Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
76/08.2.MAPTM.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: INDÍCIOS SUFICIENTES
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. A existência de indícios suficientes significa que os indícios, com o sentido de conjunto da prova recolhida nas fases preliminares, são suficientes para submeter o arguido a julgamento, o que se verifica quando deles resultar uma possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado.

2. O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório” ou o despacho de pronúncia.

3. Sendo as duas versões em confronto sustentadas unicamente em prova pessoal e estando em causa ameaças alegadamente proferidas em língua inglesa, com as inerentes dificuldades de perceção e tradução, sem que se vislumbrem outras provas capazes de levar a superar a dúvida razoável sobre a realidade daquele facto, bem andou o tribunal a quo ao não pronunciar o arguido.
Decisão Texto Integral:

Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


I. Relatório

1. – Nos presentes autos que correram termos nos serviços do MP junto do Tribunal Judicial de Albufeira, o MP deduziu acusação contra PT, empresário, nascido a 19.10.1962, natural do Reino Unido, onde tem residência, imputando-lhe a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal.

2. O arguido, porém, requereu abertura da instrução e, realizada, esta o senhor juiz titular do processo na fase de Instrução proferiu despacho de não pronúncia, cujo teor aqui se dá por parcialmente reproduzido:

« (…)
O tribunal é competente.
O processo é válido e é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

*
Ponderando todas as provas que foram produzidas, entendemos que se encontram apenas suficientemente indiciados os seguintes factos:

1. No dia 19-08-2008, cerca das 13:30 horas, o queixoso AC encontrava-se acompanhado de JS, ambos técnico profissionais ao serviços da Comissão Coordenadora de Desenvolvimento Regional do Algarve, efectuando então funções de fiscalização da empreitada de obras públicas designada por “Balizamento de zonas de risco na ----”, sita nos ----, em Albufeira.

2. Perto desse local, situa-se a residência do arguido.

3. A dada altura, AC e JS dirigiram-se na direcção da propriedade do arguido, do que este último se veio a aperceber.

4. Teve então início uma discussão entre o arguido e AC, estando também o arguido na altura acompanhado por outros indivíduos que ali se encontravam, ora junto dele ou nas imediações, a observar o que se passava.

5. O arguido expressava-se unicamente na língua inglesa, dado que não domina a língua portuguesa.

6. Ali presentes estiveram também as testemunhas RW, BR e DW, tal como a testemunha JB, e a testemunha BF.

7. Foi a testemunha BF quem, durante o diálogo estabelecido entre o arguido e AC, ia procedendo à tradução para português daquilo que o arguido verbalizava na língua britânica.

Ao invés, e ponderada a prova produzida, não se encontra suficientemente indiciado o seguinte facto:

1. Que, naquelas circunstâncias, o arguido tenha proferido na língua inglesa as expressões "o que você acha dos meus seguranças, que são pessoas muito estranhas o lançassem da arriba?"

Os factos indiciados sustentam-se, pacificamente, em parte do depoimento prestado pelo queixoso AC, no depoimento prestado pela testemunha JS, que o acompanhava (note-se que esta testemunha, contrariando o segundo depoimento do queixoso, referiu a presença já de acompanhantes do arguido, aquando da verbalização, por parte do arguido, a que alude a acusação), e nos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela defesa, e ouvidas nesta instrução.

O certo é que, relativamente à expressão que na acusação era descrita e imputada ao arguido, ou seja a expressão "o que você acha dos meus seguranças, que são pessoas muito estranhas o lançassem da arriba?", todas as testemunhas indicadas pela defesa vieram negar ter o arguido proferido essas palavras.

Não encontramos contradições, nos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela defesa, que justifiquem a reserva relativamente a tais depoimentos, sendo certo que todas elas estiveram presentes, mais ou menos, perto do arguido, aquando do contacto deste, de natureza verbal, com o queixoso, tendo inclusivé uma das testemunhas, BF, servido de intérprete, efectuando a tradução daquilo que o arguido dizia em inglês.

Não se olvida que o queixoso, secundado pela testemunha JS, apresente uma versão diferente, precisamente no sentido do que o arguido teria dito algo na língua inglesa que, nos depoimentos prestados pelo queixoso e pela testemunha JS, teve da parte de ambos a tradução constante dos respectivos autos de inquirição.

No entanto, uma coisa é certa, nenhuma destas duas testemunhas trouxe ao processo, nos seus depoimentos, os termos precisos com que o arguido se teria expressado na língua britânica e que pudessem consubstanciar essa tradução, desconhecendo nós, e o processo, mesmo, se a tradução que estas duas testemunhas apresentam corresponde ou não ao verdadeiro sentido das palavras que o arguido teria dito.

Sendo seguro que o arguido não falava em português, e por isso seguro que não disse na língua portuguesa as palavras que ficaram descritas na acusação.

