Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
524/14.2TBPTG.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
OBJECTO DO PROCESSO
PROPRIEDADE PRIVADA
INTERESSE PÚBLICO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Qualquer arguido em processo contra-ordenacional tem o direito à delimitação com clareza dos factos ilícitos e culposos imputados desde o auto de notícia inicial, passando pela decisão administrativa e a terminar na decisão judicial, de qual o regime jurídico em que se baseia a punição, desde logo quais os requisitos que permitem a aplicação da norma punitiva.
2 - Se existem pressupostos que permitam a afirmação de um interesse público na intervenção em propriedade privada, esses pressupostos devem ser claramente vertidos em auto de notícia e nos factos provados.

3 - Ou seja, é exigível uma clara e constante definição do “objecto do processo” que permita uma defesa eficaz.

Decisão Texto Integral:
Proc. 524/14.2TBPTG.E1

Acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

A 14 de Maio de 2014 a Câmara Municipal de P, no âmbito dos autos de contra-ordenação supranumerados, proferiu decisão de condenação de P, LDA”, com sede na Rua Dr. CM, n.º 22, 1.º Dto., em L, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8.º e 16.º, al. a), do Regulamento Municipal de Espaços Verdes, no pagamento da coima única de € 1500 (mil e quinhentos euros) pelo cometimento, da infracção da alínea b), do n.º 1 do artigo 98.º do Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro.


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A ora recorrente impugnou judicialmente a decisão proferida pela Presidente da Câmara Municipal de P.

No requerimento de interposição de impugnação judicial alegou a arguida, em conclusão, o seguinte:

- Quando recebeu a notificação, a arguida considerou que era a Câmara Municipal de P quem iria proceder à limpeza do lote;
- A arguida não praticou qualquer infracção, seja a título de dolo ou negligência;
- A norma invocada pela Câmara Municipal padece de inconstitucionalidade orgânica;
- Não foi a arguida notificada de qualquer parecer, nem a notificação faz referência a esse parecer, o que provoca a nulidade do acto administrativo;
- A decisão administrativa padece de nulidade, na medida em que não se pronuncia sobre uma questão concreta invocada na defesa apresentada (substituição do munícipe que não procede à limpeza);
- A decisão administrativa padece ainda de nulidade por não ter havido audiência dos interessados.

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O Tribunal Judicial da Comarca de P por sentença de 10 de Dezembro de 2014 decidiu negar provimento à impugnação judicial apresentada e, em consequência, manter a decisão emitida pela Câmara Municipal.

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Inconformada com uma tal decisão, dela interpôs a arguida o presente recurso pedindo que seja revogado o despacho recorrido, com as seguintes conclusões:

I – O regulamento dos espaços verdes municipais não é aplicável ao presente processo de contra-ordenação por não estarem demonstrados os pressupostos necessários à sua aplicação;

II – Com efeito, tal regulamento é essencialmente aplicável aos espaços verdes públicos, apenas sendo aplicável a prédios privados quando se verifiquem os pressupostos elencados nos seus artigos 1º e 8º, condições que se não verificaram;

III – Além disso, a entidade administrativa nem sequer alegou o preenchimento das condições de facto e de direito necessárias à aplicação do regulamento;

IV – Também não invocou estar em causa o interesse público, nem em que medida o mesmo estava em risco, o que afecta a sua legitimidade para instaurar e fazer seguir o processo contra-ordenacional;

V – As normas invocadas pela entidade recorrida padecem de inconstitucionalidade orgânica, já que respeitam a matéria de reserva relativa da assembleia da república;

VI – São nulos, quer o acto administrativo, quer a decisão condenatória, por não terem sido fundamentados com o parecer a que alude o nº 2 do artigo 8º do dito regulamento, parecer de que a arguida só teve conhecimento na audiência de julgamento;

VII – A nulidade de acto administrativo pode ser declarada por qualquer tribunal, desde que verificados os respectivos pressupostos e não obstante se tratar de tribunal fora da jurisdição administrativa, de acordo com o preceituado no nº2 do artigo 134º do código do procedimento administrativo;

VIII – A decisão condenatória é ainda nula por falta de fundamentação, quer de facto, quer de direito;

