Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2518/12.3TBEVR-C.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A não elaboração das contas anuais (alínea b), do nº 3 do artigo 186.º do CIRE) constitui apenas uma presunção de culpa grave, mas não também de causalidade em relação à situação de insolvência;
2 - Como tal, compete ao credor requerente do incidente de qualificação da insolvência a prova da citada causalidade.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2518/12.3TBEVR-C.E1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

Por apenso ao processo de insolvência, registado no Tribunal Judicial de Évora (1º Juízo Cível), sob o nº 2518/12.3 TBEVR, em que é requerida “(…) - Comércio e Distribuição de Bebidas, Lda.”, pela credora “(…) - Sociedade (…) de Cervejas e Bebidas S.A.” foi deduzido o incidente de qualificação da insolvência, alegando, para o efeito, factos que, em seu critério, fundamentam a declaração da insolvência da requerida como culposa, o que, efetivamente, aconteceu, decretando-se, em consequência, a inibição, durante o período de cinco anos, do gerente (…), “para administrar património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa”, bem como “a perda de quaisquer créditos (…) que detenha sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente”, sendo ainda condenado “a, com o seu património, indemnizar os credores reconhecidos, pelos montantes que lhes foram reconhecidos, acrescidos de juros de mora até integral e efetivo pagamento”.


Inconformado com a sentença, interpôs o gerente (…) a presente apelação, culminando as suas alegações, com as seguintes “conclusões”:

- Nos termos do artigo 615º., nº 1, c) do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando (…);

- No ponto 2 da parte decisória da sentença, foi decidido “fixar em 7 (sete) anos o período de inibição de (…) para administrar património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa”;

- No ponto “IV - Fundamentação de Direito”, mas contendo uma verdadeira decisão de mérito, a sentença decidiu que, “tudo ponderado, entende-se adequado, pelo que assim se decide, fixar em 5 (cinco) anos o período durante o qual (…) estará inibido”;

- Do simples confronto das transcrições supra da sentença recorrida se verifica que, para além de duas decisões contraditórias sobre o mesmo thema decidendum, esta enferma de manifesta ambiguidade ou, pelo menos, de obscuridade, o que torna a decisão sob recurso ininteligível;

- A obscuridade e ambiguidade da decisão recorrida é inquestionável, pois, além de conter duas decisões contraditórias ou antagónicas no que tange à fixação do período de inibição para administração de patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, demonstra a imponderação da decisão recorrida na aplicação de uma gravíssima sanção ao ora recorrente;

- Face ao exposto, é manifesto que a decisão recorrida é nula ex vi do disposto no artigo 615.º, nº 1, c) do Código de Processo Civil, pelo que deve ser revogada, com as consequências legais;

- A sentença recorrida considerou que “da leitura (…)”;

- No caso em apreço, e da factualidade que resultou assente da prova produzida, é manifesto que não se verificam os requisitos cumulativos para a qualificação da insolvência como culposa e muito menos a afetação dos seus efeitos ao ora recorrente;

- Em primeiro lugar, e desde logo quanto ao elemento subjetivo, é inquestionável que a atuação do ora recorrente, enquanto gerente da insolvente, nunca poderia ser qualificada como dolosa;

- Saliente-se que a sentença reconhece também expressamente que “não resulta (…);

- Considerou ainda “de igual (…)”;

- Também não é despiciendo sublinhar que a sentença recorrida considerou que “a conduta (…)”

- O Administrador da Insolvência refere no seu parecer, nos termos do artigo 188.º, nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas no qual refere que “notificada (…)”;

- Mesmo “ a recusa de (…)”;

- Da factualidade transcrita resulta a não verificação do elemento subjetivo da culpa qualificada da insolvente ou do ora requerente no exercício das suas funções de gerente;

- De igual modo, não está demonstrada da factualidade dos autos o “nexo causal entre aquela atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência”, ao contrário do que infundadamente veio a ser considerado na decisão recorrida;

