Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1196/20.0T8BJA.E2
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
ILEGITIMIDADE
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Se na sua função de veículo circulante uma retroescavadora causar algum sinistro, então este deverá caracterizar-se como acidente de viação e convocar-se o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel para a reparação dos danos gerados pelo mesmo; se o sinistro houver sido causado pelos riscos próprios de utilização da máquina industrial e durante a atividade de laboração da mesma, então o seguro que deve responder pelos danos é o seguro referente aos riscos próprios da laboração da referida máquina.
2 – No caso sub judice, o sinistro ocorreu porque após a retroescavadora ter sido posicionada pelo réu junto ao talude – de modo a que a sua força fosse utilizada para erguer uma cúpula de uma caixa de drenagem e a colocar sobre esta última – aquele réu não acionou o travão, pelo que quando as zapatas da máquina foram descidas, a retroescavadora deslizou para dentro da vala, entalando a vítima contra a caixa de drenagem e contra o terreno contíguo. Tendo sido aquele deslize da retroescavadora o resultado de uma involuntária omissão do uso do travão de mão em plena laboração da máquina quem deve responder pelos danos é a entidade que segurou os riscos de utilização da retroescavadora.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1196/20.0T8BJA.E2
(2.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…)-Companhia de Seguros, SA, autora na ação declarativa de condenação que moveu contra (…)-Construções, Lda. e (…), interpôs recurso do despacho-saneador proferido pelo Juízo Central Cível e Criminal de Beja, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o qual julgou verificada a exceção de ilegitimidade processual dos réus e, em consequência, absolveu-os da instância.

A decisão sob recurso tem o seguinte teor:

«Saneamento: da ilegitimidade processual dos Réus
A 1.ª Ré, alegando que por contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º (…), vigente à data do acidente, transferiu para a Companhia de Seguros (…), S.A., a responsabilidade civil decorrente de acidente de viação envolvendo a retroescavadora em causa nos autos, com a matrícula n.º (…), invocou a ilegitimidade processual passiva.
Dado o contraditório ao Autor, este, não impugnando a apólice em causa, respondeu que o sinistro que constitui causa de pedir não se encontra abrangido pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade automóvel.
Cumpre apreciar, tomando em consideração que a responsabilidade civil emergente de acidentes causados pelo veículo supra identificado encontrava-se, à data do acidente, transferida para a Companhia de Seguros (…), S.A. a coberto da apólice n.º (…).
*
Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do C.P.C., o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
A respeito do que se deve entender por relação controvertida, há que atentar no disposto no n.º 3 do mesmo artigo [na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor], e assim concluir que esta é aferida nos exatos termos configurados pelo autor.
O que releva é, pois, a caracterização da relação controvertida alegada.
Para o que ora nos interessa, ou seja, no que diretamente concerne ao conhecimento da exceção invocada, a presente demanda consiste na imputação na esfera jurídica dos Réus da responsabilidade civil pela produção de um sinistro que causou danos na esfera jurídica do lesado, a quem se sub-rogou o Autor.
E ante o tipo de sinistro alegado, é equacionável a aplicação do artigo 64.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, chamado à colação pelo 1.º Réu, que estatui:
«As ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:
a. Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório;
b. Contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior».
O capital mínimo obrigatório aplicável é de € 5.000.000,00 por acidente para os danos corporais e de € 1.000.000,00 por acidente para os danos materiais [artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, do referido diploma legal].
Assim, o ponto nevrálgico a apreciar, discutido entre as partes, é a caraterização do acidente em causa.
Se de viação ou não.
