Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2276/21.0T8STB-A.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: HERANÇA
QUINHÃO
DIREITO DE HABITAÇÃO
EMBARGOS DE TERCEIRO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Não tendo sido penhorado qualquer bem imóvel ou quota-parte deste pertencente à executada, mas apenas o quinhão da executada na herança indivisa em causa, a penhora e subsequente venda deste direito não ofende a posse ou o direito de habitação que a embargante, co-herdeira na herança, eventualmente detenha sobre imóvel que integra a referida herança, não tendo, por conseguinte fundamento para a dedução de embargos de terceiro.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. AA, cabeça-de-casal na herança indivisa por óbito de BB, deduziu, por apenso à acção executiva que Orthogon Portugal, SA., move aos executados CC e mulher, DD – onde foi penhorado o quinhão hereditário da executada DD, mediante notificação efectuada ao abrigo do artigo 781º do Código de Processo Civil –, embargos de terceiro, alegando que dessa herança faz parte um único bem imóvel, que constitui a sua casa de habitação, que a penhora viola a posse que tem sobre o imóvel e o direito à habitação, e que lhe assiste, por isso, o direito a deduzir embargos a título preventivo de modo a obstar à venda.
Mais alegou a prescrição do crédito exequendo, a prescrição da livrança dada à execução e o incumprimento do PERSI.
Concluiu, assim, peticionando que se julguem procedentes as referidas excepções, sendo os executados absolvidos e determinada a extinção da execução, com o levantamento da penhora sobre a fracção onde habita.

2. Os embargos de terceiro foram liminarmente indeferidos, com o fundamento em que, não obstante a embargante ter a qualidade de terceiro, o seu direito não era ofendido pela penhora em causa, não sendo também lícito à embargante deduzir oposição com fundamentos que só podem ser invocados pelos executados.

3. Inconformada, interpôs a embargante o presente recurso, o qual motivou, concluindo do seguinte modo:
1.ª Ao indeferir liminarmente os embargos de terceiros, deduzidos pela Recorrente contra a Execução em que se encontra penhorado quinhão hereditário da Executada, a Mmª Juiz à quo, com o devido respeito, violou o art.º 342º do CPC, tendo-o interpretado e aplicado incorrectamente no caso dos autos.
2.ª É que, por um lado, se é certo que na penhora de quinhão hereditário, realizada nos termos do art.º 781º do CPC, só se afecta o direito a certos bens que venham a compor a mesma, no âmbito de uma eventual e futura partilha, e não bens determinados e concretos, também é certo que do art.º 342º do CPC não decorre que a dedução de embargos só seja possível havendo apenas penhora destes.
3.ª Por outro, se é verdade que um quinhão hereditário pode ser preenchido com diversos bens, que se desconhecem numa fase previa à partilha, também é verdade que, sendo a herança indivisa constituída apenas e só por um bem imóvel, como é no caso dos autos, tal quinhão será obrigatória e necessariamente preenchido com uma quota-parte desse imóvel.
4.ª Quer isso dizer que, em concreto, no caso dos autos, penhorar o quinhão hereditário da Executada, é a mesma coisa que penhorar quota parte do imóvel que compõe a herança.
5.ª E estando tal imóvel na posse da Recorrente há mais de 45 anos, sendo a sua habitação desde essa altura, é expectável que, em face da venda executiva do quinhão hereditário, não ocorra apenas uma alteração da respectiva titularidade, como defendeu a Mmª Juiz à quo, mas sim uma partilha e venda forçada de todo o imóvel ou da quota-parte que preencherá o referido quinhão.
6.ª E com isso, ficará irremediavelmente afectada a referida posse e habitação da Recorrente, já que vivendo de uma pensão de € 300,00, não tem meios para adquirir a quota-parte da Executada, a fim de permanecer no imóvel.
7.ª Sendo certo que nem ela, nem os outros co-herdeiros, se a quisessem ajudar, têm qualquer obrigação de adquirir tal quota-parte, já que não são responsáveis pela alegada dívida da Executada.
8.ª O que significa, a final, que se a Exequente concretizar o fim da penhora, não é só o quinhão hereditário que será vendido, mas sim o próprio imóvel que compõe a herança, e, consequentemente, a Recorrente, com 85 anos de idade, será obrigado a perder a referida posse e habitação, ficando sem local onde morar, já que os seus rendimentos não lhe permitem, sequer, arrendar outro local para o efeito.