IX – A decisão administrativa padece ainda de nulidade por não ter sido precedida da fase essencial que é a da audiência dos interessados;

X – Não se demonstrou que a arguida tenha agido ilicita ou culposamente (sendo que a negligência só é punível quando expressamente previsto na lei), pelo que, sem a verificação destes dois pressupostos é ilegítima e ilegal a sua condenação;

XI - A sentença recorrida violou, entre outros, os artigos 1º e 8º do regulamento dos espaços verdes municipais da câmara municipal de P, o artigo 165º, nº1, al. d) da crp, os artigos 1º, 2º, 8º e 51º, nº1, al. c) do rgco, os artigos 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a) do código de processo penal e ainda os artigos 98º, nº1, 100º, 133º, nº1 e 134º do código do procedimento administrativo, razões por que deverá ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida da prática da contra-ordenação por que foi condenada.


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A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de P apresentou resposta, defendendo a manutenção do decidido, apresentando as seguintes conclusões.

1.ª) Foi a Arguida «P Lda.» condenada pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8.º e 16.º, al. a), do Regulamento Municipal de Espaços Verdes.

A douta sentença julgou improcedente a impugnação judicial e manteve, nos seus precisos termos a decisão administrativa;

2.ª) A Arguida vem interpor recurso da sentença alegando, desde logo, que o Regulamento dos Espaços Verdes Municipais não é aplicável ao presente processo de contra-ordenação por não estarem demonstrados os pressupostos necessários à sua aplicação, por que tal regulamento se aplica aos terrenos públicos, e no caso da aplicação a terrenos privados, terá de estar em causa o interesse público;

3.ª) Ora, pelo contrário, a existência de vegetação no terreno da Arguida não cumpria os requisitos de higiene nem de limpeza que se impunham, independentemente da opinião (evidentemente subjectiva) da Arguida daquilo que considera ser o interesse público alegando que existia «apenas erva»;

4.ª) Aliás, o art. 1.º, nº1 do Regulamento dos Espaços Verdes contempla, na sua fattispecie não só «árvores» e «arbustos» como também o «restante material vegetal neles existentes»;

5.ª) Inclusivamente, a Arguida refere que a Câmara foi «compelida por um particular», quando, na esteira do que supra referimos, os funcionários da entidade camarária deslocaram-se ao local e elaboraram um auto de notícia que consta dos autos, dando conta da situação de infracção;

Aliás, a douta sentença indica que o Tribunal «formou a sua convicção com base no teor do auto de notícia, cuja factualidade o legal representante da ora Recorrente não pôs em causa»;

6.ª) Assim, verificam-se todas as condições de facto e de direito necessárias à aplicação do regulamento;

7.ª) Considera a Arguida que «o conteúdo da norma invocada para sancionar a contra-ordenação aqui em questão é matéria respeitante ao regime geral de punição de actos de mera ordenação social», constituindo «matéria que se inclui na reserva relativa da Assembleia da República, nos termos do nº1, al. d) do art. 165.º da CRP» e, por isso, «estava vedado à Câmara Municipal legislar sobre tal matéria, ainda que sob a forma de regulamento»;

8.ª) Ora, como bem andou o Tribunal a quo, de forma lapidar e clarividente:

«Invoca a recorrente que a norma em que a Câmara Municipal de P se baseou para punir aquela é inconstitucional, por violação do disposto no art.º 165.º, n.º 1, al d) da CRP. Desde logo, há que fazer notar que, no que concerne ao ilícito de mera ordenação social, só o regime geral de punição dos ilícitos dessa natureza e do respectivo processo constituem reserva relativa da Assembleia da República (vide Ac. do TC n.º 627/2009, citado na decisão administrativa). Acresce que a Lei n.º 159/99 de 14 de Setembro permite aos municípios legislar, nesta matéria. Assim sendo, não se verifica a inconstitucionalidade apontada»;

9.ª) Aliás, seguindo a linha de raciocínio do recorrente, todos os regulamentos emanados por um município que previssem contra-ordenações e respectivas coimas seria inconstitucionais;