O acidente foi alegado nestes termos:
«O 2.º Réu, através da condução da retroescavadora, posicionou-a junto do bordo do talude, para, quando (…) terminasse a selagem das juntas, colocarem, com o auxílio do balde da retroescavadora, a cúpula na caixa de drenagem. Para tal, o 2.º Réu, sentado no posto de comando e virado para a frente da máquina, iniciou a deslocação da mesma, em marcha-atrás, até junto do bordo do talude onde se encontrava a caixa de drenagem e o (…). Após posicionar a máquina, o 2.º Réu rodou o banco do condutor num angulo de 180º, ficando virado para a traseira do equipamento e de frente para os trabalhos que estavam a decorrer. Após posicionar a máquina retroescavadora, o 2.º Réu não activou o travão de mão da mesma nem fez descer as sapatas da máquina. Por não ter sido activado o travão de mão da máquina retroescavadora e por a mesma não se encontrar estabilizada pelas sapatas e ter ficado posicionada muito próximo do talude, a máquina deslizou para dentro da vala onde se situava a caixa de drenagem, tendo entalado (…) contra esta e contra o terreno contíguo. O 2.º Réu, ao posicionar a máquina retroescavadora junto do talude e ao não acionar o travão de mão nem as sapatas da mesma, actuou com manifesta desatenção e falta de cuidado, ainda mais quando esse cuidado deveria ser redobrado sabendo ele que ao seu redor prestava serviço outro trabalhador, o sinistrado. Foi, pois, a aproximação da máquina à berma do desnível que fez com que a retroescavadora deslizasse, atento o peso da mesma e o facto de não se encontrar estabilizada nem com o travão de mão, nem com as sapatas. (…) O 2.º Réu desprezou, assim, os mais elementares deveres de cautela, essenciais à condução prudente de máquinas industriais, não tendo representado que, com a sua conduta, a máquina podia deslizar para a vala da caixa de drenagem e atingir (…). O 2.º Réu não previu, como poderia e deveria fazer, que da sua conduta podia resultar o acidente e a morte de (…), como de facto veio a suceder».
A regra base a atender encontra-se no artigo 4.º, n.º 1, do referido diploma, que sob a epígrafe «obrigação de seguro» dispõe: «toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei».
E ante a inúmera jurisprudência dos nossos tribunais superiores que já verteram direito sobre situações idênticas, chamando-se particularmente a atenção para o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17 de dezembro de 2015 [relator Abrantes Geraldes; processo n.º 312/11.8TBRGR.L1.S1; disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais acórdãos citados adiante] podemos ter por critérios seguros a atender na solução dos autos que:
Primeiro. Uma retroescavadora matriculada é um veículo ao qual se aplica o regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da sua circulação.
Quer isto dizer, não é pelo tipo de viatura em causa que a situação dos autos se excluirá à aplicação do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
Leia-se diretamente o citado acórdão: a jurisprudência nacional desde há muito vinha admitindo a inclusão no regime do seguro obrigatório não apenas dos acidentes com intervenção dos veículos automóveis a que é dada a comum utilização rodoviária, mas ainda de outros veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, designadamente tratores agrícolas ou industriais, retroescavadoras, bulldozers, cilindros de compactação, empilhadores, dumpers ou outras máquinas.
Segundo. A aplicação do regime do seguro obrigatório não fica afastada pelo tipo de via-local em que o acidente ocorre ou pelo tipo de circulação que no momento do acidente se verificava na via.
Continuando nas palavras do acórdão: para efeitos de inclusão no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relevam acidentes que “podem ocorrer tanto nas vias públicas como nas particulares e, até, em locais não destinados à circulação e que não é o facto de o veículo se encontrar parado que impede que como tal se considerem”.
Terceiro. A sujeição do acidente ao regime do seguro obrigatório em causa advirá da interpretação da lei e não das cláusulas contratuais de exclusão eventualmente acordadas com a seguradora.
Novamente: a apreciação da responsabilidade da Seguradora deve resultar do confronto direto com a lei do seguro obrigatório e não com o teor do clausulado contratual. Estando em causa essencialmente a tutela de interesses de terceiros e não tanto os do tomador do seguro – ainda que estes não sejam de todo alheios a um sistema que visa a transferência da responsabilidade civil, desonerando o tomador do seguro e outros sujeitos com responsabilidade civil extracontratual – a inclusão ou a exclusão de sinistros (assim como a prévia obrigatoriedade ou não de transferência da responsabilidade) não deve ser apreciada em função do clausulado geral ou particular, antes do confronto entre a realidade e o modo como o legislador – comunitário e nacional – procurou a sua regulação abstrata através da formulação de preceitos legais que se sobrepõem aos interesses individualizados.
Cremos serem estes três parâmetros tendencialmente consensuais na jurisprudência.
Assim, na senda do mesmo aresto, o critério essencial para destrinçar entre os acidentes que caem ou não no âmbito do seguro obrigatório consiste na avaliação do tipo de perigo que se concretizou na utilização do veículo: in casu, se o perigo adveio da utilização do veículo enquanto unidade circulante [veículo-retroescavadora] ou do funcionamento da retroescavadora enquanto maquina industrial [a sua utilização, em movimento ou não, principalmente para manuseio do respetivo braço articulado em escavação].
Lida a descrição do acidente, conclui-se que o 2.º Réu se encontrava a conduzir a retroescavadora e realizou uma incorreta paragem da marcha do veículo [em local inapropriado – próximo do talude – e sem lançar mão dos mecanismos de travagem adequados – ativando o travão de mão e fazendo descer as sapatas].