9.ª Sendo desse resultado que surge a incompatibilidade entre a penhora e os direitos invocados pela Recorrente, e a legitimidade da Recorrente para deduzir embargos.
10.ª E nessa medida, a melhor e mais adequada interpretação do art.º 342º do CPC, no caso dos autos, seria, aquela que que reconhecendo-se que da herança indivisa faz parte um único bem, que é o imóvel onde a Recorrente mora há mais de 45 anos, e que servirá, obrigatoriamente, para preencher a quota-parte da herança da Executada, na sequência de uma partilha e venda forçada a terceiros, a penhora sobre ela incidente nos autos, se torna incompatível com a posse e habitação invocadas pela mesma, os quais importa, com os deduzidos embargos, salvaguardar.
11.ª Não tendo sido essa a interpretação levada a cabo pela Mmª Juiz à quo, deixando, ademais os direitos invocados pela Recorrente sem adequada tutela preventiva ou, até, subsequente, e em risco de ficar sem abrigo, crê-se, com todo o respeito, que violou o referido artigo 342º do CPC.
12.ª Sem conceder, a par dos embargos, que tendo o mesmo fim, com eles não se confundem, a Recorrente também invocou, nos termos do art.º 301º e 305º, e al. e) do art. 310.º, todos do CC, a prescrição do crédito da Exequente, já que entre a data do alegado incumprimento do contrato de mútuo pela Executada (14/05/2005) e a data da presente Execução, passaram mais de 16 anos.
13.ª Sem esquecer que já no ano de 2005, o Banco BBVA (que cedeu crédito á Exequente em 2017), tinha encetado uma acção de Execução contra a Executada, mas, sem se saber porquê, dela desertou.
14.ª Ora, conforme resulta douto Ac. do STJ, de 12-05-2016, proc. 6147/12.3TBVFRA.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt “I - A prescrição tem como fundamento a negligência do credor no exercício do direito durante um período de tempo no qual seria expectável que ele o exercesse se nisso estivesse interessado. Por razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas, atribui-se presuntivamente à inércia do credor o significado de que quis renunciar ao direito ou considera-se que este já não merece tutela, assim libertando-se o devedor do cumprimento e de possíveis dificuldades probatórias que o decurso do tempo pode acarretar. II - A prescrição depende sempre de invocação pelo devedor (art. 303.º do CC) – pelo que este se mantém adstrito ao cumprimento da prestação se aquela tiver ocorrido –, podendo também ser arguida pelos seus credores e por terceiros com interesse legítimo (n.ºs 1 e 2 do art. 305.º do CC).
15.ª Já na senda do douto Ac. dessa Veneranda Relação, de 11-01-2022, proc. 443/21.6T8PDL-A.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual “1.–Mostra-se ser jurisprudência actualmente consolidada no Supremo Tribunal de Justiça que prescrevem no prazo de 5 anos, nos termos da al. e) do Art. 310.º do Código Civil, as obrigações decorrentes de um contrato de mútuo bancário, desdobradas em quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, com prestações mensais e sucessivas, de valor predeterminado, englobando os juros devidos, sendo que a circunstância de o direito de crédito se encontrar vencido na totalidade não altera o dito enquadramento em termos da prescrição. 2.–Terceiro interessado pode invocar a prescrição de dívida alheia, nos termos do Art. 305.º n.º 1 do Código Civil, se nisso mostrar ter interesse atendível…” – negrito e sublinhado nosso
16.ª Ora, a Recorrente nada tem que ver com a divida da Executada.
17.ª Porém, com 85 anos de idade, vê-se agora confrontada com a possibilidade de ser obrigada a sair do imóvel onde reside há mais de 45 anos, ficando sem local onde possa habitar, se a Exequente concretizar os efeitos da penhora que promoveu, ainda que sobre o quinhão hereditário da Executada, como se expôs.
18.ª Termos em que a Recorrente tem um legitimo interesse em invocar a referida prescrição, nos termos do art.º 301 e 305º do CC, como modo de obviar ao perigo eminente de lesão dos seus direitos (posse e habitação).
19.ª Terá também interesse em invocar a prescrição da própria livrança dada à Execução, já que atenta a data de vencimento (14/05/2005), e o prescrito no art.º 70º, ex vi do artº 77º, da LULL, se encontra prescrita, desde meados de 2008, ou seja, há mais de 15 anos, sendo de lhe aplicar, por falta de previsão especifica, o regime previsto no referido artigo 301 e 305º, ambos do CC.
