusca e inesperada, após a qual de imediato se apercebeu do choro do menor, motivo pelo qual imobilizou a viatura para aferir do seu estado. Apercebendo-se das queixas do menor, que se encontrava de joelhos, à frente da cadeira de rodas, entre a mesma e a cadeira que se encontrava à sua frente (neste ponto em concreto, note-se que o arguido referiu que existiam cadeiras fixas diante do local em que estava afixada a cadeira do menor, ou seja, que esta se encontrava como que alinhada numa segunda fileira de três cadeiras, pois seria aí que se encontrava o sistema de retenção da mesma), atentas as queixas de dor, optou por acomoda-lo novamente na cadeira de rodas, questionando-o sobre se pretendia ir ao Hospital, ao que este haveria respondido que não, que queria outrossim a sua mãe, motivo pelo qual comunicou o sucedido aos serviços administrativos da CVP, de modo a, por sua vez, contactarem a arguida para comparecimento no local, tudo de forma a que esta decidisse o que fazer. Assim, chegada a arguida ao local e decidindo-se pelo imediato transporte do menor ao Hospital, assim o fez. De resto, questionado sobre o motivo pelo qual, não havendo cinto de retenção na ambulância e nem sequer outro trazido pela arguida, não colocou o menor num banco fixo da carrinha, de maneira e colocar-lhe cinto de segurança e destarte possibilitar-lhe um transporte em condições de segurança (aliás, sendo isso algo que a arguida faz quando o transporta no seu veículo próprio, sendo naturalmente de concluir que seria uma acomodação ao seu alcance), referiu que as instruções que tem são de que quando a pessoa a transportar se move em cadeira de rodas, é nessa cadeira mesma que deve ser feito o seu transporte no veículo (neste ponto, conclusão diversa cabe retirar do depoimento prestado por (…), como melhor se verá adiante).
(…), assistente nos autos (ex-companheiro da arguida e pai do menor (...) acabou por pouco referir de relevo, porquanto revelou não ter conhecimento directo dos factos. Ainda assim, afiançou que a patologia de que padecia o seu falecido filho somente se revelava ao nível motor, mas não ao nível psicológico, cognitivo ou emocional, sendo a seu ver criança normal, lúcida e perfeitamente capaz de se expressar. Confirmou que o apregoado cinto que a fisiatra e fisioterapeuta do menor haviam recomendado se destinava somente ao seu transporte de cadeira de rodas, mas não em veículo, posto que aí era necessário colocar cinto de segurança adequado para tanto. Referiu que chegou a entregar o menor para ser efectuado o transporte de ambulância, por duas ou três ocasiões, sem entregar o cinto em causa, confiante de que o veículo estivesse invariável e devidamente equipado para o efeito (acrescentou que nos casos em que foi o próprio que entregou o menor para transporte, estariam presentes condutor e assistente, tendo igualmente presenciado a colocação ao menor, pelo menos em dois veículos diferentes, de cinto de segurança).
No que se refere à prova testemunhal:
(…) (havendo prestado depoimento espontâneo, sério e objectivo, merecendo destarte credibilidade), médica fisiatra que seguiu o menor (...) durante cerca de 2 anos (quando já havia perdido a capacidade de marcha), afiançou, no essencial e após expor sucintamente os seus conhecimentos acerca da patologia de que padecia o menor (neste ponto, confirmando ser patologia que apenas afecta a mobilidade ou capacidade motora, permitindo capacidade cognitiva perfeitamente normal), ter efectivamente recomendado à arguida adquirir cinto de retenção para as deslocações do menor em cadeira de rodas, de modo a obviar a que resvalasse ou caísse da mesma (essencialmente para uso na escola, em ambiente de consulta ou em qualquer outro exterior à sua residência). Ainda assim, foi peremptória e incisiva ao mencionar a inadequação de tal cinto para uso em veículos, não substituindo, de todo, o uso do comum cinto de segurança/transporte, sendo ademais aconselhado cinto de pelo menos três apoios, comummente conhecido e utilizado nos veículos rodoviários (acrescentando que o uso de tal cinto em substituição do cinto de segurança continuaria sempre a não debelar os perigos advenientes da actividade de circulação rodoviária, em razão da sua inadequação para tanto, pugnando pelo entendimento de que o cinto de transporte deveria ser sempre utilizado e ser pelo menos de três apoios, acrescentando até que o uso do cinto em causa, de cintura, nunca obviaria a ocorrência de lesões e fracturas vertebrais, quer cervicais quer a outro nível, em caso de travagem brusca ou embate). No mais, apelidou os pais do menor falecido de heróis, bons cuidadores, invariavelmente presentes e atentos em todas as consultas, afigurando-se-lhe tratarem-se de pessoas zelosas e sempre atentas aos cuidados a prestar ao menor (…).
(…) (havendo igualmente prestado depoimento espontâneo, sério e objectivo, merecendo credibilidade), fisioterapeuta que acompanhava o menor (…), no essencial, corroborou o anteriormente dito por (…) no que respeita à sua patologia, bem como à utilidade do cinto cuja aquisição igualmente recomendou à arguida. Sublinhou a importância do uso de tal cinto, sendo certo que apenas para evitar a queda da cadeira de rodas quando se fazia transportar na mesma, nunca para o uso em veículos rodoviários, não sendo, de todo, adequado para tanto (neste ponto, referiu até afigurar-se-lhe que o uso em transporte do cinto em causa nada acrescentaria à segurança do menor). No mais, referiu-se aos pais do falecido menor como sendo cumpridores e colaborantes.
(…), condutor de ambulâncias/veículos de transporte de doentes, ex-colega e amigo do arguido (colocam-se algumas reservas quanto à credibilidade a conceder à testemunha em causa, não só em razão da circunstância de ser ex-colega do arguido, o que potencia a sua parcialidade, mas igualmente em razão das suas próprias declarações, que deixam muito a desejar quanto à sensatez da sua posição no que se refere ao modo de efectuar o transporte do menor acidentado, contradizendo-se a si próprio, aliás, quando refere, por um lado, ser a segurança do paciente transportado a prioridade a ter em qualquer caso, sendo igualmente certo, por outro, que entende ser uma questão de bom senso efectuar o transporte mesmo quando tais condições de segurança se não verifiquem), começou por revelar ter efectuado, por várias ocasiões, o transporte do menor (...), possivelmente também no veículo descrito em 5) (não estando certo disso porquanto seriam vários os veículos que conduzia). Referiu que nem sempre o menor foi transportado com uso de cinto de retenção, isto porque, no caso de o veículo não estar equipado com o mesmo, a mãe do menor se haver esquecido do seu, ou até, em situações em que o menor havia mencionado não querer usar o cinto. Parece digno de realce o facto de a testemunha, quando confrontada com o motivo pelo qual chegou a efectuar o transporte do menor sem uso do cinto (o da arguida ou qualquer outro e fosse por que motivo fosse), ter feito referência ao bom senso, ou seja, concedendo, segundo o seu bom senso, primazia à chegada do menor a um qualquer destino, em detrimento da segurança (bem vistas as coisas, da total ausência dela) com que era transportado, consideração esta que não pode senão ser tida como incompreensível (acrescendo que a própria testemunha mencionou ser a segurança a regra básica a ter em conta no transporte de qualquer criança ou paciente)… Referiu, tal como havia feito o arguido, que não era aos condutores que cabia selecionar o veículo que conduziam em dado dia, sendo o mesmo atribuído de véspera pela coordenação da CVP. Mencionou, tal como havia feito o arguido, a proximidade do local onde era afixada a cadeira de rodas no veículo em causa às cadeiras que se encontravam à sua frente, concretizando ainda, neste ponto, que como que a cadeira de rodas era afixada em local alinhado do lado direito com a segunda fila de cadeiras fixas existentes no veículo, encontrando-se assim bastante próximo da primeira fila de cadeiras, correndo sempre o risco, ainda que tivesse colocado o apregoado cinto esquecido pela arguida, de embater com a cabeça nas costas da cadeira situada à sua frente, na eventualidade da ocorrência de alguma travagem brusca ou embate. Ainda assim, revelou que, mesmo após o sucedido, continuou a ser feito o serviço de transporte de pacientes em cadeira de rodas nas mesmas condições... Questionado sobre o cinto em causa, nada soube acrescentar que não fosse o facto de a mãe do menor o ter por vezes em sua posse, nada mais (revelando desse modo desconhecer qualquer indicação acerca da suficiência ou não do uso de tal cinto para garantir a segurança dos pacientes transportados em cadeira de rodas), acrescentando, não obstante, que teria sido a própria arguida a mencionar-lhe que o menor deveria ter sempre colocado o cinto em causa aquando do transporte em ambulância, o que não pode senão suscitar estranheza, primeiro porque tendo a arguida, segundo o arguido e o depoente, permitido o seu transporte sem cinto no fatídico dia, estaria a ser permissiva relativamente a algo que a própria havia alegada e anteriormente dito não ser admissível, e segundo na simples medida em que estaria a transmitir informação que não se vislumbra como pudesse ter obtido, posto que as próprias médica fisiatra e fisioterapeuta, exactamente quem lhe aconselhou a aquisição e uso do cinto, nunca tal lhe haveriam transmitido, segundo as mesmas afiançaram aquando dos seus depoimentos. De resto, limitou-se a testemunha a abonar em favor do arguido a nível pessoal e profissional.
