Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
218/12.3TAFAR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: CRIME DE USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
ACTOS PRÓPRIOS DE ADVOGADO
CASO JULGADO
CRIME PERMANENTE
ENUMERAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS
RELEVÂNCIA
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - O cumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do C. P. Penal, não impõe a enumeração dos factos não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e, bem assim, aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto (seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena).

II - Esta mesma regra deve aplicar-se à contestação do arguido, só devendo ser incluídos, na factualidade constante da sentença (provada ou não provada), os factos relevantes da contestação.

III - A essência das “garantias de defesa” (consagradas no artigo 32.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa) impõe, claramente, que o juiz tenha de pronunciar-se sobre todos os factos, quer os constantes da acusação, quer os narrados na contestação, quer ainda os resultantes da discussão da causa. Porém, essas garantias de defesa não podem implicar que o juiz tenha de enumerar, como factos, coisas que não o são, só porque constam da contestação apresentada pelo arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

No âmbito do Proc. 218/12.3TAFAR, da comarca de Faro (Faro - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 2), mediante pertinente sentença, decidiu-se nos seguintes termos:

“Em face do exposto, decide-se julgar a acusação procedente, por provada, e em consequência:

- Condenar o arguido VP, pela prática, em autoria material, de um crime usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358º, alínea b), do Código Penal, na pena de 16 (dezasseis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

- Condenar o arguido nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC – cfr. artigo 8º do RCP”.

Inconformado com a decisão condenatória, dela recorreu o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“I - O arguido apresentou contestação.

II - Do factual da sentença recorrida não consta os factos alegados pelo arguido na contestação como “Factos Provados” ou como “Factos Não Provados”.

III - No segmento alusivo ao acervo factológico “Factos Não Provado” apenas é referido: “Inexistentes”.

IV - A sentença ao referir nos “Factos Não Provados” que os mesmos são “Inexistentes”, poderia levar-nos à conclusão, que por exclusão de partes, os factos alegados pelo arguido na contestação, constariam do elenco dos “Factos Provados”.

V - Da leitura dos “Factos Provados”, não consta um único facto alegado pelo arguido na sua contestação.

VI - Os factos alegados pelo arguido na contestação são relevantes para a estratégia da sua defesa e para a boa decisão da causa.

VII - Não satisfaz o dever de fundamentação a alusão “inexistentes”, tornando-se imprescindível uma explicação, das razões subjacentes aos factos alegados pelo arguido/recorrente na contestação, o que, de todo, o tribunal a quo não fez.

VIII - Produzida toda a prova em audiência de julgamento, na fase de deliberação, deve o tribunal valorar os factos descritos na acusação/pronúncia, juntamente com os que constam da contestação oferecida pelo arguido e daqueles que resultaram da discussão da causa (art.º 368º, nº 2 do CPP).

IX - E por isso a sentença, na sua fundamentação fáctica, deve conter a “enumeração dos factos provados e não provados”, os quais, em princípio, terão de compreender, a um ou outro título, todos os factos decorrentes daquela tríplice origem.

X - Enumerar os factos é especificá-los ou contá-los um a um, o que corresponde a dizer que o tribunal tem de especificar todos e cada um dos factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que tiverem resultado da discussão da causa, relevantes para a decisão, como provados ou não provados, como, aliás, sempre decorreria do próprio dever de apreciar, descriminada e especificamente (art.º 368º, nº 2, do CPP), todos esses factos.

XI - A enumeração dos factos é fundamental, pois é a partir deles e à luz do direito que nascerá a decisão, como imprescindível é a indicação expressa dos factos não provados, já que só assim existe a garantia de que o tribunal considerou especificamente toda a matéria de facto sujeita a apreciação.

XII - Os factos constantes na contestação e supra descritos, são relevantes para a boa decisão da causa, não porque sejam necessários para verificar do preenchimento do tipo de ilícito imputado aos arguido, mas porque se revestem de importância para a determinação concreta da pena, quer em caso de condenação em 1ª instância quer em fase de recurso, não podendo, obviamente, o Tribunal Superior tê-los em conta se não constarem de forma explícita da sentença, no rol de factos provados ou não provados.

XIII - A sentença recorrida incumpriu o dever de enumerar, como provados ou não provados, os factos constantes na contestação apresentada pelo arguido, relevantes para a estratégia da defesa e para a boa decisão da causa, como lhe ordena o normativo do nº 2 do art.º 374º do Código de Processo Penal – tal, face ao disposto na al. a) do nº 1 do art.º 379º do mesmo diploma legal, acarreta a nulidade da sentença.

XIV - A sentença recorrida condenou o arguido pelo crime de usurpação de funções, previsto e punido pela alínea b) do artigo 358º do Código Penal, porquanto, no espaço temporal entre 24/06/2010 e 21/03/2011, o arguido praticou atos próprios da profissão de advogado sem estar inscrito na Ordem dos Advogados.

XV - Sucede, que justamente pela prática do mesmo crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358º, alínea b) do Código Penal – prática de atos próprios da função de advogado –, foi o arguido julgado e absolvido em 9 de Julho de 2009, pelo 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, no processo comum nº ---/05.9TAFAR.

XVI - A Sentença absolutória de 09/07/2009 transitou em julgado em 17/05/2010.

XVII - Na referida sentença absolutória o Tribunal conclui que o arguido VP podia praticar atos atinentes à profissão de advogado em causas atinentes ao cônjuge e invocar a qualidade de advogado estagiário, no momento em que o fez.

XVIII - Da leitura da sentença absolutória proferida pelo Tribunal Judicial de Faro em 09/07/2009, processo nº ---/05.9TAFAR, acima transcrita, dúvida nenhuma subsiste, que o arguido se encontra inscrito na Ordem dos Advogados.

XIX - Atente-se à parte final da sentença que refere textualmente “terá de se concluir que o arguido VP podia praticar atos atinentes à profissão de advogado em causas atinentes ao cônjuge e invocar a qualidade de advogado estagiário, no momento em que o fez (era o que estava em causa naquele processo).

XX - Ora, se o VP podia praticar atos atinentes à profissão de advogado e invocar a qualidade de advogado estagiário, como decidiu e bem o Tribunal Judicial de Faro, está bem de ver, que o VP se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados.

XXI - Condição sine qua non para poder praticar os atos próprios da profissão de advogado previstos no disposto no artigo 164º, nº 1, do EOA/84, é se encontrar inscrito na Ordem dos Advogados.

XXII - O crime de usurpação de funções, previsto e punido pela alínea b) do artigo 358º do Código Penal, é um crime permanente.

XXIII - No crime permanente, haverá, pelo menos, uma ação e uma omissão, estruturalmente indivisíveis e que a lei integra numa só figura criminosa (negrito nosso) (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.06.2008, processo n.º 2631/07.9TBPBL in www.dgsi.pt).

XXIV - Como decidiu o Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 05.03.2003, processo n.º 0212140 disponível em www.dgsi.pt: “O crime de usurpação de funções é um crime permanente, em que a execução e consumação do delito se prolongam no tempo, verificando-se uma unificação jurídica de todas as condutas, como se todas elas se tivessem verificado no momento da última conduta. Havendo sucessão de leis no tempo, aplica-se sempre a lei nova, ainda que mais severa, desde que a execução ou o último ato tenham cessado no domínio da mesma lei”.

XXV - O crime de usurpação de funções é um crime permanente, em que a execução e consumação do delito se prolongam no tempo, verificando-se uma unificação jurídica de todas as condutas, como se todas elas se tivessem verificado no momento da última conduta.

XXVI - Dispõe o artigo 671º, nº 1, do CPC: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º».

XXVII - O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa.

XXVIII - A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580º, nºs 1 e 2, do CPC).

XXIX - A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

XXX - Na verdade, «pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida» (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª ed., p. 354. Cfr., no mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325º, pp. 49 e ss..).

XXXI - A autoridade de caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artigo 581º do CPC, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida (cfr., inter alia, os Acs. do STJ de 13.12.2007, proc. 07A3739; de 06.03.2008, proc. 08B402, e de 23.11.2011, proc. 644/08.2TBVFR.P1.S1, todos in www.dgsi.pt.).

XXXII - Revertendo ao caso concreto, está fora de dúvida que a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Faro em 09 de Julho de 2009, no processo comum nº 1961/05.9TAFAR, que julgou e absolveu o arguido do crime de usurpação de funções, transitou em julgado, constituindo, assim, caso julgado.

XXXIII - A fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais encontra-se adequadamente traçada no acórdão da Relação de Coimbra de 28.09.2010 (Proc. 392/09.6 TBCVL.C1, in www.dgsi.pt.), na parte do sumário que se transcreve de seguida:

«I - A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido.

II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 581º do CPC».

XXXIV - O caso julgado formado pela decisão que absolveu o arguido do crime de usurpação de funções, por este se encontrar inscrito na Ordem dos Advogados, podendo por isso praticar atos próprios da profissão de advogado, colide obviamente com a decisão proferida no presente processo face ao crime imputado ao arguido (usurpação de funções), ficando desde logo prejudicada a sua apreciação.

XXXV - Desde modo, a sentença proferida nestes autos, ao condenar o arguido pelo crime de usurpação de funções, com o fundamento que o arguido não se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados, contraria a decisão proferida no Tribunal Judicial de Faro em 9 de Julho de 2009, processo nº ---/05.9TAFAR, transitada em julgado em 17/05/2010, onde se afirmou de forma inequívoca que o arguido se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados, podendo praticar atos próprios da profissão de advogado, razão pela qual foi absolvido do crime de usurpação de funções, de que era acusado.

XXXVI - Significa isso que estamos perante a violação de autoridade de caso julgado.

XXXVII - Nesta conformidade, certo é não poderem ser agora apreciados aqueles factos, sob pena de violação de autoridade de caso julgado.

Sem prescindir,

XXXVIII - Segundo o artigo 32º, nº 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 516).

XXXIX - A sentença recorrida ao incumprir o dever de enumerar, como provados ou não provados, os factos constantes na contestação apresentada pelo arguido, relevantes para a estratégia da defesa e para a boa decisão da causa, como lhe ordena o normativo do nº 2 do art.º 374º do Código de Processo Penal, viola claramente as garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32º, nº 1, da Constituição.

LX - Nestes termos, deve julgar-se inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo, na interpretação dada pela decisão recorrida, ou seja, quando a sentença não enumere, como provados ou não provados, os factos constantes na contestação apresentada pelo arguido, relevantes para a estratégia da sua defesa e para a boa decisão da causa, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição.

Sem prescindir,
LXI - O Código de Processo Penal estabelece, no seu artigo 379º, um regime específico das nulidades da sentença. Assim, e nos termos das três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º, quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º, e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia.

LXII - O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, dispondo o artigo 205º, nº 1, da Lei Fundamental que, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

LXIII - A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência já que através dela se faculta aos respetivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.

LXIV - Mas é ainda através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da atividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto.

LXV - Na lei ordinária o dever de fundamentação encontra-se genericamente consagrado no artigo 97º, nº 5, do C. Processo Penal – os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

LXVI - No que especificamente respeita à sentença – ato decisório do juiz por excelência – o artigo 374º do C. Processo Penal, enunciando os seus requisitos, dispõe no seu nº 2: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

LXVII - A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objeto do processo.

LXVIII - Ora, da fundamentação da sentença de 18 de Março de 2016, não consta a enumeração dos factos alegados pelo arguido como “Provados” ou “Não Provados”, imposta pelo artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.

LXIX - Assim sendo, como é, a insuficiência da fundamentação da sentença, determina, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), do mesmo código, a nulidade da sentença (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.10.1997, processo nº 97P531 in www.dgsi.pt).
Sem prescindir

L - Ora, é falso, que o arguido se tenha apresentado como sendo “Advogado e Mandatário Judicial”.

LI - A procuração em causa documenta uma relação de mandato, tal como é definida no artigo 1157º do Código Civil, pela qual se confere ao mandante poderes de representação, sendo-lhe aplicáveis os artigos 258º e segs. do Código Civil, como decorre do nº 1 do artigo 1178º do mesmo código.

