Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2354/22.9T8ENT.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: PERSI
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
HERANÇA JACENTE
Data do Acordão: 05/08/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário:
O regime do PERSI, constante do D.L. nº 227/2012, de 25-10 não é de aplicar à herança jacente do mutuário e, por conseguinte, o incumprimento do mesmo pela Instituição Bancária não se configura como obstativo ao prosseguimento da execução.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO

1. PROMONTORIA MARS DESIGNATED ACTIVITY COMPANY instaurou execução para pagamento de quantia certa contra a Herança Jacente de AA, alegando, designadamente, para o justificar que mutuária faleceu em .../.../2013, no estado de divorciada, e sem ter disposto válida e eficazmente, no todo ou em parte, dos bens de que poderia dispor para depois da morte e que o seu único herdeiro – BB – repudiou à herança.

Tendo o herdeiro legitimário repudiado, não sendo conhecidos quaisquer outros sucessores/herdeiros e não tendo ainda o Ministério Público intentado o processo previsto no art. 938.º do CPC, a herança encontra-se jacente.”.

Em sede liminar, a exequente foi notificada para, em 10 dias, juntar aos autos PERSI, bem como os respetivos documentos comprovativos do envio das cartas em causa, designadamente registos postais e/ou respetivos avisos de receção.
A exequente refutou, justificadamente, a obrigatoriedade de cumprimento do PERSI, admitindo/confessando não ter iniciado nenhum procedimento de PERSI.
Sem embargo, entendeu o Tribunal “a quo” que não tendo a exequente cumprido previamente o PERSI, nos termos impostos pelo Decreto – Lei n.º 227/2012, de 25/10, “falta condição objetiva de procedibilidade, com a consequente inexigibilidade da dívida exequenda, bem como falta de admissibilidade liminar, o que constitui excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso”. Por consequência, determinou a extinção da instância executiva e/ou respetivos embargos com tais fundamentos.

2. É desta decisão que recorre a exequente, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

I. A ora Recorrente não se conforma com a douta decisão a quo quando, ao considerar procedente a excepção dilatória inominada de falta de integração no PERSI, julgou extinta a execução.

II. A invocada excepção de que se socorre a douta sentença recorrida está, assim,

irremediavelmente, limitada à integração automática e imperativa da herança no regime do PERSI.

III. A definição legal de Cliente Bancário não é extensível à herança e/ou os herdeiros – esse alcance, que a douta sentença recorrida lhe atribui, extravasa flagrantemente o permitido por Lei.

IV. A sujeição dos herdeiros no PERSI não está expressamente consagrada na lei, por opção do legislador.

V. Dispondo os autos de elementos probatórios irrefutáveis que permitem concluir que a herança foi repudiada pelo único herdeiro da mutuária falecida em .../.../2014 – ou seja, muito antes do incumprimento do contrato de mútuo -, o Tribunal a quo não poderia ter ignorado o facto de a herança se manter jacente.

VI. Ou seja, no caso dos presentes autos, não só não existiam herdeiros, como inexiste cabeça-de-casal da herança a quem pudesse ter sido comunicada a integração/extinção do PERSI.

VII. Não tendo a herança jacente personalidade jurídica, nunca poderá ser considerada como sucessora de pessoa falecida e, por conseguinte, responsável nos termos do artigo 2071.º do Código Civil.

VIII. A situação actual da herança (aberta, mas não aceite) não permite preencher um dos pressupostos do regime do PERSI, nomeadamente a qualidade de Cliente Bancário.

IX. Como tal, os direitos e obrigações atribuídos ao Cliente Bancário não podem ser estendidos à herança, que não dispõe de personalidade jurídica.

X. Sendo certo que as garantias previstas no artigo 18.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro estão asseguradas na medida da aceitação da herança, o que determinaria a aquisição de tais direitos e obrigações.

XI. A execução não poderia ter sido extinta, por inexistir sentido, lógica e fundamento para a integração automática no regime do PERSI da situação sub judice, em virtude de a herança jacente não dispor de personalidade jurídica.

XII. A douta decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgando não verificada a exceção dilatória inominada de incumprimento do PERSI, determine o prosseguimento dos autos.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, prosseguindo os autos de execução os seus ulteriores termos.

Assim se fazendo a costumada e sã JUSTIÇA!

3. Considerando que a questão a decidir é simples passa-se a proferir, ao abrigo do disposto art.º 656º do CPC, decisão singular.