- Quer a qualificação da insolvência como culposa quer a afetação dos seus efeitos ao ora recorrente, resulta apenas, percorrendo a factualidade assente, de terem sido entregues “ao Sr. Administrador da insolvência os documentos contabilísticos, com exceção dos mapas de imobilizado e dos mapas de clientes e fornecedores”;

- A sentença recorrida enferma assim de um manifesto erro de julgamento, pois da atuação da insolvente na pessoa do seu legal representante – não entrega de dois mapas contabilísticos ao administrador da insolvência – não era possível resultar “a criação ou o agravamento da situação de insolvência”, desde logo e pela simples razão que tal comportamento ou atuação é posterior à verificação da situação de insolvência;

- Deste modo, a sentença recorrida ao qualificar a insolvência sub judice como culposa e ao afetar o ora apelante com os seus feitos, enferma de manifestos erros de julgamento, pelo que deve ser revogada;

- A sentença recorrida considerou que “quanto à alínea (…)”;

- A posição sustentada na decisão sob recurso é claramente incongruente, pois apesar de considerar que o ora apelante só iniciou o seu mandato de gerente em Junho de 2012 é responsável pela falta de depósito das contas relativas ao exercício de 2011, e portanto como requerido nos autos é o único afetado pela qualificação;

- A decisão recorrida também nesta parte enferma de manifesto erro de julgamento, ao imputar ao ora apelante uma omissão – não apresentação a depósito das contas de 2011 – de que este não pode ser responsável, pois tal depósito era relativo ao período anterior à sua gerência;

- Acresce que a sentença recorrida não fundamentou jurídica e legalmente a tese que sustenta, pois não há qualquer disposição legal que determine a responsabilidade de um gerente pela elaboração ou depósito de contas de uma sociedade comercial relativas a um exercício anterior ao início do seu mandato como gerente;

- O nº 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê, como resulta da letra do preceito, uma presunção ilidível de existência de culpa grave por parte dos administradores do devedor quando não tenham cumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submete-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial;

- Embora se presuma culpa grave na violação dos aludidos deveres, para que se possa qualificar de grave a própria insolvência, haverá que demonstrar que dessa conduta resultou a insolvência ou o seu agravamento;

- A própria formulação utilizada pelo legislador aponta para a interpretação dita maioritária, pois no nº 1 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o legislador destrinça, entre os pressupostos da insolvência culposa, o dolo e a culpa grave do agente, no nº 2 anunciam-se os casos em que se considera que a insolvência é culposa, ou seja, em que se considera como preenchida, com base em presunção ou equiparação, a totalidade da situação previamente anunciada no nº 1;

- Já no nº 3 do artigo 186.º formula-se uma presunção de culpa que incide não sobre a insolvência, mas sobre determinadas atuações do agente, o que obriga, pois, para a qualificação da insolvência como culposa, ainda a demonstração de que tais atuações causaram e agravaram a situação de insolvência;

- Atento o exposto, a presunção ínsita nas alíneas a) e b) foram em qualquer caso ilididas, inexistindo culpa grave do ora recorrente, pelo que também neste particular a sentença recorrida enferma de manifestos erros de julgamento;

- A sentença sob recurso considerou que:” não resulta (…)”;

- A decisão recorrida não fez o correto enquadramento fatual e jurídico da situação, tendo aplicado norma jurídica que na sua previsão não comtempla a situação em causa, sendo certo que para o mesmo circunstancialismo de facto e para a mesma conduta omissiva, subsume essa conduta simultaneamente na previsão da alínea h) e na alínea i) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o que configura um manifesto erro de julgamento;

- A previsão da alínea h) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que qualifica como culposa a insolvência quando os seus administradores de facto ou de direito, tenham “incumprido (…)”, não tem aplicação in casu quanto à falta de apresentação dos mapas contabilísticos da insolvente;

- A gerência da insolvente manteve sempre uma contabilidade organizada, elaborada por um Técnico Oficial de Contas, que testemunhou em audiência, sendo certo que não foi alegada ou provada a existência de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade, situações graves que merecem o enquadramento legal previsto na referida alínea h) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que não se verificaram no caso em apreço;