LII - O poder especial conferido pela sociedade E…, Lda., ao arguido, trata-se de poderes para este na audiência de partes (tentativa de conciliação) na presença do Juiz, negociar com a parte contrária, um acordo para fazer cessar o andamento do processo, podendo por isso, confessar, desistir ou transigir.

LIII - Importa ter presente, que em processo de trabalho, nas audiências de partes apenas é obrigatório a presença das partes, pois, ainda não há mandatário constituído da contraparte.

LIV - Ora, da leitura da procuração, verifica-se que a mesma não faz qualquer menção que o arguido é advogado e que lhe foi emitida com poderes forenses.

LV - Além disso, a procuração identifica o arguido pelo nome completo e não com abreviatura de “VP” com que está inscrito na Ordem dos Advogados.

LVI - A procuração em análise, é portanto, um mandato civil. O mandato civil, trata-se de um contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra, que, por qualquer motivo, não quer ou não pode praticá-los pessoalmente.

LVII - Da leitura da procuração dúvida nenhuma subsiste que estamos em presença de um mandato civil e não de um mandato forense. O mandato civil e o mandato forense são figuras jurídicas completamente distintas.

LVIII - O mandato forense é um mandato especial e envolve a atribuição de específicos poderes ao mandatário para representar o mandante em todos os atos e termos de qualquer processo e respetivos incidentes, mesmo perante tribunais superiores (cf. artigo 36º, nº 1, do Código Civil), sendo, assim, um mandato representativo típico, assente na atribuição de um poder geral para pleitear em juízo, realizando, em nome da parte, todos os atos ordinariamente compreendidos na tramitação dos processos judiciais.

LIX - E a procuração que é instrumento desse mandato deve conter a declaração de que o respetivo outorgante dá poderes forenses ou para ser representado em tal e, se for caso disso, dos poderes para confessar, transigir ou desistir (cf. artigo 37º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

LX - Por conseguinte, para estarmos em presença de um mandato forense, a procuração emitida pela E…, Lda., em 23/07/210, teria que obrigatoriamente conter poderes forenses, como dispõe o artigo 37º, nº 1, do Código de Processo Civil, à data em vigor (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/03/2014, processo nº 1196/10 in www.dgsi.pt).

LXI - O Tribunal a quo ao dar como provado que o arguido no dia 24 de Junho de 2010 se apresentou no Tribunal de Trabalho de Faro como sendo Advogado e Mandatário Judicial da Ré E…, Lda., fez uma errada interpretação da procuração emitida em pela E… em 23/06.2010, sendo por isso falso que o arguido se tivesse apresentado como Advogado e Mandatário Judicial na audiência de partes realizada no dia 24 de Junho de 2016 no Tribunal de Trabalho de Faro.

LXII - O arguido é licenciado em Direito.

LXIII - Em 03.02.2004, o arguido requereu no Conselho Distrital de Faro da Ordem dos Advogados, a inscrição de advogado estagiário.

LXIV - Em 18.03.2004 o Conselho Distrital de Faro efetuou a inscrição preparatória do ora arguido, como advogado estagiário.

LXV - Em 07.04.2004, aquele Conselho Distrital notificou o A. dando-lhe conta que as aulas do 1º Curso de Estágio de 2004 tinham início em 19 de Abril de 2004 e que as mesmas seriam ministradas nas instalações do Conselho Distrital.

LXVI - As aulas do primeiro período do 1º Curso de Estágio de 2004 iniciaram-se, efetivamente, em 19.04.2004.

LXVII - O arguido frequentou o primeiro período do 1º Curso de 2004, que compreendia as áreas de Deontologia Profissional, Prática Processual Civil e Prática de Processual Penal.

LXVIII - As notas finais das provas escritas de aferição do primeiro período do estágio foram afixadas nas instalações do Conselho Distrital de Faro, em finais de Julho de 2004.

LXIX - O arguido obteve aproveitamento em todas as áreas – Deontologia Profissional, Prática Processual Civil e Prática Processual Penal.

LXX - Por força desse aproveitamento, o arguido passou à 2ª Fase, ou seja, o segundo período do estágio como dispõe o artigo 28º do Regulamento Geral de Formação.

LXXI - Segundo o nº 3 do artigo 162º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), aprovado pelo Decreto-lei nº 84/84, de 16 de Março (em vigor à data da inscrição), “os requerimentos para inscrição serão apresentados pelos candidatos até 60 dias antes da data do início de cada curso de estágio”.

LXXII - O legislador ao estabelecer no artigo 162º, nº 3, do EOA/84, que os requerimentos para inscrição serão apresentados pelos candidatos até 60 dias antes da data do início de cada curso de estágio, fê-lo, no entendimento que aquele prazo de 60 dias é tempo suficiente para os Órgãos da Ordem (Conselhos Distritais e Conselho Geral) apreciarem e decidirem sobre a validade das inscrições apresentados pelos candidatos a advogados estagiários.

LXXIII - De forma, que, quando se iniciar o primeiro período de estágio de cada curso, o candidato já se encontre definitivamente inscrito como advogado estagiário.

LXXIV - E tanto assim é, isto é, que a inscrição do candidato se encontra deferida quando se inicia o primeiro período do curso de estágio, que o artigo 164º, nº 1, do E.O.A/84, sobre a efígie “Competência dos Estagiários”, estabelece: “durante o primeiro período de estágio, o estagiário não pode praticar atos próprios das profissões de advogado ou de solicitador judicial senão em casa própria ou do seu cônjuge, ascendentes ou descendentes”.

LXXV - Aliás, se o advogado estagiário não se encontrasse definitivamente inscrito na Ordem dos Advogados aquando do início do primeiro período de cada curso de estágio, o disposto no artigo 164º, nº 1, do EOA/84, estaria esvaziado do seu conteúdo.

LXXVI - Dito de outra forma: caso a inscrição do candidato não se encontrasse definitivamente deferida pelos órgãos da Ordem e inscrito na Ordem dos Advogados, é óbvio que não poderia praticar atos próprios da profissão de advogado em situação alguma, nem mesmo os atos previstos no artigo 164º, nº 1, do EOA/84.

LXXVII - Condição sine qua non para poder praticar os atos próprios da profissão de advogado previstos no disposto no artigo 164º, nº 1, do EOA/84, é se encontrar definitivamente inscrito na Ordem dos Advogados.

LXXVIII - Ora, não pode pretender-se conferir tratamento diverso ao candidato à advocacia, consoante esteja em causa o cumprimento de deveres ou o exercício de direitos. No primeiro caso, tratando-o como advogado estagiário desde a inscrição provisória e no segundo apenas a partir da inscrição definitiva.

LXXIX - Assim, terá de se concluir que a partir do início do primeiro período de cada curso de estágio, o candidato à advocacia assume a qualidade de advogado estagiário e pode praticar os atos a que alude o art.º 164º, nº 1, do EOA, ficando ainda sujeito a ação disciplinar.

LXXX - Face ao exposto e, dado que o arguido frequentou o primeiro período do 1º curso de estágio de 2004, que teve inicio em 19.04.2004, realizou exame final de avaliação, lhe foram atribuídas notas finais (tendo obtido aproveitamento em todas elas), terá que se concluir que o arguido se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados desde 19.04.2004.

LXXXI - O Tribunal a quo ao dar como provado que o arguido não se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados nas datas dos factos de que vem acusado, fez uma errónea interpretação dos factos, dado que o arguido se encontra inscrito na Ordem dos Advogados.

LXXXII - Existe erro notório na apreciação da prova quando esta é valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª, Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 6ª Edição, pág. 74) - Acórdão do Tribunal da relação de Coimbra de 25.02.2015, processo nº 28/13.0GAAGD.C1 in www.dgsi.pt.

LXXXIII - Mas o erro notório na apreciação da prova não ocorre apenas quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum, mas também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis - Simas Santos, Leal Henrique e Borges de Pinho, Código de Processo Penal, 2º Vol., 1996, pág.515. Segundo Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág.438, é o erro sobre a admissibilidade e a valoração dos meios de prova (acórdão do Tribunal da relação de Guimarães de 21/06/2010, processo nº 2894/06 in www.dgsi.pt).

LXXXIV - Face à prova produzida em audiência de julgamento, a sentença recorrida extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária, violando não só as regras de experiência comum, mas também as regras sobre o valor da prova vinculada.

LXXXV - Das declarações do arguido e da testemunha TC e da prova documental junta aos autos - procuração e contestação - em parte alguma se pode extrair, antes pelo contrário, que o arguido se apresentou no Tribunal de Trabalho como advogado e que subscreveu a contestação apresentada pela E… na qualidade de mandatário forense.

LXXXVI - A prova produzida em audiência de julgamento vai toda no sentido de que o arguido não se apresentou nem subscreveu a contestação apresentada pela E… na qualidade de mandatário forense.

LXXXVII - O Tribunal a quo ao dar como provado (ponto 1 da sentença) que o arguido VP se apresentou no Tribunal de Trabalho como advogado e Mandatário Judicial da sociedade E…, Lda., extraiu da prova produzida em audiência de julgamento, uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária.

LXXXVIII - Estamos assim em presença de um erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no artigo 410º, nº 2, al. c), do CPP, dado que do texto da decisão recorrida se dá por provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

LXXXIX - O Tribunal conhece oficiosamente os vícios da decisão previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

XC - Nos termos do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil, aplicável ao Código de Processo Penal, «ex vi» do artigo 4º daquele diploma legal, requer que sejam adicionados aos “Factos Provados”, a matéria constante no item “III – MODIFICAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO”.

PEDIDO:

Nestes termos e, sobretudo, nos que serão objeto do doutro suprimento de Vossas Excelências, deve julgar-se a sentença recorrida nula por incumprir o dever de enumerar, como provados ou não provados, os factos constantes na contestação apresentada pelo arguido, por violação do disposto no nº 2 do artigo 374º do CPP, por força da alínea a) do nº 1 do artigo 379º do mesmo diploma legal.

Quando assim se não entenda,

Julgar-se procedente a exceção de autoridade de caso julgado, por a sentença recorrida, que condenou o arguido pelo crime de usurpação de funções, com o fundamento que o arguido não se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados, contrariar a decisão proferida no Tribunal Judicial de Faro em 9 de Julho de 2009, processo nº ---/05.9TAFAR, transitada em julgado em 17/05/2010, onde se afirmou de forma inequívoca que o arguido se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados, podendo praticar atos próprios da profissão de advogado, razão pela qual foi absolvido do crime de usurpação de funções, de que era acusado.

Quando assim se não entenda,
Julgar-se inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação dada pela decisão recorrida, ou seja, quando a sentença não enumere, como provados ou não provados, os factos constantes na contestação apresentada pelo arguido, relevantes para a estratégia da sua defesa e para a boa decisão da causa, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição.

Quando assim se não entenda,
Julgar-se a sentença recorrida nula, por se encontrar insuficientemente fundamentada, violando, dessa forma, os artigos 205º da Constituição da República e o artigo 97º, nº 5, do Código de Processo Penal.

Quando assim se não entenda,
Deve julgar-se procedente o recurso interposto, dado que o Tribunal a quo ao dar como provado que o arguido não se encontrava inscrito na Ordem dos Advogados nas datas dos factos de que vem acusado, fez uma errónea interpretação dos factos, dado que o arguido se encontra inscrito na Ordem dos Advogados.

Quando assim se não entenda,
Deve julgar-se procedente o recurso interposto, dado que o Tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP, dado que das declarações do arguido e da testemunha TC e da prova documental junta aos autos - procuração e contestação - em parte alguma se pode extrair, antes pelo contrário, que o arguido se apresentou no Tribunal de Trabalho como advogado e que subscreveu a contestação apresentada pela E… na qualidade de mandatário forense”.

O Exmº Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1 - Da motivação da decisão de facto da sentença fica-se claramente a saber porque é que o arguido foi condenado. A prova testemunhal e documental foram devidamente valoradas, bem como as declarações do arguido.

2 - Do exame crítico das provas ficou-se claramente a saber porque é que se deram como provados os factos que levaram à condenação do arguido (sendo desnecessárias quaisquer outras considerações face à fundamentação constante da sentença).

3 - A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (dentro desses pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova).

