Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
284/12.1TBBNV.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
SINAL
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática: DIREITO CIVIL-DIREITO DAS OBRIGAÇÕES-CONTRATO-PROMESSA-INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Sumário:
I- Se as partes estabelecem, num contrato, um determinado prazo para a sua execução, acrescido de um período moratório (de um mês), entende-se que o decurso dos prazos tem por consequência tanto o incumprimento definitivo como a presunção absoluta do desinteresse do credor na prestação.
II- Findos os referidos prazos é legítima a resolução do contrato pelo contraente cumpridor.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

BB instaurou contra CC a presente acção declarativa constitutiva e de condenação com processo comum sob a forma ordinária formulando o seguinte pedido:
1- Ser decretada a resolução do contrato de promessa de compra e venda junto na p.i. como doc. n.º 1, relativo ao prédio aí identificado, por incumprimento culposo e definitivo da Ré;
2- Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €520.000,00 (quinhentos e vinte mil Euros), correspondentes ao montante do sinal entregue (260.000,00 €) pela Autora à Ré, acrescido do montante de igual valor, nos termos do disposto na norma do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, acrescido dos respetivos juros à taxa legal para obrigações comerciais, até efetivo e integral pagamento;
3- Se, por qualquer caso, se vier a apurar que a Ré não poderá ser condenada a devolver o sinal em dobro à Autora, terá de ser condenada em alternativa, a devolver o valor do sinal (€ 260.000,00), acrescido dos juros à taxa legal para obrigações comerciais, calculados desde o dia 15/11/2006, até efetivo e integral pagamento, pois tanto a Autora como a Ré são comerciantes, e como tal, aplica-se a taxa de juro para obrigações comerciais;
4- Caso ainda se venha a verificar que a Autora não tenha direito a receber da Ré o valor do sinal em dobro, ou o valor do sinal acrescido dos juros, contados à taxa legal para obrigações comerciais, desde o dia 15/11/2006, até efetivo e integral pagamento, em terceira alternativa, a Autora pede a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 260.000,00, acrescido dos juros à taxa legal para obrigações comerciais, contados desde a data da citação da Ré para esta ação, até efetivo e integral pagamento, tendo em conta o regime subsidiário do instituto do enriquecimento sem causa, previsto nos artigos 473º e seguintes do Código Civil;
Para fundamentar a ação alega que celebrou, em 23.10.2006, com a ré um contrato promessa de compra e venda de um lote de terreno pelo preço de 750.000€, tendo efetuado o pagamento da quantia de 260.000€ a título de sinal. Posteriormente foi feita uma alteração a esse contrato pela qual o preço foi reduzido para 684.800€. Até ao momento e passado todo o tempo até á entrada da ação a ré não marcou a escritura que formalizaria o contrato definitivo e nem vai marcar, tendo a autora perdido o interesse na celebração desse contrato definitivo, o que ocorreu por culpa da ré.
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A ré contestou.
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O processo seguiu os seus termos e, depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente por parcialmente provada, condenou a ré a pagar à autora a quantia de 260.000€ (duzentos e sessenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa dos créditos das empresas comerciais desde a data da citação até integral e efetivo pagamento, absolvendo a ré do pedido quanto ao restante do pedido.
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Desta sentença recorre a R. defendendo a sua revogação e concluindo a sua alegação nestes termos:
O aditamento ao contrato promessa em causa foi celebrado em 11 de Janeiro de 2011.
Na sentença recorrida conhece-se e pronunciou-se sobre questão que as partes não suscita, tendo ultrapassado os limites de cognição do tribunal e incorrido na nulidade do art.º 615.º, n.º 1, al. d), Cód. Proc. Civil.
A crise no sector da habitação que na sentença recorrida é erigida como a causa da «morte» do contrato promessa firmado entre recorrente e recorrida não tem essa virtualidade, por isso que não tem qualquer correspondência com a impossibilidade objectiva a que aludem os arts.º 790.º, n.º 1, e 795.º, n.º 1, Cód. Civil.