10.ª) Alega a arguida que o acto administrativo e a decisão condenatória são nulos, por não terem sido fundamentados com o parecer a que alude o art. 8.º, nº 2 do Regulamento. Ora, em primeiro lugar, cumpre-nos referir que resulta dos autos que o parecer existe e, como explicita a douta sentença, a lei não obriga a que tal parecer seja enviado aos destinatários da notificação descrita no art. 8.º do Regulamento de Espaços Verdes;

11.ª) Por outro lado, e mesmo que houvesse algum vício aderimos ao entendimento da douta sentença de que se a Arguida quisesse impugnar um acto administrativo devia ter recorrido ao Tribunal Administrativo:

«Não caberá aqui apreciar o procedimento administrativo e a regularidade do mesmo, para além do que se estipula no Regime Geral dos Ilícitos de Mera Ordenação Social, como seja o disposto no art.º 50.º do RGCO. Uma coisa são os vícios do procedimento administrativo, outra coisa são os vícios do procedimento contra-ordenacional. Apenas estes últimos poderão ser apreciados nesta sede. Importa salientar que o cidadão afectado por um acto administrativo tem ao seu dispor forma de impugnar esse acto, nos termos da Lei Administrativa. Não o fazendo, o acto consolida-se na Ordem Jurídica e produz os seus efeitos».

12.ª) Refere o Ac. do STJ de 18-01-1996, a propósito do art 134.º, nº 2 do CPA os tribunais comuns apenas:

«têm competência para declarar a nulidade do acto administrativo que sofre tal vício, quando o acto em questão surja como pressuposto ou fundamento da questão ali a decidir em concreto" (CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO ANOTADO - Estante Editora - página 633)».

Ora, no caso sub iudice nem a decisão dos autos não pressupunha a questão da nulidade administrativa; com efeito, nestes autos curava-se do procedimento contra-ordenacional e não do procedimento administrativo.

13ª) A Arguida postula que a decisão administrativa é nula por não se ter pronunciado relativamente às questões suscitadas na defesa, ora, se atendermos no teor da douta sentença, facilmente se conclui que tal argumento carece de suporte legal:

«Não há dúvidas de que a decisão administrativa pronuncia-se sobre as questões suscitadas, pelo que não padece do vício invocado.

A questão agora invocada é outra e radica numa interpretação da lei da autoria da arguida e que não consta da defesa que apresentou, razão pela qual inexiste qualquer omissão de pronúncia.

No entanto, sempre se dirá, em abono da verdade, que a norma em causa (art.º 8 do citado regulamento) prevê, numa primeira fase a notificação do proprietário para proceder à limpeza. Se assim não fosse não se veria utilidade na estipulação de um prazo de uma sanção associada ao incumprimento desse prazo (art.º 16 do mesmo regulamento). Claro que só no caso do proprietário não cumprir a ordem que lhe é dada é que a Câmara pode substituir-se ao mesmo e proceder, coercivamente, à limpeza.

Para além disso, prevê-se ainda o sancionamento dessa omissão com coima (art.º 16.º, al. a) daquele diploma.

As normas em causa são claras e de fácil compreensão».

14.ª) No que concerne à decisão condenatória pela falta de audiência dos interessados, reitera-se que se trata de questão a dirimir por uma instância administrativa.

Como menciona a douta sentença:

«A falta de audiência dos interessados no âmbito do procedimento administrativo, a existir, não fere de nulidade a decisão administrativa proferida no âmbito do procedimento contra-ordenacional. Trata-se, como já se afirmou, de realidades distintas».

15.ª) A arguida considera que não agiu com culpa.

Ora, tal não se antolha como defensável. Neste aspecto, enfatize-se o que mencionou a douta sentença:

«Assim, não ficou o Tribunal com quaisquer dúvidas, já que tal resulta com clareza das regras da experiência comum, que o legal representante da recorrente compreendeu, na sua plena extensão, a ordem que lhe foi dada, tomando consciência de que o não cumprimento da mesma fazia incorrer em responsabilidade contra-ordenacional (até porque sendo advogado está mais habilitado a interpretar normas e a conhecer as consequências dos seus actos) e ainda assim, aceitou tal facto e nada fez, desobedecendo à ordem que lhe foi dada».

Assim, verifica-se que, não obstante ter sido notificada para proceder à limpeza do terreno, a Arguida só não o fez porque não quis.