Por esta incorreta paragem da marcha a retroescavadora deslizou para dentro da vala onde se situava a caixa de drenagem, tendo entalado Virgílio Filipe contra esta e contra o terreno contíguo.
Ora, afigura-se-nos que o acidente ocorrido é de viação, posto que o perigo adveio precisamente da locomoção da retroescavadora enquanto «unidade circulante»: que, ante as suas caraterísticas, desde logo dimensão e peso, carece de especiais cuidados na finalização da respetiva marcha, não o podendo ter sido no local em causa e sem descida das sapatas e acionamento do travão de mão.
É esta a lógica da demanda.
Ao invés, o perigo não adveio da utilização da máquina industrial: com o manuseamento do respetivo braço articulado para colocação da cúpula na caixa de drenagem.
Foi um acidente de locomoção da retroescavadora em si.
Dir-se-á que tal locomoção era prévia e finalisticamente orientada para a sua função específica de retroescavadora.
Correto; mas isso é o que ocorre sempre.
A não ser numa situação insólita em que uma retroescavadora fosse utilizada para passeio/lazer, qualquer circulação de uma retroescavadora ocorre com vista à sua utilização enquanto máquina industrial.
E, como já referimos, não é pelo facto de ser uma retroescavadora a locomover-se que fica afastada a inclusão da sua circulação ao abrigo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Por exemplo, desde um armazém em que a retroescavadora se encontra estacionada à sua colocação em posição para começar os trabalhos, todo este percurso que pode incluir a marcha iniciada em propriedade privada, passando por estrada ou qualquer outro caminho, voltando ou não a entrar em propriedade privada, até à paragem da marcha em posição final, tudo isto é a locomoção da retroescavadora enquanto veículo.
O sinistro alegado sub judice ocorre quando a retroescavadora estava em marcha e a ser posicionada [retroescavadora / veículo] para vir a ser usada na sua função especifica de utilização da pá do braço articulado para colocação da cúpula na caixa de drenagem [retroescavadora / máquina].
Noutras palavras: o acidente não se verificou na laboração da retroescavadora enquanto tal; sim durante a sua locomoção enquanto veículo-retroescavadora que o é.
Ou seja, uma retroescavadora possui [além dos gerais] riscos próprios de circulação.
Quer isto dizer, o acidente que envolve uma retroescavadora não será apenas considerado de viação se estiver em causa a concretização de um risco num grau e qualidade perfeitamente idêntico à locomoção de um veículo ligeiro de passageiros.
Não é isso; o acidente ainda será de viação se contender com os riscos próprios [que nos remete para os cuidados no tipo de condução, etc.] de locomoção de uma retroescavadora, que é o veículo em causa.
Nem se vislumbra nenhuma especificidade: também o risco de circulação de um automóvel ligeiro é distinto da circulação de um motociclo.
E o sinistro concretizado adveio do risco de circulação de um veículo do tipo retroescavadora.
Não adveio do risco da sua utilização industrial.
Bem, (i) se alterássemos, na narração da petição, o veículo retroescavadora por um veículo ligeiro de passageiros ou, (ii) não alterando o veículo, alterássemos o tipo de sinistrado de um trabalhador para um completo terceiro, a configuração do acidente e solução dos autos torna-se, assim o cremos, clara.
Será de difícil caraterização como acidente de viação um sinistro ocorrido por ter sido incorretamente parado ou estacionado um ligeiro de passageiros que deslizasse e fosse embater noutro carro ou pessoa?
E existirão também fundadas dúvidas de que no preciso contexto alegado, caso a retroescavadora fosse embater, não num trabalhador da mesma obra, mas num terceiro que por lá passava, assistiria a este terceiro a demanda direta da seguradora?
Não só não o cremos, como não vislumbramos destrinça [com relevo para a questão de legitimidade que ora se trata] entre as situações.
O Autor cita em abono da sua posição jurídica, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 10 de julho de 2018 [relator Alcides Rodrigues; processo n.º 6229/16.2T8GMR.G1].
