Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
53/16.0T9GDL.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME DE PERSEGUIÇÃO
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação, uma frequência e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais; o perseguidor ou stalker sabe porque persegue e com que intuito o faz, agindo necessariamente de forma dolosa, em qualquer das formas previstas no artigo 14º do CP, com dolo direto, necessário ou eventual.

II – Comete o crime de perseguição previsto e punido no artigo 154º-A do Código Penal o arguido que durante um expressivo período de tempo – cerca de dois anos – e movido por desvaliosos sentimentos de ódio e de revolta, autoconvencido da autoria de vários crimes de incêndio por parte dos ofendidos, resolveu fazer justiça pelas próprias mãos, tendo levado a cabo, de forma intensa, reiterada e persistente, várias condutas intimidatórias contra as vítimas, infundindo-lhes sentimentos permanentes de medo, que lhes determinaram limitações relevantes na sua vida quotidiana e uma perturbação desvaliosíssima no seu sossego diário.

(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo Local Criminal de (...), do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, com o n.º 53/16.0T9GDL, foi o arguido (...), condenado pela prática de 3 (três) crimes de perseguição previstos e punidos no artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal, na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, subordinada tal suspensão ao pagamento, pelo arguido aos ofendidos, no prazo 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, dos valores arbitrados a título de indemnização civil, valores que perfazem a quantia global de € 22.500,00.
*
Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“Conclusões.
Com a devida vénia, e salvo melhor entendimento,
A. São diversos os vícios apontados à Douta Sentença recorrida.
Designadamente,
- Ausência de fundamentação e de exame crítico da prova e consequente nulidade;
- Utilização de Conceitos vagos e imprecisos e os factos genéricos e conclusivos, e consequente violação do direito de defesa do arguido e nulidade;
- Omissão de pronúncia, ausência de fundamentação da decisão sobre a escolha da pena, violação dos princípios da legalidade e adequação, e consequente nulidade;
- Nulidade da decisão sobre a medida concreta da pena por violação dos princípios da legalidade e da proporcionalidade e da falta de fundamentação quanto à decisão de subordinação da suspensão da pena ao pagamento dos pedidos cíveis.
Resumidamente (como se exige):
B. Com o merecido respeito, impunha-se ao tribunal uma correlação direta e imediata entre a prova e cada um dos episódios relatados na matéria de facto.
C. Desconhecendo-se os elementos de prova que elucidaram o julgador e sustentaram a sua convicção para dar como provados e não provados os factos.
De igual modo,
D. Atento o caso, desconhece-se o processo lógico e racional que levou o tribunal “a quo” a dar como provados os factos 3, 5/2.ªparte, 7, 8 a 10, 11 e 12, 13, 14, 15 a 21, 22 e 23, 25 a 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, como ainda 40 a 55, 59 a 74, 78 a 97, 110 e 111, ou dar como não provados os factos da contestação de i) a ggg).
E. O tribunal não faz a ponderação entre os factos da acusação, da contestação e da prova, em consonância com a lógica, a razão e com as regras da experiência, do sentido comum e do acontecimento dos factos, correlacionando todos os aspetos, essenciais e circunstanciais, que se revelem relevantes, com vista ao fim último, a descoberta da verdade, que se pretende objetiva.
F. O tribunal não exterioriza a formação da sua convicção através do exame crítico da prova, não permitindo ao arguido e ao tribunal “ad quem” conhecer em toda a sua plenitude o percurso que permitiu ao julgador dar como provados e não provados os factos acima destacados e porque uma versão é merecedora e outra não.
Em suma,
G. As apontadas deficiências violam o estatuído no art.º 374.º/2 do CPP, implicando em consequência a nulidade da Douta Sentença, de acordo com o disposto no art.º 379.º/1-a do mesmo Código.
De igual parte,
H. O tribunal “a quo” sequer individualiza, especifica e/ou distingue os factos que no seu entendimento subsumem cada um dos crimes, quer no espaço, quer no tempo, quer no objeto. Resultando a exposição vaga, imprecisa e meramente conclusiva.
I. É de notar que o tribunal situa os factos no período de tempo compreendido entre o ano de 2015 e o ano de 2017 – vd. os factos provados em 7, 22, 41, 59 ou 78. No entanto, atentos os autos, em concreto apenas são referidos os dias 18, 19 e 25 de setembro, 10 de dezembro, e os artigos na Rádio (…) entre 27 de outubro e 26 de dezembro de 2015, e o dia 6 de agosto de 2016. Resultando tal conclusão temporal genérica, imprecisa e órfã de factos.
J. O mesmo se poderá dizer quanto aos factos 5, 2.ª parte, 7, 8 e 9, 12, 13 e 14, 16, 22 e 23, 24, 25 a 29, 30, 31 a 37 como todos os factos referentes aos pedidos cíveis: vagos, genéricos, imprecisos, abstratos e meramente conclusivos.
K. Como é sabido, ninguém pode contestar, eficazmente, a imputação de uma situação abstrata ou vaga, muito menos validamente contraditar a prova de uma tal situação.
L. Pelo que, por um lado, estes factos não podem ser considerados ou valorados para efeitos da condenação do arguido, e, por outro lado, ao mantê-los, o tribunal “a quo” violou o direito de defesa do arguido, resultando, deste modo, a sua decisão ferida pelo vício da nulidade.
De igual modo,
M. A decisão sobre a escolha da pena fica aquém do exigido quanto à materialização e concretização dos factos, bastando-se com imputações genéricas e conclusivas.
N. A Douta Sentença, não só não toma em consideração o posicionamento legal e, por essa via, vinculativo de preferência pela pena de multa em detrimento da pena de prisão, como não dá fundamento ou, pelo menos, suficientemente, à sua decisão, com a ponderação dos fins de prevenção à data do julgamento.
O. Com efeito, os factos imputados ao arguido ocorreram em 2015 e 2016, portanto, há cerca de 5 anos (prazo de prescrição), o arguido (...) tem, na presente data, 67 anos, é casado, tem dois filhos maiores, reformado, reside em permanência em (…) pelo menos desde 2016, sendo que não se lhe conhece a prática de qualquer outro crime do mesmo tipo ou mesma natureza contra as mesmas pessoas ou outras, para além de que há mais de 3 anos que vendeu a sua propriedade, há mais de 4 anos que os demandantes não veem o arguido por ali, e confessam não mais terem contactado com ele.
P. Não se evidenciando, pois, em que medida há necessidade de reintegração social do arguido ou há necessidade de evitar no futuro novos crimes – ou seja, os fins de prevenção especial não se justificam. Além de que este crime que lhe é imputado é recente e contemporâneo da prática dos factos, não se vislumbrando, pois, uma necessidade particular de proteção das expectativas da comunidade em relação ao mesmo.
Do exposto,
Q. A decisão viola o princípio da adequação e proporcionalidade, resultando totalmente desajustada às necessidades preventivas, sendo a pena de prisão aplicada uma reação severa, desproporcional e desadequada, totalmente ausente de sustentação, comprometendo, decisivamente, a hierarquia das penas.
Em suma,
R. A escolha da pena de prisão (ainda que suspensa na sua execução) é nula, quer por total ausência de fundamentação (art.º 379.º/1-a do CPP), quer por violação de disposição legal (art.º 70.º do CP), quer por violação do princípio da adequação.
S. Pelo que, caso se mantenha a decisão de condenação do arguido (...) – o que não se pode de modo algum aceitar ou conceder e tão-só se equaciona como hipótese e por mero dever de cautela e de patrocínio – outra não deverá ser a pena que não seja a de multa, aliás, tal como prescreve o art.º 70.º do CP.
De igual modo,
T. As regras da lógica e da razão, da experiência, do sentido comum e da normalidade dos acontecimentos impõe a ponderação de todos os factos na determinação da medida da pena – designadamente os factos 4, 5 e 6, 98 a 108, 116 a 124.
U. Haverá que ponderar, como evidenciado, se tais “reflexos relevantes na vida e no quotidiano dos ofendidos” e “os sentimentos duradouros de medo e inquietação” não foram causados pelo proc.-crime dos incêndios e medidas de coação aplicadas; ou, pelo menos, ponderar em que medida contribuíram. Segundo a lógica, a razão e a experiência comum, dificilmente se ficará indiferente diante de tais acontecimentos – dos quais o arguido é totalmente alheio. Não pode o arguido servir à expiação dos ressentimentos e angústias que naturalmente possam ter sentido os demandantes por via daqueloutro proc.-crime e das medidas de coação aplicadas, que coartaram efetivamente a liberdade dos demandantes e promoveram um sentimento social e generalizado de desconfiança para consigo (pelas medidas aplicadas e em face do mediatismo dos acontecimentos).
V. Importa ainda considerar as demais circunstâncias, designadamente, o arguido não é um indivíduo, na sua essência, com personalidade delituosa, não tem tendência inata para o crime, tem registado um único crime, no caso, de injúria a militar da GNR, praticado no período e no contexto dos incêndios, não se conhece a prática de qualquer outro crime da mesma natureza do crime pelo qual vem condenado ou de qualquer outro tipo de crime, os factos ocorreram há 5 anos, a sua conduta revela a plena conformidade com o ordenamento jurídico e com as ordens sociais, é casado, pai, trabalhador, cumpridor das suas obrigações, conhecido como “bom homem” na comunidade em que se insere, entre amigos como pessoa preocupada, leal e respeitadora, envolvido e comprometido na dinâmica familiar e social.
Temos em que,
W. O tribunal recorrido, ao condenar o arguido naquelas penas parcelares e na pena única de prisão de 3 anos – ainda que suspensa na sua execução e subordinada ao pagamento das indemnizações – violou o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 153.º-A todos do Código Penal.
Além de que,
X. A ser condenado, o que não se concede e apenas se equaciona como hipótese, a condenação não poderia ir além da pena de multa e muito próxima do mínimo legal.
Y. Por último, não se poderá deixar de realçar a decisão atinente à suspensão da pena. Com efeito, o tribunal “a quo” faz depender a suspensão da pena de prisão ao pagamento dos pedidos cíveis, num total de €22.500, acrescido de juros moratórios desde a data da notificação para contestar os pedidos de indemnização e até efetivo e integral pagamento.
Z. Não se preocupa, porém, o tribunal “a quo” em aferir e evidenciar a capacidade do arguido (...) para cumprir esta decisão, descorando, por completo, a sua situação socioeconómica, bem como da sua família.
AA. Não podendo de igual modo esta decisão de subordinação persistir – não se pondo em questão a suspensão da pena escolhida, claro está.
Concomitantemente,
- Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto:
BB. Dos concretos pontos de facto incorretamente julgados:
Em face da prova carreada para os autos e neles produzida, dúvidas não podem restar de que tribunal julgou incorretamente os factos constantes de 3, 5/2.ªparte, 7, 8 a 10, 11, 12, 13 e 14, 15 a 21, 22, 23, 24, 25 a 29, 30 a 37 da materialidade dada como provada, ficando prejudicada toda a matéria dos pedidos cíveis, factos 38 a 97, por inerência, e, por oposição, os factos i) a ggg) dados como não provados.
CC. Designadamente, em face dos depoimentos de (…) que se devem ter por sérios, credíveis, espontâneos e imediatos, coerentes e essenciais (de modo algum circunstanciais).
Desde logo, porquanto todos eles estiveram presentes nos episódios relatados nos factos, viram e ouviram, e todos eles têm conhecimento as demais circunstâncias de facto, diretas e indiretas, que permite uma compreensão mais ampla e mais próxima da verdade objetiva.
DD. Também as testemunhas (…) são igualmente determinantes para a descoberta da verdade. Desde logo, porquanto não confirmam, nem corroboram qualquer um dos factos concretos imputados ao arguido. De igual modo, o depoimento de (…) não deixa de ser revelador da verdade, ainda que nas entrelinhas. Como não são de descorar as declarações dos demandantes, que contribuem para a descoberta da verdade pelas incoerências, incongruências, contradições, vacuidades, inverdades e recriações.
Das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida:
(Por desnecessária e imprópria a sua reprodução em sede de conclusões, remete-se para o subtítulo correspondente aos concretos meios de prova o exame crítico da prova e passagens dos diferentes depoimentos que relevam ao presente Recurso e que o sustentam)
Sem embargo,
- Facto 9 não pode ser dado como provado atentos os depoimentos de: 20201113095713_3595023_3995000 - … - 17m17s
20200910150309_3595023_3995000 - … - 1h56m42s
20201113101536_3595023_3995000 - … - 13m09s
20201113094256_3595023_3995000 - … - 13m15s
20201113150941_3595023_3995000 - … - 15m40s
- Facto 10 não pode ser dado como provado atentos os depoimentos de:
20201113095713_3595023_3995000 - … - 17m17s
20201113101536_3595023_3995000 - … - 13m09s
20201113094256_3595023_3995000 - … - 13m15s
20201113144919_3595023_3995000 - … - 16m23s
20200910150309_3595023_3995000 - … - 1h56m42s
- Facto 12 não pode ser dado como provado atentos os depoimentos de:
20200910150309_3595023_3995000 - … - 1h56m42s
20201113144919_3595023_3995000 - … - 16m23s
20201113095713_3595023_3995000 - … - 17m17s
- Factos 13 e 14 não podem ser dados como provados atentos os depoimentos de:
20200910150309_3595023_3995000 - … - 1h56m42s
- Factos 15 a 21 não podem ser dados como provados atentos os depoimentos de:
20200910150309_3595023_3995000 - … - 1h56m42s
20201016151036_3595023_3995000 - … - 24m01s
- Factos 22 e 23 e ainda a generalidade da matéria dada como provada não podem ser dados como provados atentos os depoimentos de:
20201016104458_3595023_3995000 - … - 20m47s
20201016141258_3595023_3995000 - … - 16m32s
20201016120609_3595023_3995000 - … - 25m11s