16.ª) Assim, não violou a sentença dos artigos 1.º e 8.º do Regulamento dos Espaços Verdes Municipais de P, 165.º, nº 1, al. d) da CRP, dos artigos 1.º, 2.º, 8.º e 58.º, nº1, al. c) do RGCO (certamente por lapso referiu-se ao art. 51.º, nº1, al. c) do RGCO), artigos 374.º, nº2 e art. 379.º, nº1, al. a) do Código de Processo Penal e ainda os artigos 98.º, nº1, artigos 100.º, 133.º e 134.º do Código de Procedimento Administrativo.


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Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal e a arguida apresentou resposta.


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B - Fundamentação:

B.1.a) - São estes os factos considerados provados pelo tribunal recorrido:

1 – No dia 28 de Novembro de 2013, o arguido não tinha procedido à limpeza do lote n.º 34 da Urbanização do PP, sua propriedade, em cumprimento da notificação da Câmara Municipal de P de 23 de Outubro de 2013, para no prazo de vinte dias proceder à limpeza do referido lote;

2 – Tal notificação foi feita nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 8.º do Regulamento Municipal de Espaços Verdes Municipais;

3 – O legal representante da arguida não cumpriu voluntariamente a ordem administrativa de limpeza do lote sua propriedade, tendo previsto como possível a violação das normas relativas à limpeza do terreno e conformou-se com ela, aceitando-a, nada fazendo para a evitar.


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B.1.b) - Com interesse para a decisão da causa, inexistem factos não provados.

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B.1.c) - O tribunal recorrido fundamentou a matéria de facto, do seguinte modo:

«O Tribunal formou a sua convicção com base no teor do auto de notícia, cuja factualidade o legal representante da ora Recorrente não pôs em causa, bem como no depoimento dos fiscais ouvidos em audiência, os quais confirmaram os factos em causa, prestando um depoimento isento e sincero. Mais se valorou os documentos juntos aos autos. Tudo analisado criticamente e com recurso às regras da experiência comum.

Assim, quanto ao descrito em 1 e 2, tal foi admitido pelo legal representante da arguida, que declarou ter recebido a notificação em causa e que não procedeu, no prazo em causa, à limpeza do terreno. Tal foi ainda confirmado pelas testemunhas ouvidas em audiência.

O descrito em 3 resulta dos restantes factos conjugados com as regras da experiência comum. A ora recorrente alega que compreendeu no regime jurídico em causa que seria a Câmara a efectuar a limpeza, já que a notificação não dizia quem é que devia limpar. Ora, qualquer pessoa (homem comum) que receba uma notificação como a constante dos autos não fica com dúvidas sobre o destinatário da ordem que ali é dada, já que a expressão “foi deliberado notificar Ex.ª na qualidade de proprietário, para no prazo de 20 dias a contar da data de recepção desta notificação, proceder a limpeza do mesmo (…) nos termos previstos no art.º 8 do Regulamento dos espaços Verdes Municipais” não dá margem para grandes enganos. Qualquer pessoa compreenderia que na qualidade de proprietário deveria efectuar a limpeza do terreno (seja pelas suas mãos ou com recurso a mão-de-obra contratada). Não é verosímil que o legal representante da recorrente (advogado de profissão) ficasse com a sensação que a Câmara o estava a notificar de que iria (ela própria) no prazo de 20 dias proceder à limpeza do terreno.

Assim, não ficou o Tribunal com quaisquer dúvidas, já que tal resulta com clareza das regras da experiência comum, que o legal representante da recorrente compreendeu, na sua plena extensão, a ordem que lhe foi dada, tomando consciência de que o não cumprimento da mesma fazia incorrer em responsabilidade contra-ordenacional (até porque sendo advogado está mais habilitado a interpretar normas e a conhecer as consequências dos seus actos) e ainda assim, aceitou tal facto e nada fez, desobedecendo à ordem que lhe foi dada».


