Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1831/20.0T8STR.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: HIPOTECA
SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
SUICÍDIO
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
- A norma constante do artigo 191.º do DL n.º 72/2008 é uma norma supletiva, pelo que apenas se poderá aplicar aos contratos de seguro de renovação periódica celebrados anteriormente à entrada em vigor desse diploma, desde que o segurador informe o tomador do seguro, com a antecedência mínima de 60 dias em relação à data da respetiva renovação do conteúdo da cláusula alterada por adoção do novo regime, por força dos artigos 2º e 3º do mesmo diploma.

- Não tendo ocorrido essa informação em tal prazo, o contrato mantém-se inalterado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I

A…, B… e C…, com os sinais nos autos, intentaram ação declarativa, com processo comum, contra Santander Totta Seguros Companhia de Seguros de Vida, S.A., igualmente com os sinais nos autos, pedindo a condenação da ré:

a) A pagar ao beneficiário (Banco Santander Totta, S.A.), as quantias asseguradas por cada um dos contratos de seguro na data de 22-09-2017, ou seja, €71 434,90 e €25 945,10, no montante global de €97 380,00.

b) Na eventualidade do banco beneficiário não lhes restituir todas quantias por eles já pagas, desde a data acima referida 22-09- 2017, até à presente data e ainda as quantias vincendas a liquidar até à decisão final, referentes às prestações dos contratos de mútuo (amortização dos empréstimo, juros e diversos) deverá a ré ser condenada no montante que se vier a liquidar acrescido de juros à taxa legal.

Para o efeito alegam em suma que:

- O primeiro autor e esposa, no dia 24-07-2007, outorgaram um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca.

- Ainda no mesmo dia, outorgaram com a mesma entidade bancária (Banco Santander Totta, S.A.) um segundo contrato de mútuo com hipoteca.

- A parte mutuária obrigou-se a ter o imóvel seguro cobrindo os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva, ou outros riscos por acidente ou doença, em benefício e à vontade da entidade mutuante credora e só por intermédio desta e com o seu acordo poderiam alterar o referido seguro, pelo que foram celebrados dois contratos de seguro de vida com a ré, sendo deles beneficiário o referido banco, e no capital remanescente ao capital em dívida à data da ocorrência, os herdeiros legais dos mutuários, cobrindo os mesmos o risco de morte e de invalidez permanente, a que corresponde a apólice n.º 15.000001, com os certificados números 294308 e 294340 (ramo vida grupo).

- No dia 22-09-2017, a mutuária esposa faleceu, o que ocorreu por suicídio.

- Tal como previsto no ponto 7.1. c) das condições especiais de ambos os contratos de seguro esse risco estava excluído por ser o falecimento devido a suicídio.

- Os contratos de seguro foram celebrados ao abrigo do Código Comercial.

- A exclusão do risco morte devido a suicídio em contratos celebrados ao abrigo do Código Comercial passou a ser disciplinada pelo n.º 1 do art.º 191.º, da Lei do Contrato de Seguro (Decreto - Lei n.º 72/2008, de 16 de abril).

- A ré para afastar a aplicação daquela norma devia ter comunicado às pessoas seguras a nova cláusula com a antecedência de 60 dias em relação à data da renovação dos contratos a ocorrer logo após a entrada em vigor da LCS, que não fez.

- Não tendo havido por banda da ré seguradora qualquer comunicação a manter em vigor a exclusão do risco morte devido a suicídio sem qualquer limite temporal, o regime aplicável é o da nova lei e não o estabelecido inicialmente no contrato ao abrigo da lei antiga.

-Pelo sinistro ocorrido em 22-09-2017 é assim a ré responsável pelo pagamento das quantias ao tempo em dívida, emprestadas pelo Banco Santander Totta, S.A., ou seja, as quantias asseguradas por cada um dos contratos de seguro nessa data de €71 434,90 e €25 945,10.