(…), assistente operacional na CVP, ex-colega e amiga do arguido, para além de ter mencionado haver assistido no transporte do menor (...) noutras ocasiões (não se recordando se o mesmo se fazia transportar com cinto), limitou-se a enaltecer as qualidades do arguido, tanto ao nível pessoal como profissional.
(…) e (…), respectivamente, amiga e ex-sogra da arguida, abonaram em favor da mesma, essencialmente acerca das suas qualidades pessoais e de mãe (enaltecendo a sua dedicação e o seu altruísmo em tudo o que se relacionava com o menor (...).
Finalmente, (…) coordenador da área de emergência da CVP (naturalmente conhecido do arguido, sendo este seu colaborador enquanto condutor de ambulâncias e carrinhas de transporte de doentes), versou no seu depoimento (prestado de forma que se afigurou, não obstante a relação profissional que mantinha à data dos factos com o arguido, isenta, séria e objectiva), essencialmente, acerca das competências do arguido para o exercício das suas funções (descrevendo-o como motorista cumpridor das regras, de currículo disciplinar imaculado) e, acima de tudo, à forma de organização da CVP no que se refere à atribuição dos turnos dos condutores (que referiu serem feitos de forma aleatória e na véspera do serviço, tal como referido pelo arguido e pela testemunha …), assim como dos veículos afectos a cada transporte ou a cada turno. Quanto ao veículo referido em 5), disse estar certo que, à data dos factos, o mesmo estaria equipado com sistema de fixação da cadeira ao solo, revelando por sua vez desconhecer se, nessa mesma data, teria cinto de segurança/transporte para os pacientes transportados em cadeira de rodas, não só pelo facto de ser uma viatura mais antiga, mas também levando em consideração que a legislação em vigor à data não o impunha. Opinou no sentido de que a utilização do apregoado cinto que a mãe do menor possuía podia ter evitado o desfecho fatal ocorrido, tendo ainda assim mencionado que o ideal seria a utilização de um cinto de 4 apoios. Quanto à patologia do menor, revelou desconhece-la à data, sendo somente tido como mais um utente de mobilidade reduzida que se fazia transportar de cadeira de rodas. Questionado sobre o facto de o menor ser transportado nas condições em que foi, aventou a escassez de meios disponíveis, posto que nem todos os veículos estavam equipados com cinto de segurança/transporte para os pacientes transportados em cadeira de rodas (reiterando a não obrigatoriedade de o estarem), sendo insuficientes os veículos apetrechados com cinto para transportar todos os utentes nessa situação (até porque existiam transportes feitos em simultâneo de pacientes em tais condições, para destinos diversos, impossibilitando assim as condições ideiais para todos). De resto, indagado sobre se teria efectuado o transporte nos termos em que o arguido o fez, afiançou que não, ainda que colocando ênfase não no facto de o menor não ter cinto de segurança/transporte colocado, mas sim porquanto, não o tendo, não estar presente assistente ou acompanhante que prestasse auxílio ao longo do percurso, revelando ainda que, nesse caso, o condutor, não deveria ter feito o transporte em causa, devendo outrossim ter contactado a direcção a fim de providenciar pela disponibilização de outro veículo, devidamente equipado, ou pelo encaminhamento ao local de assistente que acompanhasse o menor ao longo do percurso e assim garantisse a sua segurança ou ao menos o auxiliasse para esse efeito.
Relativamente às declarações prestadas pelos arguidos, foram as mesmas ostensivamente imbuídas de um claro sentimento de consternação, o que se tem por resultante do desconforto psicológico e tensão emocional sentidos como consequência do seu envolvimento (ao menos porquanto imputado) em ocorrência da qual resultou a perda de uma vida (situação esta exponencialmente agravada e mais perceptível no que toca à arguida, mãe do jovem falecido, sendo quanto à mesma palpável a sua emoção aquando da prestação das suas declarações, o que de igual modo sucedeu com o assistente (…), pai do referido jovem). Ainda assim, lograram ambos os arguidos prestar declarações de uma forma suficientemente serena, espontânea e eloquente. Atento o facto de ambos os arguidos serem, naturalmente, interessados no teor do desfecho da causa, cabe pautar o processo de apreensão das suas declarações com as devidas cautelas, ao que acresce que, em pontos chave, as mesmas foram contraditórias, apresentando assim os arguidos versões factuais totalmente incompatíveis entre si. Note-se que tal incompatibilidade das versões apresentadas não caberá em qualquer diversidade de perspectivas sobre os factos, eventualmente indutoras de alguma percepção menos rigorosa dos mesmos, na medida em que estamos não só perante factualidade que implica a intervenção activa de ambos (no essencial e entre outros pontos, segundo o arguido, a arguida ter-lhe-ia explicado que se havia esquecido do cinto de retenção à cadeira de rodas e, ainda assim, constatando que desse modo o transporte se efectuaria sem qualquer retenção do corpo do menor seu filho, ao que teria anuído; ao invés, afiançou a arguida que nenhum diálogo a tal respeito teve lugar, havendo-se a mesma limitado a deixar o menor junto do arguido, somente havendo presenciado a fixação da cadeira de rodas à própria carrinha de transporte, sem que houvesse qualquer diálogo a respeito da ausência de cinto de segurança ou de retenção, afiançando aliás que, caso se apercebesse de tal, nunca teria permitido que o transporte tivesse tido lugar), mas que igualmente, em razão da sua relevância e consequente insusceptibilidade de esquecimento, decerto não quedaria em versões tão extremadas e contraditórias entre si, afigurando-se assim evidente que algum dos arguidos faltou à verdade. De resto, não só acresce que, até na perspectiva leiga dos arguidos, tal factualidade reveste relevância decisiva no caso, o que naturalmente tem o condão de potenciar a procura, mediante apresentação de uma versão falsa ou deturpada dos factos, de enjeitar a sua responsabilidade e de a atribuir, consequentemente, ao(à) co-arguido(a), realçando-se ainda a circunstância de que somente os co-arguidos estariam ali presentes, inexistindo assim qualquer substracto factual oriundo de outro meio probatório que permita se reforce ou enfraqueça qualquer uma das versões apresentadas.
Concretizando, a quase totalidade dos factos resulta demonstrada em razão de prova produzida a respeito de forma pacífica, sendo assim destituída da necessidade de maiores considerações a respeito. Efectivamente, a prova documental, pericial, por declarações dos arguidos e assistente e testemunhal mostram-se consentaneamente conducentes à demonstração dos factos vertidos nos pontos 1) a 20), 23), 27) a 47) e a). Não obstante, aquela que se mostra descrita nos pontos 3), 4), 7) a 9) e 23) merece algumas precisões.
Ora, os pontos 3) e 4) não oferecem dúvidas, nos termos em que se encontram descritos, idênticos aos constantes da peça acusatória para a qual o despacho de pronúncia remete, cabendo ainda assim a precisão que dessa descrição não resulta que o cinto em causa tivesse alguma utilidade para o transporte em veículo rodoviário. De facto, daí nada se retira além de que a médica fisiatra e a fisioterapeuta do menor falecido (Dr.ª … e) aconselharam aos pais do mesmo à aquisição de cinto de retenção, para uso por aquele quando transportado em cadeira de rodas. Assim, de tal descrição factual não se pode concluir nada mais que isso, sendo inadmissível extrapolar ou interpretar tais factos no sentido de que o uso do cinto fosse também aconselhado para o transporte rodoviário. É apenas com esta reserva que tais factos devem ser atendidos. Enquanto consequência lógica disto mesmo, cabe precisar o consignado nos pontos 7) a 9), na medida em que não se pode daqueloutros factos retirar que, tendo a arguida esquecido o cinto, conforme resulta do ponto 7), o que aliás foi confirmado pelo arguido, tal como o próprio declarou, cf. ponto 8), se possa concluir que a arguida, ao concordar com o transporte do menor, o estivesse a fazer com conhecimento de que inexistia no veículo qualquer sistema de retenção à cadeira de rodas, ou melhor, que inexistisse cinto de segurança ou de transporte, o que se conclui que a mesma desconhecia no ponto b), que se apreciará infra. Quanto ao ponto 23), a própria arguida revelou estar ciente da essencialidade de o menor ser devidamente acomodado, ou melhor, da necessidade de utilização do sistema de retenção da cadeira de rodas do seu filho (cinto de segurança/transporte, bem como de retenção da cadeira de rodas ao piso da viatura), daqui não se podendo retirar, naturalmente, que soubesse que tal não estaria a ser feito na data dos factos. De resto, referiu a mesma entender ser tal conhecimento elementar até para qualquer pessoa, sendo mais ainda para um profissional como confiou ser o arguido. Finalmente, quanto aos valores apurados e dados como provados no ponto 29), levou-se em devida consideração a factura de fls. 420, cuja data de emissão não se nos afigura relevante, salientando-se ainda o facto de que os valores peticionados estão de acordo aqueles que se mostram fixados na tabela de preços do SNS, atendendo aos actos praticados (que se mostram, no essencial, descritos nos pontos 18) e 28)).
