Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
115/12.2TTBJA-C.E1
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: PESSOA COLECTIVA DE UTILIDADE PÚBLICA
BENS IMPENHORÁVEIS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – Por força do estatuído no n.º 1 do artigo 737.º do Código de Processo Civil estão isentos de penhora os bens (i) de pessoas colectivas de utilidade pública (ii) que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública;
II – Como facto impeditivo do direito do exequente à penhora de tais bens, ao executado/oponente, pessoa colectiva de utilidade pública, compete alegar e provar que os bens em causa estão afectos a tal fim (n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil);
III – Para tal não basta que o executado/oponente alegue genericamente que os bens estão afectos à realização de fins de utilidade pública, sendo necessário que alegue o específico fim a que os mesmos se destinam;
IV – Não alegando tal fim não pode, consequentemente, provar o mesmo, pelo que em tal situação nada impedia de o tribunal decidir a oposição à penhora sem haver lugar à produção de prova testemunhal.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 115/12.2TTBJA-C.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa, em que é exequente BB e executada Casa …, deduziu esta oposição à penhora de depósitos bancários, alegando, para tanto e em síntese, que sendo instituição particular de solidariedade social de utilidade pública não lhe podiam ser penhorados tais depósitos por se encontrarem isentos de penhora.

Respondeu a exequente, a pugnar pela improcedência da oposição, por entender que para que os bens sejam impenhoráveis não basta que a executada seja pessoa colectiva de utilidade pública, sendo também necessário que esses bens se encontrem afectos à realização de fins de utilidade pública, o que no caso nem sequer foi alegado.

Em sede de saneador/sentença foi julgada improcedente a oposição à penhora deduzida pela executada e, em consequência, ordenado o prosseguimento da execução.

Inconformada com a referida decisão, a executada/oponente dela veio interpor recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«1ª A Recorrente deduziu oposição à penhora nos termos do artº 784°, nº 1, ai. a) do CPC, no âmbito do Pº nº 115/12.2TTBJA - C, Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Trabalho de Beja.
2ª Por considerar que os bens penhorados (saldos bancários) eram bens relativamente impenhoráveis nos termos do artº 737°, nº 1 do CPC, por estarem afectos a fins de utilidade pública.
3º No incidente de oposição à penhora a ora Recorrente juntou documentos e indicou testemunhas.
4º No Despacho Saneador/Sentença que conheceu do mérito da causa, o Tribunal julgou totalmente improcedente, por não provada, a oposição à penhora deduzida pela Executada, determinando o prosseguimento da Execução, porquanto a Executada não fez qualquer alegação da afectação concreta desses bens (saldos bancários) a fins de utilidade pública, para poder beneficiar da isenção de penhora, não constando dos autos elementos que inequivocamente o provem, cabendo o ónus da prova ao Executado.
5º Do Acordo e Anexos verifica-se que o Centro Distrital de Segurança Social de Beja presta apoio técnico e financeiro à Executada Casa…, sendo os montantes desse apoio financeiro do CDSS de Beja que constituem o suporte financeiro da Executada, os quais estão totalmente afectos a fins de utilidade pública.
6ª Dos meios de prova indicados pela Executada, a prova testemunhal não foi apreciada pelo Tribunal, tendo o incidente sido processado sem aplicação do artº 785°, nº 2 do CPC.
Nestes termos, deve ser revogada a Decisão recorrida, prosseguindo o incidente de oposição à penhora com aplicação do disposto nos artºs 292° e seguintes do CPC, assim fazendo Vossas Excelências Venerandos Desembargadores a costumada Justiça».

Não tendo sido apresentadas contra-alegações, foi seguidamente o recurso admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Remetidos os autos a este tribunal, e aqui recebidos, presentes à Exma. Procuradora-Geral Adjunta neles emitiu douto parecer, no qual ponderou que a oponente/executada não alegou quaisquer factos concretos no sentido de que o saldo da conta bancária se destinava a um específico fim inserto na sua utilidade pública, pelo que deveria desde logo, por ineptidão, ter a oposição sido indeferida liminarmente; mas não tendo assim sucedido, deveria em sede de saneador haver lugar à absolvição da instância.
O referido parecer não foi objecto de resposta das partes.

Elaborado projecto de acórdão, colhidos os vistos legais, após conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objecto de recurso e Factos
Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso que, como é sabido, delimitam o objecto deste, no caso a questão essencial a decidir consiste em saber se deveriam ao autos ter prosseguido para produção de prova testemunhal de que o bem penhorado se destinava a um fim de utilidade pública.