A ré contestou, alegando resumidamente que:

-A seguradora não tem responsabilidade no pagamento da indemnização porque à data em que ocorre a primeira renovação do contrato a contar da data da celebração do mesmo (no caso em maio de 2007), ainda o regime do contrato de seguro previsto pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, não se encontrava em vigor.

- A ré não tem responsabilidade no pagamento da indemnização porque, pese embora se trate de um contrato de renovação periódica, sempre o regime previsto no Decreto Lei n.º 72/2008, se encontra afastado na medida em que o mesmo não se aplica às regras respeitantes à formação do contrato como é a regra que prevê a exclusão da pessoa segura por morte por suicídio.

- O disposto no art.º 191.º, n.º 1 do Decreto Lei n.º 72/2008, adm ite “convenção em contrário” e no caso presente, existe essa convenção no Ponto 7.1. das Condições Gerais da Apólice, onde não é aposto qualquer limite temporal à exclusão por suicídio, devendo, por isso, tal exclusão vigorar durante toda a vigência do contrato.

Conclui pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Os autores responderam à exceção deduzida pela ré, concluindo pela sua improcedência.

Findos os articulados e dispensada a audiência prévia, foi em 01-06-2021 proferido saneador-sentença, a julgar a ação totalmente procedente, por totalmente provada e, em consequência, condenou-se:

«a) A ré SANTANDER TOTTA SEGUROS COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA, S.A., pagar ao beneficiário, Banco Santander Totta, S.A., as quantias asseguradas por cada um dos contratos de seguro na data de 22 de setembro de 2017, ou seja, €71 434,90 e €25 945,10, no montante global de €97 380,00.

b) Na eventualidade do banco beneficiário não restituir aos autores todas quantias por eles já pagas, desde a data acima referida 22 de Setembro de 2017, até à presente data e ainda as quantias vincendas a liquidar até à decisão final, referentes às prestações dos contratos de mútuo (amortização dos empréstimo, juros e diversos) deverá a ré SANTANDER TOTTA SEGUROS COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA, S.A. ser condenada no montante que se vier a liquidar acrescido de juros à taxa legal.»

Inconformado com tal decisão veio a Ré recorrer formulando as seguintes conclusões de recurso:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância a fls._ dos autos de ação de processo ordinário que correram termos no Juízo Central Cível de Santarém, da Comarca de Santarém, sob o número de processo 1831/20.0T8STR, que julgou a ação totalmente procedente

2. A ora Recorrente, salvo o devido respeito, não pode estar de acordo com o decidido pelo douto Acórdão no que diz à interpretação da aplicação do disposto no nº 2 do art. 3º do DL 72/2008, por considerar que tal interpretação não se coaduna com o sentido da referida norma legal.

3. O objeto do recurso para o Venerando Tribunal da Relação visa pugnar pela alteração do teor da sentença, que, salvo o devido respeito, interpretou de forma errónea as normas que constituem fundamento jurídico da decisão, nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 639º CPC.

4. Os AA. intentaram a presente ação contra a ora Ré, pedindo a sua condenação no pagamento do capital em dívida à data do falecimento de D…, esposa e mãe dos AA., em 22.09.2017, por suicídio, bem como restituição das quantias suportadas com as prestações do mútuo bancário.

5. A presente ação foi julgada totalmente procedente, condenando-se a ora Recorrente a proceder ao pagamento ao beneficiário Banco Santander Totta, S.A. da indemnização no valor do capital seguro à data da morte da pessoa segura, bem como a restituir aos AA. todos os valores por ela suportados junto do Banco, desde a data do falecimento, sentença com a qual não se pôde a Recorrente conformar.

6. Concluindo, a sentença posta em crise que “A ré para afastar a aplicação do n.º 1, do art.º 191.º, deveria ter comunicado às pessoas seguras (ao autor e sua falecida esposa) a nova cláusula com a antecedência de 60 dias em relação à data da renovação do contrato a ocorrer logo após a entrada em vigor da LCS.”(negrito e sublinhado nosso)

Ora,

7. A regra geral continua a possibilitar que o contrato de seguro se reja pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime – DL 72/2008 – com os limites indicados nos artigos 12º e 13º do mencionado diploma e os decorrentes da lei geral.