Maior aprofundamento merece a motivação concernente aos factos vertidos nos pontos 21), 22), 24) a 26) e b) a f). Ora, quanto aos factos não provados, que conduzem necessariamente à não responsabilização criminal da arguida, porquanto fazendo quedar na não demonstração de que a arguida se apercebesse do facto de que o menor estaria a ser transportado sem as mínimas condições de segurança, vejamos. É perfeitamente legítimo entender-se que, havendo sido contratualizado o transporte do menor por entidade especializada para tanto e por profissionais da área, se confie que o mesmo se faça em condições de segurança, tal como a mesma referiu, não incumbindo à arguida, destarte, qualquer obrigação de fiscalizar o modo como tal transporte era efectuado. Afigura-se até evidente que o motivo subjacente a tal contratualização seja mesmo esse, o de garantir um transporte seguro do menor, desresponsabilizando-se a mãe do mesmo da obrigação de a garantir ou assegurar, posto que, mediante contrato, transferiu essa mesma responsabilidade a entidade terceira, ademais de reconhecida competência para tanto. De resto, não se aceita que se responsabilize a arguida pelo facto de nenhum sistema de retenção do corpo do menor haja sido utilizado aquando do seu transporte, pelas seguintes razões: (i) o cinto de retenção que esqueceu na data em apreço não serviria convenientemente para o efeito, tendo aliás as pessoas que a aconselharam a adquiri-lo e usá-lo no transporte em cadeira de rodas do menor afiançado isso mesmo, não se compreendendo, assim, como poderia a arguida estar tão erradamente convencida de que o mesmo seria igualmente para uso em transporte rodoviário, tal como o arguido e a testemunha (…) procuraram fazer crer (sendo igualmente certo, neste ponto, que o próprio arguido e a referida testemunha mencionaram que, mesmo com aquele cinto colocado, o menor, em caso de travagem brusca ou colisão, sempre correria o sério risco de embater com a cabeça na cadeira fixa que se encontrava diante de si, atenta a proximidade da mesma, podendo ainda realçar-se, se o descrito não bastasse, que tal movimento poderia ainda provocar lesões vertebrais graves, designadamente cervicais, tal como a testemunha … alertou), (ii) é perfeitamente legítimo que a arguida confiasse na competência dos condutores da CVP e na suficiência dos meios disponibilizados para tanto, conforme a mesma referiu, posto que, tratando-se de entidade conceituada e reconhecidamente competente para a prestação do serviço de transporte em causa, ficaríamos impelidos a questionar acerca daquilo para que afinal serviriam, caso se entendesse que caberia à arguida facultar os meios para efetuar o transporte do menor em segurança, sendo até inusitado crer que a arguida pudesse sequer desconfiar do amadorismo com que o transporte vinha sendo feito, conforme agora se constata que sucedia, (iii) de resto, ainda que dúvidas subsistissem, o que não sucede, afigura-se que tal impasse reclamaria aplicação do princípio probatório in dúbio pro reo, relativamente ao imputado facto de que a arguida tivesse encetado diálogo com o arguido a respeito da falta de cinto de retenção e posteriormente anuído no transporte do menor sem a sua colocação, não só em razão do caricato de tal situação mas também atendendo à própria descrição feita pelas testemunhas (…) acerca do empenho e dedicação empregues pela arguida em tudo o que se relacionasse com o seu filho, atendendo até à por demais gritante ausência de segurança com que o transporte acabou por ser feito, permitindo que um menor sem capacidade sequer de se segurar pelas suas próprias mãos (sendo destarte, permita-se a expressão, um peso morto, posto que tratando-se de um corpo praticamente inerte) pudesse ser transportado sem qualquer sistema de retenção colocado. Tudo somado, não subsistem dúvidas ao julgador em dar por não provados os factos vertidos nos pontos b) a f).
Já no que se refere à matéria de facto vertida nos pontos 21), 22) e 24) a 26), veja-se que até a testemunha (…) (recorde-se, coordenador da área de emergência da CVP) manifestou, aquando do seu depoimento, o entendimento de que o arguido não deveria nunca ter efectuado o transporte em causa, devendo outrossim contactar os serviços administrativos da CVP de modo a que fosse disponibilizada viatura apetrechada com cinto de segurança/transporte (com o que se concorda) ou, pelo menos, para que diligenciassem pelo encaminhamento para o local de funcionário(a) que assistisse o menor no percurso a efectuar (o que já nos suscita dúvidas, afigurando-se-nos insuficiente para garantir a segurança do menor). É certo que à data inexistia regulamentação específica quanto ao transporte de doentes que impusesse o uso de cinto de segurança/transporte em casos como o presente (veja-se que à data vigorava o Regulamento de Transporte de Doentes, aprovado pela Portaria n.º 1147/2001, de 28.09, alterado pelas Portarias n.º 1301/A/2002 e 402/2007, omisso a tal respeito), passando a existir, curiosamente, escassos dias depois, mais concretamente no dia 15.12.2014, data em que foi publicada a Portaria n.º 260/2014, que aprovou o novo Regulamento de Transporte de Doentes. Ainda assim, atendendo à Directiva 2007/46/CE, transposta para o ordenamento jurídico português através do Decreto-Lei n.º 16/2020, de 12.03.2010 (que aprovou o Regulamento que estabelece o quadro para a homologação CE de modelo de automóveis e reboques, seus sistemas, componentes e unidades técnicas), no seu Anexo X, parte III, ponto 19, era já imposto que, em veículos acessíveis em cadeira de rodas, cada lugar de cadeira de rodas estivesse equipado com um sistema de retenção que combinasse um sistema de retenção da cadeira de rodas e um sistema de retenção do utilizador da mesma (nota W5). Não obstante o supra exposto, podendo até entender-se haver falhado a cabal transposição da Directiva em causa para a ordem jurídica interna, porquanto não transposta mediante criação de norma regulamentar com previsão idêntica à aludida nota W5 da Directiva 2007/46/CE, a verdade é que a conduta do arguido, independentemente da existência de norma que impusesse outra, é de gritante irresponsabilidade e amadorismo (poder-se-á ainda acrescentar, para reforçar a ideia deste mesmo amadorismo, que a própria conduta posterior do arguido, descrita nos pontos 15), 16) e primeira parte do ponto 17), revela isso mesmo, como que uma incapacidade para tomar decisões responsáveis e sensatas; de facto, estamos em crer ser do conhecimento geral que não devemos deslocar um corpo acidentado, a não ser que fortemente convictos da superficialidade das lesões, estamos em crer; ora, em primeiro lugar, atentas as lesões que o menor sofreu efectivamente, temos necessariamente que concluir que as dores que estaria a sofrer naquele momento seriam de enorme intensidade e, considerando que o menor era perfeitamente capaz de se expressar, decerto estaria naquele momento a expressar toda essa dor e sofrimento que a fractura dos dois fémures tem que provocar; torna-se assim incompreensível que a primeira acção do arguido tenha sido acomodar o menor na cadeira de rodas para o deixar mais confortável, segundo ele; pior, após conferir-lhe o aludido conforto, a primeira ideia que surgiu ao arguido foi a de tentar o contacto com a mãe do menor, o que é igualmente incompreensível; de facto, sendo o arguido um profissional da área da saúde, tinha obrigação de saber ler a situação correctamente, conduzindo de imediato o menor ao Hospital ou, o que nos parece a solução mais avisada, chamar equipa médica ao local para acorrer à situação, presumindo-se, aliás, que o arguido tivesse facilidade em encetar tal tipo de contacto para uma célere intervenção, dada ser essa a própria área em que labora; ao invés, decidiu, deixar o menor confortável e ficar a aguardar, de braços cruzados, pela chegada da mãe, como que personalizando nela uma solução para a situação por si criada). Entende este Tribunal que não pode, de todo, ser a mencionada lacuna legal susceptível de fazer quedar a conduta do arguido na sua irresponsabilidade. De facto, e permitindo-se breve consideração jurídica, para um crime negligente como aquele que se aprecia in casu, têm desde logo que se verificar três pressupostos (entenda-se, para a responsabilização do arguido), quais sejam: (i) a existência de deveres de cuidado, (ii) a desatenção ou quebra desses mesmos deveres de cuidado, (iii) exigibilidade do cumprimento desses deveres de cuidado. Ora, ainda que inexistisse à data substracto normativo que obrigasse legalmente o arguido a acomodar o menor em condições de segurança, mais concretamente colocando-lhe cinto de segurança, a verdade é que o mesmo se encontrava a prestar serviço de transporte, sendo a sua obrigação mais elementar a de transferir a pessoa do ponto A ao ponto B, necessariamente em condições de segurança. Bem vistas as coisas, o transporte de mercadorias implica já a responsabilidade do transportador pela não destruição ou sequer deterioração da coisa transportada, afigurando-se ser uma inadmissível aberração jurídica entender-se que inexista responsabilidade quando se trate de um ser humano a ser transportado, colocando em causa bens jurídicos de valor mais precioso nesta e em qualquer sociedade que se preze digna desse nome. Ora, no caso, o bem jurídico colocado em crise consiste na própria vida humana, o mais precioso que se é possível vislumbrar, o qual foi colocado em perigo (abstraindo agora do facto de tal vida humana se haver efectivamente perdido) mediante uma actuação que se tem por, no mínimo, absurda, de tão descuidada (suscitando até se cogitasse a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido para uma conduta grosseiramente negligente, abstendo-se o Tribunal de o fazer tão somente em razão da ausência de verdadeira norma legal que impusesse, de forma clara e inequívoca, os deveres de cuidado que o arguido não tomou). Não obstante o sobredito, independentemente da ausência de regulamentação específica, como já se referiu, a verdade é que se encontrava contratualizado serviço de transporte do falecido menor, estando o arguido, por sua vez, obrigado a prestá-lo (mediante contrato de trabalho, com contrapartida remuneratória), pelo que se deve entender que estaria obrigado e empregar os seus esforços e um mínimo de diligência nessa prestação, o que não fez. Enfim, o arguido decidiu-se a acomodar um menor, que sabia incapaz sequer de se segurar na cadeira em que foi colocado, sem diligenciar minimamente pela sua segurança, não colocando cinto de segurança (porque inexistente), não diligenciando pela disponibilização de viatura suficientemente apetrechada de equipamento de retenção ou sequer pela assistência de funcionário, ou sequer, que se entende de um mínimo de bom senso (decerto diferente daquele a que se referiu a testemunha …), pela recusa em efectuar o transporte naquelas condições. Aceita-se que o arguido pudesse não ter previsto o desfecho trágico da sua conduta incauta, sendo certo, porém, ser manifesto que, ao actuar como actuou, não empregando um mínimo de cuidado na realização do transporte de uma pessoa que estava contratualmente obrigado a transportar, posto que permitiu que o mesmo se efectuasse de forma nem sequer admissível quando tratamos de mercadoria perecível, não observando a mais elementar prudência e cuidado de que era evidentemente capaz de adoptar e que deveria ter adoptado, tudo para impedir o resultado trágico verificado, tem-se naturalmente por demonstrada a factualidade vertida nos pontos 21), 22) e 24) a 26). “.