- Factos 25 a 29 não podem ser dados como provados atentos os depoimentos de:
20201113150941_3595023_3995000 - … - 15m40s
20201016151036_3595023_3995000 - … - 24m01s
20201016093603_3595023_3995000 - … - 55m41s
20200910150309_3595023_3995000 - … - 1h56m42s
20201113144919_3595023_3995000 - … - 16m23s
- Facto 3 não pode ser dado como provado atento os depoimentos de:
20201113150941_3595023_3995000 - … - 15m40s
Os factos vagos e imprecisos genéricos e conclusivos, acima elencados, não são suscetíveis de impugnação, pelo que não podem ser dados como provados.
Os factos 30 a 37 resultam prejudicados na sua globalidade, tal como o facto 24.
Concomitantemente,
EE. O tribunal “a quo” interpreta e aplica incorretamente o art.º 154.º-A/1 do CP, desde logo, na subsunção jurídica dos factos, no sentido de factos isolados, não reiterados e dispersos no tempo, não permanentes, persistentes ou intensos, sem um padrão comportamental se subsumem na conduta típica.
FF. Desde logo, ao arguido são imputados três crimes de perseguição em concurso real e efetivo; dúvidas não restam de que o tipo legal exige uma conduta reiterada; é impreterível distinguir, individualizar e discriminar os comportamentos reiterados em relação a cada um dos crimes imputados ao arguido, o que não sucede; desde logo, de modo a aferir o suposto e exigido comportamento reiterado em relação a cada um dos crimes e a adequação da conduta e do meio.
GG. Ademais, atentos os factos, resulta a ausência de comportamentos padronizados, de um assédio permanente, persistente e, muito menos, intenso que caracterizam a conduta típica.
HH. Não é descrita uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, e reiterada, não ocasional ou isolada.
II. Não se verificando o chamado stalking que está na génese do tipo legal de crime.
Concomitantemente,
JJ. O arguido não praticou quaisquer factos ilícitos, nem causou quaisquer danos aos autores, nem quaisquer danos foram alegados ou provados.
KK. Não sendo devida qualquer indemnização. Aliás, como pode o tribunal “a quo” sem individualizar os factos respetivos de cada um dos demandantes, sem apurar o quantum de cada um, sem medir a “dor” individual e distinguir o dano de cada um, ou a sua causalidade e adequação, condenar o arguido no pagamento da mesma quantia a cada um dos demandantes.
LL.É evidente a abstração da condenação; a total ausência de materialização.
Em conclusão,
MM. O tribunal recorrido podia e devia ter concluído e decidido de forma diversa da que fez.”

Termina pedindo a revogação da sentença e a absolvição total do arguido.
*
O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida, face à inexistência dos vícios e nulidades assinaladas pelo recorrente e à inexistência de erro de julgamento quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito, não tendo apresentado conclusões.
*
Devidamente notificado da apresentação do recurso, não apresentou o assistente contra-alegações.
*
O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.
*
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
***
II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:
A) - Apreciar a nulidade da sentença invocada pela recorrente por omissão do exame crítico da prova ou por insuficiência do mesmo e por descrição de factos genéricos, nos termos previstos nos artigos 374º, nº 2 e 379 nº 1 alínea a) do CPP.

B) - Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP e com violação do princípio “in dubio pro reo”.

C) - Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito por errada qualificação jurídica dos factos, ou seja, em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos dos três ilícitos pelos quais o arguido foi condenado.

D) - Determinar se a escolha das penas e a subordinação da pena de prisão ao pagamento dos valores arbitrados a título de indemnização civil foi feita com deficiente fundamentação e com violação dos princípios da legalidade e da adequação.

E) - Determinar se o apuramento dos montantes arbitrados a título de indemnização civil foi feito com deficiente fundamentação e com violação dos princípios da legalidade e da adequação.
*
De acordo com as regras da precedência lógica, aplicáveis às decisões judiciais – artigo 608.º, nº 1.º CPC, ex vi do artigo 4.º CPP – cumpre apreciar, primeiramente, os vícios formais da decisão recorrida.