8. Destarte, o douto Tribunal a quo faz, consequentemente, uma aplicação do nº 2 do art. 3º do DL 72/2008, com a qual a ora Recorrente não pode concordar.

9. Nos termos do artigo 3º, nº 2 do preâmbulo da LCS, as normas supletivas previstas no regime jurídico do contrato de seguro aplicam-se aos contratos de seguro com renovação periódica celebrados anteriormente à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, desde que o segurador informe o tomador do seguro, com a antecedência mínima de 60 dias em relação à data da respetiva renovação do conteúdo das cláusulas alteradas em função da adoção do novo regime.

10. Assim, ao contrário do profetizado na douta sentença, não era a exclusão da cobertura da morte por suicídio já prevista no contrato que teria de ser expressamente acordada, após a entrada em vigor da Lei 72/2008, mas sim a eventual decisão de aplicação da norma supletiva constante do artigo 191º da LCS e, consequente, a alteração do conteúdo das cláusulas contratuais já subscritas, o que não sucedeu.

11. Ainda que surgindo alterações no que a esta questão diz respeito, com a entrada em vigor da Lei do Contrato de Seguro, “o traço fundamental do regime de 1888 foi mantido em 2008 – a supletividade, permitindo a manutenção do que se julga ser a prática mais frequente no mercado nacional, da previsão da exclusão por 1 ou 2 anos. Só se a apólice nada estabelecer é que se registará uma diminuição no âmbito da cobertura dos contratos. A “convenção em contrário” admitida no nº1 do art. 191º tanto pode aumentar o prazo da exclusão como eliminá-la (nº 1 do art. 13º a contrario) – não relevando portanto da ordem pública nacional seja a existência mesma da exclusão, seja a cobertura após o ano previsto nesse nº 1.”, é o que resulta dos comentários expressos por Arnaldo Costa Oliveira à Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2011, 2ª Edição, Almedina.

12. Pelo que, face a todo o exposto, dúvidas não poderão restar de que a norma constante do artigo 191º do DL 72/2008 é uma norma supletiva, pelo que apenas se poderá aplicar aos contratos de seguro de renovação periódica, como é o caso, desde que o segurador informe o tomador do seguro, com a antecedência mínima de 60 dias em relação à data da respetiva renovação do conteúdo das cláusulas alteradas em função da adoção do novo regime. Assim, e não tendo ocorrido tal informação, mantêm-se as cláusulas do contrato sem qualquer alteração no que respeita às normas supletivas, nomeadamente a convenção existente no Ponto 7.1 das Condições Especiais da Cobertura de Morte dos seguros subscritos, onde não é imposto qualquer limite temporal à exclusão por suicídio, devendo, por isso, tal exclusão vigorar durante toda a vigência do contrato.

13. Assim, a cobertura de morte encontrava-se excluída em caso de suicídio, sendo entendimento da ora Recorrente que o Douto Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação e aplicação da norma em apreço, mais concretamente a referente ao artigo 3º, nº 2 do preâmbulo do referido diploma, tendo o Tribunal, erradamente, concluído ser a Ré, responsável pelas indemnizações decorrentes dos contratos de seguro em apreço nos autos.

14. Vejamos a este respeito as anotações ao nº 2 do art. 3º do DL 72/2008 constantes da Lei do Contrato de Seguro anotada, realizadas pelo Exmo. Senhor Professor Dr. Pedro Romano Martinez e o Acórdão do STJ no âmbito do processo 1026/13.0TVLSB, disponível em www.dgsi.com.