Admitindo-se que tal aresto assim possa ser interpretado, todavia, não é certo que entre as situações ocorra total identidade, uma vez que, julgamos, o acórdão tem como premissa que a movimentação aí em causa era uma operação de carregamento e despejo de terras: a marcha atrás está indissoluvelmente relacionada com a função específica do carregamento e despejo de terras na dita obra. Isto porque, depreende-se, essa circulação da máquina escavadora era uma das operações implicadas pelo carregamento e despejo de terras. O acidente ocorreu no exercício da função própria da máquina (implicando o seu movimento), no âmbito do cumprimento e execução da tarefa contratada e dentro da atividade e funções específicas, e não enquanto veículo circulante, com os riscos inerentes ao comum dos veículos terrestres a motor, sobretudo os derivados da sua circulação. Diverso seria, por exemplo, no caso de deslocação da máquina escavadora, “pelo seu pé”, nas vias a que se refere o artigo 2.º do Código da Estrada, para o início dos trabalhos (ou mesmo no seu decurso ou subsequentemente ao termo de tais trabalhos).
Seja como for, entre outros, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15 de fevereiro de 2018 [relatado por Moreira Dias; processo n.º 535/14.8TBPTL.G1]: terminada a abertura da vala, o Réu (…) decidiu deslocar aquela retroescavadora a fim de picar pedra mais abaixo, tendo para o efeito levantado as sapatas hidráulicas da retroescavadora, e porque se encontrasse completamente distraído e, também, em consequência do mau estado daquela máquina, passou a circular com a mesma, na faixa de rodagem do caminho municipal, de forma descontrolada, percorrendo nele uma distância de cerca de dez metros, indo embater com a pá carregadora acoplada, na parte frontal da retroescavadora, na parte traseira de um trator, que aí se encontrava estacionado e junta à qual se encontrava o Autor a fechar o taipal da caixa de carga desse trator, após descarga de uma tampa de saneamento. Resulta da factualidade que se acaba de traçar que se é certo que na altura do acidente, a retroescavadora se encontrava a exercer a sua função específica enquanto retroescavadora – abertura de vala –, também não é menos certo que, no preciso momento em que eclodiu o acidente, aquela máquina encontrava-se concomitantemente a exercer a sua função de circulação, tanto assim que o Réu (…) colocou-a em movimento e com ela percorreu cerca de dez metros na via pública, até atingir o trator, em cujo exterior se encontrava o Autor, onde a retroescavadora se imobilizou após ferir o último. Neste contexto, prefigura-se-nos não colher a posição da apelante seguradora quando pretende que a retroescavadora se encontrava tão só a desempenhar a sua função especifica de laboração enquanto retroescavadora, olvidando que o Réu (…) a pôs em circulação (logo, aquela desempenhou a sua função de circulação enquanto veículo), percorrendo com ela cerca de dez metros na via pública e com isso potenciando o risco de acidente, pelo que o concreto acidente sobre que versam os autos não deixa de ser uma manifestação própria dos riscos da atividade viária.
O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 20 de março de 2018 [relator Vítor Amaral; processo n.º 1979/10.0TBMGR.C1]: o empilhador “Toyota” discutido – um veículo a motor com rodas e condutor, com capacidade para circular pelos seus próprios meios e fazer circular um reboque, como o que levava acoplado a circular consigo, ademais dotado de contrato de seguro de responsabilidade civil (apólice de “mercado produto automóvel-frotas”), capaz de se movimentar e operar em espaços abertos ou não ao público (no âmbito ou fora do âmbito dos trabalhos/operações que lhe são destinados) – estava inevitavelmente a circular quando se deu o acidente, não a efetuar cargas e descargas de objetos / mercadorias, mas a laborar mediante deslocação/circulação com o reboque acoplado, em manobra de marcha-atrás, desse modo vindo a embater com o reboque movimentado noutro reboque que também se encontrava no local. Daí surgiu o acidente em que foi atingida a pessoa lesada, entalada entre o empilhador e os dois reboques. Estava o veículo empilhador no exercício da sua vocacionada atividade de “empilhar” (cargas e descargas)? Ou encontrava-se, diversamente, em manobra de circulação (auto-móvel), de marcha-atrás, deslocando um reboque que para o efeito lhe havia sido acoplado? Salvo o devido respeito, da factualidade provada só pode concluir-se por esta última resposta como demonstrada. O evento danoso deu-se então, não no exercício de uma atividade perigosa de cargas e descargas (que em nada contribuiu, ao menos diretamente, para ele), mas como acidente/embate de circulação. Foi a manobra de circulação – e não qualquer laboração específica de empilhador –, traduzida em movimentação em marcha-atrás, que originou o acidente ocorrido.