A perda de interesse que releva para os efeitos do art.º 808.º, n.º, 1, Cód. Civil, é aquela que é apreciada objectivamente com base em elementos de facto (que a recorrida não alegou) susceptíveis de ser valorados a se, perceptíveis por qualquer pessoa.
A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou os art.ºs 790.º, n.º 1, 795.º, n.º 1, e 808.º, Cód. Civil, bem como os arts.º 607.º, n.º 4, 2.ª parte, e 608.º, n.º 2, e incorreu na nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. d), Cód. Proc. Civil.
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Por seu turno, a A., pretendendo a condenação da A. no pagamento do sinal em dobro, recorre subordinadamente alegando o seguinte:
Aquando da celebração do contrato promessa foi estipulado o prazo de um ano para ser celebrado o contrato definitivo de compra e venda;
Até à entrada da presente acção no Tribunal, ainda não tinha sido marcada a escritura pública de compra e venda, a fim de dar cumprimento ao contrato promessa celebrado, conforme ficou provado nos presentes autos;
Foi a Ré que incumpriu o contrato promessa de compra e venda do referido lote, não tendo logrado marcar a escritura da celebração do contrato definitivo dentro do prazo estipulado de um ano, ou seja, em 2011;
Sendo que foi por culpa exclusiva da Ré que não foi celebrado o referido contrato;
A Autora tem direito a receber o sinal em dobro, ou seja, 520.000,00 € (quinhentos e vinte mil Euros);
A Autora perdeu o interesse objectivo na celebração definitiva do contrato promessa outorgado por ela e pela Ré;
Tendo feito prova dessa perda de interesse objetivo;
O fundamento legal de resolução de um contrato é, nos termos do art.º 801º, a impossibilidade de cumprimento decorrente de incumprimento definitivo;
O incumprimento definitivo de um contrato pode ocorrer em qualquer destas situações: inobservância de prazo fixo essencial para a prestação; se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, etc.;
O prazo estipulado para celebração do contrato definitivo constituía um prazo limite, improrrogável, para o adimplemento, findo o qual há incumprimento definitivo da obrigação, fundamento imediato da resolução;
Com a celebração do aditamento do contrato promessa não foi alterado o prazo para a celebração do contrato definitivo, mas apenas alterado quanto ao valor/preço do lote;
A perda de interesse não resultou de um simples capricho do credor, tendo a superveniente falta de utilidade da prestação resultado objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio, bem como das que, posteriormente, vieram a condicionar a sua execução, como sejam as condições do sector imobiliário;
No ano em que foi celebrado o contrato promessa de compra e venda em discussão nos presentes autos, o mercado imobiliário não se encontrava em crise bem como no ano em que deveria ter sido celebrado o contrato definitivo (2011), as condições económicas e o sector imobiliário não se encontravam como como no ano de 2012, 2013 e 2014, ou seja, no ano de 2011 o sector imobiliário ainda não estava tão em crise;
As condições que estiveram na base da celebração do presente contrato se alteraram e muito até aos dias de hoje.
Como resulta dos autos, desde a data da celebração do contrato promessa até à data da propositura da presente acção decorreram cinco anos;
A Ré teve muito tempo para diligenciar a aprovação de todos os projetos relacionados com o licenciamento do lote, bem como de diligenciar pela celebração do contrato definitivo de compra e venda;
O que não fez, por exclusiva culpa sua;
Como resultou provado dos autos, a Ré incumpriu definitivamente o contrato, levando à perda de interesse da Autora;
Deve a Ré ser condenada a restituir à Autora o sinal em dobro, nos termos do artigo 442.º, nºs 2 e 3 do C. C., o que, desde já e aqui se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;
Lendo, atentamente, a decisão recorrida, na parte de que se recorre, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo pelo qual se decidiu pela inexistência de culpa da Ré no incumprimento definitivo do contrato promessa em discussão nos presentes autos;
O Meritíssimo Juiz “a quo” limitou-se apenas e tão só, na parte de que se recorre, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta a prova produzida em julgamento, os elementos constantes no processo, etc.;
Deixando o Meritíssimo Juiz “a quo”, de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;
A Sentença recorrida viola:
a) Artigos 154º, 615, al. b), do CPC;
b) Artigo 442º, nºs 1 e 2, do C.C;
c) Artigos, 13º, 20º, 202º, 204º, 205º da C. R. P..