- A situação da não apresentação dos mapas de imobilizado e de clientes do ano de 2011, que não dos anos anteriores que constam das contas depositadas na competente conservatória do registo comercial, só pode ser subsumível na previsão da alínea b) do nº 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pois tais mapas contabilísticos integram as contas anuais de uma sociedade comercial;

- A decisão recorrida enquadra esta situação na parte final da alínea h) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, concluindo tratar-se de “irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”;

- Estando o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, de que tais mapas contabilísticos fazem parte, expressamente previsto na alínea b) do nº 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e não resultando dos factos provados que tal situação determinou um prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente, evidente se torna que esta omissão deverá ser analisada unicamente à luz do disposto no artigo 186.º, nº 3, b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

- A falta de um simples mapa contabilístico das contas da sociedade não pode ser subsumível uma irregularidade com prejuízo relevante pra a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, mas no âmbito da obrigação de elaborar contas anuais de que tais mapas fazem parte, razão pela qual o seu enquadramento tem de ser feito à luz do disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

- Levando ao absurdo a tese sufragada na sentença recorrida, seria mais gravosa a falta de apresentação de um mapa contabilístico enquadrável nesta tese na alínea h) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, do que a falta de elaboração da totalidade das contas anuais que, como vimos, tem a sua previsão na alínea b) do nº 3 da aludida norma do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

- Se o legislador pretendesse que tal omissão constituísse uma presunção iuris et de iure teria previsto a mesma expressamente no nº 2 do mesmo artigo, o que não sucedeu;

- É certo que o artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, após a enunciar, no seu nº 1 os elementos constitutivos da situação de insolvência culposa, descreve, no seu nº 2, comportamentos dos administradores do devedor que determinam sempre a qualificação da insolvência como culposa;

- No caso em apreço é manifesto que tal não se verificou, nem resulta da factualidade assente, e assim sendo, estamos na presença de uma mera conclusão sem apoio em factos de onde se possa extrair que a falta de dois mapas contabilísticos em toda a contabilidade da insolvente constitui um prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

- Atento o exposto, não se verifica a situação jurídica tipificada na alínea h) do nº 2 do artigo 186.º, não podendo a insolvência ser qualificada como culposa com este fundamento, pelo que, também, por este motivo a sentença sob recurso enferma de manifesto erro de julgamento;

- A fls. 13 e 14 da sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou que “também (…)”;

- Também neste particular a sentença recorrida enferma de erros de julgamento, tendo retirado da factualidade assente ilações manifestamente abusivas da conduta do ora apelante enquanto gerente da insolvente;

- Em primeiro lugar, a sentença sob recurso faz uma errada aplicação das normas ínsitas nas alíneas h) e i) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pois, para o mesmo circunstancialismo de facto e para a mesma conduta omissiva – não apresentação de dois mapas contabilísticos –, subsume essa conduta simultaneamente na previsão da alínea h) e na alínea i) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o que configura um manifesto erro de julgamento;

- A situação de não apresentação dos mapas de imobilizado e de clientes do ano de 2011, que não dos anos anteriores que constam das contas depositadas na competente conservatória do registo comercial, só pode ser subsumível na previsão da alínea b) do nº3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pois tais mapas contabilísticos integram as contas anuais de uma sociedade comercial;

- Contrariamente ao que sem fundamento a sentença recorrida considera, a insolvente, na pessoa do seu gerente, não incumpriu qualquer dever de apresentação e colaboração desde logo porque o ora apelante apenas foi nomeado como gerente em 04 de Junho de 2012, ou seja poucos meses antes da declaração de insolvência da sociedade;

- Resulta, igualmente, provado nos autos que o ora apelante assim que conseguiu reunir a documentação contabilística da insolvente, de imediato diligenciou pelo seu envio ao Administrador da Insolvência;