3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição):
Enquadramento Jurídico-Penal

Tendo sido apurados os factos, importa agora proceder ao enquadramento jurídico-penal dos mesmos. Para que um agente possa ser responsabilizado jurídico-penalmente, tem que praticar um facto típico, ilícito e culposo.
Do Crime de Homicídio por Negligência em Especial
Desde já se diga, em jeito de declaração de princípio, que a vida humana é inviolável, como estabelece o artigo 24.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), constituindo esse direito à vida um dos direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos constitucionalmente consagrados, como decorre da sua inserção sistemática no texto constitucional português, com as garantias daí inerentes previstas na Lei Fundamental, desde logo as consagradas nos artigos 16.º, 18.º e 19.º da CRP.
O direito à vida é o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados. É, logicamente, um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos das pessoas. Ao conferir-lhe uma protecção absoluta, não admitindo qualquer excepção, a CRP erigiu o direito à vida em direito fundamental qualificado. O valor do direito à vida e a natureza absoluta da protecção constitucional traduz-se no próprio facto de se impor mesmo perante a suspensão constitucional dos direitos fundamentais, em caso de estado de sítio ou de estado de emergência (artigo 19.º) e na proibição de extradição de estrangeiros em risco de serem condenados a pena de morte (artigo 33.º, n.º3)[3].
O direito à vida significa, primeiro e acima de tudo, direito de não ser morto, de não ser privado da vida, sendo expressões deste direito, tipicamente, a proibição da pena de morte (n.º 2) e a punição do homicídio (artigos 131.º e seguintes do CP). O direito à vida impõe-se contra todos, perante o Estado e perante os outros indivíduos. No que respeita ao Estado (e aos poderes públicos em geral), ele implica: a) não poder dispor da vida dos cidadãos, a qualquer título que seja; b) obrigação de proteger a vida dos cidadãos contra ataques ou ameaças de terceiros; c) dever de se abster de acções ou da utilização de meios que criem perigo desnecessário ou desproporcional para a vida dos cidadãos (v.g. utilização de armas de fogo contra manifestações). No que diz respeito aos outros indivíduos, o direito à vida, além de proibir qualquer atentado contra a vida de outrem, pode em certas circunstâncias legitimar um dever de socorro ou de auxílio a quem se encontrar em perigo de vida (artigo 200.º do CP).
Face à nossa Lei, a protecção penal da violação do direito fundamental à vida, contra qualquer atentado contra a vida de outrem, está prevista nos artigos 131.º a 142.º do CP.
No que para aqui especialmente releva, prevê o artigo 137.º, n.º 1, do CP, que: «Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
Numa primeira abordagem, deve dizer-se que este tipo de ilícito exige, para a sua verificação, que alguém cause a morte de uma pessoa em consequência de uma conduta negligente do agente.
Há homicídio involuntário, negligente ou culposo quando o agente causa a morte de alguém, por ter omitido a cautela, a atenção ou a diligência ordinária, ou especial, a que esteva obrigado, em face das circunstâncias, sendo-lhes exigível na situação concreta em que se encontrava um comportamento atento e cauteloso[4].
Dogmaticamente, o crime de homicídio configura um crime material ou de resultado (por oposição aos crimes formais ou de mera actividade) e, bem assim, configura um crime de dano ou de resultado – violação (por oposição a crimes de perigo ou de resultado-perigo), pois que a sua verificação depende da ocorrência de um certo resultado, que é a morte de uma pessoa, e é, consabidamente, de execução não vinculada, pois que cai no seu âmbito de protecção normativo qualquer conduta, activa ou omissiva, causal do resultado morte.
Por outro lado, como estamos face a um crime negligente, o tipo funciona como tipo aberto em que a lei apenas descreve uma parte dos elementos do tipo e a outra parte mostra-se remetida para a integração judicial. Assim, a lesão da vida de outra pessoa (o resultado compreendido no tipo) terá de ser objectivamente imputado à conduta do agente, o que supõe, por sua vez, a violação de um dever objectivo de cuidado (enunciado na referência ao cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado) com o que se coloca a questão da existência de tal dever, da sua medida e da relação causal que tem de existir entre a sua violação e o resultado produzido.
O tipo de ilícito objectivo não apresenta dificuldades de monta no ilícito típico em questão nos casos como o dos autos, o qual se traduz em que uma pessoa cause a morte de outra pessoa.
Ao nível do tipo de ilícito subjectivo, que exige que aquela conduta do agente que causa a morte seja negligente, a doutrina vem enfrentando acesas controvérsias e, por isso, se impõe cuidado jurisprudencial acrescido no esboço do seu quadro normativo-teleológico.
Ao nível do ilícito típico negligente a violação do dever objectivo de cuidado não é mais que a violação de exigências de comportamento tipicamente especificados, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objectivo de ilícito.
Assim, o tipo de ilícito do facto negligente pressupõe o preenchimento de vários elementos cumulativos, traduzidos na possibilidade de reconhecimento do perigo de verificação do tipo, in casu do tipo de homicídio, na actuação idónea a produzir o resultado típico (morte de uma pessoa) pela inobservância do cuidado objectivamente requerido e a produção do resultado imputável ao comportamento descuidado. Preenche-se, pois, esse tipo de ilícito pelo comportamento incompatível com aquele que era objectivamente devido numa situação de perigo para a vida de pessoas, de modo a evitar o resultado morte. A causação da morte de uma pessoa é elemento indispensável à verificação deste tipo de ilícito, mas necessário é ainda que sobre o agente recaia um dever objectivo de cuidado e que este não o tenha cumprido e que essa violação tenha conduzido à produção do resultado típico. Mas é ainda necessário “que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado de capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente”.
Caso tal tipo de ilícito se encontre preenchido pela conduta do agente, é essencial, então, aquilatar da possibilidade (enquanto poder e capacidade) de cumprimento do «mandato geral de cuidado e previsão» (como é apelado pelo autor acima mencionado) por parte o arguido, fazendo intervir aqui a luz que dimana das suas capacidades individuais e projectadas na sua inteligência, actividade profissional, formação e experiencia de vida.
Coligida a factualidade apurada, resulta inequívoca a prova de que o menor (...) faleceu e que esse óbito foi consequência directa e necessária de lesões directamente causadas na sua saúde e corpo, em razão do já descrito acidente.
Mas a questão a debater, nesta sede, prende-se com a análise da conduta dos arguidos, a fim de apurar se a(s) mesma(s) se pode(m) considerar negligente(s). No facto negligente, a linha de fronteira entre acção e omissão assume contornos de complexidade acrescida, porquanto estes já têm na integração do seu tipo a omissão do cuidado objectivo devido.
Ora, numa primeira, senão mesmo superficial observação da factualidade dada como provada, resulta patente a falta de menção a uma qualquer falta de cuidado da arguida, a uma imperícia ou displicência, a uma qualquer violação de deveres que se lhe impusessem enquanto mãe, ou a um qualquer tipo de descuido ou acto leviano.
Cumpre assim concluir que não resultam provados factos que consubstanciem a prática, por parte da arguida, do crime de homicídio por negligência ora em apreço e pelo qual vem pronunciada.