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B.1.d) – Constam da decisão recorrida os seguintes segmentos decisórios:

«Questão prévia:
Inconstitucionalidade orgânica do Regulamento de Espaços Verdes Municipais
Invoca a recorrente que a norma em que a Câmara Municipal de P se baseou para punir aquela é inconstitucional, por violação do disposto no art.º 165.º, n.º 1, al d) da CRP.
Desde logo, há que fazer notar que, no que concerne ao ilícito de mera ordenação social, só o regime geral de punição dos ilícitos dessa natureza e do respectivo processo constituem reserva relativa da Assembleia da República (vide Ac. Do TC n.º 627/2009, citado na decisão administrativa).
Acresce que a Lei n.º 159/99 de 14 de Setembro permite aos municípios legislar, nesta matéria.
Assim sendo, não se verifica a inconstitucionalidade apontada.
Em face do exposto, improcede a invocação de inconstitucionalidade do Regulamento de Espaços Verdes Municipais.

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Nulidade do acto administrativo:
Alega a arguida, ora Recorrente, que o acto administrativo que determinou a sua notificação para proceder à limpeza do lote é nulo porque essa notificação não veio acompanhada do parecer favorável do Departamento de Urbanismo e Obras Municipais.
Em primeiro lugar, este não é o local próprio para a impugnação de actos administrativos, mas sim o Tribunal Administrativo. Não caberá aqui apreciar o procedimento administrativo e a regularidade do mesmo, para além do que se estipula no Regime Geral dos Ilícitos de Mera Ordenação Social, como seja o disposto no art.º 50.º do RGCO. Uma coisa são os vícios do procedimento administrativo, outra coisa são os vícios do procedimento contra-ordenacional. Apenas estes últimos poderão ser apreciados nesta sede.
Importa salientar que o cidadão afectado por um acto administrativo tem ao seu dispor forma de impugnar esse acto, nos termos da Lei Administrativa. Não o fazendo, o acto consolida-se na Ordem Jurídica e produz os seus efeitos.
Contudo, sempre se dirá que, conforme resulta dos autos o parecer em causa existe e encontra-se documentado. Não interessa aqui apurar se o parecer está bem ou mal fundamentado, se tem ou não razão de ser à luz da situação concreta.
A verdade é que, repita-se, o mesmo existe. E se não existisse também não seria aqui o local próprio para apurar das consequências da sua falta no que concerne à validade do acto administrativo.
Questão diversa é a de saber se a lei obriga a que tal parecer seja enviado ao destinatário da notificação descrita no art.º 8.º do Regulamento de Espaços Verdes Municipais.
Entendemos que não. Tal não se retira do regime jurídico agora em análise.
Assim sendo, inexiste nulidade de que cumpra conhecer e que ponha em causa o procedimento contra-ordenacional em análise.
Em face do exposto, julgo improcedente a nulidade invocada.
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Alega ainda a arguida que o procedimento é nulo, por ter inexistido audição dos interessados.
Reitera-se aqui o que já ficou exposto quanto aos vícios do procedimento administrativo, cuja apreciação não cabe no âmbito destes autos.
A falta de audiência dos interessados no âmbito do procedimento administrativo, a existir, não fere de nulidade a decisão administrativa proferida no âmbito do procedimento contra-ordenacional. Trata-se, como já se afirmou, de realidades distintas.
Em face do exposto, julgo improcedente a nulidade invocada.
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Alega a arguida que a decisão é nula por falta de fundamentação, na medida em que houve uma questão suscitada na defesa apresentada que não foi objecto de pronúncia pela autoridade administrativa.
Mais uma vez, não lhe assiste razão.
A defesa apresentada (cfr. fls. 24) invoca que “a arguida não praticou, nem deixou de praticar, qualquer acto que preencha o tipo legal de qualquer contra-ordenação (…)” e que a norma invocada é inconstitucional, bem como a parte do Regulamento dos Espaços Verdes que comina a aplicação de coimas está ferida de inconstitucionalidade.
Não há dúvidas de que a decisão administrativa pronuncia-se sobre as questões suscitadas, pelo que não padece do vício invocado.
A questão agora invocada é outra e radica numa interpretação da lei da autoria da arguida e que não consta da defesa que apresentou, razão pela qual inexiste qualquer omissão de pronúncia.
No entanto, sempre se dirá, em abono da verdade, que a norma em causa (art.º 8 do citado regulamento) prevê, numa primeira fase a notificação do proprietário para proceder à limpeza. Se assim não fosse não se veria utilidade na estipulação de um prazo de uma sanção associada ao incumprimento desse prazo (art.º 16 do mesmo regulamento). Claro que só no caso do proprietário não cumprir a ordem que lhe é dada é que a Câmara pode substituir-se ao mesmo e proceder, coercivamente, à limpeza.
Para além disso, prevê-se ainda o sancionamento dessa omissão com coima (art.º 16.º, al. a) daquele diploma.
As normas em causa são claras e de fácil compreensão.