Com vista à decisão da causa na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
a) Por sentença datada de 15 de Julho de 2015, proferida no âmbito da acção comum emergente de contrato de trabalho nº115/12.2TTBJA.2, foi a aqui Executada/Embargante, Casa … condenada a reintegrar a Autora no mesmo estabelecimento, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade e a pagar as remunerações que esta deixou de auferir desde 21.02.2012 e até ao trânsito em julgado da decisão final do processo, incluindo subsídios de férias e de Natal, tendo por base a retribuição mensal de €690,71, mas com redução das importâncias referidas nas als. a) e c) do nº2 do art. 390º do C.Trabalho de 2009; bem como os créditos salariais no montante de €2.845,93; a quantia de €1.153,00, a título de abono para falhas, acrescido dos respectivos juros de mora;
b) Tal decisão já transitou em julgado;
c) Nos autos de execução a que os presentes se encontram apensos foi realizada a penhora de saldos bancários pertencentes a Executada, no montante de €5.722,35;
d) A Executada encontra-se registada como Instituição Particular de Solidariedade Social.

III. Fundamentação de direito
A decisão recorrida julgou improcedente a oposição à penhora, tendo para tanto desenvolvido a seguinte fundamentação:
«Pretende a Executada que, pelo facto de os saldos bancários pertencerem a uma pessoa colectiva de utilidade pública, que é a sua natureza, assumindo-se como Instituição Particular de Solidariedade Social, seja reconhecido a esses bens, desde logo e “ipso facto” afectos aos fins fundamentais prosseguidos por aquela pessoa colectiva pública, ou seja, a fins de utilidade pública, não fazendo qualquer alegação da afectação concreta desses bens a fins de utilidade pública.
A regra em matéria de penhora é a da sujeição à execução de todos os bens do devedor susceptíveis penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda (arts. 601º do C.Civil e 735º do C.P.C.).
A lei consagra, porém, a impenhorabilidade de certos bens: total ou absoluta (art. 736º do C.P.C.); relativa (art. 737º do C.P.C.) e parcial (art. 738º do C.P.C.).
No que respeita aos bens do domínio público existe uma salvaguarda absoluta – impenhorabilidade total – assente, obviamente, na presunção “iuris et de iure” de que tais bens estão, pela sua própria natureza, afectos exclusivamente a fins de utilidade pública e consequentemente justifica-se plenamente o sacrifício do particular em prol do bem comum.
Já quanto aos bens do domínio privado do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas, a sua natureza não permite concluir pela afectação exclusiva ou sequer predominante a fins de utilidade pública e daí que, norteado pelos princípios da proporcionalidade e da necessidade/adequação, entre o interesse do credor/exequente e a salvaguarda do interesse público, o legislador tenha isentado de penhora apenas os bens afectos concretamente à utilidade e satisfação do interesse público. Daqui decorre que só os bens que estiverem afectos a fins de utilidade pública beneficiarão da prerrogativa da impenhorabilidade.
Para beneficiar da isenção da penhora, será necessário ao beneficiário a alegação e prova da afectação concreta dos bens a fins de utilidade pública (trata-se de matéria de excepção e como tal o ónus da prova cabe a quem aproveita – art. 342º, nº2 do C.Civil).
A utilidade pública do bem tem que decorrer do uso directo que dele se fizer e tal uso concreto, se em certos casos pode inferir-se da natureza do próprio bem, se devidamente identificado (p. ex., uma escola pública, um posto de saúde público) na maioria dos casos assim não sucederá, porquanto na identificação dos bens não é exigível a indicação do uso que lhe é dado. Se dos elementos constantes dos autos não resulta inequívoca a afectação do bem a fins de utilidade pública, impõe-se ao executado, em sede de oposição, que alegue e prove essa concreta afectação, sob pena de manutenção da penhora (neste sentido, vide, acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 12.01.2006 e de 05.06.2014, in www.dgsi.pt).
Porque a regra é da penhorabilidade e a excepção a da impenhorabilidade, cumpre ao executado alegar e provar que o bem penhorado está especialmente afectado à realização de fins de utilidade público, constituindo seu ónus probatório. Assim se tem decidido na jurisprudência: ver o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.02.1996, onde se menciona que “só devem considerar-se impenhoráveis os bens directamente utilizados por uma pessoa colectiva de utilidade pública no desempenho da sua actividade, ou seja, os bens de todo indispensáveis ao seu normal funcionamento”, orientação acompanhada por Teixeira de Sousa (Acção Executiva Singular, 1998, pág.211).
Entendemos que faz todo o sentido este entendimento, já que, como se referiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.10.1993 (in CJ, 4, pág.146), onde se decidiu que a executada tem de provar ser uma pessoa colectiva “e que os bens penhorados estão afectados ou aplicados a fins de utilidade pública, que tem de resultar do uso do próprio bem se os próprios bens do Estado não afectados directamente (porque indirectamente todos estão) a fins de utilidade pública, podem ser penhorados, ainda mais o podem ser os bens das pessoas colectivas. Bem se compreende que assim seja. É que a existência de património penhorável, como garantia geral do cumprimento das obrigações é para qualquer pessoa a base necessária à atribuição do crédito. A impenhorabilidade em termos excessivos, coloca o Estado e as restantes pessoas colectivas na mesma situação de quem não tem património e, por isso, não tem crédito, dificultando, ou até, impedindo a sua intervenção no comércio jurídico.
No caso em apreço não foi alegado, por parte da Executada, que as quantias monetárias penhoradas estivessem afectadas à realização de fins de utilidade pública. A mesma limitou-se a alegar que, sendo uma Instituição Particular de Solidariedade Social de reconhecida utilidade pública, prossegue os fins na localidade em que se insere, tendo a funcionar nas suas instalações uma creche e um estabelecimento de ensino pré-escolar.
Ora, desta alegação não se descortina o fim concreto por si atribuído às quantias monetárias que foram penhoradas, não se podendo presumir que as mesmas estão afectas a qualquer fim de utilidade pública. O uso conferido às quantias monetárias não se apresenta como um facto notório ou do conhecimento geral e, portanto, sendo um facto impeditivo do direito da Exequente incumbia à Executada a sua alegação e prova. Não tendo apresentado qualquer alegação quanto ao uso conferido às quantias monetárias, não poderão esses bens ser qualificados como impenhoráveis.
Para além disso, sempre se dirá que a penhora dos saldos bancários não coloca em questão a sobrevivência da instituição, já que se trata apenas de retirar dinheiro da conta bancária, o que poderia ser feito voluntariamente pela Executada, e a sua vida continua. A Executada tem um encargo financeiro para com a Exequente, sendo devedora desta, devendo, como tal, liquidar as suas obrigações, o que apenas será concretizável através da utilização de quantias monetárias. Se não o fez voluntariamente, terá de o fazer através da retenção no âmbito do processo executivo, o que foi concretizado nestes autos. Não poderá a Exequente alegar que as quantias monetárias penhoradas estão afectas a fins de utilidade pública e escusar-se ao pagamento das suas obrigações, como pretende fazer nos presentes autos.
Por tudo o exposto, e não se encontrando alegada qualquer factualidade que permita concluir o destino a conferir às quantias monetárias penhoradas, não sendo possível aferir da sua destinação a uma utilidade pública, resta concluir pela manutenção da penhora efectuada».