II.II - A decisão recorrida.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, deu por provados e não provados os seguintes factos:
“2.1. factos provados da acusação pública [realçámos a negrito os aspetos centrais da acusação pública para que mais facilmente se localizem]:
1. (...) e (...) vivem em condições análogas à dos cônjuges, sendo que fixaram residência na localidade (…), há mais de 20 anos.
2. Desse relacionamento nasceram cinco filhos, sendo que, com o casal residem os filhos (…) e (…).
3. O arguido era legítimo proprietário de uma propriedade contígua à dos aqui ofendidos onde residia, senão em “permanência” [ou seja, no sentido de se tratar da sua residência permanente, pois que essa era/é em Setúbal - cf., pontos provados 98.-ss] pelo menos regularmente à data dos factos infra relatados.
4. No período entre Julho e Outubro de 2015 ocorreram pelo menos 42 incêndios na localidade (...), facto que deixou a população intranquila.
5. O arguido, com os aludidos incêndios, sofreu avultados prejuízos e tinha a convicção de que os autores dos incêndios eram os aqui ofendidos.
6. Os ofendidos (...), (...) e (…) foram constituídos arguidos nos autos de inquérito n.º 52/15.9 GAGDL, por se mostrarem indiciados da prática de cerca de 40 crimes de incendio e foram-lhes aplicadas medidas de coacção, respectivamente, a medida de prisão domiciliaria, termo de identidade e residência e a medida de apresentações periódicas.
7. O arguido, pelo menos a partir de setembro de 2015, até pelo menos 24.03.2017, data da leitura do acórdão absolutório, que, convicto da culpabilidade nos incêndios dos aqui ofendidos, decidiu importunar de forma repetida e continua, de modo a atemorizá-los e a coartar a liberdade daqueles.
8. E em execução da sua pretensão, por diversas vezes, rondava a propriedade dos aqui ofendidos e também efetuava disparos, para o ar, na direção da propriedade dos aqui ofendidos.
9. Nomeadamente, no dia 18 setembro de 2015, os ofendidos ouviram disparos de tiros vindos da propriedade do arguido.
10. Também no dia 19 de setembro de 2015, pelas 12h45, na sequência do inicio de um fogo, nas proximidades da propriedade do ofendido, o arguido, de forma exaltada dirigiu-se a (...) e disse “ Se as autoridades não o fazem, eu vou fazer justiça pelas minhas próprias mãos”, “Eu sei que foste tu, eu vi-te, eu é que não te consegui apanhar, mas isto vai acabar”, “já ontem levaste uns avisos, eu arranco-te essa cabeça a tiro a ti e à tua família”.
11. Nesse contexto, o ofendido (...), em 19.09.2015, apresentou queixa na GNR e, a partir dessa altura, durante vários dias e várias vezes ao dia, o arguido passava, com o seu veiculo automóvel, junto da casa dos ofendidos, trazendo no banco da viatura um estojo de arma caçadeira.
12. Também, em data não concretamente apurada, mas que ocorreu no decurso do ano de 2015 e após a data da queixa apresentada, o arguido, soltou um canídeo, de raça não concretamente apurada, no interior da propriedade dos ofendidos, a fim daquele perseguir e amedrontar os cavalos que os ofendidos ali detêm.
13. De novo no dia 25 de Setembro de 2015, por altura do anoitecer, o arguido munido de uma lanterna, com uma luz de elevada potência, apontou, da sua propriedade para a habitação dos ofendidos, ao mesmo tempo que, repetidamente, gritava que os matava a todos, referindo-se aos ofendidos.
14. Nessa mesma altura, o arguido efetuou disparos para o ar na direção da propriedade dos ofendidos.
15. No dia 10.12.2015, pelas 17h30, a ofendida (…), acompanhada da sua filha menor, (…), deslocava-se para casa, após ter ido buscar a menor à escola, em (…).
16. O arguido encontrava-se parado na rotunda, a aguardar a sua passagem, e após, a ofendida ter feito a rotunda, iniciou a marcha do seu veiculo, seguindo atras do veiculo automóvel da ofendida.
17. No percurso, por diversas vezes, o arguido acelerou e encostou-se à traseira do veiculo da ofendida, simulando que queria ultrapassar.
18. A ofendida abrandava, a fim de deixar o veiculo do arguido ultrapassá-la, mas o mesmo nunca ultrapassou e manteve sempre o seu veiculo muito próximo da traseira do veiculo onde a ofendida seguia com a sua filha menor.
19. O que aconteceu até a ofendida chegar ao portão da sua casa.
20. Após, seguiu até ao interior da sua propriedade e colocou, o seu veiculo automóvel, junto à vedação, que separa as propriedades, sita próxima da casa dos ofendidos, com os faróis acesos, apontando para a casa, e manteve os faróis acesos durante cerca de uma hora.
21. Durante o tempo que os faróis se mantiveram acesos apontar para a casa dos ofendidos, o arguido, munido de arma que não se logrou identificar, efetuou dois disparos para o ar, na direção da casa dos ofendidos, ouvindo-se o chumbo a bater no telhado.
22. Também por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, mas que ocorreram entre setembro de 2015 e meados de 2017, o arguido, sempre que alguém se deslocava à casa dos ofendidos, dirigia-se a estes e dizia “Você sabe que eles são criminosos, vem aqui fazer lhes visitas”, “o que é que vai ali fazer a casa deles”.
23. Outras vezes, quando alguém se deslocava à casa dos ofendidos, o arguido ficava parado junto ao portão, no interior do seu veiculo, durante longos períodos, a olhar fixamente para o interior da propriedade, e quando as pessoas, que visitavam os ofendidos saiam da propriedade, seguia-as, no interior do seu veiculo, durante algum tempo.
24. Também nas redes sociais o arguido fez diversos comentários, nas publicações alusivas aos incêndios florestais que ocorriam na localidade, onde fez várias acusações aos ofendidos imputando-lhes a autoria dos incêndios que ocorriam, designadamente, escreveu (fls. 67 a 70 e 87)
- em 27.10.2015 “…essa família merece o que a lei preconiza prisão, ninguém pode conviver com os autores suspeitos juntos de suas casas, abrindo as suas portas e ver os seus bens/património ardido por malvadez e encará-los como se nada tivesse passado (…)”,
- em 29.10.2015 “ Pois bem já temos de regresso o incendiário suspeito da (...) na sua rica casinha com pulseira com todas as mordomias que julgar e entender. Mas atente-se vale a pena ser criminoso neste país e porquê???? De imediato aparece uma bateria de assistentes sociais “a que D el rei “coitado do senhor tem-se, que por conta de todos os contribuintes, agracea-lo com subsidio de reinserção social, apoio psicológico, acompanhamento dos filhos, formação profissional, subsidio de transporte, subsidio de refeição, bolsas, etec etc etc”
- em 3.11.2015 “É uma indignação que roça o odio latente, a revolta dos lesados, o trauma (…) nunca vi um corrupio de assistentes sociais a acorrer de (…), da Camara Municipal de (…) a prestarem os bons ofícios para uma família de incendiários que lograram incendiar (1 incendio em cada 4 dias) o património de pessoas humildes, trabalhadoras (…)sim para aqueles há de imediato o apoio financeiro do Estado. (…) pois bem enquanto cidadão e pagante de impostos, jamais, ir-me-ei calar PERANTE A INJUSTIÇA e sempre lutarei e denunciarei quem nada produz e recebe sem ter contribuído É O CASO DESTES INCENDIÀRIOS. BASTA DE DAR A QUEM NADA FEZ PARA RECEBER. SEMEIA PARA COLHERES”
- em 13.11.2015 “As entidades que vem branquear com toda a deferência os autores de 42 incendios de fogo posto na (…) em (…), nomeadamente a assistência social já se preocupou com a educação de quem com dez anos de idade já pratica em cumplicidade crimes de incendio por fogo posto??? E de sobremaneira convive diariamente com um ambiente marginal, eivado de crime???” Penso essa menina deve ter a preocupação de todos nós. COMPETE –NOS A TODOS NÓS DENUNCIAR ESSA SITUAÇÃO E COLMATAR AS DERIVAS QUE POSSAM ADVIR DESSA REALIDADE.”
- em 8.12.2015 “ … Os residentes das (...) ainda hoje estão traumatizados questionam-se como é possível coexistir com marginais que lograram SEM RAZÕES APARENTES, reduzir a cinzas bens patrimoniais que levaram anos a serem implementados???Tanta MALVADEZ demonstrada mais, tanta HIPOCRISIA manifestada junto das suas vítimas prestando solidariedade quando foram eles próprios os autores dos incêndios, rindo-se na cara dos lesados impotentes perante o avanço das chamas, Como podem estes marginais serem agora tratados com todo o decoro e deferência pela autoridades sociais ?? (…) Conquanto como podemos encarar estes marginais doravante??? É uma situação que se encontra ao rubro sem se saber muito bem como vai acabar. Há traumas profundos recalcados. Continuam pessoas com bai-xa médica e pelas razões isso é inaceitável. O detonador psíquico esta armado e não sabemos se por qualquer motivo deflagre por simpatia trazendo danos colaterais inesperados. AGUARDAMOS JUSTIÇA.”
- em 20.12.2015 “É evidente o mau estar por razões obvias traduzidas no comportamento da assistente social/reinserção social no cometimento das funções de controlo da pulseira electronica/antena satélite do arguido/incendiário. É de relevar porque esse controlo é feito à hora do almoço, mais em dia de descanso ou seja ao domingo fora do olhar e possível intervenção dos residentes da (...) por demais revoltados e ávidos de justiça. Penso que por mais que a suposta justiça possa relevar os seus pergaminhos a justiça popular ainda está bem presente na mente dos lesados, das vítimas, em suma daqueles que ainda sofrem as consequências de um marginal que sem razões colocou diversas famílias em perigo de sobrevivevia. E ISSO É REPUGNANTE E NÃO HÁ CÓDIGO PENAL QUE APAGUE ESSA REVOLTA”
- em 26.12.2015 “Para quem acompanha este crime com preocupação, por não saber de que forma vai acabar, tem-se promovido mais o arguido/suspeito em prisão domiciliaria. Este como já foi referido com todas as mordomias e passeios higiénicos conferidos mas não podemos descurar que se tratava de uma família inteira a perpetrar os fogos postos, cada elemento tinha um papel e todos eles com um sentido – PROVOCAR DANOS EM COISA ALHEIA (ainda visíveis) mas como é sabido a Justiça tem diversas medidas de acordo com a interpretação do momento de quem decide – “embora todos nós saibamos que uma decisão tomada a seguir a uma noite de pesadelo é sempre diferente a de uma noite serena” perante o mesmo artº criminal. Em suma e sem reservas todos são suspeitos de fogo posto e cada um tem medidas de coacção ou seja 1º prisão domiciliaria, 2º apresentação periódica.3º termo de identidade e residência, ressalvando-se uma menor que merece toda a n/ preocupação por se encontrar em ambiente hostil à sua educação e ao seu crescimento, mais, induzindo mácula na sua vida social.
Foram os termos que a justiça ditou MAS PORRA, alguém de justiça se preocupa com os lesados que todos os dias se confrontam com avistamentos daqueles que lhes causaram prejuízos e forçando-os a usar todos os mecanismos de controlo das emoções, pulsões que decerto a serem postos em prática seriam uma TERAPIA para o n/inconsciente e erradicar de vez esse trauma que nos acompanha todos os dias.
25. Também no dia 6.08.2016, pelas 18h45, a ofendida (…), acompanhada da filha menor, dirigiu se ao portão, no seu veiculo automóvel, para o abrir e permitir a entrada do marido da filha do ofendido (...), (…).
26. Ali chegada, saiu do seu veículo, abriu o portão, e (...) seguiu no seu veiculo ate junto da casa, tendo a ofendida (...) ficado a fechar o portão.
27. Nesse momento o arguido surgiu junto da ofendida e disse lhe “eu mato te” “eu dou te um tiro” “poe-te a pau comigo” “vou dar cabo de ti”.
28. A ofendida abandonou o local em direcção à habitação e o arguido continuou atrás de si, do outro lado da vedação, que separa as duas propriedades, até ao limite da sua propriedade sempre a repetir que os matava.
29. A ofendida entrou em casa e pediu ao marido da filha que a acompanhasse ao Posto da GNR e, quando saiam da propriedade, no interior do automóvel da ofendida, lá se encontrava o arguido, no interior do seu veiculo automóvel, que, após saírem, foi sempre atrás, do veiculo onde seguiam, até ao fim da estrada das (...).
30. Em consequência das condutas do arguido a ofendida (...) sentia receio e insegurança e, por esse motivo, deixou de sair de casa sozinha, tendo inclusive, no dia 16.09.2016, avisado a escola que por receio de represálias não ia cumprir com o transporte da filha à escola.
31. Também o ofendido (…), em consequência das condutas do arguido, saiu da casa onde residia com os pais e foi viver para a casa da namorada.
32. Também o ofendido (...) sentiu receio e insegurança pela sua integridade física e da sua família, mais a mais, encontrava-se em prisão domiciliaria o que, por si só, já o fragilizava perante terceiros, e impedia de garantir a segurança da família.
33. Conhecedor das rotinas dos ofendidos e da sua condição naqueles autos de processo crime, o arguido quis persegui-los, atemorizá-los e abordá-los na via pública, com o propósito de os atingir psicologicamente, atemorizando-os e restringindo a liberdade daqueles.
34. Também com os comentários que fazia, às pessoas que se dirigiam à casa dos ofendidos, e nos comentários que fez nas redes sociais, quis e conseguiu humilhá-los em frente a terceiro, bem como incitá-los ao ódio e ao afastamento dos aqui ofendidos.
35. Também, atento ao contexto de desconfiança que fazia recair sobre os ofendidos, acrescido da condição de arguidos naqueles autos de inquérito, com os seus comentários, criava nos ofendidos o justo receio que os populares da localidade lhes fizessem mal.
36. Com o propósito, reiterado, através das condutas supra descritas, agiu o arguido, com as condutas acima descritas, por forma deliberada, livre e consciente, com o propósito alcançado de atemorizar, amedrontar e limitar os ofendidos na sua liberdade, coartando as suas condutas e condicionando as suas rotinas e vida diária, o que efectivamente quis e conseguiu.
37. O arguido agiu livre, deliberada, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, sendo capaz de se motivar de acordo com esse conhecimento.
pedidos de indemnização civil:
deduzido pelo assistente/demandante (...):
38. Dá-se como reproduzida toda a matéria constante dos pontos provados 1. a 37.
39. O assistente/demandante (…) vive com a sua família numa propriedade contígua à que era do arguido.
40. Na altura da prática dos factos por parte do arguido, o assistente/demandante encontrava-se a cumprir a medida de coacção de prisão domiciliária, na medida em que era arguido num processo estava acusado de ter cometido vários crimes de incêndio, no qual veio a ser totalmente absolvido.
41. A prática dos factos por parte do arguido ocorreu, de forma sistemática, repetida e contínua, desde o mês Setembro do ano de 2015 até Março do ano de 2017 quando foi produzido o acórdão absolutório;
42. O arguido importunava diariamente a vida ao ofendido, assim como o perseguia rondando de carro ou a pé a sua propriedade tendo efectuado várias vezes disparos para o ar e outros na direcção da habitação do mesmo;
43. O seu objectivo foi atemorizar, coartar a liberdade do assistente, amedrontá-lo e difamá-lo nas redes sociais.
44. O que veio a conseguir, não só ao assistente, assim como a toda a sua família;
45. Conforme se encontra supra descrito nomeadamente no ponto provado 10. que aqui se dá por reproduzido.
46. O arguido fazia rondas diárias, de dia e de noite, com o seu carro no interior da sua propriedade junto á propriedade do ofendido, onde fazia questão de mostrar um estojo de arma de caça;
47. Passava próximo da habitação do ofendido e de noite até apitava o carro;
48. Procedeu conforme descrito nos pontos provados 13., 12., 22., 23. e 24., que aqui se dão por reproduzidos.
49. O arguido era conhecedor das rotinas diárias dos ofendidos.
50. Agiu com intenção de os perseguir, ameaçar e maltratar abordando-os na via pública com o único propósito de atingir a sua integridade e os molestar psicologicamente, atemorizando-os e limitando a sua liberdade;
51. Agiu conscientemente com a clara intenção de lhe provocar dor e marcas para o resto da vida.
52. Foi o que aconteceu.
53. O assistente/demandante foi vítima da agressividade, da perseguição, das ameaças, pressão psicológica e do medo que o arguido lhe causou e ainda hoje causa;
54. As circunstâncias em que o arguido actuou criaram no assistente/demandante uma forte perturbação na sua vida, assim como em todo o agregado familiar, desequilíbrio emocional e social
55. Os ofendidos viveram cercados pelo "ódio" do arguido, tiveram que alterar todo o seu quotidiano, recearam pela sua vida e só saiam de casa em questões de extrema necessidade com medo de levarem um tiro.
deduzido pela demandante (...):
56. Dá-se como reproduzida toda a matéria constante dos pontos provados 1. a 37.
57. A demandante vive com a sua família, nomeadamente (…) numa propriedade contígua à que era do arguido.
58. Na altura da prática dos factos por parte do arguido, (...) encontrava-se a cumprir a medida de coacção de prisão domiciliária, na medida em que era arguido num pro-cesso estava acusado de ter cometido vários crimes de incêndio, no qual veio a ser totalmente absolvido.
59. A prática dos factos por parte do arguido ocorreu, de forma sistemática, repetida e continua, desde o mês Setembro do ano de 2015 até Março do ano de 2017 quando foi produzido o acórdão absolutório;
60. O arguido importunava diariamente a vida à demandante, assim como a perseguia rondando de carro ou a pé a sua propriedade ou até na via pública, tendo efectuado várias vezes disparos para o ar e outros na direcção da habitação da mesma.
61. O seu objectivo foi atemorizar, coartar a liberdade da demandante, amedrontá-la e difamá-la nas redes sociais;
62. O que veio a conseguir, não só com a demandante, assim como a toda a sua família. 63. Conforme se encontra descrito nos pontos provados 1. a 37.
64. O arguido sabia as rotinas diárias da demandante.
65. Tinha que sair obrigatoriamente de sua casa para levar e buscar a sua filha á escola, comprar comida, etc..
66. Perseguiu a lesada várias vezes na via pública não provocando qualquer acidente porque a mesma apercebia-se da sua presença e circulava de forma lenta.
67. Conforme consta dos pontos provados 15. a 21. que se dão integralmente aqui por reproduzidos.
68. Procedeu conforme descrito nos pontos provados 13., 12., 22., 23. e 24., que aqui se dão por reproduzidos.
69. Agiu com intenção de os perseguir, ameaçar e maltratar abordando-os na via pública com o único propósito de atingir a sua integridade e os molestar psicologicamente, atemorizando-os e limitando a sua liberdade.
70. Agiu conscientemente com a clara intenção de lhe provocar dor e marcas para o resto da vida; 71. Foi o que aconteceu;
72. A demandante foi vítima da agressividade, da perseguição, das ameaças, pressão psicológica e do medo que o arguido lhe causou e ainda hoje causa.
73. As circunstâncias em que o arguido actuou criaram na lesada uma forte perturbação na sua vi-da, assim como em todo o agregado familiar, desequilíbrio emocional e social.
74. Os ofendidos viveram cercados pelo "ódio" do arguido, tiveram que alterar todo o seu quotidi-ano, recearam pela sua vida e só saiam de casa em questões de extrema necessidade com medo de levarem um tiro.
deduzido pelo demandante (…):
75. Dá-se como reproduzida toda a matéria constante dos pontos provados 1. a 37..
76. O demandante (…) é filho de (...) e vive com a sua família numa propriedade contígua á do arguido.
77. Na altura da prática dos factos por parte do arguido, (...) encontrava-se a cumprir a medida de coacção de prisão domiciliária, na medida em que era arguido num processo estava acusado de ter cometido vários crimes de incêndio, no qual veio a ser totalmente absolvido.
78. A prática dos factos por parte do arguido ocorreu, de forma sistemática, repetida e contínua, desde o mês Setembro do ano de 2015 até Março do ano de 2017 quando foi produzido o acórdão absolutório.
79. O arguido importunava diariamente a vida ao demandante, assim como o perseguia rondando de carro ou a pé a sua propriedade tendo efectuado várias vezes disparos para o ar e outros na direcção da habitação do mesmo.
80. O seu objetivo foi atemorizar, coartar a liberdade do demandante, amedrontá-lo e difamá-lo nas redes sociais.
81. O que veio a conseguir, não só ao demandante, assim como a toda a sua família. 82. Conforme se encontra descrito na acusação, nomeadamente, no ponto provado 10..
83. O arguido fazia rondas diárias, de dia e de noite, com o seu carro no interior da sua proprieda-de junto á propriedade do ofendido, onde fazia questão de mostrar um estojo de arma de caça.
84. Passava próximo habitação do ofendido e de noite até apitava o carro.
85. Procedeu conforme descrito nos pontos provados 13., 12., 22., 23. e 24., que aqui se dão por reproduzidos.
86. O arguido era conhecedor das rotinas diárias dos ofendidos;
87. O lesado (...) tinha que sair todos os dias de sua casa para estudar e ajudar o seu pai noutras questões dado que o mesmo não podia ausentar-se da habitação.
88. Normalmente deslocava-se de mota e outras vezes de carro.
89. O arguido perseguiu-o várias vezes.
90. E assim ao cair da noite raramente saía de casa pois o arguido já o tinha ameaçado várias ve-zes.
91. Devido á pressão e ao medo que sentia, foi obrigado a ir viver para casa da sua namorada onde esteve alguns meses.
92. O arguido agiu com intenção de os perseguir, ameaçar e maltratar abordando-os na via pública com o único propósito de atingir a sua integridade e os molestar psicologicamente, atemorizando-os e limitando a sua liberdade;
93. Agiu conscientemente com a clara intenção de lhe provocar dor e marcas para o resto da vida; 94. Foi o que aconteceu;
95. O demandante foi vítima da agressividade, da perseguição, das ameaças, pressão psicológica e do medo que o arguido lhe causou e ainda hoje causa;
96. As circunstâncias em que o arguido actuou criaram no demandante uma forte perturbação na sua vida, assim como em todo o agregado familiar, desequilíbrio emocional e social.
97. Os ofendidos viveram cercados pelo "ódio" do arguido, tiveram que alterar todo o seu quotidi-ano, recearam pela sua vida e só saiam de casa em questões de extrema necessidade com medo de levarem um tiro.
contestação do arguido:
98. O arguido não reside e nunca residiu em permanência [no sentido de que aí nunca teve a sua residência permanente] na propriedade dos autos.
99. Em 2015 o arguido residia em (…), terra da sua mulher.
100. Desde 2016, o arguido reside em permanência [ou tem a sua residência permanente] em (…), cidade onde exerceu a sua profissão de professor durante 30 anos.
101. Desde setembro de 2019, o arguido é reformado.
102. Na propriedade dos autos, o arguido tinha uma exploração vitivinícola.
103. Em junho de 2016, o arguido e a sua mulher abandonaram a sua propriedade e colocaram-na à venda.
104. Deitando por terra toda uma vida e todos os seus sonhos e projetos.
105. O arguido e sua mulher planeavam viver as suas reformas na propriedade dos autos.
106. Cuidando dos vinhedos, colhendo a uva e produzindo vinho.
107. Não quiseram a vida e as suas vicissitudes que assim fosse.
108. O arguido esteve de baixa médica entre setembro de 2015 e 2017, conforme atestados médicos, documentos juntos com a contestação sob um único n.º 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
109. Importa salientar que o terreno do arguido e o terreno dos ofendidos confinam apenas a sul numa extrema.
110. A distância entre o monte do arguido e o monte dos ofendidos é curta, em linha reta.
111. A distância entre a vedação que faz a extrema da propriedade do arguido e o monte dos ofendidos é ainda inferior.
112. Ambos os terrenos são vedados e têm portões nas entradas.
113. E os montes estão distantes das vedações.
114. No ano de 2015, o arguido tinha um cão e da raça pastor alemão, conforme boletim médico veterinário, documento junto com a contestação sob o n.º 2 e se dá por reproduzido.
115. As raças “pitbull” e “Pastor alemão” tratam-se de duas raças de cães com traços característicos e individualizadores que os tornam inconfundíveis aos olhos de um homem médio.
116. O arguido, vítima dos nefastos incêndios, como tantos outros naquela região, denunciou às autoridades competentes os factos que tomou conhecimento.
117. Entenderam estas autoridades e o tribunal que existiam indícios da prática de crimes e de quem eram os seus autores.
118. Posto que os ora ofendidos foram constituídos arguidos, detidos e aplicadas medidas de coação.
119. Todos estes factos foram (e são) do conhecimento público.
120. Fazendo notícia nos mais diversos órgãos de comunicação social – vejamos a título de exemplo, os artigos publicados no jornal Correio da Manhã de 9 de outubro de 2015 e 3 de setembro de 2015 - documentos que juntos com a contestação sob um único n.º 3 e cujo o teor se dá por integralmente reproduzido.
121. Sem esquecer que ao ofendido (…) foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação sujeito a controlo a vigilância eletrónica.
122. Ou seja, entendeu o tribunal que existiam fortes indícios de que o ofendido tivesse praticado os crimes que lhe eram imputados.
123. Como é evidente, os acontecimentos vividos na região, bem como o conhecimento de tais factos e decisões judiciais, não podiam ser indiferentes a toda a população.
124. Vejamos, a título de exemplo, o teor do acórdão do TRE datado de 26 de abril de 2016 no âmbito do proc. 52/15.9GAGDL-A.E1, a pág. 18, documento junta com a contestação sob o n.º 4 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde se lê o seguinte: “Ademais, tal como também já foi referido pelo M°P° na resposta ao recurso, o despacho que aplicou a medida de coação, na ausência de prova direta e sem reconhecer, por razões pertinentes que foram indicadas, credibilidade às declaraç6es negatórias do recorre-te e do coarguido, seu filho, procedeu à avaliação do acervo indiciário recolhido nos autos, fazendo a sua leitura à luz das regras da experiência e da normalidade do acontecer, mostrando-se a prova testemunhal no seu conjunto bastante para persuadir fortemente, neste estado da investigação, que o recorrente, com a motivação perfeitamente plausível que lhe foi atribuída, praticou os factos integradores dos crimes em questão, sendo de notar que depois de lhe ter sido aplicada a medida de coação não tornaram a registar-se focos de incêndio na área em causa (…). E, muito embora de entre os que foram considerados como verificados, o perigo de perturbação do inquérito se mostre atenuado, continuam a fazer-se sentir os demais e, com particular acuidade, o de continuação da atividade criminosa, além do mais porque o subida de temperaturas que se vai registando à medida que nos aproximamos do estio traz consigo o pico da época de incêndios florestais, acrescendo o facto de também se encontrar indiciada a prática de um crime de incêndio em edifício, ocorrência que não tem ligação direta com condiç6es climatéricas particulares. E este perigo só pode ser adequadamente prevenido com uma medida privativa da liberdade, sendo que tudo indica que a que foi decretada está a surtir o efeito pretendido”.
125. [a respeito do incêndio descrito no ponto provado 10./ponto 101.º da contestação] Próximo do local encontravam-se os ora ofendidos.
outra factualidade:
relatório social:
126. O arguido nasceu em (…), onde viveu com os pais (arguido e progenitores de nacionalidade portuguesa) e o seu irmão até aos 12 anos de idade, altura em que viajou para Portugal, passando a ficar aos cuidados dos avós em , enquanto os pais se fixavam em França, com o seu irmão, mantendo contactos presenciais com o arguido, sobretudo durante os períodos de férias – ambos os pais trabalhavam.
127. Enquanto permaneceu em , terá dado continuidade aos estudos iniciados ainda em (…), vindo a ser admitido no Liceu de , onde concluiu o antigo 6º ano do Liceu, referindo ter iniciado o seu contacto com o mundo laboral ainda durante a sua adolescência, em trabalhos de caráter temporário.
128. Com o regresso dos pais, em definitivo, para Portugal, a sua família nuclear reorganizou-se, passando residir com os progenitores em (…), mantendo um trabalho na antiga fábrica de loiças (…), enquanto retomava os estudos à noite, concluindo o antigo 7º ano do Liceu, antes de vir a cumprir o Serviço Militar Obrigatório (1974) - nesse mesmo ano terá sofrido um acidente de viação, que o levou a ficar internado no Hospital Militar da Estrela, onde terminou o período de serviço militar.
129. Em seguida integrou a Escola Profissional Agrícola da (…), onde concluiu o curso técnico de agropecuária, coincidindo a finalização do seu percurso formativo com o início do seu projeto familiar, casando-se aos 23 anos de idade com a sua atual esposa (com quem teve dois filhos), passando ambos a viver em habitação própria situada numa zona de Setúbal pouco conotada com problemáticas socioeconómicas (bairro do …).
130. A sustentabilidade do novo agregado era assegurada, quer pelo trabalho da esposa (trabalhou na …), quer pelo primeiro projeto de produção agrícola iniciado pelo arguido em (...), localidade onde, em paralelo com a exploração de um terreno, geria uma loja de produtos agropecuários – a este propósito salienta-se a existência prévia de raízes familiares e patrimoniais da esposa do arguido, nesta região.
131. Reporta-se a essa época (final da década de 70), a ocorrência de um primeiro desaire empresarial, na sequência do roubo de um tractor (alegadamente perpetrado por um antigo cliente que se havia infiltrado na propriedade), o que impossibilitou a continuidade da produção agrícola, obrigando o arguido à venda de máquinas, levando-o, segundo afirma, ao desinvestimento temporário nesta área profissional, tendo vendido a loja, embora mantivesse o terreno como sua propriedade.
132. No início da década de 80, afirma ter enveredado pela área da construção civil, trabalhando na secção de pessoal de algumas empresas do ramo, até vir a responder a um anúncio, concorrendo para o lugar de técnico de formação na área de agropecuária no Instituto de Emprego e Formação Profissional de (…).
133. Tendo sido admitido no concurso, o arguido iniciaria, desta forma, um percurso profissional vinculado a esta instituição em (…), passando em seguida pelo centro de formação de (…), vindo a continuar a sua atividade no IEFP de (…), no qual terá, alegadamente, exercido funções de formação até à data da sua aposentação, em 2019.
134. Terá, no entanto, reinvestido na exploração do terreno agrícola em (...), a partir de 2014, na sequência do surgimento de uma linha de crédito para a criação de vinhas / exploração viti-vinícola, tendo o arguido realizado, segundo afirma, um investimento financeiro na ordem dos €60.000 neste terreno, organizado como uma quinta com estrutura habitacional.
135. Para além da componente económica / empresarial, é salientado, quer por parte do arguido, quer por parte da sua filha, (…), a dimensão familiar, emocional e patrimonial deste investimento, direcionado também para usufruto da descendência do casal, para além de constituir um projeto de antecipação do seu período de reforma e da sua esposa.
136. Por essa altura, já os seus dois filhos estariam autonomizados, ou em via de consolidar essa situação, do ponto de vista profissional e familiar – atualmente o filho (36 anos) gere uma empresa de construção civil em (…) e a filha (31 anos) constituiu um gabinete de arquitectura em Lisboa – tendo ambos se envolvido na implantação e desenvolvimento da referida quinta / exploração agrícola.
137. À data dos factos constantes no presente processo, o arguido foi confrontado com o prejuízo causado pela destruição de terreno agrícola na sua propriedade, em função de uma série de incêndios que grassaram na região de (...) entre julho e outubro de 2015, a origem dos quais o arguido atribuiu aos ofendidos no presente processo, iniciando-se um procedimento criminal contra os mesmos, vindo estes a ser absolvidos de tal acusação no ano de 2017.
138. O arguido procura descrever a sua relação com a restante rede vicinal local (proprietários de terrenos), como positiva e de interajuda.
139. De acordo com o arguido e com a sua filha, o facto de este apresentar competências socioculturais e comunicativas mais desenvolvidas face aos elementos da comunidade envolvente, também lesados pela vaga de incêndios, terá alegadamente levado a que estes últimos delegasssem no arguido a incumbência de os representar perante as autoridades competentes, no que respeita à concretização das suas suspeitas partilhadas sobre a origem criminal dos fogos.
140. Após a avaliação das perdas e na sequência do desgaste emocional envolvido em todo o processo, e também seguindo o conselho dos seus filhos, o arguido terá desistido do seu projeto para o período de reforma (bem como de ulteriores diligências processuais), voltando a recentrar a sua vida socioprofissional em (…) (terá continuado envolvido na formação profissional entre 2016 e 2019), tendo vendido a propriedade de (...) por um preço, segundo afirma, abaixo do seu valor comercial tendo a maior dificuldade sido, todavia, o processo de desvinculação afetiva do seu conjunto familiar face ao que o terreno representava.
141. Encontrando-se reformado desde agosto de 2019 (a sua esposa teria, anteriormente, alcançado o período de reforma), terá mantido algumas atividades de lazer (pesca, caminhadas) em conjunto com amigos e antigos colegas de trabalho, para além de poder contar com o apoio e companhia dos filhos e da esposa na reorganização do seu projeto e interesses de vida, sem que se afigurem, atualmente, constrangimentos de ordem socioeconómica.
antecedentes:
142. O arguido possui a seguinte condenação criminal registada:
a. por um crime de injúria agravada, um crime de desobediência e um crime de desobediência qualificada, praticados em 1 de julho de 2016 e 1 de junho de 2016 no que refere àquele último ilícito, o arguido foi condenado na pena única de 120 dias de multa à taxa diária de 6€, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses - processo 22/16.0GAGDL.
Inexistem outros factos provados para além dos acima elencados.
2.2. factos não provados
da acusação pública:
a- [ponto 3.º da acusação pública] “onde reside em permanência desde 2012”. b- [ponto 10º da acusação pública] “a 500 metros”.
c- [ponto 12.º da acusação pública] “pitbull” e “causando-lhes danos na propriedade e prejuízos”.
d- [ponto 20.º da acusação pública] “a cerca de 10 metros”.
pedidos de indemnização civil:
deduzido pelo assistente/demandante (...):
e- [ponto 11.º do pedido de indemnização civil] “a cerca de 10 metros”.
deduzido pelo demandante (…):
f- [ponto 11.º do pedido de indemnização civil] “a cerca de 10 metros”.
g- [ponto 22.º do pedido de indemnização civil] “e tentou intercetá-lo quando circulava”.
h- [ponto 23.º do pedido de indemnização civil] “foi obrigado a circular por outros caminhos”
contestação do arguido:
i- [ponto 16.º da contestação] “Descolando-se aí, sazonalmente, e tão-só e apenas para o exercício da sua atividade agrícola.”
j- [ponto 17.º da contestação] “Por força dos nefastos incêndios, dos danos e prejuízos avultados que causaram, por força da má relação de vizinhança com os ofendidos, verdadeiramente insustentável e degradante, tanto física, como psicologicamente (…) “foram forçados a abandonar”.
k- [ponto 22.º da contestação] “Os incêndios deflagrados não só devastaram a região como o arguido e os seus bens.”
l-[ponto 23.º da contestação] “Não só o mato, as plantações, as árvores, os equipamentos, as instalações ou as casas foram consumidos pelas chamas, também os bens, os sonhos e projetos do arguido e sua mulher, entre tantas outras vítimas, sucumbiram na lacra dos fogos”
m- [ponto 24.º da contestação] “conjuntura que determinou”
n- [ponto 25.º da contestação] “Não restavam alternativas! - Em prol da sua saúde física e psicológica, o arguido e a sua mulher abandonaram a propriedade e a vinha em meados de 2016 e colocaram-na de imediato à venda, - O que só veio a ocorrer no pretérito ano de 2019,”
o- [ponto 25.º da contestação] “Aliás, por um preço bem inferior ao que efetivamente valia para o arguido e mulher e abaixo do valor de mercado.”
p- [ponto 26.º da contestação] “A angústia, a dor e o sofrimento do arguido e de sua mulher impuseram o preço.”
q- [ponto 27.º da contestação] “Afinal, as suas vidas não podiam mais ser adiadas.”
r- [ponto 28.º da contestação] “Inversamente, ressoa nas vielas e calejas da pequena (...) que os ofendidos prosseguiram as suas vidas de forma inalterada, regular e tranquila.”
s- [ponto 32.º da contestação] “O arguido não tem qualquer arma de fogo.”
t- [ponto 33.º da contestação] “Nem é caçador, nem nunca foi.”
u- [ponto 34.º da contestação] “Sucede que, como é prática comum entre os viticultores, para afugentar os pássaros que comem os bagos das uvas, o arguido colocou altifalantes juntos das videiras que emitem sons que reproduzem diversos sons, entre tantos outros, tiros de espingardas, por exemplo.”
v- [ponto 38.º da contestação] “Ninguém viu o arguido com uma arma na mão;” w- [ponto 39.º da contestação] “Ninguém viu o arguido a disparar;”
x- [ponto 40.º da contestação] “Nenhuma arma ou projétil foi visto ou encontrado proveniente de uma arma disparada pelo arguido”
y- [ponto 41.º da contestação] “Nenhum odor – a pólvora, por exemplo – foi sentido e relatado”
z- [ponto 42.º da contestação] “Os ofendidos apenas ouviram os sons de disparos!”
aa- [ponto 43.º da contestação] “E, se porventura efetivamente provinham da propriedade do arguido, só poderiam ser os referidos sons que eram emitidos pelos altifalantes.”
bb- [ponto 48.º da contestação] “de aproximadamente 250 metros”
cc- [ponto 49.º da contestação] “de aproximadamente 200 metros”.
dd- [ponto 50.º da contestação] “bem superior a 10 metros, aproximadamente, entre 50 a 100”
ee- [ponto 53.º da contestação] “Junto à vedação, na data dos alegados factos, o terreno estava lavrado e semeado para pastagem, o que impedia a circulação de veículos automóveis ligeiros.”
ff- [ponto 54.º da contestação] “É física e objetivamente impossível que o arguido tivesse passado com o seu veículo automóvel junto à casa dos ofendidos sem antes entrar na sua propriedade”
gg- [ponto 55.º da contestação] “Como é física e objetivamente impossível que o arguido tivesse seguido a ofendida até ao interior da sua propriedade, e que tivesse colocado o seu veículo junto à vedação que separa as propriedades”
hh- [ponto 55.º da contestação] “Pelas seguintes ordens de razão: - Desde logo, trata-se de um terreno lavrado e semeado que impossibilita qualquer a circulação de automóveis ligeiros, Mas também,
- Atenta a distância existente entre os montes, não resulta clara a intencionalidade que se pretende dar à suposta ação, visto que as luzes de estrada (ou seja, máximos) projetam um feixe de luz, tanto de dia como de noite, de aproximadamente 100 metros.”
ii- [ponto 56.º da contestação] “É totalmente falso que o arguido tivesse um cão da raça Pitbull;”
jj- [ponto 56.º da contestação] “apenas” (tinha um cão da raça pastor alemão)
kk- [ponto 56.º da contestação] “Logo, se efetivamente sucedeu o que vem descrito na acusação, aquele cão não pertencia, nem nunca pertenceu ao arguido”
ll- [ponto 84.º da contestação] “apenas” (e nada mais fez mormente o que se descreve na acusação pública)
mm-[ponto 85.º da contestação] “O arguido agiu no exercício de um direito e no cumprimento de um dever imposto por lei.”
nn- [ponto 90.º da contestação] “Sem embargo, importa denotar que o arguido escrevia para a Rádio (…), sob a sua chancela e escrutínio.”
oo- [ponto 91.º da contestação] “Nesses artigos, o arguido apenas comenta factos que são do conhecimento público, já publicados em jornal com distribuição nacional, como é o caso do Correio da Manhã, tendo o cuidado de se referir aos ofendidos como suspeitos.”
pp- [ponto 91.º da contestação] “Também nas redes sociais o arguido fez diversos comentários nas publicações alusivas aos incêndios florestais que ocorreram na localidade, onde fez várias acusações aos ofendidos (?), imputando-lhes a autoria dos incêndios, designadamente escreveu: - em 27.10.2015: …ninguém pode conviver com os autores suspeitos; - em 29.10.2015: temos de regresso o incendiário suspeito da autoria dos incêndios”
qq- [ponto 95.º da contestação] “A preocupação e o anseio apoderaram-se dos sentimentos dos cidadãos.”
rr- [ponto 96.º da contestação] “Foram promovidos debates e discussões.”
ss- [ponto 97.º da contestação] “Nestes, as vítimas apenas manifestavam o seu desespero e o seu ensejo de justiça. - Nada mais!”
tt- [ponto 98.º da contestação] “Importa ressalvar, no que aos factos ocorridos em 19.09.2015 diz respeito, o arguido almoçava com alguns amigos num armazém, sito na sua propriedade, quando souberam que naquele preciso momento estava a lavrar um fogo na propriedade do Sr. (…), prédio vizinho, e que as chamas estavam a consumir um casão repleto de feno e palha e que se propagavam aos animais ali existentes.”
uu- [ponto 99.º da contestação] “De imediato, o arguido e os seus amigos deslocaram-se ao local com o propósito de ajudar a combater as chamas e de salvar os animais da exploração.”
vv- [ponto 100.º da contestação] “Entre estes encontrava-se o Sr. (...), à data, com 91 anos de idade.”
ww- [ponto 101.º da contestação] “junto à extrema do seu prédio”
xx- [ponto 102.º da contestação] “O fogo não ocorreu a 500 metros da propriedade dos ofendidos.”
yy- [ponto 104.º da contestação] “A propriedade do Sr. (...) é precisamente do outro lado da estrada, em frente ao prédio dos ofendidos; por sua vez, o armazém que ardeu estava a uma distância inferior a 20 metros do portão do prédio do Sr. (...) – ver neste mesmo sentido os mapas de incêndios elaborados por peritos da GNR, documentos juntos com a contestação sob o n.º 5 e que se são por integralmente reproduzidos.
zz- [ponto 105.º da contestação] “Deu-se então uma discussão entre o Sr. (...) e os ofendidos.”
aaa- [ponto 106.º da contestação] “Tendo o Sr. (...) se sentido mal e caído no chão”.
bbb-[ponto 107.º da contestação] “De imediato, o arguido chamou o INEM”.
ccc- [ponto 108.º da contestação] “No local também se encontravam autoridade policiais e bom-beiros.”
ddd-[ponto 109.º da contestação] “Em momento algum o arguido dirigiu uma qualquer palavra aos ofendidos.”
eee- [ponto 110.º da contestação] “Limitou-se a ajudar e tentar extinguir o incêndio, salvar os animais e dar assistência ao Sr. (...).”
fff- [ponto 111.º da contestação] “Tempos mais tarde, o Sr. (...) viria a morrer.”
ggg-[ponto 112.º da contestação] “Nos seus últimos dias de vida, o Sr. (...) relatava um profundo desgosto e um permanente sofrimento pelos danos que o incêndio lhe causara; -Afinal tinha visto toda uma vida arder naquelas chamas. - Sentimentos, aliás, partilhados pelo arguido e por muitas outras vítimas!”
Inexistem outros factos não provados para além dos acima elencados.”
***
II.III - Apreciação do mérito do recurso.
A) Das nulidades da sentença invocadas pela recorrente.
Como questão prévia invoca a recorrente a nulidade da sentença com base nos fundamentos acima enunciados.
Na sentença recorrida, o tribunal “a quo” fez constar o seguinte quanto à motivação da sua convicção probatória relativa aos factos provados e não provados:
“2.3. indicação e exame crítico da prova
Dando cumprimento ao disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na solução alcançada quanto aos factos provados/não provados, o tribunal procedeu à ponderação da globalidade da prova produzida/examinada em audiência de julgamento, adiante se procedendo à sua indicação e subsequente exame crítico:
indicação da prova:
- testemunhal - todas as declarações/depoimentos citados encontram-se integralmente gravados no suporte áudio da(s) ata(s) de audiência de julgamento (…)”
A tal indicação seguiu-se a consignação da súmula descritiva dos vários depoimentos e declarações produzidos em julgamento, após o que prosseguiu a sentença da seguinte forma:
“(…) - documental:
- indicada na acusação pública - fotografias de fls. 81 a 83; - print mensagens nas redes sociais a fls.67 a 70 e 87; - declaração de fls. 100; certidão do acórdão proferido nos autos n.º 52/15.9GAGDL de fls. 230 a 285.
- junta com a contestação do arguido - 1) Atestados médicos; 2) Boletim médico veterinário; 3) Arti-gos do jornal do Correio da Manhã; 4) Acórdão do TRE. 5) Mapas.
- junta em audiência - certificado do registo criminal do arguido; relatório social.
exame crítico da prova:
A prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, de acordo o princípio da «livre apre-ciação da prova» (cf., artigo 127.º do Código de Processo Penal), princípio que é «direito constitucio-nal concretizado», que há-de traduzir-se numa valoração «racional», «crítica», «lógica» (cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., UCE, pág. 329).
Assim, adiante se expõe a convicção do tribunal quanto aos:
- factos provados
- da acusação:
Relevam-se neste tocante, em primeira linha, as declarações dos ofendidos, ou seja, as declarações do assistente (...) e dos demandantes (...) e (...).
Avaliamos que, no conjunto das suas declarações, que acima exaramos em súmula, não se oferece dúvida de realce quanto aos aspetos centrais da acusação pública.
Os ofendidos, como se pode escutar dos seus depoimentos, foram inquiridos à globalidade da matéria, segundo a sequência/encadeamento descritos na acusação pública, e resulta que as suas declarações são corroborantes da generalidade do alegado na acusação pública.
Elas podem não constituir um relato ipsis verbis do texto do acusatório, é certo, mas na sua globalida-de compõem um quadro perfeitamente lógico, complementam-se, e cremos que nada se poderá apon-tar à espontaneidade, seriedade, credibilidade de tais declarações.
Na verdade a impressão geral que nos fica é que elas podem pecar por defeito, ou melhor, pode pecar por defeito o que nos narra a acusação, porque poderão ter sido mais as condutas persecutó-rias/intimidatórias levadas a cabo pelo arguido - e não há dúvida de que efetivamente as levou, convencido da culpabilidade dos arguidos - ademais as publicações que o arguido escreveu e que estão espelhadas na prova documental - print mensagens nas redes sociais a fls.67 a 70 e 87 dos autos, bem transparecem o estado de espírito do arguido.
Da prova testemunhal também se destacam contributos de realce na comprovação dos factos da acusação pública, com particular destaque para os depoimentos de (…), respetivamente a ex-namorada e a filha dos ofendidos, depoimentos que avaliamos, identicamente, de espontâneos e credíveis.
A demais prova testemunhal produzida pela acusação pública, ou seja os depoimentos de (…), também se apresentará útil na corroboração da perseguição/vigilância efetuada pelo arguido às pessoas que se deslocavam à propriedade dos ofendidos.
Os depoimentos de (…), da prova testemunhal indicada pelo assistente são de sentido análogo, também eles reforçando como era notória a conduta persecutória do arguido.
A prova testemunhal produzida pela defesa, consistente nos depoimentos de (…) na perceção do tribunal não produziu esclarecimento decisivo quanto à matéria descrita na acusação pública, sendo de âmbito mais circunstancial ou acessório do que principal, direto, objetivo - como a possibilidade de arguido poder circular no seu veículo até às estremas da sua propriedade quando não vemos nenhuma impossibilidade nisso até porque o arguido teria um jipe - pois no que tange ao essencial, com efeito, quanto a alguma conduta ou comportamento do arguido, nada de relevo se presenciou ou se destacou, sendo tal prova, quanto muito, em sentido negativo, de que nada se presenciou ou de que nada o arguido terá feito; porém não se pode aceitar que o descrito na acusação pública seja uma mera efabulação em face da já acima citada prova oral preponderante.
Em suma olhando para a acusação pública e para a globalidade da citada prova testemunhal de relevo, o tribunal formou uma convicção, próxima da certeza, quanto à globalidade da matéria descrita na acusação pública de índole objetiva (pontos provados 1. a 32.) sendo a de índole subjetiva (pontos provados 33. a 37.) consequência lógica e necessária daquela.
- dos pedidos de indemnização civil;
O que acima ficou exposto vale, mutatis mutandis, para a factualidade alegada em sede de pedidos de indemnização civil - pontos provados 38. a 97. - e meramente em face das declarações dos demandan-tes nos parece tal matéria perfeitamente atendível.
Dir-se-á que estabelecidos os factos da acusação pública, os prejuízos alegados em sede de pedido de indemnização civil, que são de natureza não patrimonial, fundamentalmente expressando o reflexo prejudicial que a conduta do arguido acarretou na vida e nas rotinas dos demandantes, se apresenta, praticamente, como uma decorrência, lógica, necessária, invariável, daquela factualidade da acusação pública.
Ademais, como já assinalado, os demandantes prestaram depoimentos que reputamos de inteiramente credíveis e dos quais transparece, sem dúvida, que estes eventos deixaram uma marca duradoura nas suas vidas.
- da contestação:
A presente matéria - pontos provados 98. A 125., que é, fundamentalmente, de índole circunstancial, o tribunal entende demostrada no conjunto da prova testemunhal produzida em julgamento e, bem assim, dos documentos que acompanham a contestação.
Dir-se-á que ela também se compagina, quanto à matéria das condições de vida do arguido, com o exarado no relatório social elaborado nos autos.
- da outra factualidade:
do relatório social:
A presente matéria - pontos provados 126. a 141. avulta do relatório social.
- dos antecedentes:
O ponto provado 142. avulta do certificado do registo criminal do arguido.
factos não provados:
da acusação pública:
A matéria não provada da acusação pública, que importa salientar, é de pormenor, trata-se de aspetos meramente circunstanciais/acessórios que não influem determinantemente na solução jurídica da causa; ainda assim se nota que o tribunal acusou dúvida nestes tocantes no conjunto da prova oral produ-zida em julgamento, mormente no que tange à residência permanente do arguido, ainda que, em face das declarações dos ofendidos, se apresente inequívoco que podendo aí não residir em permanência -ou no sentido de aí ter a sua residência permanente -, pelo menos aí residia regularmente - destaque-se que o arguido esteve de baixa médica entre 2015-2017 (e os factos descritos na acusação pública reportam-se justamente a esse período) pelo que não há, com efeito, qualquer dúvida de que passou muito tempo na propriedade em questão, onde tinha uma segunda habitação - cf., factos não provado a- e facto provado 3. Parece-nos bem assim inviável estabelecer a concreta raça do canídeo e ocorrência de prejuízos em face das declarações dos ofendidos, pese embora seja inequívoco, em face das mesmas declarações, que um canídeo proveniente da propriedade do arguido efetivamente invadia a sua propriedade - e não se tratava, segundo nos parece, de um pequeno cachorro - cf., facto não provado c- e facto provado 12.
No geral nos parece inviável, no conjunto da prova produzida em julgamento, estabelecer as concretas distâncias, em metros, sabendo-se, não obstante, que em causa estão distâncias próximas e que, manifestamente, não impedem nem invalidam a ocorrência dos factos - pontos não provados b- e d-.
dos pedidos de indemnização civil:
O acima referido vale, mutatis mutandis, para estes aspetos dos pedidos de indemnização civil não provados, factos não provados e- a h-, acrescentando-se que nos parece dúbio, em face das declarações do demandante (...) que o mesmo tenha sido “intercetado” pelo arguido; segundo retirámos das suas declarações uma vez que se deslocava de mota o arguido tinha maior dificuldade em perseguir ou alcançar o demandante.
- da contestação:
Parte da matéria alegada, avulta, simplesmente, da ausência de prova quanto à mesma, é particular-mente o que se afigura ser o caso dos pontos não provados j-, k-, l-, m-, n-, o-, p-, q-, qq-, rr-, ss-.
Por outro lado, regista-se factualidade que é contraditória ou opõe-se à factualidade provada da acusação pública e dos pedidos de indemnização civil, pelo que, estabelecendo esta - e sendo essa a convic-ção do tribunal - necessariamente se exclui aqueloutra, é particularmente o caso dos pontos não prova-dos i-, r-, s-, t-, v-, w-, x-, y-, z-, aa-, ee-, ff-, gg-, hh-, oo-, pp-, ddd-, eee-.
Outra factualidade se apresenta, bem assim, como dúbia/indemonstrada para lá da dúvida razoável, onde se podem incluir os remanescentes pontos não provados u-, bb-, cc-, dd-, ii-, jj-, kk-, ll-, mm-, nn-, tt-, uu-, vv-, ww-, xx-, yy-, zz-, aaa-, bbb-, ccc-, fff-, ggg-, sendo que alguma desta matéria, mo-mente a que refere ao incêndio ocorrido no dia 19 de setembro de 2015 já vai escapando, substancialmente, ao objeto destes autos - não será possível, nem é, de todo, decisivo para a solução deste processo -, entrar nos pormenores desse evento.
Mais uma vez temos a notar - veja-se o que acima dissemos quanto factos provados da acusação, que aqui mais uma vez renovamos - que a prova testemunhal produzida pelo arguido, os depoimentos de (…), acima sintetizados na indicação da prova, versaram sobretudo sobre aspetos circunstanciais/acessórios, e nós não podemos, e seguramente não podemos neste caso concreto, afastar o essencial por via do acessório ou do superficial; o tribunal avalia que a prova preponderante, a começar pelas declarações dos ofendidos, muito assertivas, não oferece dúvida quanto à matéria descrita na acusação pública com o inerente afasta-mento da versão dos factos oferecida pelo arguido.(…)”