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Em relação ao recurso da R., a A. alega como segue:
A Autora alegou a perda de interesse objectivo, bem como o incumprimento culposo definitivo do contrato promessa;
A Autora logrou provar quer a perda de interesse objectivo, quer o incumprimento culposo por parte da Ré, aqui Recorrente;
Conforme refere o Meritíssimo Juiz na Sentença proferida, os factos notórios não carecem de prova, nem de alegação, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral;
O Meritíssimo Juiz, ao abrigo do disposto no artigo 514.°, n.° 1, do Cód. Proc. Civil, pode considerar certos factos como notórios, independentemente - até - de os mesmos, no caso de terem sido alegados.
Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos;
Foi o que aconteceu nos presentes autos;
É notório e do conhecimento geral que a construção civil se encontra estagnada, ou seja, em crise;
Devido à crise económica que se faz sentir em Portugal, as famílias portuguesas deixaram de ter poder de compra, e consequentemente deixaram de poder comprar casa, passando uns a viver em casa dos pais, ou preferindo o arrendamento à compra;
O valor das casas/habitações baixaram, pelo que, nunca a Autora conseguiria realizar o preço pelo qual foi celebrado o contrato promessa em discussão nos presentes autos;
Tanto assim é que basta ver os jornais diários sobre a crise económica e imobiliária que o nosso país atravessa;
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Foram colhidos os vistos.
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As duas partes suscitam a questão da nulidade da sentença.
A R. porque nada foi alegado, designadamente pela A., que fosse susceptível de integrar a situação dos autos como de impossibilidade objectiva de cumprimento, no sentido que corresponde ao art.º 790.º, Cód. Civil. Antes se socorreu de um facto notório para «matar» o contrato pelo que conheceu de questão de que não podia conhecer.
Cremos que não tem razão.
O problema que aqui se discute tem que ver com o incumprimento do contrato celebrado entre as partes; logo, é inevitável que as questões jurídicas pertinentes sejam apresentadas o que, por sua vez, significa que o regime do incumprimento das obrigações tem de ser trazido à colação. Dentro deste regime existe, como é sabido, a figura da impossibilidade objectiva de incumprimento que tem por consequência a extinção da obrigação (n.º 1 do art.º 790.º, Cód. Civil). Não se vê, pois, como é possível afirmar que a sentença se pronunciou sobre um tema que lhe estava vedado. Pelo contrário, a sentença pronunciou-se sobre um tema que era inelutável.
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Por sua vez, a A. defende que a sentença é nula porque não está exaustivamente fundamentada.
Apoia-se na circunstância de em parte nenhuma da sentença se explicar o verdadeiro motivo pelo qual se decidiu pela inexistência de culpa da R. no incumprimento.
Manifestamente não tem razão.
A sentença considerou a crise financeira de 2008, que é um facto público e notório, como causa objectiva de incumprimento. Sendo assim, é óbvio que não tinha que se pronunciar sobre a culpa da R., não tinha que afirmar que tal culpa não existia. Ao definir uma situação de incumprimento por impossibilidade objectiva e absoluta de cumprir, está, do mesmo passo, a afirmar que não existe culpa no incumprimento.
Improcede, assim, a arguição da nulidade da sentença.
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A matéria de facto é a seguinte:
1- Acha-se inscrita no registo predial, pela Ap. (…), a aquisição a favor da R., por compra, do prédio urbano sito na Av. (…), na freguesia de Samora Correia, com a área de 2400,00 m2, inscrito na matriz sob o artigo (…), na Conservatória do Registo Predial de Benavente.
2- Em 23 de Outubro de 2006, através de documento particular, denominado contrato de promessa de compra e venda, a R. prometeu vender à A. o prédio urbano referido, pelo preço de €750.000,00 (setecentos e cinquenta mil euros).