Pelo exposto, importa concluir que a arguida (...) deverá ser absolvida da prática do crime de homicídio por negligência, pelo qual vem pronunciada, com as legais consequências.
Diferente solução se impõe quanto ao arguido (...).
Com efeito, atenta a factualidade dada como provada, deve concluir-se que o arguido, da forma como actuou, nos termos supra apurados, foi o único e exclusivo causador das lesões sofridas pelo menor (...), lesões essas que posteriormente consubstanciaram causa adequada do seu falecimento, desde logo dado que o arguido desrespeitou o dever objectivo de cuidado que sobre si impendida como condutor de veículo de transporte de pacientes, entre os quais de mobilidade reduzida como era o caso do menor, não diligenciando pela sua acomodação segura no interior da viatura que dirigia, incrementando, consequentemente, a probabilidade de produção do resultado danoso, que, malogradamente, veio a concretizar-se, sendo-lhe imputável, a título de negligência, a morte de (...), pois que de tais factos se extrai a violação de regras elementares de segurança e que o decesso da vítima teve como causa as lesões que lhe foram provocadas pelo infortúnio da perigosa actividade de condução estradal mas, acima de tudo, pela indevida acomodação do menor no interior da viatura, permitindo que aí tivesse sido acomodado sem qualquer implementação de um meio de retenção que permitisse a imobilização do menor caso alguma manobra mais brusca tivesse lugar, tal como veio a suceder.
Parece ser de elementar percepção que, padecendo o menor da patologia que impedia qualquer reacção ao movimento do seu corpo, porquanto não teria força muscular para sequer se segurar, o que o arguido bem sabia, não se mostra minimamente admissível que não diligenciasse pela implementação de uma forma de retenção do seu corpo, que evitasse a sua queda ou embate no interior da viatura, tal como veio, infelizmente, a suceder.
De resto, à luz de um comportamento lícito alternativo, perante tais condições, o que se impunha a um profissional minimamente prudente e zeloso, na situação em que o arguido se encontrava investido, seria diligenciar pela disponibilização de veículo que reunisse condições de segurança ou, caso se não almejasse esse intento, em pura e simplesmente não realizar o transporte do menor, dada a total e gritante ausência de condições de segurança para tanto, tendo assim, ao realizar o transporte, actuado em desrespeito flagrante do dever objectivo de cuidado a que estava colimado.
Efectivamente não desculpabiliza a conduta do arguido o facto de o mesmo não ter tido responsabilidade na manobra de travagem que efectuou, que se aceita não ter efectivamente tido, desde logo porque das duas uma, ou deveria estar a conduzir outro veículo, apetrechado com o devido equipamento de retenção, ou pura e simplesmente não deveria estar a transportar o menor.
Por tudo o exposto, deve concluir-se pela violação do dever objectivo de cuidado que impendia sobre o arguido e, pelas lesões provocadas pela posterior manobra de travagem que constituiu, em razão de nexo causal apreciado à luz da teoria da causalidade adequada corrigida com a conexão do risco, a causa do evento morte do menor (...), nos termos supra referidos.
Portanto, realizada a produção de prova em sede de audiência de julgamento, deve concluir-se que resultou apurado que o evento danoso é imputável única e exclusivamente à atitude descuidada do arguido, dado que o mesmo, conforme já se enfatizou, não tomou as precauções necessárias para evitar tal resultado, antes tendo violado as mais elementares normas de segurança na acomodação do menor no interior da viatura que conduzia, do que resultou a morte do mesmo.
Com efeito, podemos mesmo dizer que o arguido introduziu um risco que extravasa a actividade permitida de condução e de transporte em viatura automóvel, sendo por isso um risco proibido, no desenvolvimento do qual, por sua vez, veio a ocorrer o resultado danoso que a imposição daquelas normas pretendia justamente evitar. Ou seja, vale por dizer que a conduta inobservante do arguido fez incrementar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido, devendo, assim, reconhecer-se no processo causal que conduziu ao embate da vítima no interior da viatura, a concretização do referido risco proibido introduzido pela conduta negligente adoptada pelo arguido, nos termos supra apurados.
Por outro lado, não se verificam, in casu, os pressupostos de qualquer causa de exclusão da ilicitude.
No entanto, conforme já se deixou atrás assinalado, para que a conduta do arguido seja objecto de censura penal, não basta a mera realização do tipo negligente, mas também que tal resultado tivesse sido a expressão de uma atitude pessoal de descuidado revelada no facto.
Recorrendo à dogmática penal, são, pois, elementos necessários à formulação daquele juízo de culpa: a imputabilidade do arguido; a sua consciência de ilicitude; e a não intervenção do elemento negativo traduzido na ocorrência de causas de desculpação.
Quanto ao primeiro aspecto, deve dizer-se que a emissão de um juízo de censurabilidade deriva da capacidade pessoal do arguido de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o evento danoso causal, apreciadas subjectivamente no plano estritamente pessoal do agente.
Nesta sede, importa referir que, face aos elementos disponíveis, a capacidade pessoal do arguido não é inferiror, antes resultou que o arguido se mostrou como uma pessoa mediamente instruída, aliás, tratando-se até de um profissional na actividade de transporte de pessoas com mobilidade reduzida, estando assim necessariamente ciente das obrigações que sobre ele impendem como condutor profissional, sendo, destarte, exigível uma diligência de actuação mais adequada à condição de condutor de um veículo automóvel, assim como um extremado dever de cuidado.
Quanto à consciência da ilicitude, deve dizer-se que a mesma se afere na medida em que o agente deva conhecer as medidas de cuidado objectivamente devidas, o que no caso, como já acima se referiu, também se verifica, conquanto à luz da perspectiva paralela do leigo.
Por fim, deve outrossim dizer-se que não concorrem in casu quaisquer causas de exclusão da culpa, antes existindo capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado pelo agente, nos termos que se deixaram atrás descritos.
Donde se conclui, ainda, que a conduta do arguido, além de ser típica, foi outrossim ilícita e culposa, na sua vertente negligente, devendo, assim, ser punível.
Conclui-se, assim, que o arguido (...) praticou um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 15.º, al. b) e 137.º, n.º 1, ambos do CP, pelo que a sua actuação merece a emissão de um juízo de censura penal.
IV – Da Escolha e Medida da Pena
Feito o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto dada como provada, importa, agora, determinar qual a natureza e a medida da pena a aplicar à arguida (na determinação da pena aplicável, deve o juiz socorrer-se dos critérios que o legislador penal consagrou nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do CP).
A operação a efectuar consiste na construção de uma moldura legal de prevenção geral, entendida na sua modalidade positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária enquanto forma de proceder à estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma violada, que nos dá o limite mínimo da pena a aplicar. A culpa, por sua vez, irá dar-nos o limite máximo inultrapassável das exigências da prevenção – directamente relacionado com a preservação da dignidade da pessoa humana. Assim, em caso algum poderá a pena ultrapassar a medida da culpa.
De acordo com o ensinamento do Professor Jorge de Figueiredo Dias[5], a medida concreta da pena é determinada em função das particulares e concretas exigências de prevenção especial.
Da Indicação da Medida Abstracta da Pena
Em termos abstractos, o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos artigos 148.º, n.º 1 e 15.º, al. b), ambos do CP, é punido com pena de prisão até 1 (um) ano ou com pena de multa até 120 (cento e vinte) dias.
Da Escolha da Natureza da Pena
No que toca à escolha da pena, sempre que o crime seja punível em alternativa com pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, a lei penal dá preferência à aplicação de penas não privativas da liberdade, sempre que as mesmas realizem de forma adequada e suficiente as necessidades da punição, ou seja, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigos 70.º e 40.º, n.º 1, ambos do CP).
Com efeito, a norma ínsita no artigo 40.º do CP apresenta, nas palavras de Anabela Miranda Rodrigues[6], «uma forma plástica de um programa político criminal, cujo conteúdo e principais proposições cabe ao legislador fixar, condensando em três proposições fundamentais – a de que o Direito Penal é um Direito de protecção de bens jurídicos, que a culpa é tão-só um limite da pena, mas não o seu fundamento, e de que a socialização é a finalidade da aplicação da pena».
Já o artigo 70.º do CP, segundo o Conselheiro Maia Gonçalves, consubstancia «o critério de orientação para a escolha, quando ao crime são aplicáveis pena privativa ou pena não privativa de liberdade, e traduz vincadamente o pensamento legislativo do Código de reagir contra penas institucionalizadas ou detentivas, sempre que os fins das penas possam atingir-se por outra via»[7].
As finalidades das penas (na previsão, na aplicação e na execução) são, assim, na filosofia da lei penal portuguesa expressamente afirmada, a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção dos bens jurídicos vai ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores, ou seja, de prevenção geral. A previsão, a aplicação ou a execução da pena devem prosseguir igualmente a realização de finalidades preventivas, que sejam aptas a impedir a prática, pelo agente, de futuros crimes, ou seja, uma finalidade de prevenção especial.