*
Sendo arguida alguma nulidade da sentença no recurso, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 414.º, nº 4 do CPP, incumbe ao tribunal que a proferiu pronunciar-se sobre ela e supri-la, antes de mandar subir o recurso.
O tribunal a quo nada referiu sobre esta matéria, silêncio que não podemos deixar de atribuir ao entendimento de que nenhuma nulidade realmente existe.
*
Analisemos os fundamentos da nulidade da sentença invocados pelo recorrente.
- Da nulidade por omissão do exame crítico da prova ou por insuficiência do mesmo, nos termos previstos nos artigos 374º, nº 2 e 379 nº 1 alínea a) do CPP.
De acordo com a lei processual penal, concretamente nos termos do artigo 379.º CPP, sentença nula é aquela que se encontra inquinada por vícios decorrentes ou do seu conteúdo ou da sua elaboração. Tal nulidade, ainda que não arguida em recurso, é de conhecimento oficioso, conforme decorre do nº2 do mesmo artigo.
A nulidade da sentença prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, ocorre nos casos em que a decisão não contenha a fundamentação que inclua o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da convicção probatória realizada com o exame crítico das provas e, bem assim, os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão.
Na situação que agora nos ocupa, o recorrente invoca a nulidade da sentença recorrida em virtude de nela se não conter, de modo suficiente e inteligível, a apreciação crítica da prova, desse modo tornando impossível reconstituir o modo como se formou a convicção do julgador relativamente aos factos constitutivos do objeto do processo.
Na fundamentação da sentença deverão, efetivamente, concretizar-se as razões que estruturaram a convicção do julgador, convicção que se traduziu na seleção factual que o mesmo fez constar do elenco dos factos provados e não provados, com base na valoração dos meios de prova disponíveis. O exame crítico de tais provas exige, não apenas que se indiquem as mesmas, mas também que se explicitem os raciocínios que, de acordo com as regras da lógica e da expediência comum, foram racionalmente seguidos e que conduziram à convicção do tribunal. Tal explicitação deverá ser feita de forma a possibilitar aos destinatários da decisão realizarem a reconstrução do percurso mental efetuado pelo julgador e que se apresenta como sustentador do juízo probatório, permitindo-lhes, ademais, verificar que a decisão tomada não foi arbitrária.[1]
Ora, confrontando a fundamentação da sentença recorrida na parte relativa à motivação da decisão de facto, contata-se que a mesma, após a enumeração dos factos provados e não provados – na qual não podemos deixar de assinalar uma incorreta inclusão de conceitos jurídicos, de conclusões e de referências a meios probatórios que tornam pouco rigorosa e até confusa a apresentação da escolha factual relevante, dificultando em muito a sua apreensão – contém uma sumária motivação do juízo probatório realizado com referência aos elementos de prova constantes dos autos e que sustentaram a seleção factológica provada e não provada.
Assiste razão ao recorrente quando reclama perante a forma como a sentença apresenta a motivação da decisão de facto, que considera insuficiente. Assentimos em que tal segmento da sentença evidencia algumas deficiências, pois poderia e deveria ter sido mais concretizada a referência aos factos e o reporte aos meios probatórios que sustentaram cada um deles. De igual modo, deveria o julgador ter sido mais explicativo no que diz respeito à apreciação que entendeu fazer dos meios probatórios que desvalorizou, máxime, da prova testemunhal apresentada pelo arguido.
Contudo, não podemos dizer que o juízo crítico da prova seja inexistente, ou insuficiente a tal ponto que inviabilize o escrutínio do decidido. A prova está documentada nos autos, encontrando-se, pois, disponível para permitir tal sindicância.
Alega ainda o recorrente que a sentença é nula em virtude conter uma descrição de factos genéricos, o que, na perspetiva do recorrente, acarreta a violação do direito de defesa do arguido.
Cremos que quanto a tal alegação não lhe assiste razão, pois que a sentença localiza no tempo e no espaço, conforme se revelou possível, de acordo com as limitações resultantes da prova produzida, os vários blocos de factos que imputa ao arguido, o que não nos parece ter coartado o seu direito de defesa, direito este que foi exercido pelo arguido em toda a sua plenitude. Efetivamente, o arguido revelou ter compreendido a factualidade que lhe foi imputada, tendo apresentado a sua contestação no momento próprio, tendo produzido a sua prova em julgamento e tendo apresentado o presente recurso em moldes que espelham a sua compreensão de todo o quadro factológico, por si, aliás, veementemente refutado.
Não se verifica, assim, a nulidade da sentença arguida pelo recorrente.