3- Mais acordaram que €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), a título de sinal, seriam pagos no momento da assinatura deste acordo, o que a A. entregou à R.;
4- €110.000,00 (cento e dez mil euros), como reforço de sinal, seis meses após a data da assinatura deste acordo, o que a R. entregou à A., no dia 06.07.2007;
5- €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), a ser entregue no dia da celebração da escritura de compra e venda do prédio referido em A);
6- e o restante, dois dos apartamentos, no valor total de € 240 000,00 (duzentos e quarenta mil euros), nos primeiros andares direitos de cada bloco (A e B) de tipologia T3, a construir no prédio referido em A).
7- De acordo com a cláusula primeira do acordo referido em B), o prédio referido em A) está aprovado para construção de um bloco habitacional, composto por 23 fogos com cave para estacionamento.
8- Mais acordaram, de acordo com a cláusula terceira alínea e), “A escritura de compra e venda será realizada quando a licença de construção se encontrar a pagamento e ou no prazo máximo de 1 ano.”.
9- Acordaram ainda de acordo com a cláusula sexta: “Em caso de incumprimento definitivo por qualquer das outorgantes, entendido como subsistência de mora no cumprimento de qualquer das obrigações assumidas por mais de trinta dias, poderá a outorgante não faltosa optar pela rescisão contratual, com as consequências legais relativas à prestação do sinal, ou pela sua execução específica.”
10- Posteriormente, A. e R. fizeram um aditamento ao acordo referido em B), onde foram aditadas as seguintes cláusulas:
“…1ª – Foi celebrado a 23 de Outubro de 2006 um contrato de promessa de compra e venda entre as outorgantes acima identificadas, cujo valor de venda ficou acordado em €750.000,00 (setecentos e cinquenta mil euros) por um lote de terreno com área total de 2.400 m2 aprovado para construção de um bloco habitacional, composto por 23 fogos com cave para estacionamento, sito na Av. (…),na freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente;
2ª – Face à não autorização, na presente data, por parte da Autarquia, da construção dos 23 fogos, mas de 21 fogos para o lote em questão, a primeira outorgante altera o valor inicial da venda para €684.800,00 (seiscentos e oitenta e quatro mil e oitocentos euros), sendo que a segunda outorgante já pagou a título de sinal €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a 15/11/2006 e reforçou com €110.000,00 (cento e dez mil) a 06/07/2007;
3ª - A restante quantia €184.800,00 (cento e oitenta e quatro mil e oitocentos euros), será entregue no dia da celebração da escritura de compra e venda…”.
11- A. e R. acordaram na entrega de dois apartamentos como parte do preço, nos termos contantes da cláusula 3ª, al. C) do documento junto a fls. 16 e 17 denominado “Contrato promessa de compra e venda”.
12- Até ao momento a R. não marcou a escritura de compra e venda.
13- A R. não restituiu qualquer quantia à A.
14- Por carta datada de 27 de Agosto de 2010, a R. foi informada pela Câmara Municipal de Benavente da seguinte deliberação aprovada em reunião do executivo no dia 16-08-2010:
“Deliberado por unanimidade, após visita da Câmara Municipal ao local, que o projeto seja reformulado, de forma a reduzir um piso e permitir a harmonização com a envolvente, tendo em consideração as preocupações manifestadas pelos Senhores Vereadores”.
15- Por carta datada de 16 de Novembro de 2010, recebida no dia seguinte, a R. apresentou nos competentes serviços de obras da Câmara Municipal de Benavente o projeto reformulado, nos precisos termos sugeridos na deliberação mencionada nos artigos antecedentes.
16- A reformulação do projeto inicial apresentado pela R. em 16/17 de Novembro de 2010 foi objeto de deliberação pela Câmara Municipal de Benavente, nos termos constantes do documento de fls. 44, do qual conta nomeadamente que foi “deliberado por unanimidade homologar a presente informação técnica”, da qual consta que “caso a proposta seja aceite superiormente tal como se apresenta, considera-se que o projeto de arquitetura reúne condições para aprovação, devendo a requerente ser notificada de que dispõe de 6 meses para apresentar e solicitar a aprovação dos projetos das especialidades necessários à boa execução das obras”.