Ou, numa perspetiva ainda mais ampla, quando o acidente se dá em plena deslocação de uma máquina motoniveladora em terraplanagem, ou seja, para a sua funcionalidade específica e, neste movimento, colhe um menor, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 23 de novembro de 2006 [relator João Bernardo; processo n.º 06B3445]: delicada é a questão do escopo com que a máquina se movimentava. Não visava ela a deslocação em si, mas antes a dita terraplanagem. Não se trata aqui da distinção entre atividade viária e atividade laboral. Muitas atividades são, concomitantemente, laborais e viárias, de sorte que a lei expressamente prevê essa situação. O que assume foros de discutibilidade é antes a afetação exclusiva a um movimento que, primacialmente, não é viário. O condutor da máquina não queria deslocar esta dum ponto para o outro. Queria terraplanar e, por via disso, tinha que efetuar os movimentos para trás e para a frente. Ora, neste tipo de situações, cremos dever distinguir: Os danos derivados de atividade que não esteja relacionada com os riscos da atividade viária; Os danos, ainda que emergentes do desempenho funcional da própria máquina, mas que derivam também dos riscos dela relativamente à segurança viária. Àqueles pertencem os casos como os que são ventilados pelos acórdãos deste Tribunal de 3.5.2001 (CJ STJ, IX, II, 43) (em que ocorreu a amputação duma mão por uma máquina agrícola) e da Relação de Lisboa de 12.12.1996 (CJ XXI, V, 139) (este, invocado pela seguradora em abono da sua tese, em que uma retroescavadora, na sua função de escavação, corta cabos subterrâneos condutores de eletricidade). Mas, se o acidente ocorreu porque a máquina se movimentava, mal se compreenderia a isenção de seguro, só porque o fazia em movimentos próprios da sua funcionalidade. É que, nestes casos, vem ao de cima, tanto como em circulação normal, o risco especial causado por veículos de que fala Vaz Serra no local citado, em palavras que nos parecem atuais. Para os demais utentes da via, potenciais sinistrados, tanto importa que a máquina se desloque porque o condutor pretende seguir para outro local, como que se desloque porque o condutor apenas quer terraplanar a zona. Só vista pelo prisma destes, a medida traduzida pelo seguro obrigatório atinge os fins de alcance social e de tutela dos interesses dos lesados a que supra se aludiu.
Parece-nos que a esta última luz e partindo-se da respetiva bondade [que mesmo a laboração da máquina pela sua movimentação não afasta em si um acidente ocorrido nessa deslocação como sendo de viação], fica mais evidente a forma como a situação dos autos deve ser qualificada, por se apresentar como um minus: o 2.º Réu, ao conduzir a retroescavadora, pretendia simplesmente movimentá-la do ponto A para o ponto B, a fim de, a partir daí, estar a máquina apta a laborar para o fim a que se destinava [colocação da cúpula na caixa de drenagem]; a retroescavadora não estava a laborar com a deslocação em si.
A terminar, regressemos ao primeiro acórdão citado, atentando naquilo que na situação aí considerada ditou o afastamento da caraterização do acidente como decorrendo dos riscos próprios do trator enquanto veículo [o trator, imobilizado no momento, era munido de uma picadora acoplada, em funcionamento, tendo o sinistrado se postado entre a roda traseira do lado direito e uma das aberturas da picadora, tendo sido colhido pelas respetivas lâminas, "engolido" e triturado], para se alcançar a diferença sub judice: (…) não foi atingido pelo movimento do braço articulado, por objetos deixados cair da pá pelo movimento do braço, etc..
Assim, sem prejuízo de outro e melhor entendimento, afigura-se-nos que o sinistro que constitui causa de pedir advém dos riscos próprios de locomoção da retroescavadora e não dos riscos próprios da respetiva laboração, com o significado supra exposto [(i) qualquer circulação de uma máquina industrial será finalisticamente orientada à sua utilização, ocorrendo antes – em preparação, durante – para execução, ou após – em retirada da obra, não sendo tal circunstância, em si, que nega a qualificação; (ii) os riscos de circulação são os próprios da viatura em causa e no concreto local onde se movimenta].
Nos termos em que foi configurada a demanda [o acidente alegado e que consiste na causa de pedir] e o montante do pedido indemnizatório que se contém dentro dos limites do capital mínimo obrigatório, é forçoso concluir que ambos os Réus a quem o Autor imputa a responsabilidade civil pela produção do acidente [não só o 2.º Réu, enquanto condutor do veículo automóvel, como também o 1.º Réu enquanto comitente] carecem de legitimidade processual passiva para a presente demanda.
Sendo a exceção dilatória de ilegitimidade processual passiva [artigo 577.º, alínea e), do C.P.C.] de conhecimento oficioso [artigo 578.º do C.P.C.], além de ter sido invocada pelo 1.º Réu.