- Isto mesmo é confirmado pelo Administrador da Insolvência quando no seu parecer, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, refere, além do mais, o seguinte: g) Por outro lado, notificada pelo AI para o efeito, veio a Insolvente remeter parte dos elementos previstos no art. 24.º do CIRE, h), pelo que, salvo melhor opinião, não poderá considerar-se ter existido falta de colaboração”;

- De igual modo, perante os factos dados como assentes sob os nºs 18 a 22, nunca a conduta do ora apelante poderia ser enquadrada na norma da alínea i) do nº 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; ou seja, a insolvente, na pessoa do seu gerente, remeteu ao Administrador da Insolvência todos os elementos então disponíveis, inexistindo, por isso, incumprimento do dever de apresentação e colaboração previsto no artigo 186.º, nº 2, alínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

- Acresce que a sentença sob recurso ao aplicar a norma do artigo 186.º, nº 2, alínea i) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não atendeu a um elemento essencial constante da previsão da norma, ou seja, o caráter reiterado do incumprimento dos deveres nela previstos;

- Em segundo lugar, em relação à prestação de informações por parte do ora apelado, sobre o paradeiro e localização de veículos automóveis da insolvente, o que resulta é que este prestou as informações de que dispunha, logo que para tanto foi notificado;

- A insolvente, na pessoa do seu gerente, e ora apelante, não incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo certo que a situação sub judice não se enquadra na previsão da aludida norma, pelo que também nesta medida, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento;

- A sentença sindicada na presente apelação decidiu “qualificar (…)”;

- Da factualidade supra descrita, bem como de todos os elementos de prova carreados para os autos podemos concluir, em síntese, o seguinte: o ora apelante apenas exerceu a gerência da insolvente, cerca de dois meses, se considerarmos o segundo pedido de apresentação à insolvência; nesse período, o ora apelante mais não fez do que tentar renegociar a dívida com o maior credor da insolvente (… - Sociedade … de Cervejas e Bebidas, SA) e apresentar a empresa à insolvência; nesse período, colaborou com o Administrador da Insolvência nomeado, “pelo que salvo melhor opinião, não poderá considerar-se ter existido falta de colaboração” e deu conhecimento do paradeiro dos veículos automóveis da insolvente;

- Resulta também assente que a insolvente não procedeu ao depósito das contas relativo ao exercício de 2011, período em que o ora apelante não era gerente e não foram apresentados dois mapas contabilísticos do conjunto de toda a contabilidade da insolvente;

- É apenas com base nestes dois simples factos que a sentença sob recurso, para além de qualificar a insolvência como culposa, determina a afetação dos seus efeitos ao ora apelante, bem como: (…);

- Do confronto entre a atuação do apelante, enquanto gerente da insolvente, e a sua condenação nos presentes autos resulta com meridiana clareza que a sentença recorrida ao aplicar ao caso sub judice as normas dos artigos 186.º e 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas violou frontalmente os princípios da igualdade, proporcionalidade e da justiça, constitucionalmente consagrados;

- A decisão recorrida violou frontalmente os princípios da igualdade, proporcionalidade e da justiça, pois impôs ao ora apelante um sacrifício injusto e desproporcionado, na medida em que, face ao curtíssimo período de tempo que o apelante exerceu a gerência da insolvente e durante o qual cumpriu os seu deveres é condenado a (….);

- A decisão recorrida considerou que os prejuízos causados pela conduta do ora apelante – não ter procedido ao depósito das contas relativas ao exercício de 2011, período em que o ora apelante não era gerente, e não terem sido apresentados dois mapas contabilísticos do conjunto de toda a contabilidade da insolvente – é no montante dos créditos reclamados, ou seja, € 3.392.040,17;

- Considerando que os créditos reconhecidos serão de montante semelhante ao valor supra referido, é manifesto que esta condenação do apelante se traduz em concreto, na privação para este de todo e qualquer rendimento ou património atual ou futuro pondo em causa a sua subsistência económica o que também consubstancia uma frontal violação dos princípios constitucionais já referidos;

- De salientar que de acordo com o disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, “o juiz (….)”;