No caso concreto, tomou-se em consideração, desde logo, a ausência de antecedentes criminais do arguido (cf. certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 634), o que leva a crer inexistirem particulares exigências ou necessidades de prevenção especial. Posto isto, considera este Tribunal que a aplicação ao arguido (...) de uma pena não privativa da liberdade ainda se mostra perfeitamente adequada e suficiente para acautelar as necessidades de punição aqui reclamadas, razão pela qual este Tribunal opta pela aplicação de uma pena de multa.
Da Determinação da Medida Concreta da Pena de Multa
Dispõe o artigo 71.º, do CP, sob a epígrafe «Determinação da Medida da Pena», que:
1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua condição económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Por sua vez, dispõe o artigo 47.º, n.º 1 do CP que «A pena de multa deve ser fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias.»
Vários modelos têm surgido para solucionar a questão de saber a forma como estas entidades distintas (culpa e prevenção) se relacionam no processo unitário da medida da pena. Face ao artigo 40.º do CP, que veio tomar posição expressa, quanto à questão dos fins das penas, afigura-se-nos inquestionável que é o modelo da «moldura da prevenção», proposto por Jorge de Figueiredo Dias[8], aquele que melhor se adequa ao espírito desta norma. Segundo aquele modelo, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada por considerações de prevenção geral positiva (isto é, prevenção enquanto necessidade de protecção de bens jurídicos), que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, fornecendo uma «moldura de prevenção», que, por sua vez, fornece um quantum de pena, que varia entre um ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena, sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo – ligado ao mandamento incondicional de respeito pela dignidade da pessoa do agente).
Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva (entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável) podem e devem actuar, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade[9].
Tendo presente o modelo adoptado, importa infra eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos factores da medida da pena, mormente os referidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do CP.
Há assim que ponderar:
Contra o arguido depõem:
- O grau de ilicitude dos factos, que se afigura elevado, atendendo ao modo como os mesmos foram praticados pelo arguido, nas apontadas circunstâncias (neste ponto, ainda que inexistisse à data norma legal que regulamentasse especificamente a conduta omitida pelo arguido, certo é que violou as mais elementares regras de cuidado, acrescendo o facto de se tratar de profissional na área de transporte de pacientes, entre os quais de pessoas como mobilidade reduzida, sendo certo que a sua actuação descuidada se revela violadora das mais básicas regras da prudência);
- as consequências dos factos revelam-se por demais atendíveis, posto que, sem necessidade de mais palavras, se perdeu uma vida humana…;
A favor do arguido militam:
- a negligência, como inconsciente que é, encontrando-se no expoente mínimo do seu grau de culpa negligente;
- as necessidades de prevenção especial, que se mostram reduzidas, na medida em que o arguido não regista quaisquer antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal;
- As suas condições pessoais e sociais, que resultaram provadas e aqui se dão por integralmente reproduzidas, demonstrativas de o arguido se encontrar familiar, laboral e socialmente integrado.
Sopesados estes elementos, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido, pela prática de um crime de homicídio por negligência, de uma pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa.
Quanto à fixação do quantitativo diário da multa, estabelece o artigo 47.º, n.º 2, do CP, «que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5,00 e € 500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e os seus encargos pessoais».
Assim, e atenta a situação económico-financeira (cf. pontos 30) a 39)) do arguido (...), afigura-se a este Tribunal como ajustado fixar a taxa diária no montante de € 6,00 (seis euros), para a pena de multa que lhe vai aplicada.
Tudo visto e ponderado, o Tribunal considera justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido (...), pela prática de um crime de homicídio por negligência, a pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante total de € 900,00 (novecentos euros).
V - Do Pedido de Indemnização Civil
Importa agora apreciar o pedido de indemnização civil, formulado pelo demandante Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E. contra a seguradora Ageas Companhia de Seguros SA, ora demandada.
Dispõe, nesta sede, o artigo 129.º do CP, que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil». Assim, conclui-se que a reparação de perdas e danos assume natureza civil, pese embora o facto de o pedido cível dever ser deduzido na acção penal.
Em reforço deste entendimento, temos ainda o artigo 74.º, n.º 1, do CPP, que obriga a que o pedido de indemnização civil no processo penal seja formulado como no processo civil, e o artigo 84.º do mesmo diploma legal, que confere eficácia de caso julgado à decisão penal nos mesmos moldes em que a lei confere tal eficácia às decisões civis. Temos assim que, embora por força do princípio da adesão, a indemnização por perdas e danos emergentes da prática de um crime tenha, regra geral, de ser deduzida no processo penal e regulada nos seus termos, lhe são aplicáveis as regras da lei civil, quanto ao seu quantitativo e aos seus pressupostos.
Dever-se-á, por conseguinte, aplicar as regras constantes dos artigos 483.º, 562.º, 563.º e 566.º, todos do Código Civil (CC).
Estabelece o artigo 483.º do CC que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Terá o demandante, assim, para poder ser ressarcido, que mostrar preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, genericamente enunciados no artigo 483.º do CC. Em suma, para existir a responsabilidade civil por factos ilícitos, necessária se torna a presença cumulativa dos seguintes pressupostos:
Facto: facto voluntário do agente, facto objectivamente dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana, pois só um acto concebido desta forma poderá constituir suporte da aplicação das ideias de ilicitude, culpa e causa de produção de dano;
Ilicitude: categoria dogmática, que exprime, em termos formais, o carácter antijurídico do facto, e consiste na violação do direito subjectivo de outrem, quando reprovado pela ordem jurídica, ou na violação da lei que protege interesses alheios;
Nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante: para que o acto ilícito gere efeitos jurídicos é necessário que o agente tenha agido com culpa, entendida, em termos clássicos, como o nexo de imputação do facto ao agente lesante;
Dano: entendendo-se por dano a supressão ou diminuição de uma situação favorável, revista a mesma ou não, contornos patrimoniais;
● Nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano sofrido pela vítima: que se traduz na averiguação, do ponto de vista jurídico, de quando é que um prejuízo se pode qualificar como consequência de um dado facto, e exprimindo-se essa relação entre o acto ilícito e o dano por um conceito de teor normativo, vulgarmente designado como causalidade adequada.
No que respeita ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E., importa ainda transcrever o disposto no artigo 495.º, n.º 2, do CC:
«Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorrem o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência das vítimas».
Feito este enquadramento, importa, desta feita, indagar se no caso em apreço se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual ou aquiliana supra elencados, de forma a poder afirmar-se que o demandante tem o direito a ser indemnizado, e a demandada a correlativa obrigação de indemnizar.
Peticiona, nesta sede, o Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E. que a seguradora da entidade patronal do arguido (...), ora demandada, seja condenada a reembolsar tal instituição hospitalar pelas despesas em que incorreu com o tratamento prestado a (...), na quantia de € 10.166,11 (dez mil, cento e sessenta e seis euros e onze cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, desde a data de notificação do presente pedido até efectivo e integral pagamento.
Como questões prévias:
∙ não obstante o facto danoso ter ocorrido no dia 10.12.2014, a demandada somente ter sido citada em 16.12.2019 e o facto de o prazo de prescrição do direito à indemnização peticionada ser de 5 anos (concatenando o disposto nos artigos 498.º, n.º 1 n.º 3, do CC, 137.º, n.º 1 e 118.º, n.º 1, al. c), ambos do CP), a verdade é que tal prazo de prescrição se interrompeu no dia 07.05.2019 (atendendo ao teor de fls. 417 a 419 e o disposto no artigo 323.º, n.º 2, do CPP), posto que a não citação a breve trecho da demandada e a delonga na sua realização se não deveu a facto imputável ao demandante, mas sim e apenas à circunstância de a arguida haver requerido abertura de instrução.
∙ adianta-se o que vem exposto no ponto 28) (à data referida em 5), o veículo automóvel aí descrito circulava com seguro de responsabilidade civil válido, mediante contrato de seguro celebrado entre a entidade empregadora do arguido e a demandada Ageas – Companhia de Seguros SA, sob a apólice n.º 004511295337), no sentido de esclarecer que, ainda que as condutas que perfaçam o necessário preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil tenham sido perpetrados pelo arguido, atenta a sua qualidade de condutor de veículo segurado pela demandada, tal responsabilidade encontra-se transferida para esta.
Ora, neste domínio, deve referir-se que estes danos patrimoniais resultaram comprovados (nos termos consignados no pontos 18), 28) e 29) dos factos provados, desde logo por referência à prova documental junta aos autos e à qual já se fez a devida referência), razão pela qual, à luz do regime da responsabilidade extra-obrigacional acima exposta (nomeadamente, tendo presente o disposto no artigo 495.º, n.º 2, do CC), deverá condenar-se a demandada, conforme peticiona o demandante, porquanto as lesões causadas ao menor (...) foram consequência de uma conduta ilícita e culposa perpetrada pelo arguido (...), cuja actividade profissional estava a ser, aquando da prática dos factos, prestada para a entidade patronal CVP, cuja viatura disponibilizada ao arguido, por sua vez, se encontrava segurada pela demandada.
Deverá assim a Ageas – Companhia de Seguros SA, ora demandada, ser condenada no pagamento da quantia aqui reclamada pelo demandante Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E. (€ 10.166,11), a título de ressarcimento das despesas médicas incorridas no tratamento do menor falecido (...), conforme é de direito.