Assim, e nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e) e 576.º, n.º 2, do C.P.C., deverão os Réus ser absolvidos da instância.
*
Pelo exposto, julgo verificada a exceção de ilegitimidade processual dos Réus e, em consequência, absolvo-os da instância.
Custas pelo Autor [artigo 527.º, n.º 1, do C.P.C.].
Registe e notifique».
I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«a) Não deve o sinistro sub judice ser classificado como sendo de viação, porque decorrente da utilização industrial da retroescavadora pelo 2.º Recorrido.
b) O sinistro sub judice ocorreu após a produção, pelo Sinistrado, de argamassa, tendo iniciado a aplicação da mesma nas juntas da caixa de drenagem, que se encontrava a uma cota inferior do solo, tudo isto enquanto o 2.º Recorrido posicionava a retroescavadora junto do bordo do talude para, em conjunto com o Sinistrado, e após a selagem das juntas, colocarem, com o auxílio do balde, a cúpula na caixa de drenagem.
c) Para o efeito, o 2.º Recorrido, sentado no posto de comando da retroescavadora, e virado para a frente, deslocou a máquina em marcha atrás, até junto do bordo do talude, tendo, de seguida, rodado o banco do condutor num ângulo de 180º, ficando virado para a traseira da retroescavadora, e de frente para os trabalhos que estavam a decorrer.
d) Porquanto o 2.º Recorrido não ativou ou travão de mão, nem fez descer as sapatas, razão pela qual a retroescavadora não ficou estabilizada, indo entalar o Sinistrado, na vala em que se encontrava, contra a caixa de drenagem e o terreno contíguo.
e) Tal sequência de atos deve ser havida como uma tarefa no seu todo, não consubstanciando uma mera circulação da retroescavadora, nem tão pouco uma mera incorreta paragem da marcha do veículo, tendo resultado num sinistro decorrente do risco da utilização industrial da retroescavadora, nunca num sinistro próprio de circulação.
f) Não subscrevemos o alegado pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, quanto ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães com data de 10.07.2018, porquanto consideramos que retrata uma situação idêntica ao sinistro sub judice, na medida em que os atos levados a cabo pelo 2.º Recorrido também se encontram indissoluvelmente relacionados com a função de selagem, com argamassa, das juntas da caixa de drenagem e posterior colocação da cúpula.
g) Contrariamente ao consignado pelo Tribunal a quo, não consideramos disporem os autos de elementos suficientes para ser proferida decisão quanto à ilegitimidade passiva dos Recorridos, sendo que deveriam ter prosseguido com a normal tramitação, com vista à produção de prova, devendo o Tribunal a quo relegar para final o conhecimento da matéria de exceção, a fim de aferir, com certeza, se o caso em apreço se reporta a um acidente de viação.
h) Termos em que, perante o exposto, deve a sentença recorrida ser julgada improcedente e, consequentemente, ser substituída por outra que julgue improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva dos Recorridos ou, em alternativa, por outra que relegue para final o conhecimento da matéria de exceção, após a produção de prova.
i) Poderia a Recorrente proceder à ampliação do pedido, até ao encerramento da discussão na 1.ª Instância, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 265.º, n.º 2, do CPC, ao ponto de ultrapassar o capital do seguro obrigatório contratado.
j) Razão pela qual censuramos a absolvição do 2.º Recorrido da instância, sob o pretexto da sua ilegitimidade passiva, porquanto as despesas havidas com a regularização do sinistro sub judice sempre poderão ultrapassar o limite do capital do seguro contratado, sendo prematuro fazer um juízo em sentido contrário, quando se invocou a sua responsabilidade pela ocorrência do sinistro, ao abrigo da responsabilidade civil por factos ilícitos.
k) Termos em que, atento o exposto, deve a sentença recorrida ser julgada improcedente na parte em que absolve da instância o 2.º Recorrido, sob o fundamento da sua ilegitimidade passiva, com as legais consequências.
Nestes termos, e nos que V. Exas. muito doutamente suprirão,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, devendo ser substituída por outra que julgue improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva dos Recorridos ou, em alternativa, que relegue para final o conhecimento da matéria de exceção.
Sem prejuízo,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que absolve da instância o 2.º Recorrido, com as legais consequências».

I.3.
Na sua resposta às alegações de recurso, a ré/apelada defendeu a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
A questão que cumpre decidir nos autos é a de saber se o tribunal recorrido errou ao julgar procedente a exceção de ilegitimidade processual dos réus, a qual se prende com o apuramento de qual o seguro que deve responder pelos danos gerados pelo sinistro em causa nos autos.