***
B) Do invocado erro na apreciação da prova.
Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ter presente que no caso dos recursos sobre a matéria de facto, «o tribunal ad quem não julga de novo (…)como se inexistisse uma decisão de primeira instância. E a sindicância dessa decisão (…) não inclui ainda a compressão da margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar (…).»[2]
No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, invocando-se, assim, a existência de um erro de julgamento.
Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”.
Importa ter presente que a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, ou a invocação de um erro de julgamento – com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 acima transcritos – não se confunde com a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e invocados no recuso, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Conforme decorre do disposto no artigo 412.º, nº 3.º do CPP, o erro de julgamento, ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
A este propósito, preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:
“(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c ) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Na situação dos autos, encontramo-nos perante uma impugnação ampla da matéria de facto, realizada com respeito pelo disposto no artigo 412.º do CPP. Relativamente à satisfação de tais requisitos, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação à referida norma, no Comentário do Código de Processo Penal “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) [m]ais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento”. “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.”[3]
Verificamos assim que para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis.
Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso.[4]
E foi isso que a recorrente fez nos presentes autos, tendo assinalado os factos que, em concreto, considera erradamente julgados e tendo apresentado as provas em que sustenta o seu entendimento, quer transcrevendo parte dos depoimentos que entendeu relevantes, quer indicando as passagens da gravação que registam tais depoimentos.
***
Previamente à incursão que se impõe realizar sobre as provas concretas produzidas nos autos e que sustentaram a decisão recorrida, importa fazer uma breve referência ao princípio da livre apreciação da prova, que encontra consagração legal no artigo 127.º CPP.
Assim, caberá reter que, segundo tal princípio processual penal, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Tal liberdade de apreciação da prova assenta em pressupostos valorativos e obedece aos critérios da razão, da lógica, da experiência comum e dos conhecimentos científicos disponíveis, tendo por referência a pessoa média suposta pela ordem jurídica, pelo que, de forma alguma, poderá confundir-se com arbítrio.
Encontra-se a referenciada liberdade orientada para a objetividade, com vista a lograr obter a verdade validamente adquirida. A formação da convicção do julgador só será válida se for fundamentada e, desse modo, se tiver a capacidade de se impor aos seus destinatários através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável.
Como assinala Figueiredo Dias[5], a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova), e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Deste modo, importa reter que o princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não representa a possibilidade de uma apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e, em boa medida, objetivamente motivável, de harmonia com as regras da lógica, da razão, da experiência e do conhecimento científico.
*
O arguido, que nos presentes autos assume a qualidade de recorrente, afirma não ter sido produzida prova bastante demonstrativa da autoria dos factos atinentes aos crimes de perseguição pelos quais foi condenado. Pretendendo impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, o recorrente observou as exigências legais necessárias à impugnação da matéria de facto constantes do artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP acima explicitadas, pois que:
- Indicou os pontos concretos da sua discordância, concretamente os factos 3, 5/2.ªparte, 7 a 37 dos factos provados, alegando que fica prejudicada toda a matéria atinente aos pedidos cíveis, concretamente os factos 38 a 97, por inerência, e, por oposição, os factos i) a ggg) dados factos não provados.
- Especificou os pontos do suporte informático em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados de que se socorreu, passagens que transcreveu na sua motivação de recurso.
- E explica as razões pelas quais, no seu entendimento, tal prova levaria a decisão diversa da recorrida.
Realizemos então a análise crítica das provas sobre as quais o recurso assentou o invocado erro de julgamento.
Importa em primeiro lugar atentar na forma como o tribunal a quo justificou a sua decisão quanto à parte que se impugna, o que foi feito nos termos que acima transcrevemos e que aqui damos por reproduzidos.
Analisada a prova produzida nos autos, constatamos que a motivação transcrita, no que diz respeito ao que foi relatado em audiência por cada um dos intervenientes, assistente, demandantes civis e testemunhas, está alinhada com o que foi efetivamente dito por cada um deles.
O arguido não assumiu, em nenhum dos seus aspetos, a prática dos factos que lhe vêm imputados. Por seu turno, os ofendidos, quer o assistente quer os demandantes civis, em declarações completas, coerentes e compreensíveis, descreveram o período em causa nos autos, dando conta do medo, perturbação e inquietação vividos por toda a família, em consequência de várias atitudes e comportamentos do arguido, tendo confirmado, de forma cabal, credível e muito segura, a factualidade que o tribunal “a quo” consignou nos factos provados, com exceção de alguns pontos que infra explicitaremos.
As questões colocadas pelo recorrente reportam-se essencialmente à inexistência de prova suficiente para formar convicção probatória quanto a alguns dos episódios, ou quanto à atribuição da autoria dos mesmos ao arguido. Ou seja, o recorrente sustenta a impugnação da matéria de facto na pretensa ausência de prova demonstrativa do seu envolvimento pessoal na factualidade firmada no acórdão recorrido.
Entendemos que lhe assiste parcialmente razão, mas tão somente no que diz respeito à autoria dos disparos e à circunstância de ter soltado o cão no interior da propriedade dos ofendidos.
Efetivamente, escrutinada toda a prova constante dos autos, concretamente ouvidas as declarações dos ofendidos e os depoimentos das testemunhas produzidos em julgamento, não encontramos suporte probatório bastante parta dar como provado que era o arguido quem efetuava os tiros ouvidos pelos ofendidos, nem, de resto, eles próprios, puderam atestar tal factualidade. A tal respeito, a prova produzida permite apenas ter por provado que, em várias ocasiões, mencionadas na sentença, foram efetuados disparos para o ar na direção da casa dos ofendidos e que tais disparos eram oriundos da propriedade do arguido, pelo que, em tal medida, se alterará a redação dos factos correspondentes.
Igual insuficiência probatória se verifica, a nosso ver, no que diz respeito ao local onde o arguido soltou o cão, pois que, das declarações prestadas pelos ofendidos podemos apenas retirar com segurança que o arguido soltou o mencionado cão junto à propriedade daqueles, de forma a que o mesmo aí se introduzisse, o que veio acontecer várias vezes, tendo o cão perseguido e amedrontado os cavalos aí existentes. Em conformidade com a prova produzida, alterar-se-á também a redação do facto correspondente a tal episódio.
Quanto ao mais, nenhuma censura nos merece o juízo probatório realizado na sentença recorrida.
Vejamos.
- O facto constante do ponto 3. dos factos provados arrima-se nas declarações dos ofendidos que, sem qualquer tipo de dúvida, incoerência ou hesitação, afirmaram que, à data dos factos, o arguido se encontrava muito regularmente na propriedade contígua à sua.
- A convicção do arguido de que os autores dos incêndios eram os ofendidos, consignada no ponto 5º, 2ª parte, encontra-se de tal forma espelhada nas publicações que aquele publicou nas redes sociais e que se encontram documentadas nos autos, que nem compreendemos por que razão questiona o mesma a convicção probatória relativa a tal facto.
- O facto 7., tal como os demais atinentes ao elemento subjetivo do tipo, concretamente os constantes dos pontos 33 a 37, ou seja, os relativos ao dolo do arguido e aos propósitos que visou alcançar com os seus comportamentos, inferem-se legitimamente dos factos objetivos por ele realizados. E, atenta a dimensão e persistência dos mesmos, não há dúvida que deverão ter-se por provados.
- No que diz respeito aos factos constantes dos pontos 8., 12., 14., 21., 42., 60. e 79., em conformidade com o que acima explicitámos, os mesmos passarão a ter a seguinte redação:
8. E em execução da sua pretensão, por diversas vezes, rondava a propriedade dos aqui ofendidos e, da sua propriedade, eram efetuados disparos para o ar, na direção da propriedade dos aqui ofendidos.”
12. Também, em data não concretamente apurada, mas que ocorreu no decurso do ano de 2015 e após a data da queixa apresentada, o arguido soltou um canídeo, de raça não concretamente apurada, junto à propriedade dos ofendidos, de forma a permitir que o mesmo aí entrasse, o que sucedeu, tendo aquele perseguido e amedrontado os cavalos que os ofendidos ali detinham.
14. Nessa mesma altura, foram efetuados disparos para o ar na direção da propriedade dos ofendidos.
21. Durante o tempo que os faróis se mantiveram acesos a apontar para a casa dos ofendidos, foram efetuados, de arma que não se logrou identificar, dois disparos para o ar, na direção da casa dos ofendidos, ouvindo-se o chumbo a bater no telhado.
42. O arguido importunava diariamente a vida ao ofendido, assim como o perseguia rondando de carro ou a pé a sua propriedade tendo sido efetuados várias vezes disparos para o ar e outros, oriundos da propriedade do arguido, na direção da habitação do ofendido;
60. O arguido importunava diariamente a vida à demandante, assim como a perseguia rondando de carro ou a pé a sua propriedade ou até na via pública, tendo sido efetuados várias vezes disparos para o ar e outros, oriundos da propriedade do arguido, na direção da habitação da demandante.
79. O arguido importunava diariamente a vida ao demandante, assim como o perseguia rondando de carro ou a pé a sua propriedade tendo sido efetuados várias vezes disparos para o ar e outros, oriundos da propriedade do arguido, na direção da habitação da demandante.
- Os restantes factos impugnados pelo recorrente, concretamente os constantes dos pontos 9. a 11, 13, 15 a 20, 22. a 37 consagram factualidade que foi atestada pelos ofendidos – quer pelo assistente, quer pela sua mulher e pelo seu filho, cujas declarações se complementaram e que, seguindo um raciocínio lógico e coerente, não deixaram dúvidas quanto à veracidade do que relataram – e parcialmente corroborada pelas testemunhas (…), testemunhas que, na medida dos seus conhecimentos, se revelaram úteis na confirmação das atitudes persecutórias levadas a cabo pelo arguido. Acresce que tais versões não foram contrariadas por qualquer outro depoimento ou por qualquer outro meio de prova, pelo que os factos em referência deverão manter-se nos factos provados. Registamos que os restantes depoimentos produzidos nos autos, concretamente os das testemunhas indicadas pelo arguido – (…)tal como refere a sentença recorrida, versaram sobretudo sobre aspetos acessórios (tais como o tipo de cão que o arguido possui, ou o facto de o mesmo não possuir uma arma), não tendo revelado conhecimento direto relativamente aos factos impugnados, pelo que nenhum deles logrou atestar que o arguido não levou a cabo as condutas que lhe são imputadas. Inexiste, portanto, razão atendível para pôr em causa a veracidade das declarações prestadas pelos ofendidos e os depoimentos das testemunhas que as suportaram, que, reiteramos, foram prestadas de forma muito segura e coerente e que reputamos merecedoras de absoluta credibilidade.
Bem andou, assim, o tribunal “a quo” em decidir como decidiu, nada mais havendo a alterar a tal respeito.
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Da alegada violação do princípio “in dubio pro reo”.
Como corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no seu artigo 1.º, estabelece a Constituição da República Portuguesa, como direitos fundamentais o direito à liberdade (artigo 27.º, nº 1) e o princípio da presunção de inocência dos arguidos, plasmado nos artigos 32.º, nº 2.º e 27.º, nº 1.º.
O princípio da livre apreciação da prova, com a abrangência e significado a que acima nos reportámos, e a que se refere o artigo 127.º CPP, constitui uma concretização do princípio da presunção de inocência – maxime na sua dimensão in dubio por reo – que encontra referência normativa expressa no artigo 6.º, nº 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 14.º, nº 2.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Retenhamos, porém, que «o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos.[6]» ou seja, uma «regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos»[7].
De acordo com tal regra, que inevitavelmente se conexiona com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, determina-se que a dúvida seja resolvida a favor do réu. O seu âmbito reconduz-se, pois, à valoração pelo julgador de toda a prova produzida. Se o resultado desse processo de valoração for uma dúvida – uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos – o juiz terá que decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Voltando ao caso em apreciação nos presentes autos, verificamos que os princípios explanados se mostram devidamente observados. Efetivamente, analisada a sentença recorrida, constata-se que, após o processo de valoração da prova não subsistiu ao julgador qualquer dúvida razoável que impusesse a aplicação do princípio do in dubio pro reo.
Levando em conta as razões descritas na motivação da decisão recorrida e as considerações que deixámos expostas, somos a concluir que da valoração da prova produzida não surgiu o non liquet, que, por aplicação do aludido princípio determinaria que os factos considerados provados devessem ser julgados não provados.