Sobre tal quantia, deverão ainda incidir os juros contados, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento, conforme peticionou o demandante.
Nesta conformidade, e sem necessidade de se expender outras considerações a respeito, deve concluir-se que o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E. deverá proceder totalmente, devendo a ora demandada Ageas – Companhia de Seguros SA ser condenada no pagamento do montante de € 10.166,11 (dez mil, cento e sessenta e seis euros e onze cêntimos), acrescido de juros contados, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.”.


3.2. Da apreciação do recurso interposto pela demandada “AGEAS – Companhia de Seguros, SA”
Considera a recorrente “AGEAS – Companhia de Seguros, SA”, nas suas alegações, que ao ser condenada na indemnização de 10.166,11 € o tribunal recorrido não apreciou devidamente os factos, nem deu cumprimento às normas aplicáveis ao instituto da prescrição, tendo dado como provados factos assentes em documentos impugnados.
Passemos então a apreciar as questões suscitadas e já apontada em II. ponto 2. deste Acórdão.

3.2.1. Da prescrição do direito de indemnização do “Centro Universitário Hospitalar Universitário do Algarve, EPE”
A recorrente sindicou o pedido de indemnização civil deduzido pelo “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE”, nos termos do artigo 403.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CPP.
Quanto à prescrição a recorrente refere, nas suas conclusões, ter sido citada para contestar o pedido de indemnização cível contra si deduzido em 16.12.2019 e a respetiva fatura dos serviços prestados apenas ter sido emitida em 24.6.2019.
Tendo o acidente, na origem do pedido de indemnização, ocorrido em 10.12.2014 e a criança vítima do acidente falecido em 12.12.2014, há muito teria ocorrido a prescrição da dívida expressa na fatura apresentada.
A recorrente justifica a sua posição pela aplicação ao caso do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, alínea c) e 137.º, n.º 1, 15.º, alínea b) do CP e 498.º do CC e, também, no artigo 3.º do Decreto-Lei 218/99 de 15.6.
Em relação ao momento em que se teria gerado o direito de indemnização do Centro referiu, a recorrente, ter ocorrido em 13.2.2014 e prescrito em 13.12.2017, muito antes de 7.5.2019 data do momento considerado pela decisão recorrida como de interrupção da prescrição.
O Tribunal recorrido, quanto à questão prévia da prescrição do direito do demandante, considerou ter o prazo de prescrição sido interrompido em 7.5.2019, data da entrada do pedido de indemnização cível no Tribunal Judicial da Comarca de Faro pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve (fls. 417 dos autos), atento o disposto no artigo 323.º, n.º 2 do CPP (quis dizer-se Código Civil), considerando-se, ainda, que a não citação da demandada, se não deveu a facto imputável ao demandante, mas sim apenas à circunstância de a arguida haver requerido a abertura da instrução.
Dos autos consta (fls. 379 a 385) ter sido deduzida acusação contra (...), condutor do veículo sinistrado, e (...), mãe da vítima, em 2.4.2019, pelo crime de homicídio negligente, previsto e punível pelos artigos 15.º, alínea b) e 137.º, n.º 1 ambos do CP (fls. 383), e ter sido ordenada a notificação da acusação ao Centro Hospitalar do Algarve, para efeitos do artigo 6.º, n.º 2 do Decreto-Lei 218/99 de 15.6.
O referido Centro acabou por ser notificado da acusação em 11.4.2019 (fls. 402).
Entretanto, em 26 de abril de 2019, a arguida (...) requereu a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º do CPP, admitida, pela Mm.ª Juiz de Instrução, em 15.7.2019 (fls. 475), que em 15.11.2019 proferiu despacho de pronuncia dos arguidos (...) e (...) (fls. 560).
Em 11.12.2019 o Tribunal Judicial da Comarca de Faro designou dia para julgamento dos dois arguidos pronunciados e considerou legal e tempestivo o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve contra “AGEAS - Companhia de Seguros, SA” (cf. fls. 568 verso).
Tanto a decisão recorrida como a recorrente lavram, contudo, em erro sobre o início do prazo de prescrição para a dedução do pedido indemnizatório devido pelo pagamento de despesas hospitalares e outras, decorrente do acidente de viação que motivou o falecimento da criança, em 12.12.2014, em relação a facto ocorrido em 10.12.2014[10].
Sendo o acidente, do qual resultou a morte da criança, o facto ilícito gerador da responsabilidade civil da seguradora, o pedido de indemnização civil, segundo o princípio da adesão, tem de ser deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil nos casos previstos na Lei, de acordo com o artigo 71.º do CPP.
As entidades hospitalares, quando sejam titulares de um direito de indemnização fundado na prática de um ilícito criminal, também têm de formular o respetivo pedido no processo crime.
A conjugação, por vezes difícil, entre as regras do processo penal e as normas do direito civil, levaram à criação do DL n.º 218/99 de 15.6, como direito especial. No artigo 6.º deste diploma pretenderam-se criar as condições para o exercício daquele pedido indemnizatório articulando-se os dois tipos de normas jurídicas.
Com esse objetivo, as entidades hospitalares, integradas no Serviço Nacional de Saúde, passaram a poder constituir-se partes civis no processo penal. No artigo 6.º, n.º 2 do mencionado DL n.º 218/99 de 15.6 estabeleceu-se o momento a partir do qual pode ser pedido o pagamento das despesas por cuidados de saúde prestados nesse âmbito, bem como o início do respetivo prazo prescricional.
Como se refere no acórdão do STJ de 21.11.2019, proferido no processo 11701/15.9T8LSR-A.L1.S2, o pedido de indemnização cível deduzido ao abrigo do princípio da adesão, só passou a ser suscetível de ser exercido pelo demandante, após este último ser notificado do despacho de acusação, nos termos do artigo 6.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 218/99 de 15.6, pois até tal se verificar, ocorre, no dizer do Acórdão, uma “interrupção contínua ou continuada do prazo”.
Só a partir de tal despacho de acusação ou, não o havendo, do despacho de pronuncia, é que a entidade hospitalar passa a poder formular o respetivo pedido de indemnização, a deduzir no prazo de vinte dias, após ter sido notificada de tais despachos, conforme os casos.
O despacho de acusação ou o de pronúncia são apontados, por aquele artigo 6.º, n.º 2, por serem os momentos em que o hospital demandante passa a poder exercer o seu direto de indemnização sobre a entidade seguradora do arguido/segurado depois de este ser acusado penalmente. Sobre o ponto de vista cível, tais despachos representam o momento a partir do qual o direito de indemnização pode ser exercido, por estar definida criminalmente a pessoa a responsabilizar e contra quem se pode deduzir indemnização com base na responsabilidade civil, pelo crime praticado, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CC.
A esse prazo acresce, para o início da prescrição, segundo o mesmo artigo 306.º n.º 1 do CC, que o demandante cível, depois de notificado oficiosamente dos mesmos, tenha, ainda, o prazo de vinte dias previsto no artigo 6.º, n.º 2 do Decreto-lei 218/99 de 15.6, para deduzir o respetivo pedido cível, em requerimento articulado e junto do Tribunal que o notificou de tais despachos.
O referido resultou de uma política criminal específica destinada a facilitar o pagamento de despesas cíveis aos hospitais do serviço nacional de saúde, pois apesar da origem da responsabilidade indemnizatória se fundar em ilícito criminal, o legislador não quis que o prazo para prescrição do direito indemnizatório ficasse sujeito à regra normal da prescrição dos crimes.
Resulta do exposto e em concordância com o expendido no Acórdão do STJ de 21.11.2019, já citado, que o direito à indemnização facultado aos estabelecimentos hospitalares, nos casos previstos no artigo 495.º, n.º 2 do CC, não está sujeito às regras de prescrição do procedimento criminal, quanto ao início do respetivo prazo e no concernente ao prazo geral dos créditos por serviços hospitalares previsto no artigo 3.º do Decreto Lei n.º 218/99 de 15.6.
O artigo 3.º do Decreto-lei 218/99 de 15 de junho, por outro lado, só é aplicável aos casos em que a prestação dos serviços hospitalares não está conexionada com os ilícitos criminais que estão na base da atribuição aos hospitais do pedido de indemnização previsto no artigo 495.º, n.º 2 do CC.
Do processo consta que a acusação foi deduzida contra os responsáveis criminais em 2.4.2019 e o despacho de pronúncia foi deduzido contra os mesmos em 15.11.2019.
O pedido de pagamento das despesas hospitalares, ocorrido em 7 de maio de 2019 (cf. fls. 417 dos autos), é, por isso, tempestivo, por não ter decorrido, naquela data, o prazo geral de prescrição por indemnização por dívidas hospitalares na sequência de acidente de viação ocorrido em 10.12.2014, como previsto no artigo 498.º, n.º 3 do CC.
Improcede, assim, a invocada exceção perentória de prescrição do direito de indemnização deduzida pela demandada quanto às peticionadas despesas hospitalares e outras deduzidas pelo demandante “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE”.