Sobretudo, na apreciação que fazemos, não encontramos razões para conferir maior credibilidade ao ofendido e à testemunha JS, ou razões para destituir de credibilidade os depoimentos que foram prestados pelas cinco testemunhas arroladas pela defesa. Isto, quando é certo que o queixoso veio apresentar duas versões distintas, e por isso contraditórias (entre si, e com os depoimentos das restantes testemunhas), pois que, na primeira (formulada na denúncia e no seu primeiro depoimento) teria o arguido verbalizado a suposta expressão (o que você acha dos meus seguranças, que são pessoas muito estranhas o lançassem da arriba?") já acompanhado da esposa, do vizinho, e de vários outros indivíduos, ao passo que na segunda versão encontrar-se-ia o arguido ainda sozinho quando a verbalizara.

Não significa isto que estejamos a aplicar na fase de instrução, em bom rigor, o principio in dúbio pro reo.

Significa, sim, que as cinco testemunhas indicadas pela defesa, e ouvidas neste instrução, permitem fundar uma dúvida séria sobre a realidade do facto que considerámos não suficientemente indiciado, e que, a nosso ver, é de prever que essa dúvida viesse a ser o resultado da apreciação da prova assim produzida num futuro julgamento, sem que se vislumbrem outras diligências susceptíveis de conduzir ao afastamento dessa dúvida.

E a dúvida não pode deixar de ter por consequência, como é o caso, a impossibilidade da formação de um juízo seguro de convencimento sobre a realidade daquele facto, sendo esse o resultado que maior probalidade teria de vir a ocorrer em julgamento.

Não se afigura, pois, que aquela prova, assim globalmente considerada, seja de permitir prever que, com razoabilidade, em julgamento viesse a ter lugar a condenação do arguido, pelo que se impõe a sua não pronúncia.

Face ao exposto, com estes fundamentos, decido não pronunciar o arguido PT, quanto à prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, que lhe vinha imputado.

Sem custas.

Notifique. »

3. – Na sequência desta decisão, veio o MP interpor o presente recurso, de cuja motivação extrai as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem ipsi verbis:

Conclusões:

1) Considerando que os indícios são de considerar suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena, perante os factos descritos, temos como certo que a prática pelo arguido do crime de ameaça se encontra suficientemente indiciada, pelo que deverá o arguido ser pronunciado por tais factos.

2) Assim não se decidindo, despronunciando-se o arguido como se decidiu na decisão instrutória em crise, fez-se uma incorrecta interpretação da norma jurídica vertida no artigo 153º, nº 1 e 155º do Código Penal, bem como do conceito de indícios suficientes referido no artigo 283º n.º2 do Código de processo Penal e uma errada interpretação dos factos cuja apreciação lhe estava submetida.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o arguido pronunciado pelos factos supra descritos e constantes da acusação, que integram o tipo legal de ameaça por cuja prática deverá ser submetido a julgamento»

3. – Nesta Relação, o senhor magistrado do MP emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

4. – Cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP, o arguido veio reafirmar o seu entendimento de que deve ser negado provimento recurso.

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso.

A questão essencial suscitada no presente recurso é a de saber se, como pretende o MP, se verificam indícios suficientes da prática do crime imputado ao arguido na acusação pública, contrariamente ao decidido pelo senhor juiz a quo.

2. Decidindo.

2.1. – Indícios suficientes – o critério legal

Uma vez que a discordância do MP assenta essencialmente no entendimento de que, mesmo após a Instrução, existem indícios suficientes de que o arguido praticou o crime que lhe vinha imputado na acusação, a decisão do recurso assentará na valoração da suficiência dos indícios recolhidos nos autos o que, por sua vez, depende do respectivo critério normativo, pelo que se impõe deixar claro o nosso entendimento a tal respeito.

A noção legal de indícios suficientes consta do art. 283º nº2 do CPP e é válida tanto para a acusação como para a decisão instrutória, dados os termos do art. 308º nº1 do mesmo Diploma legal.

Decorre, pois, daquelas normas que tanto no Inquérito como na Instrução, a existência de indícios suficientes significa que os indícios, com o sentido de conjunto da prova recolhida nas fases preliminares, são suficientes para submeter o arguido a julgamento, o que se verifica quando deles resultar uma possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado.

Sobre o significado da locução possibilidade razoável de condenação, utilizada neste preceito, podem distinguir-se três correntes fundamentais, como o faz Jorge Noronha e Silveira:

“- Uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;

- Numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;

- Uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.”[1]

Com Carlos Adérito Teixeira,[2] entendemos que “…apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação, (…) responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do estado de Direito democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo”[3]

O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de, pois, ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório“ [4] ou o despacho de pronúncia.