15. Nestes termos, impunha-se, no entender da recorrente, uma decisão em sentido diverso daquele em que o tribunal “a quo” julgou, devendo, em consequência, o Recurso apresentado pela Recorrente ter provimento total, na medida em que sobre a Seguradora não impede a obrigação de pagamento de uma indemnização decorrente de um sinistro – suicídio – cuja cobertura se encontra expressamente excluída das apólices de seguro.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida e, em consequência, ser a Ré Seguradora absolvida no pagamento do montante peticionado pelos Recorridos, só assim se fazendo JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.


II

São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal a quo:

1. No dia 24-07-2007, o primeiro autor e a esposa, D…, outorgaram um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, tendo ainda sido outorgado um documento complementar ao dito contrato, no qual foram melhor especificados os termos do mesmo.

2. Ainda no mesmo dia, outorgaram com a mesma entidade bancária (Banco Santander Totta, S.A.) outro contrato de mútuo com hipoteca.

3. Os valores dos empréstimos que lhes foram concedidos foi de €115 000,00 (cento e quinze mil euros).

4. Os quais foram feitos pelo prazo de 492 meses a contar da data em que os ditos contratos foram assinados.

5. Nos termos do n.º 2, da cláusula décima segunda do referido documento complementar do primeiro contrato e igual cláusula do segundo contrato, a parte mutuária obrigava-se a ter o imóvel seguro cobrindo os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva, ou outros riscos por acidente ou doença, em benefício da entidade mutuante credora.

6. Nessa sequência foram celebrados os contratos de seguro de grupo de vida titulados pela apólice n.º 15.000001, certificados 294308 e 294340, com efeitos a partir de 24 de julho de 2007, e tinham como coberturas contratadas a Morte e Invalidez Absoluta e Definitiva respetivamente com os capitais seguros iniciais de € 84 000,00 e € 31 000,00.

7. Os contratos de seguro foram feitos pelo prazo de 1 ano e seguintes, tendo como prazo máximo o dos empréstimos associados, ou o ano em que a primeira pessoa segura completasse 75 anos de idade.

8. Os empréstimos foram pagos pelos mutuários iniciais durante mais de 10 anos.

9. No dia 22-09-2017, a mutuária esposa, D…, faleceu.

9.(a) O falecimento da esposa e mãe dos autores ocorreu por suicídio.

10. À data do falecimento da esposa e mãe dos autores, os valores em dívida de cada um dos empréstimos era de € 71 434,90 e de €25 945,10.

11. Nos contratos de seguro de grupo celebrados e objeto destes autos prevê-se a exclusão do seu âmbito de cobertura de sinistros em que “A Seguradora não garante o pagamento das importâncias seguras, caso o falecimento da Pessoa Segura seja devido a: c) Suicídio”.

12. O sinistro foi participado à ré em agosto de 2020.


III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artºs. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), são as seguintes as questões a decidir:

- Se a norma supletiva contida no artigo 191.º, n.º 1, do novo regime do contrato de seguro (Lei do Contrato de Seguro - LCS), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16-04, passou a ser aplicável ao contrato de seguro de vida em referência, celebrado em 24/07/2007, pelo facto da R. seguradora não ter comunicado aos tomadores do seguro, no prazo de 60 dias em relação à data da primeira renovação a partir da entrada em vigor daquele diploma, o conteúdo das cláusulas alteradas em função da adoção do novo regime;

- E se, por via disso, se deve considerar que o suicídio da beneficiária D…, esposa e mãe dos autores, ocorrido em 22-09-2017, se encontra coberto pelo risco daquele contrato do seguro, em derrogação da cláusula de exclusão desse tipo de sinistro, originariamente inserta no contrato.

Com a presente ação os A.A. pretendem a condenação da R. no pagamento do capital, acrescido de juros de mora, alegadamente garantido pela cobertura de risco no âmbito de dois contratos de seguro de vida, na modalidade de grupo, celebrados na mesma data, associados a um empréstimo bancário para aquisição de habitação, contratos esses celebrado com a R., com efeitos desde 24-07-2007, cobrindo os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva, ou outros riscos por acidente ou doença dos mutuários, em benefício da entidade mutuante credora.