Em face do exposto, julgo improcedente a alegada nulidade da decisão administrativa».


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B.2.1 - Cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do art. 75º nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10 (RGCO), nos processos de contra-ordenação, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal funcionará, no caso, como tribunal de revista.

Por outro lado, o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação.

Assim, delimitando de forma clara o seu objecto, reorganizando-o com diversa metodologia:

I – O regulamento dos espaços verdes municipais é essencialmente aplicável aos espaços verdes públicos, apenas sendo aplicável a prédios privados quando se verifiquem os pressupostos elencados nos seus artigos 1º e 8º, condições que se não verificaram – conclusões I e II;
II – A entidade administrativa não demonstrou os pressupostos necessários à sua aplicação à arguida, não alegou o preenchimento das condições de facto e de direito necessárias à aplicação do regulamento nem invocou estar em causa o interesse público – conclusões II, III e IV;
III – Não se demonstrou que a arguida tenha agido ilícita ou culposamente (sendo que a negligência só é punível quando expressamente previsto na lei) – conclusão X;
IV – As normas invocadas pela entidade recorrida padecem de inconstitucionalidade orgânica, já que respeitam a matéria de reserva relativa da assembleia da república - conclusão V;
V – São nulos, quer o acto administrativo, quer a decisão condenatória, por não terem sido fundamentados com o parecer a que alude o nº 2 do artigo 8º do dito regulamento - conclusão VI;
VI – A nulidade de acto administrativo pode ser declarada por qualquer tribunal – conclusão VII;
VII – A decisão condenatória é nula por falta de fundamentação, quer de facto, quer de direito – conclusão VIII;
VIII – A decisão administrativa é nula por não ter sido precedida da audiência dos interessados – conclusão IX.

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B.2.2 – Antes de abordarmos directamente as questões postas, impõe-se fazer um breve e prévio esclarecimento.

O direito de mera ordenação social é um direito distinto e autónomo que – e apenas - apresenta uma vizinhança próxima com o direito administrativo e o direito criminal e tem zonas de sombra na interpretação e aplicação dos seus normativos.

Mas não é direito administrativo, mesmo que a jurisprudência não tenha ajudado a esclarecer esta questão quando falou em “fase administrativa do processo contra-ordenacional”. Mas o reconhecimento da existência de uma fase administrativa não o torna direito administrativo.

A todo o processo contra-ordenacional é aplicável o direito processual penal como direito subsidiário, mesmo na fase administrativa.

Assim, a vizinhança com o direito administrativo limita-se à definição orgânica de competências para decisão e com particularidades muito próprias, de que a possibilidade de revogação da decisão (artigo 62º, nº 2 do RGCO) é mero exemplo, em contraposição com a decisão judicial regra.

Com o direito penal por surgir como um direito sancionatório “de carácter punitivo”, com um acervo de sanções cada vez mais gravosas quer no seu quantum, quer na sua natureza (sanções acessórias restritivas de direitos, puras privações de direitos, encerramento de estabelecimentos, etc e, até, a possibilidade de aplicação da pena criminal de “trabalho a favor da comunidade” – artigo 89º-A do Dec-Lei nº 433/82, de 27-10).

Mas, repete-se, é um direito “autónomo e distinto do direito criminal” (preâmbulo do Dec-Lei nº 433/82, de 27-10).

No entanto sempre apresentou, apresenta e apresentará um pecado original: o não se distinguir “substancialmente” do direito penal, na medida em que não é um ilícito ético-socialmente indiferente. Daí a necessidade da sua distinção por referência a critérios formais. - No entanto, Prof. Figueiredo Dias, in “Temas básicos da doutrina penal” – pags. 145 e segs. Coimbra Editora, 2001. - Ou “materiais” e “formais”, na terminologia do Prof. Figueiredo Dias, ob. e loc. cit.