***
C) - Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito por errada qualificação jurídica dos factos, ou seja, em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos dos três ilícitos pelos quais o arguido foi condenado.
Defende o arguido que “O tribunal “a quo” interpreta e aplica incorretamente o art.º 154.º-A/1 do CP, desde logo, na subsunção jurídica dos factos, no sentido de factos isolados, não reiterados e dispersos no tempo, não permanentes, persistentes ou intensos, sem um padrão comportamental se subsumem na conduta típica.”
Dispõe o artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal que:
“Artigo 154.º-A
Perseguição
1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - A tentativa é punível.
3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição.
4 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
5 - O procedimento criminal depende de queixa.”
O tipo de crime de perseguição foi introduzido no nosso ordenamento jurídico, concretamente no Código Penal, pela Lei n.º 83/2015 de 05 de agosto, momento em que o legislador nacional decidiu criminalizar uma realidade já anteriormente debatida nos fóruns jurídicos e nos meios académicos, quer ao nível nacional, quer internacionalmente, o chamado stalking.[8]
A respeito de tal fenómeno, escreveu o Professor Manuel da Costa Andrade, de forma bastante assertiva, que “o stalking abrange as diferentes manifestações de perseguição persistente e repetida de uma pessoa, imposta contra a vontade da vítima, provocando-lhe estados de ansiedade, stress, perturbação e medo. Impondo-lhe sacrifícios (v.g., mudança de hábitos, de lugares frequentados, de casa.), e impedindo-a de conduzir e conformar livremente a sua vida”[9]
Inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal, concretamente no capítulo IV do Título I do Código Penal, o crime de perseguição tutela o bem jurídico que de há muito se visava proteger com a criminalização do fenómeno do stalking: a liberdade de autodeterminação pessoal, i.e., a liberdade em algumas das suas manifestações específicas, tais como a liberdade de decisão, de ação, de organização da própria vida, em suma, a liberdade viver o dia a dia num ambiente de paz e sossego.
Trata-se de um crime de natureza complexa – pois que, pese embora o bem jurídico eminentemente protegido seja, sem dúvida, a liberdade de autodeterminação pessoal, ainda que reflexamente, o crime de perseguição tutela também a reserva da vida privada, a imagem e a saúde da vítima – e duradouro – uma vez que a execução do crime pode prolongar-se por um período de tempo mais ou menos longo, sendo que a reiteração é uma exigência do tipo.
A análise do tipo penal consagrado no artigo 154º-A acima transcrito permite-nos constatar, desde logo considerando a opção do legislador nacional pela expressão “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, estarmos em presença de um crime de perigo concreto – pois que a hipotética lesão vem descrita na norma mas não necessita de existir para que o crime se verifique – não sendo necessária para a sua consumação a efetiva lesão do bem jurídico, bastando-se aquela com a adequação da conduta a provocar a referida lesão, ou seja, exigindo-se apenas que a conduta criminosa seja idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo.
Ao nível do tipo objetivo, o crime de perseguição, tal como foi acolhido pelo nosso ordenamento jurídico-penal não é um crime de execução vinculada, mas sim um crime de execução livre, pois a conduta punida pode ser levada a cabo por “qualquer meio, direta ou indiretamente”. Descortinamos na previsão do n.º 1 do artigo 154.º-A do Código Penal, três elementos fundamentais:
- O agente persegue ou assedia a vítima através de qualquer meio, direto ou indireto;
- O agente realiza tais condutas de modo reiterado e recorrente, e não através de ato isolado;
- A conduta do agente é suscetível de provocar medo ou inquietação à vítima ou ainda de prejudicar a sua liberdade de determinação.
Quanto ao tipo subjetivo, o crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais ou meramente resultantes de violações de deveres de cuidado. O crime em causa pressupõe a ideia de reiteração e de frequência, através da repetição temporal sucessiva de duas ou de várias condutas. O perseguidor ou stalker sabe porque persegue e com que intuito o faz, agindo necessariamente de forma dolosa, em qualquer das formas previstas no artigo 14º do CP, com dolo direto, necessário ou eventual.[10] [11]
Levando em conta as precedentes considerações sobre o crime em análise e atentando na factualidade imputada ao arguido e que resultou provada nos autos – rondava a propriedade dos ofendidos, sendo efetuados disparos para o ar desde a sua propriedade na direção da sua propriedade (facto provado 8.); dirigia ameaças verbais que visavam todos os ofendidos, “já ontem levaste uns avisos, eu arranco-te essa cabeça a tiro, a ti e à tua família” (facto provado 10.); passava, com o seu veículo automóvel, junto da casa dos ofendidos, trazendo no banco da viatura um estojo de arma caçadeira (facto provado 11.); libertava um canídeo junto à propriedade dos ofendidos para que o mesmo aí entrasse e atemorizasse os cavalos que aí se encontravam (facto provado 12.); apontava uma lanterna, com uma luz de elevada potência, da sua propriedade para a habitação dos ofendidos (facto provado 13.); perseguia a ofendida (...) na estrada mantendo o seu veículo muito próximo da traseira do veículo onde aquela seguia (factos provados 16.-ss.); apontava os faróis da sua viatura para a casa dos ofendidos, sendo efetuados disparos para o ar desde a sua propriedade na direção da casa dos ofendidos (facto provado 21.); olhava fixamente para o interior da propriedade e, quando as pessoas que visitavam os ofendidos saiam da propriedade, segui-as no interior do seu veiculo durante algum tempo (factos provados 22.-23.); fazia publicações nas redes sociais fazendo várias acusações aos ofendidos e imputando-lhes a autoria dos incêndios, utilizando expressões que sobre os mesmos lançavam um forte clima de suspeição e incitando à revolta e à indignação dos lesados; (facto provado 24.); surgia junto ao portão da habitação dos ofendidos, dizendo à ofendida “eu mato-te” “eu dou-te um tiro” “poe-te a pau comigo” “vou dar cabo de ti” (factos provados 27. e 28.); perseguia a ofendida na sua deslocação ao posto da GNR (facto provado 29.) – nenhuma dúvida pode restar de que o caso que ora nos ocupa se lhe subsume inteiramente.
De facto, tal como acertadamente refere a sentença recorrida, durante um expressivo período de tempo – cerca de dois anos – e movido por desvaliosos sentimentos de ódio e de revolta, autoconvencido da autoria de vários crimes de incêndio por parte dos ofendidos, o arguido resolveu fazer justiça pelas próprias mãos, tendo levado a cabo, de forma intensa, reiterada e persistente, várias condutas intimidatórias contra as vítimas, infundindo-lhes sentimentos permanentes de medo, que lhes determinaram limitações relevantes na sua vida quotidiana e uma perturbação desvaliosíssima no seu sossego diário.
Somos, pois, a concluir ter-se ao arguido constituído como autor material de três crimes de perseguição, previstos e punidos no artigo 154º-A do CP.