3.2.2. Da prova das despesas hospitalares apresentada pelo “Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE”
Para a recorrente não teria sido feita prova, em audiência de julgamento, suscetível de ter conduzido à sua condenação em relação às despesas hospitalares e outras apresentadas na fatura do “CHU Algarve, EPE”. Conclui, assim, que os pontos 28.º e 29.º da matéria dada como provada pela decisão recorrida o não deveriam ter sido.
O Tribunal a quo teria violado, com a posição adotada, os artigos 444.º e segs. do CPC, o artigo 3.º do DL n.º 218/99 de 15.6 e os artigos 498.º, n.º 3 do CC e 576.º do CPC.
Os fundamentos apontados pela recorrente estão em nítida oposição com o sentido e a interpretação dada pelos tribunais superiores portugueses sobre o motivo da dispensa do ónus de prova previsto no artigo 5.º do Decreto-lei n.º 218/99, como norma aplicável na cobrança de despesas hospitalares, derivadas de acidente de viação de que resultou ilícito criminal.
Com efeito, como foi referido nos Acórdãos do STJ de 15.10.2013[11] e de 1.4.2008[12], o artigo 5.º do Decreto-Lei, n.º 218/99, dada a dificuldade das entidades hospitalares em provarem o facto gerador do dano, por não disporem dos necessários elementos de prova, tal conduziu à dispensa do ónus da prova quando estão em causa acidentes de viação de que resultou ilícito criminal.
Em tais casos foi decidido caber ao credor/demandante tão só a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos hospitalares e outros, conexos com os cuidados de saúde prestados à vítima/segurado e a indicação do número da apólice de seguro.
Verificando-se uma situação de dispensa do ónus de prova, passa a caber à companhia de seguros, como ré devedora, a prova do facto negativo, ou seja, demonstrar, devido à inversão do ónus da prova, não se verificarem os tratamentos creditados na fatura apresentada pelo “CHU Algarve, EPE” ou não corresponderem ao montante peticionado[13].
No caso em apreciação o “CHU Algarve, EPE” apresentou a fatura constante de fls. 420 dos autos, com o respetivo número, data de emissão e a referência a “Episódio de internamento 14020377 de 10-12-2014 a 12-12.2014. Preço Unit.101666,11€ Causa: Queda SNS: 594460638”, tendo a mesma um carimbo do Centro Hospitalar- Serviço de Faturação, com a assinatura “Rosário”.
Não bastava, assim, à recorrente impugnar, em face de tal fatura, que se diz reportada aos preços dos serviços hospitalares tabelados, como o fez na contestação, o montante exigido. A demandada teria, também, de fazer prova que aqueles tratamentos e despesas não tinham sido efetuados e o preço global cobrado não correspondia ao montante devido.
Como se disse, atento o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 218/99 de 15.6, o “CHU Algarve, EPE” alegou e provou o facto gerador da responsabilidade da seguradora pelos encargos peticionados e no processo penal indicou o número da respetiva apólice que responsabilizava a seguradora pelos respetivos créditos.
A apresentação da fatura em causa acrescida dos demais elementos provados no processo penal, como a criança/vítima ter sido transportada para o hospital de Faro (ponto 17 da matéria provada) e submetida a cirurgia ortopédica (ponto 18.) e o referido mecanismo de inversão do ónus da prova, constante do artigo 5.º do DL n.º 218/99 de 15 de junho, não podiam deixar de conduzir à conclusão adotada pela decisão revidenda de que a recorrente devia ser, como foi, responsabilizada pelo pagamento da fatura impugnada, independentemente da prova produzida em julgamento, contrariamente ao alegado pela recorrente.
Termos em que se declara improceder totalmente o recurso interposto confirmando-se a decisão recorrida quanto ao pedido de indemnização em que foi condenada a recorrente, ou seja, no pagamento de 10.166,118 € (dez mil cento e sessenta e seis euros e onze cêntimos), acrescidos de juros à taxa legal contados desde a data da notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pela demandada “AGEAS – Companhia de Seguros, SA”, confirmando-se a sentença recorrida.
2. Custas nos termos legais (artigo 523.º do CPP).

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado e revisto pela relatora; tem voto de conformidade por parte do Exmo. Desembargador Adjunto, Dr.º João Martinho de Sousa Cardoso, que não assina, atento o atual estado de pandemia da Covid-19.
Évora, 24 de novembro de 2020.

Beatriz Marques Borges - Relatora
Martinho Cardoso
__________________________________________________
[1] Relativamente aos factos ora descritos nos pontos 15), 16) e na primeira parte do ponto 17), factos esses que não constavam da acusação e que ora se mostram consignados no elenco dos factos provados, dever-se-á ter em consideração o disposto no n.º 2 do artigo 358.º do CPP. Ora, segundo tal preceito legal, não tem aplicação o disposto no n.º 1 do mesmo artigo quando os factos em causa tenham sido alegados pela defesa. Neste sentido, veja-se, por todos, Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1129. Ora, in casu, tal factualidade foi trazida ao conhecimento do julgador pelos próprios arguidos, em consonância nos aspetos essenciais a eles concernentes, sem mais, o que torna a situação cristalina e destituída da necessidade de proceder sequer a qualquer alteração não substancial dos factos.
[2] Neste ponto, cabe tecer algumas considerações sobre a relevância e valia probatória das declarações de co-arguidos em juízo. No presente caso, conforme melhor se explicitará, das declarações de ambos resulta matéria factual incriminadora para o outro arguido, razão pela qual cumpre, desde já, abordar o sentido e alcance a atribuir ao disposto no artigo 345.º, n.º 4, do CPP, norma legal aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, e disciplinadora desta problemática. Relativamente ao caso em apreço, ambos os arguidos ((...) e (...)) prestaram declarações em audiência de julgamento, razão pela qual se entende que o referido preceito legal não tem aplicação ao caso. Ora, tendo ambos os arguidos prestado declarações em termos indiscutivelmente incriminatórios, de um para com o outro, não se escusando de responder nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 345.º do CPP, o n.º 4 do mesmo preceito não logra obter aplicação ao caso vertente. Ora, nesta sede, sufraga este Tribunal o entendimento de que tais declarações prestadas por co-arguidos não se englobam nas proibições de prova indicadas nos artigos 125.º e 126.º do CPP, sem embargo de o Tribunal dever estar atento às naturais limitações resultantes da posição do co-arguido, enquanto interessado, na valoração da informação que é prestada, à luz das regras da experiência comum e da livre convicção probatória, não resultando da lei nem do seu espírito que essa prova careça de ser corroborada por outra (conforme alguns autores vêm defendendo, dos quais se destaca Medina de Seiça, in O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Studia Iuridica – n.º 42, Coimbra Editora, 1999, pág. 206). Entende-se sim que as declarações de um co-arguido se regem pelos mesmos critérios emergentes do artigo 127.º do CPP, de investigação rumo à descoberta da verdade material, de livre apreciação, contradição e com plena extensão do princípio in dúbio pro reo (neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.09.2008, processo n.º 2044/08), até porque a lei não introduz qualquer nota de desconfiança, de prova menor, à valoração de tal meio de prova. Em síntese (e remetendo para as considerações doutamente tecidas no Acórdão n.º 133/2010 do Tribunal Constitucional, de 18.05.2010, bem como nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2007 e de 04.11.2009, respectivamente, processos n.º 3872/07 e 97/06.0JRLSB.S1), entende este Tribunal que no actual estado da questão da relevância probatória das declarações de um arguido como meio de prova desfavorável ao co-arguido, no nosso direito processual penal, a jurisprudência e a doutrina maioritárias dão resposta afirmativa à questão de saber se tais declarações podem ser valoradas, independentemente da por vezes invocada técnica da corroboração ou de qualquer exigência acrescida na sua apreciação, devendo sim tais declarações de um co-arguido contra outro reger-se pelos mesmos critérios emergentes do artigo 127.º do CPP, ainda que, e naturalmente, mereçam na sua apreciação e valoração uma cautela redobrada (conforme o já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.09.2008), cautelas por si só já ínsitas à aplicação do referido preceito legal.
[3] Cf. José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada – artigos 1.º a 107.º, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 2007, págs. 446 a 452.
[4] Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 2.º Vol., 3.ª Edição, pág. 180.
[5] Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1993, págs. 114 e ss..
[6] O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa da Liberdade, in Problemas Fundamentais de Direito Penal, Homenagem a Claus Roxin, Lisboa, 2002, pág. 185.
[7] Op. Cit., anotação ao artigo 70.º do CP, pág. 266.
[8] Op. Cit., págs. 227 a 231.
[9] Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Op. Cit., pág. 227 e ss., e Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, pág. 478 e ss..
[10] Como esclarece o Acórdão do STJ de 21.11.2019, proferido no processo 11701/15.9T8LSR-A.L1.S2, relatado por Catarina Serra e disponível para consulta em www.dgsi.pt/jstj.
[11] Proferido no processo 1382/11.4TBVFR.P1.S1, relatado por Azevedo Ramos e disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jst.
[12] Proferido no processo 08A743, em que foi relator Urbano Dias e disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jst.
[13] Sobre esta temática cf. FARIA, Paulo Ramos -“A dispensa do ónus da prova e o direito constitucional a um processo equitativo (o caso da “dividas hospitalares”)”. JULGAR Online. Dezembro de 2016. Disponível para consulta em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/12/2016.