E, não obstante a proclamada neutralidade ético-social do direito contra-ordenacional, certo é que a própria doutrina antevê nas alterações introduzidas no regime originário das contra-ordenações uma “contra-revolução contra-ordenacional”. - Fig. Dias – in “Direito Penal – Parte Geral” – Tomo I, pags. 148 e 155. Coimbra Editora, 2004.

O que quer significar que, apesar das diferenças dogmáticas entre o direito penal e o direito contra-ordenacional, se esbatem os contornos de ambos os ramos do direito, designadamente do lado sancionatório, impondo-se, pois, um maior rigor em certos aspectos basilares, nestes avultando os direitos de defesa.

E a Convenção Europeia dos Direitos do Homem pode concordar com a inexistência de distinção – “substancial” – entre direito penal e direito contra-ordenacional para efeitos do direito de defesa, concluindo que estava perante uma acusação contra-ordenacional se está perante matéria penal a que é aplicável o artigo 6°, nº 1 (Direito a um processo equitativo).

Daqui decorre, naturalmente, que este processo contra-ordenacional não pode ser visto de forma ligeira, como coisa menor, de somenos importância pois que, para além das invocadas razões, as penas impostas são cada vez mais gravosas e a intromissão do Estado na vida do cidadão é cada vez mais asfixiante não só pela proliferação das entidades que pretendem regular cada passo de vida do cidadão, também pela substância das cada vez mais metediças exigências das entidades administrativas que conseguem verter em leis as suas tendências tecnocratas e/ou absolutistas.

Ou seja, entende-se ser papel da magistratura judicial estabelecer de forma exigente – de acordo, aliás, com a saudável jurisprudência europeia – os limites claros de uma actuação excessiva, por vezes abusiva, de entidades administrativas e seus técnicos naquilo que é um processo punitivo com características penais incontornáveis.

Para o caso concreto importa então repisar que haverá uma leitura exigente, sem deixar de ser equilibrada, das exigências processuais do processo contra-ordenacional, tendo sempre presente que neste processo estamos perante uma “acusação em matéria penal” - E convém não olvidar que, no dizer do Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, pag. 153, Coimbra Editora, 2004), o direito contra-ordenacional “se não é direito penal, é em todo o caso direito sancionatório de carácter punitivo”). para os efeitos da Convenção, sem que isto implique uma colagem às redobradas exigências de um processo penal.


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B.3 – No caso concreto convém começar por referir que a Constituição da República Portuguesa reconhece ao cidadão e às empresas o direito à propriedade privada – artigo 62º.

Por isso a arguida pode ter o prédio objecto do processo como um bem reconhecido pela ordem jurídica, com a consequente limitação da Câmara Municipal quanto à “gestão” do prédio da arguida. Que é como quem diz, a entidade administrativa não pode, em princípio, intrometer-se na gestão da propriedade privada da arguida.

Admitindo por facilidade de raciocínio, a constitucionalidade orgânica e material do regulamento punitivo e do acerto formal da decisão administrativa em termos de vícios formais – de que não curamos agora nem iremos tratar, por desnecessidade – tal regulamento apenas prevê a possibilidade de intervenção camarária caso esteja em causa um interesse público afectado pela propriedade privada da arguida.

Ou seja, não é lícito à entidade administrativa obrigar a arguida a agir se o prédio desta for inestético ou sujo, desde que esta sujidade não ponha em causa um interesse público.

E isso é que não se vê onde esteja demonstrado em lado algum. Nem no auto de notícia, nem na decisão administrativa nem, sequer, na decisão judicial.

Aquele, o auto de notícia, surge-nos como uma pérola que se compõe por “queixa” de vizinho, sem que se demonstre a existência de qualquer ilícito ou pressupostos de intervenção por interesse público e, portanto, do surgimento de uma obrigação de limpeza para a arguida.

Na decisão administrativa apenas existe um facto consistente na constatação de uma notificação administrativa mas onde se não dá conta da prática de qualquer facto ilícito e culposo.

Na decisão judicial há três “factos” provados que consistem na existência de limpeza de um lote de terreno (ou seja, um só facto, o 1). E duas construções jurídicas não perfeitamente definidas e perceptíveis.