20.ª Ora, a Mmª Juiz à quo não apreciou ou analisou tal interesse, limitando-se a indeferir o pedido da Recorrente, com base numa ilegitimidade, que não encontra qualquer sustentação legal, indo mesmo contra à letra dos referidos artigos do CC e LULL, de onde decorre, com o devido respeito, que é muito, uma grosseira violação da lei.
21.ª De resto, a Recorrente também invocou o incumprimento do PERSI, regulado pelo decreto-lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, por banda Exequente e de quem lhe cedeu, em 2017, o crédito, o Banco BBVA.
22.ª Nessa matéria, citando o douto Ac. Ac. TRP, de 04-05-2022, proc. 3751/20.0T8MAI.P1, disponível em www.dgsi.pt “O recurso a tal procedimento extrajudicial (com a integração em PERSI e a comunicação de extinção de tal procedimento, persistindo o incumprimento), funciona como condição de admissibilidade da acção judicial (declarativa ou executiva) pela qual a instituição bancária peticiona o pagamento. Na omissão de cumprimento, pela instituição bancária, dessa obrigação prévia (falta de PERSI para o específico crédito), verifica-se excepção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância (art. 18º, nº1, al. b) do referido diploma). III - Destarte, se previamente a acção para cobrança de um concreto/específico crédito (procedimento judicial) não tiver havido integração em PERSI, com vista à obtenção de pagamento do mesmo (prévio procedimento extrajudicial), mesmo que anteriormente tenha havido um PERSI que tenha conduzido ao pagamento de importâncias anteriormente em dívida do mesmo ou de outro contrato, verifica-se tal excepção dilatória conducente à absolvição da instância.”
23.ª Sendo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, escusado será dizer que não necessitava sequer de ser invocada, devendo ter sido ser verificada e declarada, ex officio, pela Mmª Juiz à quo, com as supra-referidas consequências.
24.ª Mas não o tendo feito, violou não só o referido PERSI, mas também o art.º 578º do CPC.
Nestes termos e demais de direito, que V. Exas., Senhores Desembargadores, doutamente suprirão, requer-se, muito respeitosamente, que, em face da incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 342º, e 578º, ambos do CPC, dos artigos 301º , 305º, ambos do CC, do art.º 70º, ex vi do artº 77º, da LULL, e do decreto-lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro (PERSI), verificadas, seja revogada a douta decisão do tribunal à quo, substituindo-a por outra que, conhecendo, desde logo, das exceções invocadas pela recorrente (prescrição da dívida exequenda e da livrança e incumprimento do PERSI), declare extinta a instância executiva.
Caso assim não entendam V. Exas., sempre deverá, igualmente, ser revogada a douta decisão do tribunal à quo, substituindo-se a mesma por outra que admita liminarmente os embargos de terceiro, deduzidos pela Recorrente, devendo os respectivos autos prosseguirem os seus normais termos, até final.

4. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se, no caso, ocorre fundamento para a dedução de embargos de terceiro com função preventiva, por parte da co-titular de herança, em que foi penhorado o quinhão hereditário da executada, sendo a herança integrada apenas por um único bem imóvel, alegando que a posterior venda ofende o seu direito de posse e habitação do imóvel, no qual reside há mais de 45 anos, e se pode o embargante de terceiro invocar fundamentos de oposição à execução, que obstam ao prosseguimento da mesma.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais resultantes do relato dos autos, sendo de salientar as seguintes, que se apuram da consulta electrónica aos autos de execução:
- Pela exequente Orthogon Portugal, SA., foi solicitado ao Agente de Execução a penhora do quinhão hereditário de DD na herança com NIF ...9;
- Por carta registada, datada de 24/05/2022, foi dirigida a AA, na qualidade de Cabeça-de-Casal na herança, a seguinte notificação:
“Fica V.ª Ex.ª notificado(a), nos termos do artigo 781.º n.º 1 do Código Processo Civil (CPC), para o processo à margem identificado na qualidade de cabeça-de-casal/herdeiro na herança indivisa com o NIF ...2 por óbito de BB, de que tem o prazo de 10 (dez) dias para nos termos do artigo 781.º n.º 2, fazer as declarações que entender, com a expressa advertência de que o quinhão hereditário do(a) executado(a) DD fica à ordem do Agente de Execução, a partir desta data.