4. O recurso foi admitido com o efeito correcto e modo de subida adequado, sendo que o seu objecto- delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr.art.ºs 608ºnº2,609º,635ºnº4,639ºe 663º nº2, todos do CPC) se circunscreve apenas a saber se o regime do PERSI, constante do D.L. nº 227/2012, de 25-10 é de aplicar à herança jacente do mutuário.

II. FUNDAMENTAÇÃO


5. Os factos a considerar no âmbito deste recurso são os que se deixaram exarados no antecedente relatório, sendo de relevar os seguintes:

5.1. No âmbito da sua actividade, a 28 de setembro de 2010, a Caixa Geral de Depósitos S.A., a quem o ora Exequente adquiriu os créditos, celebrou com AA um contrato de mútuo com hipoteca, na Conservatória do Registo Predial de Tomar, mediante o qual lhe concedeu um empréstimo no montante de € 80.900.00 (oitenta mil e novecentos euros), importância que nessa data lhe foi entregue e da qual se confessou logo devedora;

5.2. Para garantia do pagamento do capital mutuados, dos respectivos juros e despesas, a mutuária constituiu hipoteca, devidamente registada, sobre o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Tomar, inscrito na matriz sob o artigo ...24, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o número ....

5.3. 5.3. A mutuária AA faleceu em .../.../2013, no estado de divorciada,

5.4. O herdeiro legal da mutuária, seu filho, BB, repudiou a herança de sua mãe;
5.5. O Ministério Público à data da propositura da execução ainda não havia intentado o processo previsto no artº. 938.º do CPC.
5.6. A exequente alegou que o incumprimento do contrato de mútuo se iniciou em 19/08/2017.

6. Do mérito do recurso: A (in) susceptibilidade de integração da herança jacente do mutuário no regime do PERSI.

Como se viu, a execução foi movida contra a herança jacente da falecida mutuária.

O art.º 12.º, alínea a), do CPC, atribui personalidade judiciária à herança jacente, que assim se mostra susceptível de ser parte.

Como esclarece art.º2046º do Cód. Civil, herança jacente é a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado.

Tendo resultado provado que o sucessível chamado à herança da mutuária falecida, seu filho, a repudiou e não havendo notícia da existência de outros herdeiros que a tenham aceitado e bem assim, da propositura pelo Ministério Público de uma acção especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, a qual visa pôr termo à situação de jacência da herança, a única conclusão a retirar é que tal situação de jacência da herança da falecida mutuária se mantém, desde o seu óbito, incólume.

E a questão que se coloca é, como dissemos, se o D.L. nº 272/2012, de 25 de Outubro que veio instituir o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, doravante designado por PERSI, é aplicável à herança jacente.

Como se sabe, tal regime é aplicável a todos os clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito e da qual emerge “graves consequências para o cliente bancário e para o seu agregado familiar[1]”.

O cliente em incumprimento fica sujeito ao pagamento de juros de mora, comissões e outros encargos que acrescem à sua dívida, sendo o mesmo comunicado à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal e será tido em consideração na avaliação do risco de crédito do cliente.

Quando o cliente deixa de pagar as prestações do crédito, a instituição de crédito deve contactá-lo para negociar soluções de pagamento para a regularização extrajudicial de situações de incumprimento de contratos de crédito.

Com o Procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI) “os clientes bancários beneficiam de um conjunto de direitos e de garantias para facilitar a obtenção de um acordo com as instituições de crédito na regularização de situações de incumprimento, evitando o recurso aos tribunais.”[2]

Se o cliente bancário faleceu e nenhum dos seus herdeiros aceitou a herança – que se mantém jacente – não se descortina como tal desiderato poderia ter sido levado a efeito por parte da mutuante CGD.

Os procedimentos legais previstos no art.13º e 15º do citado diploma não têm como ser executados neste caso.

Como vai a instituição de crédito informar o cliente bancário do atraso do seu cumprimento, no prazo máximo de quinze dias após o vencimento da obrigação em mora, e, desenvolver diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado após o falecimento da mutuária?

Em suma: O regime do PERSI, constante do D.L. nº 227/2012, de 25-10 não é de aplicar à herança jacente do mutuário e, por conseguinte, o incumprimento do mesmo não se configura como obstativo ao prosseguimento da execução.


O despacho recorrido não se pode, pois, manter.

III. DECISÃO

Por todo o exposto se decide revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento da execução em apreço.

Sem custas.

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[1] Cfr. https://clientebancario.bportugal.pt/pt-pt/gestao-do-incumprimento
[2] Idem, site do Banco de Portugal.