4 - A regra de que a convicção do julgador se deve fundar na livre apreciação da prova implica a possibilidade de dar como demonstrado certo facto certificado por uma única testemunha.

5 - A prova produzida em audiência de julgamento é manifestamente suficiente para dar como provados os factos constantes da sentença, não se verificando qualquer erro notório na apreciação da prova.

6 - É de referir que apenas existe erro notório na apreciação da prova quando para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulado no artigo 127º do C.P.P.

7 - De salientar também que quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.

8 - A imediação e a oralidade é que transmitem com precisão o modo e convicção como as pessoas depuseram, nomeadamente a coerência e sequência lógica com que o fizeram, o tom de voz utilizado, o tempo e a forma de resposta, os gestos e as hesitações, a postura e as reações, o que não pode ser completamente transmitido para a gravação.

9 - Ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal tenha valorado contra o arguido qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efetivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo.

10 - Assim, face aos factos que foram provados não restam dúvidas de que o arguido cometeu o ilícito pelo qual foi condenado, não se verificando qualquer nulidade.

11 - Defende o arguido que os factos imputados nos presentes autos formam uma unidade com aqueles que foram julgados no âmbito do processo ---/05.9TAFAR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Faro, por sentença transitada em julgado em 17.05.2010, devendo entender-se o comportamento do arguido como um único crime de usurpação de funções (já apreciado).

12 - Contudo o objeto dos dois processos não tem claramente a mesma identidade, são factos históricos completamente diversos, pelo que não assiste razão ao recorrente.

13 - Diga-se ainda que só devem dar-se como não provados factos da contestação (e não conclusões) relevantes e relacionados com a decisão (e não tudo o que lá se encontra).

14 - A pena aplicada é justa, equilibrada e adequada aos factos dados como provados, designadamente tendo em atenção as consequências do crime e a falta de arrependimento do arguido.

15 - Assim nenhum reparo nos merece a sentença recorrida.

16 - Nenhuma disposição legal foi violada.

17 - Deve assim manter-se a mesma, fazendo-se assim Justiça”.
*
Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer (fls. 1120 a 1142), entendendo também que o recurso deve improceder.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência.

Antes de entrar na apreciação do recurso interposto pelo arguido da sentença condenatória em causa, importa constatar e declarar a inutilidade superveniente da lide, em relação a um recurso interposto pelo arguido de despacho interlocutório.

Na verdade, os autos subiram a este Tribunal da Relação também para apreciação de um recurso de uma decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência do tribunal.

Nessa decisão, constante de fls. 894 e 895 dos autos, declarou-se a incompetência do Tribunal de Instrução Criminal para admitir um requerimento de interposição de recurso, interposto pelo arguido da decisão instrutória, uma vez que o processo já havia sido remetido para julgamento.

O recurso de tal decisão foi admitido, a fls. 925, mas com subida a final.

Porém, compulsados os autos, verifica-se não só que foi proferida decisão judicial, a fls. 760 e 761 dos autos, a rejeitar o recurso do arguido visando a decisão de pronúncia, como ainda se constata que tal decisão foi objeto de reclamação para o Exmº Juiz Presidente deste Tribunal da Relação.

Tal reclamação foi julgada improcedente (cfr. fls. 67 a 72 do apenso de “Reclamação - artº 405º CPP -”).

Dessa decisão, proferida pelo Exmº Juiz Presidente deste Tribunal da Relação de Évora, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, recurso que não obteve provimento (cfr. fls. 85 a 105 do mesmo apenso de “Reclamação - artº 405º CPP -”).

Assim sendo, não tendo sido admitida (por decisão já transitada em julgado) a interposição de recurso da decisão instrutória, fica prejudicada, obviamente, a apreciação da questão da competência (ou da incompetência) do Tribunal de Instrução Criminal, ou do Tribunal do Julgamento, para apreciar da admissibilidade desse recurso.

Por outras palavras, talvez mais simples: não sendo admissível o recurso da decisão de pronúncia do arguido (por decisão, de inadmissibilidade, já transitada em julgado), não deve, logicamente, estar agora a decidir-se qual o tribunal competente para declarar essa inadmissibilidade (já determinada e já assente, definitivamente, nos presentes autos).

Aqui chegados, nada mais resta a este tribunal ad quem do que apreciar a impugnação feita pelo arguido da sentença condenatória proferida nos autos, considerando-se transitada em julgado a decisão que rejeitou o recurso da decisão instrutória, e, por conseguinte, havendo manifesta perda de interesse da lide recursiva respeitante ao despacho proferido a fls. 894 e 895 (despacho relativo à improcedência da exceção de incompetência do tribunal).

Em conclusão: este tribunal não irá proceder à apreciação do recurso interposto pelo arguido da decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência do tribunal, recurso admitido a fls. 925 dos autos, por manifesta inutilidade superveniente da lide.

Nesta conformidade, será declarada extinta a instância do recurso interposto pelo arguido da aludida decisão interlocutória, ficando, em consequência, prejudicada a apreciação do respetivo mérito.

Passamos, pois, à cognição do recurso interposto da sentença final.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, e vistas as conclusões que o recorrente extrai da motivação do recurso, são cinco as questões a conhecer:

1ª - Saber se a sentença recorrida é nula, por inobservância do disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal (nulidade essa prevista no artigo 379º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal).

2ª - Determinar se houve violação do caso julgado.

3ª - Apreciar da inconstitucionalidade do artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, na interpretação efetuada in casu.

4ª - Avaliar da apreciação da prova (relativamente aos factos provados na sentença revidenda sob os nºs 1, 5, 6, 9 e 10).

5ª - Decidir sobre a existência do vício do erro notório na apreciação da prova.

2 - A decisão recorrida.
A sentença revidenda é do seguinte teor (no tocante à factualidade dada como provada e como não provada, e quanto à fundamentação da decisão fáctica):

“II – FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados

Produzida a prova, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 24 de Junho de 2010, teve lugar, no Tribunal de Trabalho de Faro, a diligência de audiência de partes, no âmbito do Processo Comum n.º ---/10.0TTFAR que corria termos no referido Tribunal, onde o arguido VP se apresentou como sendo Advogado e Mandatário Judicial da Ré nesse processo, a sociedade denominada “E - …, Lda.”, legalmente representada por TC, juntando procuração emitida, para o efeito, a seu favor, e datada de 23/06/2010.

2. Nessa procuração consta: “E…, LIMITADA, com sede na Rua Antero Nobre…, em Olhão, aqui representante pela sua legal representante TC, constitui seu bastante procurador Dr. VP, com escritório na Avenida …, em Olhão, a quem confere poderes especiais para confessar, desistir ou transigir, na ação que corre seus termos, com o processo n.º ---/10.0TTFAR, pela Secção Única, no Tribunal do Trabalho de Faro, em que é Autor BC, podendo assinar termos de responsabilidade e tudo o mais que tiver por conveniente. Olhão, 23 de Junho de 2010.” (assinado pela gerência da sociedade).

3. No dia 06 de Julho de 2010, o arguido apresentou e assinou contestação, no referido Processo n.º ---/10.0TTFAR, intitulando-se Mandatário da Ré, sua constituinte.

4. No dia 21 de Março de 2011, o arguido, intitulando-se Mandatário da Ré, dirigiu requerimento ao referido Processo n.º ---/10.0TTFAR, onde comunicava a impossibilidade de comparência à audiência de discussão e julgamento, solicitando a justificação da falta.

5. Sucede porém que, nessas datas, o arguido não era advogado, e não era titular de qualquer cédula profissional; nunca lhe foi entregue, ou emitida em seu nome, qualquer cédula profissional, quer como advogado estagiário, quer como advogado.

6. Com efeito, o arguido, apesar de ter requerido a sua inscrição preparatória, como Advogado Estagiário no Conselho Distrital da Ordem dos Advogados de Faro, em 03/02/2004, não foi a mesma confirmada pelo Conselho Geral, e viu a mesma indeferida, em 24/11/2011, pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, na sequência da abertura do processo para avaliação da idoneidade moral do arguido para o exercício da Advocacia.

7. O arguido foi notificado do indeferimento da sua inscrição como Advogado Estagiário em 16/01/2012, tendo interposto recurso dessa decisão em 03/02/2012, sobre o qual recaiu decisão de improcedência do recurso, por Acórdão proferido pelo Plenário do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, datado de 03/05/2013.

8. O arguido já tinha sido condenado, a essas datas, no âmbito do Processo Comum Singular n.º ---/06.1TAOLH, do 2.º Juízo Criminal da comarca de Lisboa, pela prática de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º do Código Penal, por sentença datada de 16/12/2009, transitada porém em julgado em 24/10/2012.

9. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que à data em que participou como Mandatário Judicial no âmbito do referido Processo n.º ---/10.0TTFAR, do Tribunal de Trabalho de Faro, não era Advogado, uma vez que, a essa data, apenas tinha requerido a sua inscrição preparatória como Advogado Estagiário, que não tinha sido confirmada; sabia, ainda, que para praticar atos próprios de Advogado, como os que praticou, tinha de ter a sua inscrição confirmada pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados e ser titular de cédula profissional cedida pela Ordem do Advogados, como sabia não ter, o que, não obstante, não o coibiu de praticar atos próprios do exercício de Advogado, como fez.

10. O arguido agiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Antecedentes Criminais do arguido

i. O arguido foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 14.03.2005, pela prática em 07.05.1999 de um crime de injúria agravada, e pela prática em 11.05.1999 de um crime de difamação agravada e de um crime de falsificação de documento, na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão suspensa na sua execução por 3 (três) anos sob condição de o arguido depositar à ordem do processo, no prazo de um ano as quantias de €5.000,00 e €2.500,00, para ser entregue aos ofendidos.

ii. O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 19.05.2006, pela prática em 23.06.1997 de um crime de denúncia caluniosa, na pena de 15 (quinze) meses de prisão suspensa na sua execução por 2 (dois) anos e 6 (seis) meses sob condição de o arguido efetuar o pagamento à assistente da quantia indemnizatória fixada pelo Tribunal.

iii. O arguido foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 24.01.2013, pela prática em 31.08.2007 de um crime de usurpação de funções, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período sob condição de o arguido se inscrever no Instituto de Emprego e de Formação Profissional.

iv. O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 13.04.2006, pela prática em 2001 de dois crimes de injúria agravada, na pena única de 4 (quatro) meses de prisão suspensa na sua execução por um ano e seis meses.

v. O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 24.10.2012, pela prática em 01.01.2006 de um crime de usurpação de funções, na pena de 120 dias de multa à razão diária de €8,00.

Considera-se ainda a seguinte factualidade:

No âmbito do processo ---/05.9TAFAR, foi proferida sentença absolutória, transitada em julgado, cujos factos apreciados e decididos foram os seguintes:

Em 28 de Janeiro de 2005, CP emitiu uma procuração forense a favor do arguido, que é seu cônjuge, na qual este se intitulou Advogado-Estagiário;

Em 7 de Fevereiro de 2005, o arguido, intitulando-se, novamente, advogado estagiário, subscreveu, em representação da aludida CP e entregou no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, um requerimento ao processo nº ---/94, que aí corria termos;

Juntamente com o supra referido requerimento, o arguido entregou naquele juízo a procuração acima mencionada;

O arguido ficou, assim, constituído mandatário da referida CP, naquele processo;

O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que só os licenciados em direito inscritos na Ordem dos Advogados podiam praticar atos próprios desta profissão e que arrogar-se a qualidade de advogado-estagiário sem a possuir é conduta proibida por lei.

Natural de Tavira, e oriundo de um agregado familiar constituído por quatro elementos com um estrato socioeconómico mediano, VP refere ter vivenciado processo de desenvolvimento normativo em termos sociofamiliares.