D) - Determinar se a escolha da pena e a subordinação da pena de prisão ao pagamento dos valores arbitrados a título de indemnização civil foi feita com deficiente fundamentação e com violação dos princípios da legalidade e da adequação.
Será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise.
Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator.
A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP.
Tendo como balizas a culpa – que constitui o limite máximo – e a prevenção geral – que coincide com o limite mínimo – a medida concreta da pena determinar-se-á de acordo com as necessidades de prevenção especial.
Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço e, bem assim, o processo de escolha e de determinação da pena concreta realizado pelo tribunal a quo.
O arguido questiona quer a escolha da pena de prisão, quer a subordinação da suspensão da pena ao pagamento dos referidos montantes.
Cremos, porém, que não lhe assiste razão.
Com respeito pelo critério estabelecido pelo artigo 70.º CP, o tribunal optou pela pena de prisão, suspensa na sua execução, tendo justificado a sua opção da seguinte forma:“In casu, a gravidade da conduta do arguido, na sua objetividade considerada, julga-se que não consente a aplicação de penas de multa - seria uma reação penal manifestamente desadequada ao caso.
A que a acresce que o arguido não beneficia de circunstâncias atenuantes gerais como sendo a confissão ou arrependimento, assinalando-se, bem assim, um antecede por crime que visa tutelar bens jurídicos pessoais, referimo-nos ao crime de injúria agravada referido no facto provado 142.
As necessidades de prevenção são relevantes em ambas as vertentes e o arguido deverá, sem dúvida, porque é inequivocamente a reação mais adequada ao caso, ser sancionado numa pena única de prisão.”
Nenhuma censura nos merece a sentença sob recurso no que tange à opção pela pena de prisão, pois que, valorando não só a gravidade dos factos mas, a este propósito, especialmente a circunstância de o arguido ter sido anteriormente condenado pela prática de um crime de injúria agravada, de um crime de desobediência e de um crime de desobediência qualificada, praticados em 1 de julho de 2016 e 1 de junho de 2016, pelos quais lhe foi aplicada uma pena de multa – que não se revelou suficiente para o afastar da criminalidade – afigura-se-nos que a opção por uma nova pena de multa se revelaria desadequada.
Relativamente à determinação das medidas concretas das penas parcelares e da pena única resultante do cúmulo jurídico imposto pelo concurso de crimes, fixou-as o tribunal “a quo”, respetivamente, em 1 ano e seis meses e em 3 anos de prisão, ou seja, próximas do meio das respetivas molduras abstratas – a prevista para o crime de perseguição, que se situa entre 1 mês e 3 anos e a estabelecida para o cúmulo jurídico, tendo por referência as penas parcelares aplicadas, que se situa entre 1 anos e seis meses e 4 anos e 8 meses – e pensamos que o fez criteriosamente e com justificação bastante. Vejamos.
Atentemos no que a tal respeito se consignou na sentença recorrida: “No caso que nos ocupa e transversalmente aos três ilícitos de perseguição praticados pelo arguido, na pessoa de cada um dos ofendidos, na ponderação da globalidade da matéria descrita nos pontos provados 1. a 37. temos que o grau de ilicitude e a intensidade do dolo prefiguram-se em patamares de elevada gravidade/intensidade.
No geral a conduta persecutória do arguido teve reflexos relevantes na vida e no quotidiano dos ofendidos, sendo evidente que da mesma resultaram prejuízos, aliás, de impossível reparação natural, traduzidos em sentimentos duradouros de medo e de inquietação.
A favor do arguido, não obstante, milita a generalidade da matéria apurada quanto às suas condições pessoais, designadamente no prisma laboral, familiar, social, cf., factos provados 127. a 141.
Renovamos os expedindo em sede de escolha da pena quanto às necessidades preventivas, que temos de relevantes em ambas as vertentes.”
Dando aplicação aos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP, temos que, no que diz respeito à culpa, tal como nos explica Figueiredo Dias, a mesma reporta-se à censura dirigida ao agente por referência à prática do facto ilícito, consistindo na desaprovação da sua atitude face às exigências do dever ser sociocomunitário.
Na situação que agora nos ocupa, haverá a considerar, com relevo para a dosimetria das penas:
- As circunstâncias em que os factos aconteceram – numa altura em que o assistente se encontrava coartado da sua liberdade, necessariamente fragilizado por se encontra sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica;
- O modo como foram sendo perpetradas as ameaças, as intimidações, os assédios e as perseguições aos ofendidos – quer diretamente, quer através de terceiros (as suas visitas), quer através da sua divulgação nas redes sociais;
- O caráter intenso dos assédios e das ameaças geradores de sentimentos duradouros de medo e de inquietação;
- A reiteração e persistência dos comportamentos do arguido;
- O longo período em que se verificaram – durante cerca de dois anos.
- A inexistência de qualquer arrependimento.
Da conjugação de todas as mencionadas circunstâncias, resulta claramente, sem qualquer apelo de dúvida, que quer a ilicitude dos factos, quer a censura relativamente à conduta do arguido, ou seja, a sua culpa, não poderão deixar de considerar-se bastante elevadas.
Tendo como balizas a culpa – que constitui o limite máximo – e a prevenção geral – que coincide com o limite mínimo – a medida concreta da pena determinar-se-á de acordo com as necessidades de prevenção especial, reportando-se estas à socialização e à reintegração do agente na sociedade, visando sempre a prevenção da reincidência. No caso concreto, considerando o facto de o arguido se encontrar inserido, ao nível social, familiar e profissional, não se revelam especialmente elevadas as necessidades de prevenção especial.
Mais elevadas se revelam as necessidades de prevenção geral, considerando o alarme social causado pelo tipo criminal perpetrado pelo arguido.
Sopesadas todas as circunstâncias enunciadas, revela-se adequada a pena de 1 ano e 6 meses de prisão fixada pelo tribunal recorrido para cada um dos crimes de perseguição.
Igualmente adequada se nos afigura quer a dosimetria pena única de prisão fixada na sentença, quer a suspensão da sua execução, respeitados que foram os critérios legalmente previstos para a realização do cúmulo jurídico e para a aplicação da pena de suspensão, conforme resulta do excerto que passamos a transcrever: “Nos termos do artigo 77.º do Código Penal deverá proceder-se ao cúmulo jurídico das penas parcelares, operação que é feita na ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente.
Esta ponderação de conjunto, dos factos e da personalidade do agente, traduz um juízo casuístico, para o que releva, não apenas, os factos que estão na base dos crimes em concurso, na sua objetividade considerados, mas também a personalidade do agente, manifestada nesses mesmos factos, por forma a ajuizar se está em causa uma tendência para a prática de crimes ou uma mera pluriocasionalidade que não radica na personalidade.
Os factos praticados pelo arguido, no seu conjunto, revestem-se de gravidade já assinalável segundo será inequívoco, e traduzem um comportamento reiterado ou prolongado no tempo, pelo que não deixam os factos, em si mesmos considerados, de revelar traços de personalidade propensos à conduta que aqui está em causa.
Assim, numa moldura abstrata que oscila entre 1 ano e 6 meses no seu limite mínimo e 4 anos e 6 meses no seu limite máximo (artigo 77/2 do Código Penal), avaliamos que a pena única deverá cifrar-se em não menos de 3 (três) anos de prisão.
Considerando que o arguido deve ser punido com pena de prisão em medida não superior a cinco anos importa saber se a mesma é passível de suspensão na sua execução, em conformidade com o art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal.
É pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão a formulação, pelo julgador, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes.
No conjunto da factualidade provada afigura-se que o arguido está em condições de beneficiar de uma pena suspensa, à luz do artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal, por período de tempo igual ao da duração da pena de prisão.”
Foi ainda decidido subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento dos montantes indemnizatórios civis, tendo o tribunal justificado tal decisão da seguinte forma: “Em termos de necessidades preventivas, julgamos que o aspeto que mais se destaca ou que assume maior premência é o da necessidade de reparação do mal do crime, e avaliamos que o arguido, não se evidenciando quaisquer dificuldades ou constrangimentos de ordem económica, está em plenas condições de pagar aos ofendidos, no prazo de 30 (trinta) dias a contar do trânsito em julgado, a totalidade indemnizações arbitradas em sede civil -- artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.”
Efetivamente, na ponderação de todas as circunstâncias do caso – patenteadas na factualidade provada e às quais já nos reportámos acima – que marcam negativamente a imagem global dos factos praticados, a pena única de 3 anos de prisão fixada pelo tribunal a quo mostra-se ajustada à medida da culpa e às exigências de prevenção geral e especial que o caso comporta.
Igualmente ajustada se mostra a suspensão da execução da pena de prisão, a qual, porém, nas concretas circunstâncias do caso, só produzirá adequadamente os efeitos pretendidos, conforme bem se entendeu na 1.ª instância, com a coadjuvação de um dever que obrigue o arguido a refletir sobre o mal causado aos ofendidos, ou seja, com a subordinação ao pagamento dos montantes indemnizatórios civis, dever cujo cumprimento permitirá, do mesmo passo, satisfazer a premente as necessidade de reparação do mal do crime.
Trata-se de um dever que a comunidade, através do tribunal, impõe ao arguido, como condição da suspensão da pena de prisão, por entender que as finalidades da punição apenas se alcançarão com a coadjuvação de tal condição.
Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, a condição imposta não é ilegal, nem desproporcionada, encontrando a sua previsão legal no artigo 51º, nº 1, al. a) do CP e mostrando-se absolutamente adequada à finalidade da pena.
Registe-se ainda que o tribunal “a quo” não estabeleceu a mencionada condição sem cuidar de aferir da capacidade económica do arguido para a satisfazer. Aferiu-a, tendo feito consignar na sentença que “e avaliamos que o arguido, não se evidenciando quaisquer dificuldades ou constrangimentos de ordem económica, está em plenas condições de pagar aos ofendidos, no prazo de 30 (trinta) dias a contar do trânsito em julgado, a totalidade indemnizações arbitradas em sede civil”.
A solução concretamente fixada na sentença recorrida mostra-se, pois, equilibrada, pelo que deverá manter-se.
Termos em que o recurso nesta parte deverá improceder.