A herança é composta por uma única verba - ACTIVO – BENS IMÓVEIS- Verba 1- Tipo de Prédio: Urbano Artigo: ... Freguesia: União das Freguesias de Caparica e Trafaria Município: Almada Distrito: Setúbal.”
- Idênticas notificações, nos termos do artigo 781º, n.º 1, do Código de Processo Civil, foram remetidas, na mesma data, aos co-herdeiros.
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B) – O Direito
1. Na decisão recorrida indeferiu-se liminarmente a petição, ao abrigo do disposto nos artigos 226º, n.º 4, alínea a), 345º e 590ºº, n.º 1, do Código de Processo Civil, por não estarem reunidos os pressupostos exigidos pelo artigo 342º do Código de Processo Civil para a dedução em embargos de terceiros, com os fundamentos seguintes:
«Conforme surge evidenciado dos autos, na execução principal não se encontra penhorada nenhuma quota-parte da fracção autónoma onde a embargante reside e que integra a herança indivisa aberta por óbito de BB.
Com efeito, a penhora ali realizada incide antes sobre o direito ao quinhão hereditário da executada em tal herança, sendo esta um património autónomo que inclui o referido imóvel.
O que significa que a executada não é titular de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel em causa, mas apenas titular do quinhão hereditário na referida herança, à qual pertence o imóvel.
Por isso mesmo, a penhora foi efectuada nos termos do art. 781.º, n.º 1 do CPC, tendo a ora embargante sido notificada na qualidade de cabeça-de-casal.
Assim sendo, em nenhum momento foi penhorado o imóvel de que a embargante se diz possuidora, não tendo sequer sido afectado o seu direito (quinhão) na referida herança.
Note-se que o direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência terá de ser aferido em função dos efeitos da penhora (indisponibilidade material ou jurídica do bem) e do propósito de viabilização da venda executiva e dos efeitos desta.
O direito do terceiro será, então, incompatível com a penhora se puder constituir impedimento à realização da venda executiva ou se não caducar por efeito da venda executiva (cfr. artigo 824º, n.º 2 do Cód. Civil).
Assim, são incompatíveis com a penhora, numa acção executiva, o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, virão a extinguir-se com a venda executiva, nos termos do art. 824.º n.º 2 do Cód. Civil (vd., Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, 3.ª Ed., pág. 663).
Ora, mesmo que o direito da executada possa vir a ser transmitido por venda na execução, tal não implica qualquer ofensa ao direito da ora embargante, mas apenas uma alteração na titularidade do quinhão pertencente à executada.
Deste modo, é evidente que os fundamentos alegados pela embargante não se ajustam à previsão do art. 342º do CPC, nem a embargante tem legitimidade para deduzir embargos à penhora do quinhão hereditário da executada.
Acresce ainda que os demais fundamentos aduzidos, atinentes à exigibilidade da quantia exequenda, só podem ser invocados pelos executados (cfr. art. 728.º n.º 1 do C.P.C.).
(…)»

2. A embargante/recorrente discorda desta decisão, argumentando que penhorar um quinhão hereditário que integra apenas um bem, na prática corresponderá à penhora de quota-parte desse imóvel, que a venda desse quinhão hereditário implicará a venda de todo o imóvel ou da referida quota-parte que pertencerá à executada em virtude da partilha que obrigatoriamente terá de se fazer, em prejuízo do seu direito a habitar o imóvel, onde reside há 45 anos, e que já tem 85 anos e não tem meios financeiros para adquirir a quota-parte do imóvel que pertence à executada.
Entende, também, ser-lhe lícito invocar a prescrição da dívida e a falta de cumprimento do PERSI.
Vejamos:

3. Como se sabe, os embargos de terceiro servem para quem não é parte na causa reagir contra a penhora ou outro acto de apreensão ou entrega de bens, alegando a ofensa da sua posse ou a titularidade de outro direito incompatível com a diligência realizada ou com o seu âmbito, podendo ser requeridos a título repressivo ou preventivo (cf. artigos 342º, n.º 1, e 350º, n.º 1, do Código de Processo Civil)
Nos termos do artigo 342.º, nº 1, do Código de Processo Civil [também aplicável aos embargos preventivos, com as necessárias adaptações – cf. artigo 350º, n.º 1, do Código de Processo Civil], “se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer deduzindo embargos de terceiro”.