Subscreve-se integralmente a citada fundamentação, pelo que apenas importa relevar/reforçar alguns elementos dela constantes.
Estatui o artigo 737.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, à semelhança do que estabelecia o artigo 823.º, n.º 1, do anterior Código de Processo Civil, que estão isentos de penhora os bens de pessoas colectivas de utilidade pública que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.
Do referido preceito decorrem, pois, dois requisitos, cumulativos, quanto à impenhorabilidade dos bens:
i) que os mesmos pertençam a pessoa colectiva de utilidade pública;
ii) que se encontrem afectados à realização de fins de utilidade pública.
Como facto impeditivo do direito à penhora, à executada compete alegar e provar tais requisitos (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
No caso mostra-se pacífico que o saldo da conta bancária pertence à executada, aqui exequente, pessoa colectiva de utilidade pública e, assim, verificado se mostra o primeiro dos requisitos enunciados.
Já quanto ao segundo dos requisitos, competia desde logo à oponente alegar o concreto fim a que o saldo da conta bancária se destinava, não bastando afirmar genericamente que se destinava a fins de utilidade pública: de outro modo, como se assinala na sentença recorrida, bastaria uma executada alegar e provar que é pessoa de utilidade pública para que um bem (por exemplo, saldo da conta bancária), ipso facto, não lhe pudesse ser penhorado.
É certo que se poderá sustentar que sendo uma pessoa colectiva de utilidade pública todos os bens que lhe pertencem estão afectos, lato sensu, à realização desses fins de utilidade pública.
Contudo, manifestamente não é essa a interpretação que decorre do referido artigo 737.º do Código de Processo Civil, pois tal conduziria à impenhorabilidade, ipso facto, de todos os bens pertencentes a uma pessoa colectiva de utilidade pública: como estatui o preceito em causa é necessário que os bens «se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública», o que vale por dizer que terá que ser alegado, e consequentemente provado, o concreto fim a que se destina o bem penhorado.
Ora, no caso em apreciação, da oposição à penhora não se retira que tenha sido alegado qualquer concreto fim a que se destina a quantia monetária penhorada: não tendo a oponente alegado tal matéria não podia, diremos naturalmente, provar a mesma.
Por isso, seria de todo inútil o prosseguimento dos autos.
Admite-se, como salienta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, que tal deveria ter sido desde logo fundamento de indeferimento liminar da oposição, por ineptidão.
Contudo, não o tendo sido, tendo em conta o objecto do recurso isso significa que este deverá ser julgado improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

Vencida no recurso, a oponente/recorrente deverá suportar o pagamento das custas respectivas (artigo 527.º do Código de Processo Civil).

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por Casa… e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Évora, 14 de Junho de 2018
João Luís Nunes (relator)
Paula do Paço
Moisés Silva

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[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Paula do Paço, (2) Moisés Silva.