II.3.
Factos provados
Os factos a considerar são aqueles que constam da decisão recorrida.

II.4.
Mérito do recurso
No presente recurso está em causa a bondade do despacho saneador proferido pelo tribunal de primeira instância o qual julgou os réus parte ilegítima e consequentemente absolveu ambos da instância.
Subjacente à decisão sob recurso encontra-se o entendimento de que o sinistro em causa nos autos adveio dos riscos próprios de locomoção da retroescavadora e não dos riscos próprios da respetiva laboração, pelo que a seguradora que deve responder pelos danos gerados pelo sinistro é aquela que celebrou o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
A apelante, por sua vez, defende que o sinistro em causa nos autos é decorrente do risco da utilização industrial da retroescavadora e não de um sinistro próprio da circulação.
Havendo, no caso, dois tipos de seguro relativos retroescavadora em causa nos autos, com âmbitos de cobertura distintos, a saber, por um lado o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e por outro o seguro de laboração, há que determinar que tipo de sinistro ocorreu nos autos para, em conformidade, determinar a seguradora responsável pela cobertura do risco e, consequentemente, a legitimidade processual passiva.
De acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º 1, do D/L n.º 291/07, de 21-08, o qual aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, «toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei». Por sua vez, o n.º 4 do referido artigo 4.º dispõe que «a obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais».
A definição de máquinas industriais é-nos dada pelo artigo 109.º/2, do Código da Estrada aprovado pelo D/L n.º 114/94, de 3 de maio, com as alterações que lhe foram introduzidas pelos decretos-lei n.ºs 2/98, de 03-01, 265-A/2001, de 28-09, pela Lei n.º 20/2002, de 21-08 e pelo D/L n.º 44/2005, de 23-02, que dispõe:
«Máquina industrial é o veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, destinado à execução de obras ou trabalhos industriais e que só eventualmente transita na via pública, sendo pesado ou ligeiro consoante o seu peso bruto exceda ou não 3500kg».
No caso o veículo causador do sinistro que vitimou um trabalhador da ré é uma retroescavadora, a qual constitui uma máquina industrial de acordo com a definição prevista no artigo 109.º/2, do Código de Estrada. E as máquinas industriais, como o são as retroescavadoras, se autorizadas a transitar na via pública estão sujeitas a seguro obrigatório responsabilidade civil automóvel. Assim, se na sua função de veículo circulante causarem algum sinistro, então este deverá caracterizar-se como acidente de viação e convocar-se o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel para a reparação dos danos gerados pelo mesmo. A propósito chama-se à colação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2015[1], onde se diz que «especialmente a partir da Diretiva 2008/103/CE pode afirmar-se que a garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e, por inerência, a amplitude dos eventos suscetíveis de encontrar guarida em tal regime, é delimitada pelos casos em que algum veículo circula ou é usado na sua função de “locomoção-transporte”». Em contraponto, se o sinistro houver sido causado pelos riscos próprios de utilização da máquina industrial e durante a atividade de laboração da mesma, então o seguro que deve responder pelos danos é o seguro referente aos riscos próprios da laboração da referida máquina.
Nos termos do disposto no artigo 30.º do Código de Processo Civil, o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer (n.º 1), o interesse em contradizer exprime-se pelo prejuízo que da procedência da ação advenha (n.º 2) e «na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autos» (n.º 3).