- A sentença sob recurso considerou o ora apelante “o único culpado pela qualificação da insolvência como culposa”, sem curar de fundamentar, averiguar e identificar, como determina o preceito citado, todos os potenciais afetados pela qualificação, o que constitui uma clara violação do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e se traduz de forma evidente na violação do principio da igualdade;

- Face ao exposto, podemos concluir que a sentença recorrida violou os princípios fundamentais da igualdade, proporcionalidade e da justiça, constitucionalmente consagrados (artigos 13.º, 18.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa), tendo ainda violado o disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 198.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

- O artigo 189.º, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, reportado à condenação dos afetados pela qualificação como culposa determina que “ao aplicar (…)”;

- A sentença recorrida considerou neste particular que “quanto à (…)”;

- No ponto 4 da parte decisória da sentença foi determinada a condenação do ora apelante “a, com o seu (…)”;

- A decisão recorrida viola claramente o disposto no nº 4 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pois não quantifica o valor dos créditos reconhecidos, apenas referindo o montante dos créditos reclamados sobre a massa insolvente, mas condena o ora apelante na indemnização correspondente aos créditos reconhecidos, não sendo determinado o quantum indemnizatório;

- Não podendo quantificar o montante da condenação, teria a decisão sob recurso de indicar apenas “os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença”, pelo que ao não fixar em concreto o quantum indemnizatório, nem os critérios para a sua quantificação em liquidação de sentença a decisão sob recurso enferma de erro de julgamento, tendo violado o disposto no artigo 189.º, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Termos em que deverá ser declarada a nulidade da sentença ou, pelo menos, revogada e, em consequência, qualificada a insolvência de fortuita e, caso assim não se entenda, nunca o apelante ser afetado pelos seus efeitos.

Contra-alegou a requerente “(…) Sociedade (…) de Cervejas e Bebidas, S.A.”, manifestando-se pela manutenção do decidido.


Face às conclusões das respectivas alegações, o objecto do recurso circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: a) a alegada ininteligibilidade da sentença, por ambiguidade ou obscuridade, com a consequente nulidade; b) o invocado erro na aplicação do direito aos factos.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.




Fundamentação


A - Os factos


Na sentença recorrida, foi considerado provado o seguinte quadro factual:

- “(...), Lda.” foi constituída em 16 de Abril de 1994, com sede na Estrada do (…), em (…), tendo por sócios (…) e (…), sendo este último o gerente único;
- Em 05 de Agosto de 2001, o gerente antes referido renunciou ao cargo e foi nomeada gerente (…);
- Em 16 de Dezembro de 2001, a totalidade das quotas foram transferidas para “(…), SGPS, SA”;
- (…) renunciou ao cargo de gerente em 04 de Junho de 2012;
- Tendo, para o exercício do mesmo, sido nomeado (…);
- Pese embora a gerência de facto fosse exercida conjuntamente com (…);
- Em 01 de Agosto de 2012, a empresa alterou a morada da sua sede para (…), para a Estrada de (…), antiga Fábrica das (…);
- Mantendo-se a sede, de facto, em (…);
- Em 2012, a “(…), Lda.” não procedeu ao depósito das contas, relativo ao exercício de 01 de Janeiro de 2011 a 31 de Dezembro de 2011;
- A “(…), Lda.”, com sede em (…), na Estrada de (…), antiga Fábrica das (…), intentou, em 09 de Janeiro de 2013, os autos principais de insolvência, requerendo, a final, que a “(…), Lda.” fosse declarada insolvente;
- A “(…), Lda.” foi declarada insolvente, por sentença proferida nos autos principais, em 18 de Fevereiro de 2013, da qual consta, além do mais: fixação da residência ao gerente da insolvente, a qual corresponde à morada em que o mesmo foi citado pra os termos da ação; a apreensão imediata, para entrega ao Exmo. Administrador da Insolvência, de todos os elementos de contabilidade da insolvente e de todos os seus bens; e designação da realização da Assembleia de Credores para o dia 22 de Abril de 2013;
- (…) foi notificado de tal sentença, por carta pelo mesmo recebida, em 22 de Fevereiro de 2013;
- Antes da realização da Assembleia de Credores, o Exmo. Administrador da Insolvência deslocou-se à sede legal da insolvente, nada tendo encontrado nesse local que respeitasse à insolvente;
- Do relatório a que alude o artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Exmo. Administrador da Insolvência faz constar a seguinte informação: “Apesar de ter diligenciado para o efeito (Vide Docs. I e II, não logrou o Administrador apreender os elementos contabilísticos da insolvente e, designadamente, nenhum documento que permitisse proceder à análise dos elementos previstos na al. c) do nº 1, do artigo 24.º do CIRE: atividade(s) desenvolvida(s) pelo insolvente nos 3 anos, estabelecimento(s) de que seja titular, bem como causa(s) da situação em que se encontra.(…) Consequentemente, não pode o administrador proceder à análise da contabilidade do insolvente, não podendo pronunciar-se nos termos previstos na alínea b) do nº 1 do art. 155.º do CIRE”;
- O anexo I referido no artigo anterior é uma carta dirigida à insolvente peticionando os documentos e informações supra referidas;
- Tal carta foi devolvida por não ter sido reclamada;
- E o anexo II é uma carta dirigida a (…), na qualidade de representante legal da insolvente, expedida para a morada da citação e fixada como sua residência na sentença que declarou a insolvência, peticionando os documentos e informações supra referidas;
- Tal carta foi recebida pelo respetivo destinatário;
- Tendo (…) contactado o TOC da insolvente, no sentido de fazer chegar ao mandatário da insolvente tais documentos;
- O TOC procedeu ao envio dos documentos contabilísticos de que dispunha, em 22 de Abril de 2013;
- Momentos antes da Assembleia de Credores, a insolvente, por intermédio do seu mandatário, entregou ao Exmo. Administrador da Insolvência os elementos contabilísticos, com exceção dos mapas dos imobilizados e dos mapas de clientes e fornecedores;
- Documentos esses que ainda não foram entregues ao Exmo. Administrador;
- Em sede de Assembleia de Credores, o Administrador da Insolvência alterou a proposta anteriormente apresentada – encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente – pronunciando-se pelo prosseguimento dos autos para liquidação do ativo;
- Proposta esta que foi aprovada por unanimidade;
- (…) não compareceu na Assembleia de Credores, nem se fez representar;
- Constituiu mandatário, em 08 de Maio de 2014;
- Nunca contactou o Exmo. Administrador da Insolvência;
- Em 10 de Janeiro de 2014, no âmbito do apenso de liquidação do ativo (apenso E) foi expedida carta a (…), para a morada fixada na sentença, a fim de indicar o paradeiro dos veículos automóveis pertencentes à insolvente;
- A qual foi devolvida por não ter sido reclamada;
- Posteriormente, a 19 de Fevereiro de 2014, foi determinada a repetição de tal notificação, por via postal simples;
- Não tendo o (…) cumprido o determinado;
- Pelo que, em 07 de Abril de 2014, foi determinada a repetição da notificação, por contacto pessoal, com a cominação de condenação em multa;
- Tendo (…) informado, a 8 de Maio de 2014, o paradeiro de duas viaturas, designadamente na Quinta das (…), informando desconhecer o paradeiro das restantes;
- Em sede de declarações afirmou que, no local em questão, Quinta das (…), encontravam-se quatro veículos, propriedade da insolvente;
- Quando iniciou funções como gerente, (…) tentou renegociar a dívida existente com a requerente;
- Em 02 de Agosto de 2012, a insolvente apresentou-se à insolvência, no processo nº …/12.1TBEVR, que correu termos neste 1º juízo cível do Tribunal Judicial de Évora, tendo tal pedido sido indeferido liminarmente, por sentença proferida em 6 de Setembro de 2012, com fundamento no incumprimento parcial do anterior despacho de aperfeiçoamento proferido nesses autos, na medida em que não juntou petição inicial aperfeiçoada.