E) - Determinar se o apuramento dos montantes arbitrados a título de indemnização civil foi feito com deficiente fundamentação e com violação dos princípios da legalidade e da adequação.
Como decorrência da lógica subjacente à posição sustentada no recurso, defendendo a inexistência de crime pelas razões acima explanadas, solicita igualmente o arguido a sua absolvição dos pedidos de indemnização civil nos qual foi condenado na sentença recorrida.
Não lhe assiste, porém, razão.
Começando por verificar a existência dos pressupostos da responsabilidade civil – não se nos afigurando necessário a tal respeito alongarmo-nos em ulteriores considerações, face à explanação teórica realizada na sentença recorrida, com a qual concordamos – diremos apenas que, provada que estão as condutas criminosas (as várias ameaças e assédios que integram o crime de perseguição), os danos da mesmas resultantes (os receios e angústias causados aos ofendidos pelo clima de terror imposto pelo arguido) e o nexo de causalidade entre tal conduta e os referidos danos (relação de causa e efeito entre as condutas do arguido e os referidos danos), se encontram verificados os mencionados pressupostos, a saber: o facto voluntário do lesante; a ilicitude de tal facto; a imputação do facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 129º do C.P e 483º, nº 1, 502º, nº 1, 563º, 493º, nº 1 e 496º, nº 1, todos do Código Civil .
Quanto à fixação dos montantes indemnizatórios para ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial resultantes para os demandantes da prática dos crimes, devendo os mesmos ser fixados por recurso à equidade, tendo como base os critérios explanados nos artigos 496.º, n.º 4 e 494.º do CC, atendendo à dimensão dos danos, ao grau de culpa do demandado, às possibilidades deste e às necessidades dos demandantes, afiguram-se-nos adequados os montantes fixados pelo Tribunal a “quo”.
A este propósito concordamos com as considerações expendidas na sentença recorrida que passamos a reproduzir: “No caso que nos ocupa, é inequívoco que o arguido, tendo praticado três crimes de perseguição na pessoa de cada um dos ofendidos/demandantes, incorreu na obrigação de indemnizar os prejuízos decorrentes da sua conduta.
O que está em causa nestes pedidos de indemnização civil é a compensação do sofrimento psíquico ou moral, sempre muito difícil, senão mesmo impossível, de quantificar em termos pecuniários.
O tribunal, atentando na globalidade dos factos alegados em sede de pedido de indemnização civil - factos provados 38. a 97.-, e não perdendo de vista, também, o apurado quanto ao arguido e quanto às suas condições de vida -factos provados 98. a 142., onde não se deteta como já oportunamente assinalado na fixação do dever penal constrangimento de ordem económica - avalia que os valores peticionados pelos demandantes, de 7.500€ (sete mil e quinhentos euros), são inteiramente justos.
Não poderá esquecer-se que estando os ofendidos ser alvo de um processo crime, e portanto, já sob a alçada da justiça, viram-se confrontados com uma perseguição adicional, totalmente ilegítima, levada a cabo pelo arguido, mesmo no local onde residiam, onde tinham o seu lar e o seu local de descanso.
É evidente que estes eventos deixaram marcas profundas nos ofendidos, e esta compensação económica seguramente não pecará por excesso.”.
E nem se diga, como alega o recorrente, que o tribunal não cuidou de apurar e distinguir os danos de cada um dos demandantes, quando é certo que tais danos se encontram absolutamente individualizados nos factos provados da sentença, afigurando-se-nos igualmente compreensível e ajustada a fixação de montantes indemnizatórios idênticos para todos os ofendidos, uma vez que todos comungaram dos mesmos sentimentos de angústia e de medo causados pelas desvaliosas condutas criminosas dos arguido, dirigidas a toda a família a que os demandantes pertenciam.
Nesta conformidade, nenhum reparo nos merece igualmente a sentença recorrida nesta parte, pelo que o recurso também quanto a este aspeto deverá improceder.

***
III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento parcial ao recurso e, consequentemente, em:
a) Alterar a matéria de facto provada nos termos que se deixaram expostos.
b) Manter em tudo o mais o decidido na sentença recorrida.

Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP, “a contrario”).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 23 de novembro de 2021.
Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar

Sumário
I - O crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação, uma frequência e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais; o perseguidor ou stalker sabe porque persegue e com que intuito o faz, agindo necessariamente de forma dolosa, em qualquer das formas previstas no artigo 14º do CP, com dolo direto, necessário ou eventual.
II – Comete o crime de perseguição previsto e punido no artigo 154º-A do Código Penal o arguido que durante um expressivo período de tempo – cerca de dois anos – e movido por desvaliosos sentimentos de ódio e de revolta, autoconvencido da autoria de vários crimes de incêndio por parte dos ofendidos, resolveu fazer justiça pelas próprias mãos, tendo levado a cabo, de forma intensa, reiterada e persistente, várias condutas intimidatórias contra as vítimas, infundindo-lhes sentimentos permanentes de medo, que lhes determinaram limitações relevantes na sua vida quotidiana e uma perturbação desvaliosíssima no seu sossego diário.
[1] Cfr. A este propósito o Acórdão do STJ, proferido no proc. nº 733/17.2JAPRT.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt e
[2] Decisão Sumária de 20.02.2019, proferida nesta Relação pela Desembargadora Ana Brito, no proc. 1862/17.8PAPTM.E1.
[3] 3.ª edição, página 1121.
[4] Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.
[5] Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 204 e ss.
[6] Helena Bolina, Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de inocência, Boletim da Faculdade de Direito, 70, 1994, pp. 433.
[7] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 215.
[8] A problemática subjacente à realidade da perseguição foi primeiramente tratada na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgarmente conhecida como Convenção de Istambul, assinada nessa mesma cidade, em 11 de maio de 2011, ratificada por Portugal em 2013 e cuja entrada em vigor ocorreu a 1 de agosto de 2014.
[9] Manuel da Costa Andrade, “Comentário ao artigo 190º do Código Penal”, in Comentário Conimbricense do Código Penal: parte especial, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2012, p. 1007.
[10] A respeito do crime de perseguição e do fenómeno de stalking, cfr. Mário Ferreira Monte, “Comentários à margem da Lei, nº 83/2005 de 5 de agosto”, in Revista Julgar, nº 28; Ana Teresa Paiva Costa Amaro, Tese “O Crime de Perseguição: Subsídios para a sua Compreensão no Contexto da Sociedade da Informação”, UMinho, outubro de 2017; Sara Figueira, Relatório de estágio no Gabinete de Apoio à Vítima de Lisboa da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, “A necessidade e eficácia do crime de perseguição”, Setembro 2017 e Filipa Isabel Gromicho Gomes, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra “O novo crime de perseguição: considerações sobre a necessidade de intervenção penal no âmbito de stalking.
[11] Ao nível da Jurisprudência recente, destacamos com referência ao crime em análise o Acórdão da Relação de Guimarães de 05.06.2017, o Acórdão da Relação de Guimarães de 11.02.2019, relatado pela Desembargadora Ausenda Gonçalves e o Acórdão da Relação de Lisboa de 09.07.2019, relatado pelo Desembargador Ricardo Cardoso.