2.2.– Tal como se entendeu no Ac TC 439/2002 de 23 de Outubro, citado em nota, a decisão instrutória não pode, pois, excluir o princípio in dubio pro reo da valoração das provas que subjaz à decisão de pronúncia ou não pronúncia e a verdade é que da prova produzida em Inquérito e Instrução no caso presente, resulta dúvida séria, razoável e inultrapassável sobre a questão de facto controvertida, isto é, se nas circunstâncias de tempo e espaço descritas na acusação e no despacho de não pronúncia, “ … o arguido proferiu na língua inglesa as expressões "o que você acha dos meus seguranças, que são pessoas muito estranhas o lançassem da arriba?".

Sendo as duas versões em confronto sustentadas unicamente em prova pessoal e estando em causa ameaças alegadamente proferidas em língua inglesa, com as inerentes dificuldades de perceção e tradução, sem que se vislumbrem outras provas capazes de levar a superar a dúvida razoável sobre a realidade daquele facto, bem andou o tribunal a quo ao não pronunciar o arguido. Como refere a decisão recorrida, nenhuma das duas testemunhas que acompanhavam o queixoso trouxe ao processo, nos seus depoimentos, os termos precisos com que o arguido se teria expressado na língua britânica, de modo a poder aferir-se se a sua correspondência ou não com o verdadeiro sentido das palavras que o arguido teria proferido.

Acresce que as testemunhas apresentadas pelo arguido estiveram boa parte do tempo próximo deste e foi uma dessas testemunhas - BF - quem, durante o diálogo estabelecido entre o arguido e AC, ia procedendo à tradução para português daquilo que o arguido verbalizava na língua britânica, pelo que dificilmente deixariam de ouvir as palavras em causa. Por outro lado, não é igualmente determinante que o queixoso e a testemunha que confirma a sua versão sejam funcionário públicos, sem qualquer motivo para inventarem os factos, desde logo porque, contrariamente à ideia muitas vezes encontrada na praxis forense, é frequente que a desconformidade entre os depoimentos pessoais e a realidade dos factos (tal como apurada no processo) fique a dever-se a razões diferentes do propósito de faltar à verdade, nomeadamente a erros de perceção ou a desvios no momento da memorização do facto ou no momento em que se procede à invocação dos factos guardados em memória. Exatamente o que pode ter sucedido no caso sub judice, quer com a perceção das palavras proferidas em inglês quer com o significado atribuído às mesmas, sendo certo que no caso presente é mesmo da parte do queixoso e da testemunha que o acompanhava que se assinalam contradições nas versões que trouxeram ao processo.

Quanto à invocação das regras de experiência feita pelo MP recorrente não é a mesma significativa, uma vez que bem podem invocar-se explicações de sentido contrário, baseadas na experiência, para a existência de versões contraditórias em quadros de conflito ou discussão como o presente. É o caso de uma ou ambas as partes, convictos da sua razão ou feridos no seu amor próprio, pretenderem a todo o custo ver castigado o seu antagonista.

Colocada a questão em processo penal impõe-se, pois, a ponderação e razoabilidade que a decisão recorrida bem revela, de modo a respeitarem-se os seus princípios fundamentais, maxime, o da presunção de inocência.

Temerária seria a decisão contrária por parte do senhor juiz a quo, tal como se nos afigura temerária a dedução de acusação baseada numa única versão dos factos em casos como o presente, conhecida que é a valia epistemológica do contraditório, ou seja, que dificilmente se alcança conhecimento válido no processo sem ouvir as diferentes versões sobre os factos e o especial dever do MP atuar à charge e à decharge no nosso processo penal.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo MP, confirmando integralmente o despacho de não pronúncia recorrido.

Sem tributação.

Évora, 16 de Outubro de 2012

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete)

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[1] Cfr O Conceito de Indícios Suficientes no Processo penal Português in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. F. Palma, Almedina-2004, p. 161

[2] “ Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e “instância “ de legitimação concreta do poder-dever de acusar in Revista do CEJ, nº1 – 2004 p. 160. Vd, neste autor e em Noronha de Silveira, est. cit. a cabal exposição dos fundamentos da posição adoptada e a criteriosa refutação das posições que, em menor ou maior escala, apelam a um menor grau de convicção que o exigido em julgamento.

[3] Princípio in dubio pro reo, cuja pertinência na decisão instrutória resulta da consagração constitucional das garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência acolhida no art. 32º nº2 da CRP, conforme se reconheceu no Ac TC 439/2002 de 23 de Outubro DR II de 29.11.2002, onde pode ler-se, “ … a interpretação normativa dos artigos citados [286º nº1, 298º e 308º nº1, do CPP] que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº2, da Constituição”.

[4] Cfr Carlos Adérito Teixeira, est. cit. pp 161 e 160. Vd em sentido idêntico J. Noronha e Silveira, est. cit. pp. 171 e 172, 180 e 181; Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora-2003 pp. 90-4 e Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968) pp. 38 e 39.