B - O direito


Quanto à alegada ininteligibilidade da sentença, por ambiguidade ou obscuridade, e consequente nulidade


- Quando “a sentença enferma de vício lógico que a compromete”[1] ou, por outras palavras, se entre os fundamentos e decisão existir “contradição lógica”[2] a mesma é nula; é igualmente nula a sentença difícil de entender, confusa e ou que tenha mais que em sentido[3];


- Quando o juiz escreve coisa diversa “do que queria escrever, quando o teor da sentença (…) não coincide com o que tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real” e se retire “do próprio contexto da sentença” que “quis escrever uma coisa, e escreveu outra”, nada obsta que o juiz corrija o lapso[4].


Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos


- Na interpretação da lei, o intérprete não pode esquecer “os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar, e que constituem a sua razão de ser” ou, noutras palavras, “o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar”; além disso, a lei a interpretar tem de ser vista no âmbito da “disciplina jurídica em que ela está inserida”, e não isoladamente, uma vez que “a relevância de um interesse é sempre medida e condicionada pela relevância reconhecida a outros interesses”; ao intérprete é, finalmente, exigido que “atenda, por um lado às circunstâncias em que foi elaborada, e por outro às condições específicas do tempo em que é aplicada, isto é, que a interpretação seja coerente com o sistema de valores que a comunidade aceita como fundamento da própria convivência”[5];


- “A quem invoca um direito em juízo incumbe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer o facto seja positivo ou negativo. A parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito”. Porém, “ umas vezes é a lei que presume certo facto contra o demandado. Quando assim seja, não é a parte (autor) a quem o facto aproveita (por ser pressuposto da norma em que a pretensão se funda) quem tem de provar a existência dele; é a parte (réu) a quem o facto (presumido) prejudica quem tem de provar a sua inexistência”. Em caso de dúvida insanável “sobre a verificação de factos essenciais ao julgamento da ação”, deve o juiz decidir “contra a parte a quem incumbe o ónus da prova desse facto”[6];


- A qualificação da insolvência como culposa pressupõe que a atuação dos administradores, dolosa ou com culpa grave, tenha não só ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, como também tenha criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. Ou seja: para a qualificação da insolvência como culposa, importa que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito que: a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência; b) essa conduta seja dolosa ou com culpa grave; c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo[7];


- A lei instituiu “uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário” [8];


- Consagrou, também, “uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração (…) que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta[9];


- Uma das presunções iuris et de jure coincide com incumprimento, “em termos substanciais”, da obrigação de manter uma contabilidade organizada, com a adoção de uma contabilidade aparente ou uma dupla contabilidade ou com a prática de ato contrário à lei, com prejuízo importante, para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor[10];


- Uma outra traduz-se no incumprimento, de forma repetida, dos deveres de apresentação e de colaboração, até à elaboração, pelo administrador da insolvência, do parecer consagrado na tramitação do incidente pleno de qualificação da insolvência [11];


- Por outro lado, constitui presunção de culpa grave, mas não também de causalidade em relação à situação de insolvência, o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial[12];


- Em princípio, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas devem se apresentadas ao órgão competente e por este apreciados, nos prazos de 3 ou 5 meses, a contar da data do encerramento do exercício anual, que corresponde, em regra, ao ano civil[13];


- A informação respeitante às contas do exercício e aos demais documentos de prestação de contas, devidamente aprovados, está sujeita a registo comercial[14];


- A sentença de qualificação da insolvência como culposa tem “como consequência civil a inibição para a administração de patrimónios alheios, bem como a inibição para o exercício do comércio ou para ser titular de órgão de pessoa coletiva, prevendo-se ainda a perda dos créditos sobre a insolvência e da condenação solidária das pessoas afetadas a indemnizar os credores do insolvente” [15];


- “A figura do abuso de direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar, indissoluvelmente ligado, à aplicação do direito e dentro da máxima “perde o direito quem dele abusa” e em oposição ao velho adágio romano “qui suo jure utitur neminem laedit” [16]; por outras palavras: “O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira “válvula de segurança” vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer ato ilícito” [17]; por outras palavras ainda: existe abuso do direito “(…) quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apoditicamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado” [18].