17- A qual foi comunicada à R. por carta de 29 de Dezembro de 2010.
18- Recebida no dia 11 de Janeiro de 2011 pela R..
19- A dita reformulação do projeto envolveu a redução do número de fogos inicialmente previstos de 23 para 21.
20- O responsável da R., arquiteto DD, informava a A., na pessoa dos seus legais representantes, do andamento do referido processo de licenciamento nos serviços da Câmara Municipal de Benavente.
21- A R. providenciou no sentido de obter a aprovação definitiva do referido projeto de construção junto da Câmara Municipal de Benavente
22- A R. havia apresentado, em 11 de Abril de 2011, os projetos de especialidades para aprovação.
23- E em 1 de Junho de 2011 o comprovativo da aprovação do projeto das instalações elétricas.
24- O aditamento ao contrato referido no n.º 10 foi feito em 11 de Janeiro de 2011.
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Aditamos este facto descrito em último lugar porque é a data que resulta da autorização da Câmara para construir 21 fogos e não 23. Esta deliberação chegou ao conhecimento da R. em Janeiro de 2011 e, por isso, é esta a data que fixamos (e não a de Agosto de 2010, como fez a sentença com base numa deliberação que mandou reformular o projecto).
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Cremos que o resumo do litígio se pode fazer desta maneira: a sentença recorrida condenou a R. a devolver o sinal em singelo. A A. pretende receber o sinal em dobro e a R. pretende nada devolver e manter o contrato em vigor.
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O recurso da R. assenta em duas razões: por um lado, a crise no sector da habitação não é uma impossibilidade objectiva de cumprimento, logo, o contrato deve manter-se; por outro, a perda de interesse, a que se refere o art.º 808.º, deve ser apreciada objectivamente, com base em elementos de facto susceptíveis de ser valorados por qualquer pessoa.
Em relação ao primeiro aspecto, não podemos deixar de concordar com a R. recorrente.
A sentença recorrida começa por colocar a questão de saber se existe ou não incumprimento definitivo do contrato promessa por parte da R.. depois, apresenta o facto público e notório da crise financeira, aliado ao facto de o contrato dever ter sido celebrado no prazo de um ano, de não haver culpa da R. na não realização da escritura nesse prazo e de a A. ter perdido interesse na sua realização. Com estes fundamentos, conclui que a prestação se tornou objectivamente impossível de cumprir.
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Importa, pois, notar que não foram só razões de carácter objectivo (caso do art.º 790.º, Cód. Civil) que levaram à dita conclusão; também teve lugar a consideração da perda de interesse do credor na prestação (nos termos do art.º 808.º, Cód. Civil).
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As consequências, ao nível dos contratos civis, da crise financeira de 2008 traduzem-se em dificuldades em cumprir os contratos; tais dificuldades podem ser poucas como muitas mas existem. Ainda assim, não constituem, por si só, uma causa de exclusão de responsabilidade contratual, isto é, não possibilitam a extinção dos contratos celebrados com fundamento na impossibilidade objectiva — tal como não possibilitam, por si só, a aplicação do art.º 437.º do mesmo diploma legal (cfr. ac. do STJ, de 10 de Janeiro de 2013).
O que se passa é que, por força de um contexto geral, as prestações contratuais tornaram-se mais difíceis de cumprir do que no momento em que elas foram convencionadas. Mas estas dificuldade na execução da prestação não extinguem os contratos, não extinguem as respectivas prestações, e tal é a regra do nosso Direito (cfr., por todos, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 1990, pp. 67-68).
Sendo assim, podemos concluir, com a recorrente, que a crise financeira de 2008 não «matou» (para usar a sua expressão) o contrato dos autos.
Assim, por este motivo, só por este motivo, mantém-se em vigor.
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A segunda razão do recurso da R. prende-se agora com o tema do recurso da A. que pretende resolver o contrato com base no incumprimento definitivo da R., pois que se ele (o contrato) existe e é válido pode ser resolvido.
E aqui é que entramos em linha de questão com o art.º 808.º (deixando já de lado o art.º 790.º), colocando-se o problema nos seguintes termos: podemos concluir que a A. perdeu interesse na celebração do contrato definitivo?