Segundo os A.A., o facto concretizador do risco, consistente na ocorrência da morte por suicídio, da mutuária esposa em 22-09-2017, excluído nos dois contratos celebrados, passou a estar coberto com base nos termos do artigo 191.º, n.º 1, do novo regime do contrato de seguro aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16/04.

A Ré opôs-se àquela pretensão, sustentando que tal sinistro por suicídio estava expressamente excluído do âmbito de cobertura do risco nos termos de cláusula constante do contrato de seguro, não sendo de aplicar o novo regime de seguro como pretendem os AA..

A questão do recurso é essencialmente interpretativa e tem por objeto de interpretação uma sucessão de leis no tempo.

Os contratos de seguro vida em causa nos autos (cobrindo os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva, ou outros riscos por acidente ou doença, em benefício da entidade mutuante credora) foram celebrado em 24-07-2017, estando, por isso, sob o âmbito de aplicação do Código Comercial de 1888, lei em vigor em tal data.

Nas disposições gerais o art. 426 § único e 4º do C. Com. dispõe que:

“O contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num instrumento, que constituirá a apólice de seguro. § A apólice de seguro deve ser datada, assinada pelo segurador e enunciar (…) 4º - os riscos contra que se faz o seguro”.

No Capítulo III, destinado ao regime do Seguro de Vidas o art. 455º enuncia que:

“Os seguros de vida compreenderão todas as combinações que se possam fazer, pactuando entregas de prestações ou capitais em troca da constituição de uma renda, ou vitalícia ou desde certa idade, ou ainda o pagamento de certa quantia, desde o falecimento de uma pessoa, ao segurado, seus herdeiros, ou representantes, ou a um terceiro, e quaisquer outras combinações semelhantes ou análogas. § único: O segurador pode, nos termos deste artigo, tomar sobre si o risco da morte do segurado dentro de certo tempo ou o da prolongação da vida dele além de um termo prefixado”.

O que importa considerar é o que o legislador com a expressão “todas as combinações que se possam fazer” atribuiu às partes no âmbito dos contratos de seguro uma ampla liberdade contratual, cabendo a estas o conteúdo contratual que melhor corresponda aos seus interesses, tendo o regime legal, no essencial, natureza supletiva, ou seja, as normas legais apenas se aplicam quando os intervenientes no exercício legítimo da sua autonomia privada as não tenham afastado, sendo residuais as de natureza imperativa.

Sendo supletiva, nomeadamente a norma do art. 458º do Código Comercial ao prescrever:

« Extinção da obrigação do segurador

O segurador não é obrigado a pagar a quantia segura:

1.º Se a morte da pessoa, cuja vida se segurou, é resultado de duelo, condenação judicial, suicídio voluntário, crime ou delito cometido pelo segurado, ou se este foi morto pelos seus herdeiros;

2.º Se aquele que reclama a indemnização foi autor ou cúmplice do crime da morte da pessoa, cuja vida se segurou.

§ único. A disposição do n.º 1 deste artigo não é aplicável ao seguro de vida contratado por terceiro.»

No caso dos autos, sendo os contratos de seguro de grupo[1], verdadeiros contratos de adesão, essa liberdade contratual surge moldada por uma predefinição de conteúdo elaborado pela seguradora, sem uma real fase negociatória, mas ainda assim, esse conteúdo, cuja liberdade contratual relativamente ao segurado se esfuma, limitando-se este a contratar ou rejeitar, ainda assim, dizíamos, esse conteúdo tem natureza supletiva, ou seja, não é imposto pela lei, podendo aquele rejeitá-lo.

Nesse enquadramento foram celebrados os contratos de seguro vida supra referidos, associados a dois contratos de crédito celebrado com mutuante - 1ª beneficiária, para aquisição de habitação. Tendo como coberturas contratadas a Morte e Invalidez Absoluta e Definitiva dos mutuários.