Após a conclusão do antigo 5.º ano do Liceu, integrou o mercado de trabalho, inicialmente como empregado de escritório e desde cerca dos 25 anos de idade como técnico de contas, atividade que desenvolveu, em moldes contínuos, sendo que em 1992, iniciou diligências para se estabelecer, em regime de sociedade, na área da construção civil, atividade que acabou por abandonar por não corresponder às suas expectativas - dificuldades económicas e problemas de carácter legal de algumas obras entretanto levadas a cabo. Nestes termos, e sensivelmente no mesmo período temporal, inscreveu-se na Universidade Moderna, tendo concluído no ano letivo de 2003/2004 o Curso Superior de Direito, tendo posteriormente iniciado e concluído o respetivo estágio para obtenção da cédula profissional atribuída pela Ordem dos Advogados, que nunca lhe foi atribuída. Decorrente desta situação, VP passou a exercer funções de carácter administrativo, decorrente de algumas solicitações de amigos relacionados com a atividade profissional que desenvolveu.

Em termos afetivos, decorrente do matrimónio de há cerca de 37 anos, resultou o nascimento de um filho, atualmente com 36 anos de idade, que reside com os pais, apesar de autónomo em termos económicos, sendo a relação entre os elementos do agregado considerada consistente.

Socialmente, para além da família nuclear, privilegia o convívio com elementos ligados ao comércio e indústria sedeados em Olhão.

À data dos factos subjacentes ao processo em causa, residia desde 1978, juntamente com a família constituída - cônjuge e filho -, na morada indicada nos autos, num apartamento arrendado na cidade de Olhão, com adequadas condições de habitabilidade, situação que se mantém na atualidade.

Profissionalmente, desenvolvia, tal como no momento, atividades administrativas das sociedades que possuía, atenta a sua vasta experiência, em escritório cedido gratuitamente na cidade de Olhão, na morada indicada nos autos - -----, caracterizando as receitas advenientes da mesma como variáveis mas passíveis de, em concomitância com o vencimento da sua mulher que desenvolvia a atividade de empregada de escritório, proporcionar um quadro económico equilibrado. Contudo, atenta a atual situação de desemprego da sua mulher, que se encontra a beneficiar de subsídio de desemprego no valor de cerca de €700,00 por mês, obriga o agregado a gerir de forma criteriosa as receitas para as despesas do quotidiano.

Decorrente das injunções subjacentes ao Processo n.º ---/07.4TAOLH do extinto 3.º Juízo do Tribunal de Olhão, VP encontra -se inscrito no Centro de Emprego de Olhão, nunca lhe tendo sido apresentada até à data, nenhuma proposta de trabalho concreta.

VP aparenta estar integrado socialmente.

O facto de ter sido constituído arguido no âmbito do presente processo não despoletou grande impacto em termos familiares e repercussões emocionais relevantes.

VP aceita os factos, apesar de refutar a interpretação dada aos mesmos. Nestes termos e em abstrato, aparenta revelar consciência da situação, aceitando a intervenção da justiça, assim como a decisão que venha a ser proferida.
*
O arguido juntou nos presentes autos, em 08.03.2016, petição inicial de ação administrativa contra a Ordem dos Advogados por via da qual pede a declaração de nulidade do despacho do Vogal do Conselho Geral de 24.11.2011 que indeferiu a inscrição por inidoneidade para o exercício da profissão de advogado; a condenação da ré a reconhecer a inscrição como advogado-estagiário desde 18.03.2004 e desde 06.06.2007 como advogado.
*
Factos Não Provados
Inexistentes.
*
Motivação da decisão de facto
A convicção sobre a matéria de facto deverá assentar no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, crítica e conjugadamente analisada, com apelo às regras da experiência e senso comuns e normalidade das coisas.

O arguido disse, em suma, ter agido na qualidade de legal representante da sociedade E…, em substituição de TC, por força de mandato civil e não mandato forense. Salientou, solicitando que bem se lesse a procuração junta a fls. 4, que da mesma não se faz qualquer menção no sentido de o próprio ser advogado e de ter sido emitida com poderes forenses. Não obstante isso, o arguido disse também encontrar-se inscrito na Ordem dos Advogados.

A versão apresentada pelo arguido, analisando e conjugando todos os restantes elementos de prova, não se nos afigura verosímil ou credível.

Desde logo porque os atos objetivamente praticados pelo arguido - prática que o arguido não nega - são concordantes com a prática da atividade de advocacia, e não com quem age como mandatário civil: a) apresentação de uma procuração em tudo idêntica às forenses (fls. 4) – se é certo que não faz referência a poderes forenses, indica grau académico, escritório, confere poderes especiais de desistir, transigir na ação que corre termos com o n.º ---/10.0TTFAR no Tribunal de Trabalho Faro; b) apresentação como mandatário da ré na tentativa de conciliação - é o que consta da ata de audiência de partes, a fls. 5, e tal não foi colocada em causa pelo arguido no aludido processo, designadamente sustentando a sua falsidade; c) apresentação de contestação - que é ato inerente aos mandatos forenses e não civis, a fls. 7-11; d) apresentação de requerimento, intitulando-se mandatário da ré, a informar que não pode estar presente em julgamento, por morte de um seu familiar, a fls. 22 - também reservado aos advogados, na medida em que só estes têm direito ao adiamento da diligência com base em morte de familiar.

Mas mais.
A ser mandatário civil, como diz o arguido, por que não a procuração restringir-se à representação da sociedade para a tentativa de conciliação, onde é admissível a representação da parte por pessoa não no exercício do mandato forense? E a ser apenas mandatário civil, por quê ou para quê comunicar o impedimento de comparecer na audiência de julgamento, já que enquanto mandatário civil não podia intervir em julgamento?

Quanto a esta última questão, explicou o arguido que havia sido notificado para comparecer servindo essa comunicação de impedimento apenas para informar da impossibilidade de comparecer, admitindo hoje - na sequência de pergunta feita na audiência de julgamento - que o Tribunal de Trabalho, em erro, o pudesse ter entendido como advogado da ré na tal ação ---/10.0TTFAR, facto que, na altura, não lhe passara pela cabeça.

Ora, não faz sentido. Apelando às regras da experiência comum, normalidade e logicidade das coisas, não pode aceitar-se que o arguido, à data em que os factos estão a ser vivenciados, não se tenha apercebido que efetivamente estava a ser tratado como se do advogado da ré se tratasse e, mais do que isso, não fora exatamente isso que pretendia.

Tanto que, conforme não deixa de dizer, considerava-se inscrito na Ordem dos Advogados.

O depoimento da testemunha TC - gerente da sociedade E…, cfr. certidão registo comercial a fls. 356-360 - não abalou o resultado desta análise. Com efeito, este depoimento foi prestado de forma vaga e muito pouco esclarecedora das exatas funções atribuídas ao arguido, muitas vezes dizendo a testemunha que fora o pai do seu filho - enquanto gerente de facto da sociedade ré na ação do Tribunal do Trabalho - que sugeriu o arguido e de tudo tratou. Disse mesmo a testemunha, que, para a mesma, quando assinou a procuração (fls. 4) era com vista a ver-se representada naquele dia - o da audiência de partes - naquela diligência para a qual havia sido convocada, por impossibilidade de na mesma comparecer em virtude de o seu filho se encontrar doente. Quanto ao mais, designadamente dedução de contestação, nada revelou saber.

A testemunha JL, Presidente do Conselho Distrital de Faro da Ordem dos Advogados, apenas descreveu factos relacionados com o arguido na medida do seu conhecimento direto sobre as decisões proferidas pela Ordem dos Advogados. Nada mais.

A documentação junta aos autos não pode deixar, com base na mesma, de se fazer concluir no sentido de que o arguido sabia não ser advogado e que, para praticar os factos que praticou, tinha de ser titular de cédula profissional emitida pela Ordem dos Advogados.

Assim:
A fls. 114 consta certidão de uma declaração da Ordem dos Advogados, Conselho Distrital de Faro, em que se consigna que o arguido requereu a sua inscrição como advogado estagiário no dia 3/2/2004, tendo a mesma sido deferida preparatoriamente pelo Conselho Distrital em 18/3/2004, sendo depois remetido o respetivo processo para o Conselho Geral para inscrição definitiva.

Após essa inscrição, o arguido frequentou a primeira parte do estágio, com aproveitamento nos testes de deontologia e prática processual civil e penal.

De fls. 242 verso resulta que o Conselho Geral, por decisão datada de 4/7/2005 não confirmou a inscrição preparatória do arguido como advogado-estagiário, determinando a remessa do processo para o conselho de deontologia territorialmente competente para que, em processo próprio, se procedesse à verificação da falta de idoneidade moral do Sr. VP para o exercício da profissão de advogado, implicando a suspensão do processo de inscrição até trânsito em julgado da decisão do conselho de Deontologia.

Por deliberação de 13.03.2007, o Conselho de Deontologia de Faro, após parecer datado de 08.11.2006, considerou o arguido “…inidóneo para o exercício da atividade profissional de advocacia não podendo ser inscrito na Ordem dos Advogados” - cfr. certidão da existência processo especial averiguação inidoneidade para o exercício da profissão e acórdão do Conselho de Deontologia do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, a fls. 156-193 e 194-199.

Também resulta da documentação junta aos autos que o arguido foi sempre impugnando as decisões da Ordem dos Advogados - portanto ciente de que não lhe havia sido confirmada a inscrição, ainda que contra isso possa, até aos dias de hoje, se insurgir - impugnações sempre improcedentes - vide decisão do plenário do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, que deliberou em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão de falta de idoneidade do arguido para exercer a advocacia, a fls. 242 a 260 -.

Neste ínterim de decisões e impugnações das mesmas, atento o despacho de 04.07.2005, a inscrição não foi confirmada, antes sim suspensa até ao trânsito em julgado da decisão final do processo de falta de idoneidade - vide fls. 210-223 e informação a fls. 386.

Tudo conjugado, é certo e seguro que, na data da sua intervenção no processo do Tribunal de Trabalho, o arguido não tinha visto aprovada a sua inscrição definitiva pela Ordem dos Advogados, não tendo por isso acesso à segunda fase do estágio e, consequentemente, à cédula de advogado estagiário, não podendo intervir nessa qualidade em processos de terceiros (não seus familiares).

No mais, temos as certidões de sentenças proferidas no âmbito dos processos ---/05.9TAFAR (fls. 124-155 e 505-536); ----/06.1TAOLH (fls. 276-292); e ---/07.4TAOLH (fls. 296-342). E cópia de petição inicial, a fls. 944-990.

Considerou-se ainda o certificado de registo criminal do arguido, a fls. 902-912, e relatório social a fls. 934-937”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da nulidade da sentença.

Argui o recorrente a nulidade da sentença, por violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, com base em duas ordens de ideias:

1ª - Por incumprir o dever de enumerar, como provados ou não provados, os factos constantes da contestação.

2ª - Por estar insuficientemente fundamentada a opção fáctica tomada.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “nulidade da sentença”, dispõe o artigo 379º do C. P. Penal:

É nula a sentença:
a) que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º
(…)”.

Por sua vez, o artigo 374º do C. P. Penal, sobre os “requisitos da sentença”, estabelece:
“1. A sentença começa por um relatório, que contém:
(…).

2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
(…)”.

À luz deste preceito legal, há que apreciar as concretas alegações do recorrente.

A - Da enumeração, como provados ou não provados, dos “factos” constantes da contestação:

Invoca o recorrente a nulidade da sentença recorrida, ao abrigo da disposição contida na al. a) do nº 1 do artigo 379º do C. P. Penal, por falta de apreciação dos factos que foram por si alegados na contestação que apresentou.

Vejamos, pois.
A contestação é a peça processual em que o arguido, após ter sido notificado do despacho que designa dia para a audiência de julgamento, pode exercer o seu direito de defesa, defendendo-se da imputação que lhe é feita na acusação ou na pronúncia (artigo 315º do C. P. Penal).

Produzida toda a prova, na fase de deliberação, deve o tribunal valorar os factos da contestação, juntamente com os que constam da acusação ou da pronúncia e daqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368º, nº 2, do mesmo diploma legal).

E, por isso, a sentença, na sua fundamentação fáctica, deve conter a “enumeração dos factos provados e não provados” (artigo 374º, nº 2, ainda do referido Código), os quais, em princípio, terão de compreender, a um ou outro título, todos os factos decorrentes daquela tríplice origem.

Essa exigência legal visa assegurar que todos os factos alegados, quer pela acusação, quer pela defesa, e aqueles que resultaram da discussão da causa, foram objeto de investigação e apreciação pelo tribunal.