Feito este enquadramento legal, verifica-se que a autora alegou na sua petição inicial o seguinte:
- «no referido dia 20 de agosto de 2015, o 2.º réu e (…), seguindo ordens e instruções da entidade empregadora (1.ª ré) e da empresa utilizadora, respetivamente, encontravam-se a exercer as suas funções ao serviço daquelas entidades na obra «execução dos trabalhos do lanço A (entre o PK 22+600 e o PK 23+200) e do lanço B (entre PK 0+000 e PK 11+700) “Figueira de (…)»;
- «a 1.ª ré era e é proprietária da retroescavadora de marca New Holland, (…) a qual, naquele momento e local, e em cumprimento das funções que lhe tinham sido encarregues pela sua entidade patronal, era manobrada pelo 2.º réu»;
- «por volta das 9 horas, o referido encarregado das frentes de trabalho deu instruções ao sinistrado e ao 2.º réu para se deslocarem até ao local identificado como PK 8+400, a fim de, nesse local, serem seladas, com argamassa, as juntas da caixa de drenagem ali existente (…) e posteriormente, colocada respetiva cúpula»;
- «o sinistrado e o 2.º réu dirigiram-se de imediato para o referido local»;
- «após produzir a argamassa, (…) iniciou a aplicação da mesma nas juntas da caixa de drenagem»;
- «a caixa de drenagem encontrava-se a uma cota inferior à cota do solo»;
- «simultaneamente, o 2.º réu, através da condução da retroescavadora, posicionou-a junto do bordo do talude para, quando (…) terminasse a selagem das juntas, colocarem com o auxílio do balde da retroescavadora, a cúpula na caixa de drenagem»;
- «para tal, o 2.º réu, sentado no posto de comando e virado para a frente da máquina, iniciou a deslocação da mesma, em marcha-atrás, até junto do bordo do talude onde se encontrava a caixa de drenagem e o (…)»;
- «após posicionar a máquina, o 2.º réu rodou o banco do condutor num ângulo de 180.º. ficando virado para a traseira do equipamento e de frente para os trabalhos que estavam a decorrer»;
- após posicionar a máquina retroescavadora, o 2.º réu não ativou o travão de mão da mesma e fez descer as sapatas da máquina»;
- por não ter sido ativado o travão de mão da máquina retroescavadora e por a mesma se encontrar estabilizada pelas sapatas e ter ficado posicionada muito próxima do talude, a máquina deslizou para dentro da vala onde se situava a caixa de drenagem, tendo entalado (…) contra esta e o contra o terreno contíguo».
De acordo com a descrição dos eventos constante da petição inicial, o sinistro aconteceu após o 2.º réu ter posicionado a máquina retroescavadora junto ao bordo do talude com vista a colocar a cúpula na caixa de drenagem e de a ter ali imobilizado, sem que tivesse ativado o travão de mão, o que provocou que ao descer as sapatas da máquina, esta última tenha deslizado para dentro da vala, entalando a vítima contra a caixa de drenagem e contra o terreno contíguo.
Parece-nos cristalino que o sinistro ocorreu quando a retroescavadora, em plena laboração, estava posicionada para que o 2.º réu colocasse, com o auxílio da pá (da retroescavadora), a cúpula da caixa de drenagem no topo desta última. No momento em que ocorreu o sinistro, a máquina não só estava parada, como o 2.º réu estava a preparar-se para, com o auxílio da pá da retroescavadora, realizar a atividade de construção civil para que fora convocado: levantar a cúpula e colocá-la na caixa de drenagem depois de esta ter sido selada pelo trabalhador da ré, vítima do sinistro.
Em suma, a ocorrência do sinistro está relacionada com os riscos próprios do funcionamento e utilização da retroescavadora numa atividade de construção civil, na medida em que por não ter sido devidamente imobilizada (por não ter sido acionado o travão) a retroescavadora deslizou para dentro do referido talude, tendo sido esse deslize o resultado de uma involuntária omissão do uso do travão de mão. Assim sendo, quem deve responder pelos danos é a entidade que segurou os riscos de utilização da retroescavadora.
Como se lê no sumário do recente acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.09.2022, processo n.º 1066/19.5T8VRL.G2, consultável em www.dgsi.pt.:
«I- Uma máquina industrial pode ser qualificada como veículo de circulação terrestre, quando lhe é possível realizar tal circulação. II – Para ser caracterizado como acidente de viação, deve atender-se à atividade que a máquina estava a realizar ou para a qual estava ser utilizada no preciso momento do acidente. III. Para estarmos perante um acidente de viação, não é suficiente que a máquina se tenha movido».
O tribunal de primeira instância errou, pois, ao julgar os réus parte ilegítima, no pressuposto de que estamos perante um acidente de viação e que, por conseguinte, haveria que convocar a seguradora que contratou o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que cobre os riscos de circulação da retroescavadora em causa nos autos.
Há, assim, que julgar a apelação procedente e, em conformidade, deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que julgue improcedente a exceção de ilegitimidade passiva dos réus e que ordene o prosseguimento dos autos se não houver outra razão para que o processo finde em sede de despacho saneador.

Sumário:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente a apelação e, em conformidade:
1) Revogam o despacho saneador recorrido na parte em que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva e absolveu os réus da instância;
2) Ordenam o prosseguimento da instância, se outras razões não existirem para que a ação finde em sede de despacho saneador.
As custas na presente instância são da responsabilidade da apelada (…), Construções, Lda..
Notifique.
Évora, 12 de janeiro de 2023
Cristina Dá Mesquita
Emília Ramos Costa
Rui Machado e Moura




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[1] Processo n.º 312/11.8TBRGR.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.