Ou seja, sequer os factos existem ou têm unidade desde o auto de notícia à decisão final.

E é indubitável que a arguida tinha direito à delimitação com clareza dos factos ilícitos e culposos imputados desde o auto de notícia inicial, passando pela decisão administrativa e a terminar na decisão judicial. Ou seja, uma clara e constante definição do “objecto do processo” que permitisse uma defesa eficaz.

Em breve, qualquer arguido tem o direito de saber quais os factos que lhe são imputados, qual o regime jurídico em que se baseia a punição, desde logo quais os requisitos que permitem a aplicação da norma punitiva.

Aqui os pressupostos que permitiam a afirmação de um interesse público na intervenção. Sem tais pressupostos claramente vertidos em auto de notícia e factos provados não há ilícito culposo.

Ou seja, são aplicáveis ao caso dos autos as razões e fundamentos que se prescrevem no acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008 relativo à aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, para a qual se exige que as disposições legais aplicáveis constem da acusação ou da pronúncia.

Como se fundamenta naquele acórdão – e como é jurisprudência constitucional pacífica – o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. «A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico--criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas. Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (…) nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis».

E, aqui, o essencial era a delimitação clara dos pressupostos da aplicação da norma, essencial também à definição de um dever de agir (pressupondo ambos uma clara exposição dos factos imputados).

Mas se nem os factos que constituem o “objecto do processo” são conhecidos, então a situação é completamente kafkiana.

Aqui releva sobremaneira a definição do que seja, factual e juridicamente, o interesse público da intervenção. Porque sem a caracterização do que seja o interesse público – que factos justificam a afirmação de que o prédio da arguida põe em risco a saúde pública, por exemplo – a situação criada é de puro e simples abuso.


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B.4 – Por outro lado parece ser esquecido que o direito contra-ordenacional é um direito assente na culpa. Pelo menos a crer na leitura dos artigos 8º a 11º do RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).

Se a tal juntarmos a exigência do cumprimento do princípio da legalidade (artigo 2º do RGCO) temos que só são puníveis os factos descritos e declarados em lei prévia como passível de ser acoimados, desde que o facto seja doloso ou, em casos especiais, negligentes (artigo 8º RGCO).

O que se provou nestes autos, conforme resulta da decisão do tribunal recorrido é o seguinte:

1 – No dia 28 de Novembro de 2013, o arguido não tinha procedido à limpeza do lote n.º 34 da Urbanização do PP, sua propriedade, em cumprimento da notificação da Câmara Municipal de P de 23 de Outubro de 2013, para no prazo de vinte dias proceder à limpeza do referido lote;
2 – Tal notificação foi feita nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do art.º 8.º do Regulamento Municipal de Espaços Verdes Municipais;
3 – O legal representante da arguida não cumpriu voluntariamente a ordem administrativa de limpeza do lote sua propriedade, tendo previsto como possível a violação das normas relativas à limpeza do terreno e conformou-se com ela, aceitando-a, nada fazendo para a evitar.

Não há aqui qualquer facto ilícito e culposo declarado passível de aplicação de coima por lei prévia.

Aliás, não há qualquer facto relevante, pois que os “factos” 2 e 3 não são factos. São confusas conclusões jurídicas que até assumem que a Câmara Municipal e os seus fiscais – mais os vizinhos - podem, a seu bel-prazer, mandar qualquer cidadão ou empresa proceder à “limpeza” da sua propriedade. Ou autuar um cidadão ou empresa porque um vizinho incomodado com algo apresentou uma “queixa”, como decorre do auto.

Se a Câmara Municipal não tem noção das suas limitações e de que é um mero poder autárquico de um Estado de Direito, competia ao tribunal recorrido (como “mero” poder judicial) ser rigoroso na defesa dos pressupostos – no caso concreto – desse Estado de Direito.

Não havendo a imputar à arguido qualquer facto ilícito vai a mesma arguida absolvida da acusação formulada.


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C - Dispositivo

Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso interposto e, em consequência decidem absolver a arguida da contra-ordenação imputada.

Notifique, incluindo a entidade administrativa.

Sem tributação.

(processado e revisto pelo relator).

Évora, 05 de Maio de 2015

João Gomes de Sousa

Felisberto Proença da Costa