Contudo, a razão de ser do artigo 374º, nº 2, na vertente que ora importa ter em conta, tem de ser conexionada com o fim do processo penal, ou seja, o julgamento de uma causa, só tendo sentido a aplicação da norma enquanto estiverem em causa factos relevantes para a decisão de mérito.

Assim, e a nosso ver, o cumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, não impõe a enumeração dos factos não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista com rigor, em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e bem assim aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto - seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena -, tendo em conta os termos das referidas posições assumidas pela acusação e pela defesa e os poderes de cognição oficiosa de direito que cabem ao tribunal.

No caso concreto, analisada a contestação apresentada (cfr. fls. 848 a 851), verifica-se, sem dificuldade, que o arguido se limita a invocar, em suma, que agiu a coberto de um “mandato civil” e não de um “mandato forense” (tecendo diversas considerações técnico-jurídicas acerca da distinção entre ambos), que nunca interveio na qualidade de “mandatário forense” e que nunca praticou quaisquer atos atinentes à profissão de advogado.

Ou seja, o arguido limita-se a negar os factos de que estava pronunciado (consubstanciadores da prática de um crime de usurpações de funções), argumentado e sustentando tal negação, mas, em boa verdade, não trazendo aos autos qualquer facto novo.

Aliás, olhando a motivação do recurso nesta matéria, constata-se que o recorrente não especifica quais os factos concretos, constantes da contestação, que não foram levados (como deviam) à factualidade tida como não provada ou não provada na sentença revidenda.

É que, verdadeiramente, todos os factos, relevantes (afirmados na pronúncia e negados na contestação), foram objeto de cognição e de explicitação na sentença em causa.

As negações, as conclusões e as considerações técnico-jurídicas constantes da contestação, ou, pura e simplesmente, não constituem factos (não podendo ser elencados como tal), ou são manifestamente irrelevantes para caracterizar e definir os contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto (seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, seja por qualquer outro motivo).

Para aquilatar da validade do que acabámos de dizer, basta ler o que, na versão do recorrente, são “factos constantes da acusação”, e que, como tal, estão descritos no ponto nº 13 do corpo da motivação do recurso: “a contestação do arguido/recorrente, relativa à pronúncia, no segmento que importa ter em conta, está factualmente formulada nos termos seguintes: “TC foi citada na qualidade de legal representante da sociedade E…., Lda., Ré no processo n.º ---/10.0TTFAR que corria termos no Tribunal de Trabalho de Faro, para comparecer pessoalmente em audiência de partes. A legal representante da Ré E…, LDA., TC dado que não podia estar presente na audiência de partes, emitiu procuração a favor de VP, ora arguido, com poderes especiais para confessar, desistir ou transgredir na referida ação. No dia e hora marcada para a audiência de partes, o VP, ora arguido, compareceu no Tribunal de Trabalho de Faro, munido da respetiva procuração, apresentando-se como legal representante da Ré em substituição da TC. Tal facto é corroborado pelas declarações da TC no inquérito e no debate instrutório, como bem refere o Tribunal de Instrução no despacho de pronúncia a fls. 19 in fine: “O arguido advoga que interveio como mandatário civil, tanto mais que a procuração não se refere a poderes forenses, sendo igualmente certo que não se intitulou de advogado, sendo certo que na tentativa de conciliação pode intervir qualquer procurador, sem que tenha o título de advogado. A corroborar esta versão temos o depoimento de TC, que afirma que conhece o arguido há vários anos e nunca como advogado, apenas foi representar a sua empresa, já que não conseguia estar presente na tentativa de conciliação. Pediu ao mesmo por este ser seu amigo, não lhe tendo pago qualquer honorário” (negrito nosso). Realizada a audiência de partes, não foi possível entre as mesmas, chegar-se a acordo. Ora, da procuração junta aos autos, emitida pela sociedade E…, Limitada, a favor do VP, verifica-se que a mesma não faz qualquer menção que o arguido é advogado e que lhe foi emitida com poderes forenses. O mesmo sucede com a contestação apresentada pela E. e subscrita pelo ora arguido VP. A contestação foi assinada pelo VP na qualidade de representante da sociedade E., pois, como bem se vê, a mesma não faz qualquer referência que o VP a subscreveu na qualidade mandatário forense. Em parte alguma da contestação diz-se que o arguido VP se intitula como advogado ou consta a menção de “advogado”. A contestação é uma peça processual que podia ser subscrita pelo legal representante da sociedade E…, Lda.. E foi na qualidade de legal representante da E…, que o arguido a subscreveu. Salvo o devido respeito por opinião contrária, quer o Ministério Público no despacho de acusação, quer o Juiz de Instrução Criminal no despacho de pronúncia, fazem uma errónea interpretação dos factos e aplicação do direito, pois, o mandato civil e o mandato forense, são figuras jurídicas completamente distintas. “O mandato forense é um mandato especial e envolve a atribuição de específicos poderes ao mandatário para representar o mandante em todos os atos e termos de qualquer processo e respetivos incidentes, mesmo perante tribunais superiores (cf. artigo 36º, nº 1, do Código Processo Civil), sendo, assim, um mandato representativo típico, assente na atribuição de um poder geral para pleitear em juízo, realizando, em nome da parte, todos os atos ordinariamente compreendidos na tramitação dos processos judiciais. E a procuração que é instrumento desse mandato deve conter a declaração de que o respetivo outorgante dá poderes forenses ou para ser representado em tal e, se for caso disso, dos poderes para confessar, transigir ou desistir (cf. Artigo 37º, n.ºs 1 e 2, do Código Processo Civil) ” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/03/2014, processo n.º 1196/10). Ora, não resulta da procuração emitida pela outorgante E…, que esta tivesse declarado que dava poderes forenses ao arguido VP. Por conseguinte, bem demonstrado fica, que a procuração junta aos autos, emitida pela sociedade E--- não se trata de um mandato forense/judicial, mas sim de um mandato civil. O mandato civil, como bem sabemos, trata-se de um contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra, que, por qualquer motivo, não quer ou não pode praticá-los pessoalmente. Na sua configuração mais típica, o assunto ou negócio que é objeto da gestão pertence ao mandante, sendo este o titular da necessidade a cuja satisfação se dirige a atividade do mandatário. Nos seus traços descritivos gerais, os mandatos são um contrato consensual, sinalagmático imperfeito e supletivamente gratuito. O mandato implica, para o mandatário, uma prestação de facere: a prática de um ou mais atos jurídicos - por conta da outra (artigo 1157.º do Código Civil). É elemento essencial do contrato de mandato que o mandatário esteja obrigado, por força do contrato, a praticar um ou mais atos jurídicos (artigo 1157.º do Código Civil). A natureza do seu objeto - prática de atos jurídicos é, de resto, o que o mandato tem de específico em relação aos demais contratos de prestação de serviço. Esse ato jurídico é um ato alheio, o que faz com que o mandato surja nitidamente como um contrato de cooperação jurídica entre sujeitos e, além disso, um contrato gestório (artigo 1161.º, alínea b) do Código Civil). É igualmente elemento essencial do mandato que o mandatário atue por conta do mandante. Um negócio jurídico é praticado por conta de outrem, sempre que os seus efeitos ou parte deles se devam projetar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não interveio. Por conta de outra, significa que os atos a praticar pelo mandatário se destinam á esfera do mandante. Do exposto, bem demonstrado fica que o VP, ora arguido, esteve presente na audiência de partes e subscreveu a contestação apresentada pela E… no processo n.º ---10.0TTFAR que corria termos no Tribunal de Trabalho de Faro, na qualidade de legal representante da E---, Lda., em substituição da TC. Tal representação ocorreu por força de mandato civil emitido pela sociedade E…, Lda., e subscrito pela sua legal representante TC. À guisa de conclusão: dúvida nenhuma subsiste, que a procuração junta ao processo n.º ---/10.0TTFAR, emitida pela Ré E…, Lda. e subscrita pela sua legal representante TC, trata-se de mandato civil e não de mandato forense, ficando assim provado que o VP, ora arguido, não cometeu o crime de usurpação de funções, previsto e punido pela alínea b) do artigo 358.º do Código Penal, de que vem pronunciado”.

Com o devido respeito por diferente opinião, nenhum facto relevante, não apreciado na sentença revidenda, consta desta exposição (que reproduz a contestação do arguido), exposição que traduz, bem vistas as coisas, ou a mera negação da factualidade típica constante da pronúncia e integradora do crime de usurpação de funções, ou a enunciação de conceitos jurídicos, ou, quanto muito, o relato de algumas circunstâncias perfeitamente inócuas.

Em conclusão, e usando as certeiras palavras da Exmª Juíza a quo, a fls. 1093 dos autos: “da contestação apresentada pelo arguido, a fls. 848-851, não resultam quaisquer factos, no verdadeiro sentido do termo, que não estivessem vertidos na factualidade considerada na sentença condenatória, como seja o teor da procuração. No mais, o arguido limita-se a fazer uma apreciação da prova produzida na fase de inquérito e na fase de instrução, reproduzindo depoimento de testemunha; e sua interpretação do teor da procuração emitida pela sociedade E…, Ld.ª; finalizando com considerações estritamente jurídicas sobre mandato forense e mandato civil”.

Em face de tudo o que se deixou dito, a falta de enumeração, na sentença revidenda, dos “factos” (segundo a expressão e a opinião do recorrente, obviamente) aduzidos na contestação, não envolve, no presente caso, a nulidade a que alude o artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, improcedendo, manifestamente, nesta vertente, o recurso.

B - Da insuficiente fundamentação da decisão fáctica:
Entende o recorrente que a sentença sub judice não está devidamente fundamentada, violando, dessa forma, o preceituado no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa e o estabelecido no artigo 97º, nº 5, do C. P. Penal.

Como bem salienta Marques Ferreira (in “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, Livraria Almedina, 1988, pág. 228), o regime legal, quanto à fundamentação da decisão de facto, consagra “um sistema que obriga a uma correta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objeto do processo, de modo a permitir-se um efetivo controle da sua motivação”.

A razão de ser da exigência da exposição, ainda que concisa, dos meios de prova, é não só permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do julgador, como assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova; é necessário revelar o processo lógico e racional que conduziu à expressão da convicção.

O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários da decisão (e o homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

É nesta motivação da decisão fáctica que se dá a conhecer e a compreender aos outros o processo lógico do julgamento, da apreciação e da valoração da prova. E é ainda esta motivação que permite a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo o tribunal superior verificar se, na sentença, foi seguido um processo lógico e racional de apreciação da prova.

No dizer de Sérgio Gonçalves Poças (in “Da sentença penal - Fundamentação de facto”, Revista Julgar, ed. da ASJP, nº 3, pág. 37), o tribunal dará cumprimento ao disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, com indicação e exame crítico das provas, “ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões, de forma objectiva e precisa, por que é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e por que é que outras não serviram”.

Continua o mesmo autor (local citado, págs. 38 e 39): “são as razões - objetivas, necessariamente - que na apreciação da prova, de acordo com as regras da experiência, levaram o tribunal a dar relevância a determinadas provas e irrelevância a outras, que devem ser expostas na motivação. De facto, é a exposição clara destas razões que permite o exame do processo lógico-mental subjacente à formação da convicção do juiz. (…) Em cada caso, o tribunal, de acordo com os conhecimentos científicos e técnicos convocados pelo caso, e na observância das regras da lógica e da experiência, apreciará cada prova na sua singularidade e no conjunto da prova produzida. Desta apreciação conjunta da prova (…) o tribunal formará a convicção que determinará a decisão sobre a matéria de facto. (…) Impõe-se que o tribunal explicite as razões pelas quais deu credibilidade a umas provas e não deu a outras; porque decidiu de um modo e não de outro. Ou seja, o tribunal (ao motivar) está obrigado a explicitar as razões concretas por que deu credibilidade a determinados depoimentos e não deu a outros; por que lhe mereceram crédito ou não as declarações do arguido; por que entendeu ser (ir)relevante para a decisão o documento junto aos autos (…)”.