Tendo neles sido previsto a seguinte exclusão do seu âmbito de cobertura: “A Seguradora não garante o pagamento das importâncias seguras, caso o falecimento da Pessoa Segura seja devido a: c) Suicídio”.

Esta cláusula, de natureza supletiva, exclui o risco em caso de falecimento da pessoa segura devido a suicídio, sem qualquer limite temporal.

No dia 22-09-2017, a mutuária esposa, D…, faleceu por suicídio.

Perante os contratos a Seguradora estaria excluída da obrigação de indemnizar o risco morte desta segurada, uma vez que este risco foi devida a suicídio.

Sucede que o Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16-04 que entrou em vigor em 01 de janeiro de 2009, veio estabelecer o regime jurídico do contrato de seguro. Prevendo-se neste diploma uma regulação específica quanto à sua aplicação no tempo, em particular no respeitante aos contratos anteriormente celebrados.

Assim, o:

«Artigo 2.º (Aplicação no tempo)

1 - O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes.[2]

2 - O regime referido no número anterior não se aplica aos sinistros ocorridos entre a data da entrada em vigor do presente decreto-lei e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa.»

Artigo 3.º (Contratos renováveis)

«1 - Nos contratos de seguro com renovação periódica, o regime jurídico do contrato de seguro aplica-se a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, com exceção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.

2 - As disposições de natureza supletiva previstas no regime jurídico do contrato de seguro aplicam-se aos contratos de seguro com renovação periódica celebrados anteriormente à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, desde que o segurador informe o tomador do seguro, com a antecedência mínima de 60 dias em relação à data da respetiva renovação, do conteúdo das cláusulas alteradas em função da adoção do novo regime.»

Numa interpretação literal as disposições supletivas do novo regime (ou seja, aquelas que as partes podem afastar) aplicam-se aos contratos de seguro com renovação periódica celebrados anteriormente, desde que o segurador cumpra o dever de informação quanto ao conteúdo das cláusulas alteradas com a antecedência de 60 dias em relação à renovação.

Ora, o segurador só cumprirá o dever de informação se pretender alterar o conteúdo do contrato, aplicando alguma/s da/s cláusula/s supletiva/s prevista no novo regime legal.

Ou seja, a aplicação do novo regime supletivo aos contratos anteriores, não é automática, fica nas mãos do segurador, sendo a consequência do seu silêncio, a não aplicação do novo regime supletivo. É sua a liberdade de escolha. O que se pode compreender pelo facto de o prémio ter sido calculado em razão do risco coberto. Mas também porque, sendo as disposições supletivas em número elevado, a aplicação automática das mesmas seria fonte de insegurança jurídica, o que o legislador preveniu facultando ao segurador a possibilidade de, querendo, passar a aplicar aos antigos contratos a nova lei, e quais as normas supletivas a aplicar.

O que tem relevância no presente caso.

No novo regime, supletivamente, encontra-se excluída a cobertura em caso de suicídio ocorrido até um ano após a celebração do contrato.

Dispõe a nova lei:
«Artigo 191.º
Exclusão do suicídio
1 - Está excluída a cobertura da morte em caso de suicídio ocorrido até um ano após a celebração do contrato, salvo convenção em contrário

A expressão “salvo convenção em contrário” comporta a natureza supletiva da norma, podendo as partes afastar a sua aplicação, quer assumindo o segurador tal tipo de risco por todo esse período, quer reduzindo quer aumentando esse período.
Assim, na norma legal é estabelecido um limite temporal para a exclusão.
Na norma contratual a exclusão é estabelecida sem qualquer referência temporal

No respeitante à exclusão do risco em caso de suicídio, o novo regime supletivo, na falta de acordo (subsequente) em contrário, seria mais favorável para os autores, porque diferentemente do contratado em 2007, estabelece um período temporal após a celebração do contrato como excludente da cobertura do risco morte e, esse período, que é de um ano mostrava-se já esgotado quando a morte ocorreu.