Assim, são pressupostos da procedência do referido incidente:
- A existência de uma posse real e efectiva sobre um bem (ou de outro direito incompatível com o âmbito da diligência);
- A ofensa desse direito mediante penhora, ou outro acto de apreensão ou entrega de bens ordenado judicialmente;
- A qualidade de terceiro do embargante, que não pode ser parte na causa.

4. No caso em apreço, não subsistem dúvidas de que a embargante tem a qualidade de terceiro, porquanto não é parte no processo executivo onde foi realizada a penhora e onde poderá vir a ter lugar a venda executiva que invoca como lesiva do seu direito.
Porém, ao contrário do alegado, nem a penhora nem a venda do “bem” penhorado implicam lesão para o direito da embargante, seja ele o direito decorrente da posse do imóvel que identifica ou o direito à habitação.
Na verdade, como se diz na decisão recorrida, e resulta dos factos apurados, não foi penhorado nos autos, para posteriormente ser vendido em sede executiva, qualquer imóvel, nem quota-parte de imóvel pertencente à executada DD. A penhora incidiu, antes sobre o direito ao quinhão hereditário da executada na herança de BB, sendo esta um património autónomo que inclui o referido imóvel.
O que significa que a executada não é titular de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel em causa, o qual não invoca, mas apenas titular do quinhão hereditário na referida herança, que integra o imóvel.
Por conseguinte, a penhora foi efectuada nos termos do artigo 781º do Código de Processo Civil [correspondente ao anterior artigo 862º], onde se estabelece as especialidades do procedimento da penhora que tenha por objecto o quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, prescrevendo-se a este respeito no n.º 1 que: “Se a penhora tiver por objecto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efectuada.”
Ora, deste acto, não decorre ofensa de qualquer direito da embargante, o qual só afecta o direito da executada na dita herança, que poderá vir a ser objecto de venda executiva.
E também não vemos que desta venda possa resultar ofensa da alegada posse sobre o imóvel (relativamente à qual nem sequer foram alegados os factos integradores, mas tão só o facto de habitar no imóvel há “longos anos”), ou do direito a habitar nele, pois o que será eventualmente transmitido na execução é o direito que a executada tem na dita herança, ainda que o imóvel seja o único bem que a integre.
A única diferença é que, a concretizar-se a venda executiva, a quota-parte da executada na herança, que foi penhorada, mudará de titular, passando da executada para o adquirente, só havendo lugar à venda do património autónomo, constituído pela herança na sua totalidade, se os co-titulares assim o pretenderem (cf. n.º 2 e 4 do artigo 781º do Código de Processo Civil).
Questão diferente é a de na partilha da herança haver o risco de o imóvel que a integra vir a ser adquirido por outro co-titular do direito, mas esse risco já existia, pois qualquer dos herdeiros poderia por fim à indivisão da herança, requerendo inventário. A única diferença é que nessa partilha, tendo sido vendido o quinhão hereditário, a quota-parte da executada na herança terá outro titular, que não a executada.
Deste modo, conclui-se que não tendo sido penhorado qualquer bem imóvel ou quota-parte deste pertencente à executada, mas apenas a quota-parte desta na herança indivisa em causa, a penhora e subsequente venda deste direito não ofende a posse ou o direito de habitação que a embargante, co-herdeira na herança, eventualmente detenha sobre imóvel que integra a referida herança, não tendo, por conseguinte fundamento para a dedução de embargos de terceiro.
Assim, tendo-se por manifesta a improcedência da pretensão da embargante, tinham os embargos que ser liminarmente indeferidos, como sucedeu.

5. Acresce que, ao contrário do alegado, não se nos afigura que o embargante de terceiro possa invocar fundamentos de inexigibilidade da dívida exequenda, previstos no artigo 729º do Código de Processo Civil, sejam eles a prescrição do crédito ou a falta de cumprimento do PERSI, os quais constituem fundamento específico de embargos de executado, qualidade que o terceiro não tem, e não se integram nos fundamentos dos embargos de terceiro, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 342º do Código de Processo Civil.
Acresce que, não podendo a embargante lançar mão do meio processual em causa, sempre resultaria prejudicado o conhecimento desta questão.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Évora, 30 de Março de 2023
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)