Indo à sentença objeto do recurso, na parte reservada à motivação da decisão de facto, verifica-se que o tribunal a quo se pronunciou acerca de todos os factos e de todas as provas (designadamente dos documentos juntos aos autos), explicando, suficientemente, como e em que medida os diferentes meios de prova (testemunhal, documental e por declarações) serviram para formar a convicção que determinou a fixação da matéria de facto dada como provada.

Na sentença está explicitado e devidamente explicado o processo de formação da convicção do tribunal, com o exame crítico das provas em que tal convicção se estribou, nomeadamente constando da sentença qual o raciocínio lógico-dedutivo seguido pela Mmª Juíza para não dar relevo às declarações do arguido e ao depoimento da testemunha TC, que tentaram, de um modo ou de outro, mas sem êxito, confirmar a versão constante da contestação apresentada pelo arguido (versão meramente negatória dos factos integrantes do tipo legal de crime de usurpação de funções, conforme acima já dissemos).

De modo exaustivo, claro e apreensível, a sentença em apreço pronunciou-se acerca da medida e da extensão da credibilidade probatória que mereceram as declarações do arguido, o depoimento da testemunha TC, e, bem assim, o teor dos documentos juntos aos autos, sobre o porquê dessa credibilidade ou falta dela, nomeadamente sobre a relevância para a decisão dos documentos juntos a este processo-crime (sobretudo os concretos termos da “procuração” em questão, e, além disso, os termos da específica intervenção que o arguido teve no processo laboral em causa).

Para chegar a esta nossa conclusão, basta ler, a título exemplificativo, o seguinte pequeno excerto da sentença revidenda, na “motivação da decisão de facto”: “a versão apresentada pelo arguido, analisando e conjugando todos os restantes elementos de prova, não se nos afigura verosímil ou credível. Desde logo porque os atos objetivamente praticados pelo arguido - prática que o arguido não nega - são concordantes com a prática da atividade de advocacia, e não com quem age como mandatário civil: a) apresentação de uma procuração em tudo idêntica às forenses (fls. 4) – se é certo que não faz referência a poderes forenses, indica grau académico, escritório, confere poderes especiais de desistir, transigir na ação que corre termos com o nº ---/10.0TTFAR no Tribunal de Trabalho Faro; b) apresentação como mandatário da ré na tentativa de conciliação - é o que consta da ata de audiência de partes, a fls. 5, e tal não foi colocada em causa pelo arguido no aludido processo, designadamente sustentando a sua falsidade; c) apresentação de contestação - que é ato inerente aos mandatos forenses e não civis, a fls. 7-11; d) apresentação de requerimento, intitulando-se mandatário da ré, a informar que não pode estar presente em julgamento, por morte de um seu familiar, a fls. 22 - também reservado aos advogados, na medida em que só estes têm direito ao adiamento da diligência com base em morte de familiar”.

Muito mais se escreveu, analisando a prova, na sentença recorrida, vendo-se cada elemento probatório, de per si, e olhando-se à sua globalidade complexiva, invocando-se as regras da lógica e da experiência comum, dizendo-se, com clareza, as razões pelas quais não se teve como boa a versão dos factos fornecida pelo arguido.

Tudo isso, assim resumido, a Mmª Juíza fez (e deixou consignado), com clareza, rigor e total transparência, na fundamentação da decisão fáctica constante da sentença revidenda.

O que sucede, mas é coisa diferente da falta de fundamentação, é que o recorrente discorda (melhor: diz discordar) da valoração da prova que foi feita na sentença em causa.

Em jeito de síntese: a Mmª Juíza a quo não só elencou, com detalhe até, o conjunto da prova em que fez assentar a sua convicção, como fez também, pertinentemente, uma apreciação crítica dessa mesma prova, designadamente com indicação dos motivos que a levaram a não dar credibilidade às declarações do arguido e ao depoimento da testemunha TC.

Assim sendo, cumpriu-se o dever legal de fundamentação da decisão fáctica, com exame crítico das provas, incluindo indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios de lógica, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formasse em determinado sentido.

Pelo exposto, verifica-se que a sentença recorrida satisfaz o preceituado no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal.

Por conseguinte, e ao contrário do invocado na motivação do recurso, a sentença revidenda não enferma da nulidade que lhe vem assacada pelo recorrente (nulidade prevenida no artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, por violação do disposto no artigo 374º, nº 2, do mesmo diploma legal).

Improcede, assim, em toda esta vertente, o recurso interposto pelo arguido.

b) Da violação do caso julgado.
Alega o recorrente que, sendo o crime de usurpação de funções um crime permanente, em que ocorre uma unificação jurídica de todas as condutas como se elas se tivessem verificado no momento da última conduta, e tendo a decisão revidenda fixado os factos no espaço temporal entre 24-06-2010 e 21-03-2011, constata-se que o arguido já foi julgado (e absolvido), em 09 de julho de 2009, pela prática da mesma factualidade, no âmbito do processo nº ---/05.9TAFAR (do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro).

Assim, entende o recorrente que deve funcionar a exceção do caso julgado, pois os factos são os mesmos (existe uma única ação), e, como é óbvio, as “partes” são também as mesmas.

Há que decidir.

Em termos simples (e muito genéricos), a violação do caso julgado (ou do princípio ne bis in idem) pressupõe que o agente seja julgado pela prática de factos que já foram conhecidos (apreciados e julgados) num outro processo, anteriormente, ou seja, uma repetição de julgados.

Descendo, porém, mais profundamente, na análise do conceito, deparam-se-nos diversas hipóteses e diferentes figuras, desde logo a do caso julgado formal e a do caso julgado material.

O caso julgado formal respeita ao efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, esgotando-se nele, e, no que tange à matéria do veredicto, esgotado fica também o poder jurisdicional, ficando autorizada a execução da decisão (cfr. Prof. Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pág. 35).

O caso julgado material, como pressuposto processual negativo, consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objeto.

Para a dilucidação do problema que o caso concreto se nos coloca, interessa a análise do caso julgado material, cabendo determinar a delimitação dos seus limites objetivos e subjetivos.

Quanto aos limites subjetivos, importa averiguar se nas duas lides em presença o arguido ou arguidos são os mesmos, e, sendo-o, quais os efeitos que a decisão anterior tem para o futuro, relativamente àquele ou àqueles.

Neste primeiro segmento, nenhuma dúvida subsiste na situação sub judice, pois que o arguido é o mesmo (e é apenas ele e não outros também) em ambos os processos em questão.

No atinente aos limites objetivos, o essencial é definir a identidade do facto delitivo julgado, para que se possa averiguar da eventual violação do princípio ne bis in idem.

Neste ponto, e como bem esclarece o Prof. Cavaleiro de Ferreira (ob. e local citados), “o conceito de identidade do facto não irá buscar-se (…) ao direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real (…). Para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja, á ação. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da atividade que constitui objeto do processo, mas não a própria ação. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma ação, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)”.

A figura do caso julgado só está reportada em duas disposições do nosso C. P. Penal: no artigo 84º, ao dizer que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido cível, constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis; e no artigo 467º, nº 1, ao estatuir que as decisões penais condenatórias, uma vez transitadas, têm força executiva.

No entanto, com recurso ao ordenamento processual civil, por via da regra de remissão constante do artigo 4º do C. P. Penal, é de concluir, sem dificuldade, serem inteiramente fundamentadas e corretas as considerações tecidas pelo Prof. Cavaleiro Ferreira.

Assim, e indo buscar os conceitos bem conhecidos da nossa lei processual civil, repete-se uma causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

E há identidade:

- De sujeitos, quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica;

- De pedido, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico;

- De causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

Entende o arguido/recorrente, em resumo, que, in casu, existe identidade de objeto do processo entre os presentes autos e o processo nº ---/05.9TAFAR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, pela circunstância de os factos serem os mesmos em ambos os processos, uma vez que estamos, na invocada usurpação de funções por banda do arguido, face à existência de um crime permanente (ou seja, estamos perante uma mesma factualidade/um mesmo crime).

Ora, e com o devido respeito por tal opinião do recorrente, estamos aqui, isso sim, perante diversas condutas, correspondentes a várias resoluções criminosas, ao passo que, no crime de execução permanente, está em causa apenas uma única conduta (um único crime) - cuja execução se mantém ao longo de determinado período de tempo mais ou menos prolongado -.

Não faz qualquer sentido, pois, alegar que o arguido já foi julgado (e absolvido) pela prática dos factos ilícitos a que estes autos se reportam, e, consequentemente, invocar violação do caso julgado.

Na verdade, num e noutro processo os factos delitivos não são os mesmos, quer temporalmente (os destes autos ocorreram entre 24-06-2010 e 21-03-2011, e os do processo nº ---/05.9TAFAR verificaram-se em 2005), quer no enquadramento legal da atuação do arguido como advogado e nas específicas circunstâncias dessa intervenção forense (no processo nº ---/05.9TAFAR, os factos prenderam-se com a circunstância de o arguido, como advogado-estagiário da primeira fase, ter exercido, como podia, a defesa da sua esposa - CP - num determinado processo, o que nada tem a ver com o caso destes autos, em que o arguido interveio em processo laboral, patrocinando alguém fora das suas relações familiares - uma empresa que era parte nesse processo laboral -), quer ainda, e finalmente, na resolução criminosa que animou ambas as intervenções processuais (pois, como é bom de ver, uma coisa é advogar em nome e representação do seu cônjuge, outra, bem diferente, é advogar patrocinando empresas).

Subscrevemos, portanto, em toda a sua amplitude, o que bem se escreve na sentença revidenda a este propósito: “olhando a factualidade julgada provada no processo ---/05.9TAFAR - conforme descrito nos factos provados - e os factos provados referentes ao presente processo, não vislumbramos uma só e única ação. O crime permanente pode definir-se como aquele que, podendo ser constituído por uma única conduta (aquela que o realiza), se revela, ao menos numa primeira aproximação, estruturalmente unitário. A lesão do bem objeto de tutela é única e o facto perdura, protraindo-se no tempo a conduta ofensiva, apenas cessando a consumação (o crime é exaurido) no momento em que cessa o comportamento antijurídico (ação ou omissão ou ação e omissão) por vontade do agente ou por qualquer outra causa. No crime permanente existe, de facto, um ilícito de duração, já que a consumação não é instantânea; o facto, a duração do facto, protrai-se no tempo, com permanência do estado antijurídico (duração do dano), e enquanto o facto se protrai no tempo sem interrupção o crime perdura. O crime permanente opera sobre um bem jurídico suscetível de “compressão”, não de “destruição”. A consideração do bem jurídico e a noção de “compressão “ permite separar ou distinguir o crime permanente do crime de efeitos permanentes. Os crimes cuja eficácia se estende ao longo de um determinado espaço de tempo, constituem crimes permanentes ou crimes de estado. Nos crimes permanentes, a manutenção do estado antijurídico criado pela ação punível depende da vontade do seu autor, de maneira que, em certo modo, o facto se renova continuamente. Há lugar a uma unidade de ação típica (em sentido estrito) no crime permanente. Aqui o facto punível cria um estado antijurídico mantido pelo autor, mediante cuja permanência se vai realizando ininterruptamente o tipo. A criação do estado antijurídico forma, com os atos destinados à sua manutenção, uma ação unitária. Os nossos factos, ocorridos entre 24 de junho de 2010 e 21 de março de 2011, período em que o arguido interveio no processo comum nº ---/10.0TTFAR, que correu termos no Tribunal de Trabalho de Faro, para além de não terem qualquer afinidade temporal com aqueloutros, que se reportam a período entre 28 de Janeiro e 7 de Fevereiro de 2005, também as circunstâncias são diferentes. No processo ----/05.9TAFAR, os factos prenderam-se tão só com a circunstância de o arguido, como advogado-estagiário da primeira fase, poder exercer a defesa da sua esposa. Com efeito, o arguido, conforme já explicado, com a sua inscrição preparatória ainda não confirmada pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, podia e frequentou o curso de formação, que é parte integrante do primeiro período do estágio, onde os advogados-estagiários dessa fase estavam impedidos de exercer atos inerentes à função de advogado ou de solicitador, exceto nas causas próprias, do seu cônjuge, dos ascendentes e descendentes. Nesta medida e perante regras diferentes do exercício de atos referentes à profissão de Advogado, por banda dos advogados-estagiários de primeira e segunda fase, o objeto nos dois processos não tem a mesma identidade, nem os factos no seu todo se enquadram em ação única, típica de crime permanente”.