Contudo, não lhes tendo sido informado pela seguradora a aplicação de tal regime supletivo, especificidade ressalvada no artº 2º para que a lei nova seja aplicada ao conteúdo contratual anterior, não lhes pode o mesmo aproveitar.

De resto, a cobertura daquele tipo de risco para além do ano subsequente à data da celebração do contrato permanece, como anteriormente, na esfera da liberdade contratual, podendo ser objeto de exclusão convencional, pelo que, o contrato anterior mostra-se nesta questão conforme com a lei atual. Sendo válida a cláusula que estipulou a exclusão do risco de morte por suicídio da pessoa segura, sem qualquer limitação temporal.

O Tribunal a quo tem entendimento diferente.

Lê-se na sentença:

“Os contratos dos autos iniciaram a sua vigência em 24 de julho de 2007, tendo sido renovados em 24 de julho de 2008, 24 de julho de 2009, 24 de julho de 2010, 24 de julho de 2011, 24 de julho de 2012, 24 de julho de 2013, 24 de julho de 2014, 24 de julho de 2015, 24 de julho de 2016 e 24 de julho de 2017, tendo, entretanto, falecido uma das pessoas seguras em 22 de setembro de 2017.

Deste modo, tendo em conta a data da renovação ocorrida em 24 de julho de 2009, é a partir desta data que se torna aplicável a LCS aos contratos celebrados entre a ré e o autor e sua falecida esposa.

Assim, fica resolvida a questão sobre a aplicação no tempo da LCS, que no caso dos autos tem particular importância pelo afastamento da aplicação do Código Comercial.

(…).

A ré para afastar a aplicação do n.º 1, do art.º 191.º, deveria ter comunicado às pessoas seguras (ao autor e sua falecida esposa) a nova cláusula com a antecedência de 60 dias em relação à data da renovação do contrato a ocorrer logo após a entrada em vigor da LCS.

Não tendo havido qualquer comunicação a manter em vigor a exclusão de suicídio sem limite temporal, o regime aplicável é o da lei e não o estabelecido inicialmente no contrato ao abrigo da lei antiga”.

Com todo o respeito, divergimos desta interpretação.

O conteúdo dos dois contratos de seguro dos autos assentou num regime de liberdade contratual, tendo as partes definido o seu conteúdo.

A permissão de exclusão, por via convencional, da cobertura do risco morte por suicídio para além do ano subsequente à celebração do contrato, é tão compatível com o regime anterior (Código Comercial) como com o atual (DL n.º 72/2008, de 16 de Abril.

Não incumbia à R. seguradora, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, da n.º Lei 72/2008, de 16-04, reiterar a manutenção da referida cláusula de exclusão para efeitos de a manter, no domínio da nova lei.

Em sentido idêntico pronunciou-se o Acórdão do STJ de 29-06-2017 (Tomé Gomes) in www.dgsi.pt.

Concluindo, o suicídio da segurada D…, ocorrido em 22-09-2017, não está coberto pelo risco dos dois contratos de seguro em causa nos autos, por força da cláusula de exclusão desse tipo de sinistro, originariamente inserta nos contratos, que se mostra válida e eficaz à data dessa ocorrência, não tendo sido alterada.

(…)

Face ao exposto, procede o recurso na totalidade.


IV

Termos em que, acorda-se em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e em sua substituição, decide-se julgar a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

As custas da ação serão a cargo dos Autores.

Sem custas do recurso atento o vencimento da Ré apelante, sem oposição dos Autores apelados.

Évora, 13 de janeiro de 2022

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Maria Adelaide Domingos
José António Penetra Lúcio
__________________________________________________

[1] Com definição legal no art. 1.º, al. g), do DL n.º 176/95, de 26-07, posteriormente revogado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.
[2] Sublinhado nosso.