Para responder a esta pergunta podemo-nos socorrer do facto público e notório da dita crise, não isoladamente, mas dentro do contexto contratual. Da mesma maneira que não vemos a crise, por si só, como fundamento para a impossibilidade objectiva, também não a vemos como motivo para a perda do interesse do credor na prestação.
Mas outros elementos existem, desde logo, o tempo decorrido desde o contrato promessa, bem como o próprio contrato.
Este contrato é de 2006 e sofreu uma alteração em 2011 que se traduziu numa redução de preço e numa redução de fogos a construir. No mais, manteve-se a regulamentação original.
Com isto queremos dizer que a R. continuou obrigada a celebrar a escritura (e a preparar tudo para isso) dentro de um ano após o aditamento (11 de Janeiro de 2012). Além disto, e de acordo com a cláusula descrita no n.º 9 da exposição da matéria de facto, ainda poderiam decorrer 30 dias depois do termo de um ano (11 de Fevereiro de 2012, sendo que a acção deu entrada em 29 deste mês). A partir daqui, e caso não estivesse realizado o contrato prometido, a outorgante não faltosa pode optar pela rescisão contratual, com as consequências legais relativas à prestação do sinal, ou pela sua execução específica. Isto porque, expressamente, as partes fixaram um termo essencial subjectivo, como lhe chama Baptista Machado («Pressupostos da Resolução por Incumprimento», Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, p. 188). Trata-se de uma cláusula em que as partes estabeleceram um prazo para o cumprimento (no caso dos autos, com a extensão de mais um mês) findo o qual as elas entendem haver incumprimento definitivo. Como escreve o mesmo autor, é o «acordo entre as partes que liga ao termo do vencimento a presunção absoluta do desaparecimento do credor, se não houver rigorosa pontualidade no cumprimento» (ob. et loc. cit.).
Dito de outra forma, o próprio decurso do tempo faz o credor perder o interesse na prestação. E, neste caso, o credor é a A. que tem cumprida a sua prestação.
Mas no caso dos autos há mais elementos.
Este contexto contratual (o de tempo de espera e de incumprimento), a crise e respectivas consequências económicas (que são, como já se disse, facto público e notório) mais fazem o credor perder interesse neste negócio, menos vantajoso que se apresenta para si como na altura em que o respectivo contrato foi celebrado.
Se o próprio contrato prevê a possibilidade de resolução só com base no decurso do tempo (e as partes são livre de contratar como entenderem conveniente, nos termos do art.º 405.º, Cód. Civil), cremos que este elemento associado ao desvalor actual do negócio são suficientes para afirmar a perda de interesse do credor.
E mais: havendo um prazo para cumprir e mais um período de mora sem que o contrato tenha sido cumprido não vemos como seria legítimo manter a A. presa a tal negócio.
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Em função disto não se torna necessária qualquer discussão a respeita da culpa na não realização da prestação. Por um lado, ela presume-se (art.º 798.º, Cód. Civil); por outro, o clausulado entre as partes dispensa a culpa de uma para que a outra possa resolver o contrato (basta o decurso dos prazos fixados).
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Apenas uma última nota.
O pedido principal é o da resolução do contrato e consequente restituição do sinal em dobro. Uma vez que a resolução foi feita judicialmente, por meio desta acção (isto é, não foi feita, como o podia ser, extrajudicialmente), entendemos que o tribunal deve declarar isso mesmo.
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Concluímos, então, que a A. tem direito à devolução do sinal em dobro, tal como previsto no art.º 442.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
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Pelo exposto:
I- julga-se improcedente o recurso da R.;
II- julga-se procedente o recurso da A. em função do que se altera a sentença recorrida e declara-se resolvido o contrato dos autos condenando-se a R. a pagar à A., a título de sinal em dobro, a quantia de €520.000,00 (quinhentos e vinte mil euros), acrescida de juros à taxa legal.
Custas, de ambos os recursos, pela R..
Évora, 12 de Fevereiro de 2015
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Xavier