Improcede, por isso, manifestamente, a questão do caso julgado suscitada pelo recorrente.

c) Da inconstitucionalidade do artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal.

Alega o recorrente que a sentença revidenda, ao incumprir o dever de enumerar, como provados ou não provados, os factos constantes da contestação apresentada pelo arguido, relevantes para a estratégia da defesa e para a boa decisão da causa, como determina o artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, viola as garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Cabe decidir.

A nosso ver, é inconstitucional a norma do artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, por violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quando a sentença não enumere, como provados ou não provados, os factos constantes da contestação apresentada pelo arguido, desde que sejam relevantes para a estratégia da defesa ou para a boa decisão da causa.

Porém, a decisão sub judice não fez tal interpretação do normativo do artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, porquanto os factos constantes da contestação são inócuos (ou são meramente negatórios da factualidade típica constante da pronúncia e integradora do crime de usurpação de funções, ou, numa outra parte, limitam-se a enunciar conceitos jurídicos, ou ainda, como acima já se disse, relatam circunstâncias perfeitamente irrelevantes para efeitos da decisão).

Como se nos afigura evidente, o cumprimento do estabelecido no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, para estar conforme ao preceituado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (“o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”), não impõe a enumeração dos factos não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a escolha e para a determinação da medida concreta da pena (e/ou para a decisão de qualquer outra questão efetivamente pertinente no caso concreto, como, por exemplo, a imputabilidade do arguido, a existências de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, etc.).

Como bem escreve Sérgio Gonçalves Poças (in “Da sentença penal - Fundamentação de facto”, Revista Julgar, ed. da ASJP, nº 3, pág. 34), “face nomeadamente ao disposto nos artigos 368º e 374º, nº 2, do C. P. Penal (…), tal como são enumerados os factos provados, do mesmo modo devem ser enumerados os factos não provados relevantes para a decisão. Importa é que realmente sejam factos e que sejam factos relevantes para a decisão (…). O tribunal não tem que se pronunciar (…) sobre factos inócuos para a decisão, inequívocos conceitos de direito e claros juízos de valor”.

A esta luz, e no caso concreto destes autos, a sentença recorrida consignou como provada toda a factualidade (relevante) negada na contestação do arguido.

Não nos restam, por isso, quaisquer dúvidas que o tribunal a quo indagou e pronunciou-se sobre todos os factos relevantes para a decisão, designadamente os “factos” alegados pela defesa, na medida em que tais “factos” traduzem, pura e simplesmente, uma mera negação da factualidade constante da pronúncia (e tida como provada).

Lendo a contestação apresentada pelo arguido (aliás, reproduzida no ponto nº 13 do corpo da motivação do recurso - acima já transcrito -), verifica-se que nenhum facto aí narrado (facto novo e relevante, como é óbvio) foi descurado, esquecido ou não analisado (e enumerado) na sentença recorrida.

Assim, o tribunal a quo, apresentando, como formulação dos “factos não provados”, a expressão “inexistentes”, não deixou de respeitar a norma contida no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, dando, pelo contrário, inteiro cumprimento a tal norma, porquanto toda a factualidade relevante foi considerada como provada (e assim enumerada), nada mais competindo fazer, nomeadamente não tendo de se enumerar, como não provados, inequívocos conceitos de direito, claros juízos de valor, puras formulações negatórias dos factos, ou circunstâncias totalmente inócuas.

É que, e repete-se, o dever de fundamentação da sentença exige a enunciação, como provados ou não provados, de todos os factos relevantes para a imputação penal, para a determinação da pena, ou para o apuramento da responsabilidade civil (se for caso disso), factos constantes da acusação, da pronúncia, do pedido de indemnização civil e das respetivas contestações.

Contudo, essa tarefa de fundamentação não é um “jogo” formal (como parece entender-se na motivação do presente recurso), apenas devendo ser elencada, como provada ou não provada, a matéria de facto relevante.

Esta mesma regra se aplica à contestação do arguido, só devendo ser incluídos, na factualidade constante da sentença (provada ou não provada), os factos relevantes da contestação.

Aquilo que o tribunal tem de apurar (e enumerar, como provados ou não provados) são os factos, designadamente os atinentes à imputação jurídico-penal que é dirigida ao arguido, não tendo o tribunal de, nessa sede, fazer considerações em torno dos factos.

Dito de outro modo: a essência das “garantias de defesa” (consagradas no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa) impõe, claramente, que o juiz tenha de pronunciar-se sobre todos os factos, quer os constantes da acusação, quer os narrados na contestação, quer ainda os resultantes da discussão da causa. Porém, essas garantias de defesa não podem implicar, como se nos afigura óbvio, que o juiz tenha de enumerar, como factos, coisas que não o são, só porque constam da contestação apresentada pelo arguido.

O processo penal deve configurar-se, também nesta vertente, como um due process of law, sendo de considerar ilegítimos (e inconstitucionais), em consequência, quer eventuais dispositivos legais, quer procedimentos aplicativos deles, que impliquem um encurtamento inadmissível das garantias e das possibilidades de defesa do arguido.

Ora, perante tudo o que vem de dizer-se, não vislumbramos, minimamente, nem o recorrente no-lo diz, quais os factos concretos, que, constando da contestação apresentada nos autos, não foram enumerados como “factos” (provados ou não provados) na sentença revidenda.

Que factos, invocados na contestação, não foram elencados na sentença, prejudicando a realização do direito de defesa do arguido?

Não sabemos (nem o recorrente nos esclarece, pois, na motivação do recurso, limita-se a reproduzir toda a contestação, como se esta, sem mais, em bloco, pudesse constar do elenco dos “factos não provados”), nem, aliás, a lei nos impõe, obviamente, a realização de um qualquer esforço heurístico com vista a, no arrazoado da contestação, tentar perscrutar um qualquer “facto” pertinente, próprio, não considerado na sentença sub judice, e, como é exigível, relevante para a decisão.

Nada há, pois, de constitucionalmente ilegítimo no entendimento normativo seguido pelo tribunal a quo.

Nos termos e com os fundamentos sobreditos, é de negar provimento ao recurso nesta parte (em que se pretende seja julgada inconstitucional a norma do artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, na interpretação constante da sentença revidenda).

d) Da valoração da prova.
O recorrente discorda dos pontos de facto que foram dados como provados sob os nºs 1, 5, 6, 9 e 10 da sentença em análise, entendendo que as provas, consideradas no seu conjunto, não permitem ter como assente tal factualidade.

Cabe decidir.
Os pontos de facto que foram dados como provados sob os nºs 1, 5, 6, 9 e 10 da sentença recorrida, e que o recorrente coloca em crise na motivação do recurso, são, em breve resumo:

- Que, no dia 24-06-2010, no Tribunal de Trabalho de Faro, na diligência de audiência de partes ocorrida no âmbito do Processo ---/10.0TTFAR, o arguido se tenha apresentado como sendo Advogado e mandatário judicial da Ré nesse processo.

- Que a Ré em tal processo tenha emitido uma procuração forense ao arguido, datada de 23-06-2010 e junta aos referidos autos.

- Que, nessas datas, o arguido não fosse Advogado.

- Que o arguido tenha agido de forma consciente e voluntária, sabendo que, nessas mesmas datas, não era Advogado e que não podia praticar atos próprios de Advogado.

- Que o arguido soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Assim, e bem vistas as coisas, o recorrente questiona toda a factualidade relevante ao preenchimento dos elementos (objetivos e subjetivos) do crime de usurpação de funções.

Além disso, o recorrente, na motivação do recurso, suscita a necessidade de reapreciar toda a prova, no seu conjunto e ponto por ponto, pedindo a esta instância recursória que tudo reexamine.

Ora, perante tais pretensões recursivas, assim apresentadas, há que salientar, desde logo, que o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que o Tribunal da Relação, com base na audição de gravações, reaprecie a totalidade da prova.

O recurso sobre a matéria de facto não envolve (não pode envolver) para o tribunal ad quem a realização de um “novo julgamento”, com a reapreciação de toda a factualidade em discussão e com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos.

A impugnação da decisão fáctica tem por finalidade, isso sim, o reexame de erros de procedimento ou de julgamento, erros que afetem a decisão recorrida e que o recorrente indique (especificadamente), tendo ainda o recorrente de indicar, por forma também especificada, as provas que, no entender do mesmo, impõem (e não apenas sugerem ou possibilitam) uma decisão de conteúdo diferente.

Ou seja, para procedermos à pretendida alteração da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse, uma tal alteração, mas, isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal).

Repetindo, resumidamente: nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve indicar, especificadamente, as provas que “impõem” decisão diversa da recorrida (que “impõem”, e não apenas que permitem ou aconselham).

Considerou o tribunal a quo inverosímil a versão apresentada pelo arguido de “(…) ter agido na qualidade de legal representante da sociedade E…, em substituição de TC, por força de mandato civil e não mandato forense. Salientou, solicitando que bem se lesse a procuração junta a fls. 4, que da mesma não se faz qualquer menção no sentido de o próprio ser advogado e de ter sido emitida com poderes forenses. Não obstante isso, o arguido disse também encontrar-se inscrito na Ordem dos Advogados. A versão apresentada pelo arguido, analisando e conjugando todos os restantes elementos de prova, não se nos afigura verosímil ou credível. Desde logo porque os atos objetivamente praticados pelo arguido - prática que o arguido não nega - são concordantes com a prática da atividade de advocacia, e não com quem age como mandatário civil: a) apresentação de uma procuração em tudo idêntica às forenses (fls. 4) – se é certo que não faz referência a poderes forenses, indica grau académico, escritório, confere poderes especiais de desistir, transigir na ação que corre termos com o n.º ---/10.0TTFAR no Tribunal de Trabalho Faro; b) apresentação como mandatário da ré na tentativa de conciliação - é o que consta da ata de audiência de partes, a fls. 5, e tal não foi colocada em causa pelo arguido no aludido processo, designadamente sustentando a sua falsidade; c) apresentação de contestação - que é ato inerente aos mandatos forenses e não civis, a fls. 7-11; d) apresentação de requerimento, intitulando-se mandatário da ré, a informar que não pode estar presente em julgamento, por morte de um seu familiar, a fls. 22 - também reservado aos advogados, na medida em que só estes têm direito ao adiamento da diligência com base em morte de familiar. Mas mais: a ser mandatário civil, como diz o arguido, por que não a procuração restringir-se à representação da sociedade para a tentativa de conciliação, onde é admissível a representação da parte por pessoa não no exercício do mandato forense? E a ser apenas mandatário civil, por quê ou para quê comunicar o impedimento de comparecer na audiência de julgamento, já que enquanto mandatário civil não podia intervir em julgamento? Quanto a esta última questão, explicou o arguido que havia sido notificado para comparecer servindo essa comunicação de impedimento apenas para informar da impossibilidade de comparecer, admitindo hoje - na sequência de pergunta feita na audiência de julgamento - que o Tribunal de Trabalho, em erro, o pudesse ter entendido como advogado da ré na tal ação ---/10.0TTFAR, facto que, na altura, não lhe passara pela cabeça. Ora, não faz sentido. Apelando às regras da experiência comum, normalidade e logicidade das coisas, não pode aceitar-se que o arguido, à data em que os factos estão a ser vivenciados, não se tenha apercebido que efetivamente estava a ser tratado como se do advogado da ré se tratasse e, mais do que isso, não fora exatamente isso que pretendia. Tanto que, conforme não deixa de dizer, considerava-se inscrito na Ordem dos Advogados. O depoimento da testemunha TC - gerente da sociedade E…, cfr. certidão registo comercial a fls. 356-360 - não abalou o resultado desta análise. Com efeito, este depoimento foi prestado de forma vaga e muito pouco esclarecedora das exatas funções atribuídas ao arguido, muitas vezes dizendo a testemunha que fora o pai do seu filho - enquanto gerente de facto da sociedade ré na ação do Tribunal do Trabalho - que sugeriu o arguido e de tudo tratou. Disse mesmo a testemunha, que, para a mesma, quando assinou a procuração (fls. 4) era com vista a ver-se representada naquele dia - o da audiência de partes - naquela diligência para a qual havia sido convocada, por impossibilidade de na mesma comparecer em virtude de o seu filho se encontrar doente. Quanto ao mais, designadamente dedução de contestação, nada revelou saber. (….) A documentação junta aos autos não pode deixar, com base na mesma, de se fazer concluir no sentido de que o arguido sabia não ser advogado e que, para praticar os factos que praticou, tinha de ser titular de cédula profissional emitida pela Ordem dos Advogados. Assim: a fls. 114 consta certidão de uma declaração da Ordem dos Advogados, Conselho Distrital de Faro, em que se consigna que o arguido requereu a sua inscrição como advogado estagiário no dia 3/2/2004, tendo a mesma sido deferida preparatoriamente pelo Conselho Distrital em 18/3/2004, sendo depois remetido o respetivo processo para o Conselho Geral para inscrição definitiva. Após essa inscrição, o arguido frequentou a primeira parte do estágio, com aproveitamento nos testes de deontologia e prática processual civil e penal. De fls. 242 verso resulta que o Conselho Geral, por decisão datada de 4/7/2005 não confirmou a inscrição preparatória do arguido como advogado-estagiário, determinando a remessa do processo para o conselho de deontologia territorialmente competente para que, em processo próprio, se procedesse à verificação da falta de idoneidade moral do Sr. VP para o exercício da profissão de advogado, implicando a suspensão do processo de inscrição até trânsito em julgado da decisão do conselho de Deontologia. Por deliberação de 13.03.2007, o Conselho de Deontologia de Faro, após parecer datado de 08.11.2006, considerou o arguido “…inidóneo para o exercício da atividade profissional de advocacia não podendo ser inscrito na Ordem dos Advogados” - cfr. certidão da existência processo especial averiguação inidoneidade para o exercício da profissão e acórdão do Conselho de Deontologia do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, a fls. 156-193 e 194-199. Também resulta da documentação junta aos autos que o arguido foi sempre impugnando as decisões da Ordem dos Advogados - portanto ciente de que não lhe havia sido confirmada a inscrição, ainda que contra isso possa, até aos dias de hoje, se insurgir - impugnações sempre improcedentes - vide decisão do plenário do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, que deliberou em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão de falta de idoneidade do arguido para exercer a advocacia, a fls. 242 a 260 -. Neste ínterim de decisões e impugnações das mesmas, atento o despacho de 04.07.2005, a inscrição não foi confirmada, antes sim suspensa até ao trânsito em julgado da decisão final do processo de falta de idoneidade - vide fls. 210-223 e informação a fls. 386. Tudo conjugado, é certo e seguro que, na data da sua intervenção no processo do Tribunal de Trabalho, o arguido não tinha visto aprovada a sua inscrição definitiva pela Ordem dos Advogados, não tendo por isso acesso à segunda fase do estágio e, consequentemente, à cédula de advogado estagiário, não podendo intervir nessa qualidade em processos de terceiros (não seus familiares)”.

Com o devido respeito pela opinião expressa na motivação do recurso, este tribunal ad quem subscreve, na íntegra, sem margem para quaisquer dúvidas, os raciocínios formulados em primeira instância e acabados de reproduzir.

Na verdade, e indo ao núcleo essencial da questão, resulta evidente que o ora recorrente nunca viu aprovada a sua inscrição definitiva na Ordem dos Advogados, e, por isso, não podia intervir como advogado em processos de não familiares.

Por outro lado, é para nós evidente também que o ora recorrente interveio no processo laboral em questão enquanto mandatário forense (e não como mandatário civil), nos precisos termos e com os fundamentos acabados de transcrever.

Verificamos, por conseguinte, sem dificuldade, que as provas produzidas não só não “impõem” uma decisão diversa daquela que foi proferida em primeira instância, como, bem pelo contrário, “impõem” uma decisão inteiramente conforme com a decisão revidenda.

Não existe, pois, o mínimo de fundamento para alterar a lógica do raciocínio do tribunal a quo, lógica que este tribunal de recurso (sem dúvidas, repete-se) subscreve totalmente.

E, nesta nossa conclusão, não esquecemos que, perante um recurso sobre a matéria de facto, esta instância recursória não se pode eximir à tarefa de proceder a uma ponderação específica, autónoma e autonomamente formulada, dos meios de prova indicados.

Só que, mesmo com a plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso (que constitui um simples “remédio”), mesmo limitado pelo modelo e modo de impugnação seguidos pelo recorrente, e ainda limitado pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha (a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo), este Tribunal da Relação entende, de modo totalmente seguro, que a prova produzida nestes autos é de tal forma assertiva, evidente e conclusiva, que a apreciação que dela foi feita pelo tribunal recorrido não é apenas possível, legítima ou correta, mas, mais do que isso, merece a nossa plena concordância e a nossa total aderência.

Em conclusão: este tribunal ad quem subscreve, na íntegra, a apreciação que a Mmª Juíza fez da prova produzida em audiência de discussão e julgamento (apreciação bem explanada na sentença sub judice), improcedendo toda a argumentação do recorrente neste segmento do recurso, porquanto não existe qualquer elemento de prova que tenha sido mal avaliado, indevidamente sopesado, ou mal interpretado.

Nenhumas declarações, nenhum depoimento e nenhum outro elemento probatório, considerados em si mesmo ou conjugados com outros elementos de prova, “impõem” uma decisão diferente da que foi tomada pelo tribunal a quo.

Bem pelo contrário: das declarações prestadas pelo arguido, do depoimento prestado pela testemunha TC, e da análise dos documentos juntos aos autos (invocados na motivação do recurso e apreciados na sentença revidenda), é de concluir, sem dúvidas ou hesitações, que os factos ocorreram nos precisos termos tidos como provados em primeira instância.

Assim, o presente recurso, também nesta vertente (impugnação da decisão fáctica), não merece provimento.

e) Do erro notório na apreciação da prova.
Invoca o recorrente a ocorrência do vício do erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal), alegando, em síntese, que, das declarações do arguido, do depoimento da testemunha TC e da prova documental junta aos autos (a procuração e a contestação apresentadas no processo laboral em discussão), não se pode extrair que o arguido se tenha apresentado no Tribunal de Trabalho como advogado, e que, além disso, tenha subscrito a contestação apresentada pela Ré na ação em causa na qualidade de mandatário forense.

Na opinião do recorrente, o tribunal a quo, ao dar como provado (facto provado na sentença sob o nº 1) que o arguido se apresentou no Tribunal de Trabalho como advogado e mandatário judicial da sociedade “E---, Ldª”, extraiu da prova produzida em audiência de discussão e julgamento uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária.

Cabe decidir.
Dispõe o artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal, que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova”.

Deste preceito resulta, claramente, que estes vícios da matéria de facto têm de resultar do texto da decisão recorrida e sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo e não podendo basear-se em documentos juntos ao mesmo processo.

Os vícios da matéria de facto em referência não podem, de modo algum, ser confundidos com uma divergência entre a convicção alcançada pelo recorrente sobre a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e aquela convicção que, nos termos do disposto no artigo 127º do C. P. Penal e com respeito, designadamente, pelo disposto no artigo 125º do mesmo diploma legal, o tribunal a quo alcançou sobre os factos.

Ora, ao invocar a ocorrência, na sentença sub judice, do vício do erro notório na apreciação da prova, o recorrente, com o muito e devido respeito, não atendeu a tais regras.

Na verdade, o recorrente, ao invocar o vício do erro notório na apreciação da prova, não se limita ao próprio texto da decisão recorrida.

Ao invés, mas é coisa totalmente diferente, o que o recorrente alega é o erro de julgamento sobre a matéria de facto (no sentido de que a prova produzida não poderia conduzir a haver-se como provada matéria que se provou - o facto provado na sentença revidenda sob o nº 1, ou seja, e em síntese, que o arguido se apresentou no Tribunal de Trabalho como advogado e mandatário judicial da sociedade “E---, Ldª”).

Percorrendo a motivação do recurso em toda esta vertente, facilmente se alcança que o recorrente questiona, não o texto da decisão recorrida, mas sim o modo como o tribunal procedeu à apreciação da prova que foi produzida em audiência de discussão e julgamento.

Isto é, a alegação do recorrente, neste segmento, apenas traduz uma desconformidade entre a decisão de facto do tribunal a quo e aquela que, no caso, teria sido a do próprio recorrente. O que verdadeiramente está questionado é apenas o processo de valoração da prova por parte do tribunal recorrido, quanto a certo ponto de facto, constante da decisão da matéria de facto, ponto que o recorrente entende estar indevidamente julgado.

Ora, tal discordância do recorrente perante a matéria de facto é inócua para prefigurar o vício invocado (erro notório na apreciação da prova), uma vez que, objetivamente, nada resulta do teor da decisão que constitua erro notório na apreciação da prova.

Com efeito, e no dizer de Simas Santos e Leal Henrique (in “Recursos em Processo Penal”, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77), existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Tal vício não tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta, face à prova produzida; ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respetiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.

Só existe erro notório na apreciação da prova quando, do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência, é logo evidente, perante um observador médio, que foram dados como provados factos que, segundo a lógica normal das coisas, não podiam ter acontecido.

Tal vício não pode ser confundido com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, nem, como já dissemos, com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova e a convição obtida pelo tribunal sobre essa mesma prova.
É que, e além do mais, importa ter presente, nesta sede, o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do C. P. Penal.

Na verdade, e como bem se escreve no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 16-03-2004 (relator Fernando Ribeiro Cardoso, disponível in www.dgsi.pt), “estabelece o artigo 127º do Código de Processo Penal… (“salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”) o chamado princípio da livre apreciação da prova. Este princípio deve ser entendido como o dever de perseguir a verdade material, de tal sorte que a apreciação da prova há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos, e, portanto, em geral suscetível de motivação e controle; os ditames a que essa apreciação deve obedecer: a livre apreciação da prova, porque não impressionista nem meramente arbitrária, deverá ter sempre subjacente, tal como encontra eco no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, uma motivação ou fundamentação, ou seja, os motivos de facto que fundamentam a decisão, os quais não são nem os factos provados (“thema decidendum”) nem os meios de prova ou os factos probatórios (“thema probandum”), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de certa forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (vide Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 227)”.

Conforme salienta Maia Gonçalves (in “Código de Processo Penal Anotado”, 9ª ed., pág. 322), “a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

À luz dos anteriores considerandos, a discordância do recorrente perante a matéria de facto (do facto provado na sentença revidenda sob o nº 1 - que o arguido se apresentou no Tribunal de Trabalho como advogado e mandatário judicial da sociedade “E---, Ldª”), é inócua para os fins agora em discussão (existência de erro notório na apreciação da prova), uma vez que:

1º - Esse elemento de facto foi já acima analisado por este tribunal ad quem, quando se pronunciou sobre a impugnação alargada da matéria de facto.

2º - Aí se concluiu que tal factualidade se mostra corretamente julgada, subscrevendo totalmente, este tribunal de recurso, a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido e as conclusões alcançadas e explicitadas na sentença revidenda.

3º - Para usar a terminologia constante da conclusão LXXXVIII extraída da motivação do recurso, a factualidade provada (e agora em apreciação) resulta dos elementos probatórios produzidos na audiência de discussão e julgamento “com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”, ou seja, a apreciação da prova, que foi feita na sentença recorrida, mostra-se totalmente pertinente, razoável, lógica, racional, adequada, correta e fundamentada.

Em suma: nada resulta do teor da decisão que constitua erro notório na apreciação da prova.

Soçobra, pois, também aqui, o recurso.

Posto tudo o que precede, o recurso interposto pelo arguido é totalmente de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos:

A - Declara-se extinta a instância do recurso interposto pelo arguido do despacho de fls. 894 e 895 (recurso que foi admitido a fls. 925), por inutilidade superveniente da lide, ficando, em consequência, prejudicada a apreciação do respetivo mérito.

B - Nega-se provimento ao recurso interposto da sentença condenatória, mantendo-se, consequentemente, tudo o decidido nessa douta sentença.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs..
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 24 de janeiro de 2017


João Manuel Monteiro Amaro

Maria Filomena de Paula Soares