C - Aplicação do direito aos factos


Quanto à alegada ininteligibilidade da sentença, por ambiguidade ou obscuridade, e consequente nulidade


Regra geral, o recurso de uma sentença de mérito começa com a arguição da sua nulidade.


O recorrente (…) não fugiu à regra, uma vez que a arguiu, a pretexto da sua a ininteligibilidade, por ambiguidade ou obscuridade.


Sem razão. Na verdade, a leitura da sentença objeto de recurso permite concluir, tão-somente e com segurança, que o Tribunal recorrido, na parte decisória, em vez de fixar em cinco anos o período inibição do dito apelante, escreveu, por lapso, sete anos.


Com exceção desta circunstância, a sentença recorrida não é difícil de entender, nem encerra mais que um sentido.


Não ocorre, pois, a nulidade suscitada.


Entretanto, o referido lapso foi, legalmente, corrigido.


Improcede, assim, este segmento da apelação.


Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos


O Tribunal recorrido qualificou a insolvência da requerida “(…) – Comércio e Distribuição de Bebidas, Lda.”, como culposa, por entender verificadas as situações consagradas no artigo 186.º, nºs 2, h) e i) e 3, b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.


Para o efeito, socorreu-se, nomeadamente, das seguintes circunstâncias de facto: (…) renunciou ao cargo de gerente em 04 de Junho de 2012, tendo, para o exercício do mesmo, sido nomeado o recorrente (…); em 2012, a “(…), Lda.” não procedeu ao depósito das contas, relativo ao exercício de 01 de Janeiro de 2011 a 31 de Dezembro de 2011; a “(…), Lda.” foi declarada insolvente, por sentença proferida nos autos principais, em 18 de Fevereiro de 2013, designando-se a realização da Assembleia de Credores para o dia 22 de Abril de 2013; o gerente/recorrente (…) foi notificado de tal sentença, por carta recebida pelo mesmo em 22 de Fevereiro de 2013; antes da realização da Assembleia de Credores, o Exmo. Administrador da Insolvência deslocou-se à sede legal da insolvente, nada tendo encontrado nesse local que respeitasse à insolvente; do relatório a que alude o artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Exmo. Administrador da Insolvência faz constar a seguinte informação: “Apesar de ter diligenciado para o efeito (Vide Docs. I e II), não logrou o Administrador apreender os elementos contabilísticos da insolvente e, designadamente, nenhum documento que permitisse proceder à análise dos elementos previstos na al. c) do nº 1, do art. 24º.do CIRE: atividade(s) desenvolvida(s) pelo insolvente nos 3 anos, estabelecimento(s) de que seja titular, bem como causa(s) da situação em que se encontra.(…) Consequentemente, não pode o administrador proceder à análise da contabilidade do insolvente, não podendo pronunciar-se nos termos previstos na alínea b) do nº 1 do art. 155.º do CIRE”; o anexo II é uma carta dirigida a (…), na qualidade de representante legal da insolvente, expedida para a morada da citação e fixada como sua residência na sentença que declarou a insolvência, peticionando os documentos e informações supra referidas; tal carta foi recebida pelo respetivo destinatário; tendo (…) contactado o TOC da insolvente, no sentido de fazer chegar ao mandatário da insolvente tais documentos; o TOC procedeu ao envio dos documentos contabilísticos de que dispunha, a 22 de Abril de 2013; momentos antes da Assembleia de Credores, a insolvente, por intermédio do seu mandatário, entregou ao Exmo. Administrador da Insolvência os elementos contabilísticos, com exceção dos mapas dos imobilizados e dos mapas de clientes e fornecedores; documentos esses que ainda não foram entregues ao Exmo. Administrador; em 10 de Janeiro de 2014, no âmbito do apenso de liquidação do ativo (apenso E) foi expedida carta a (…), para a morada fixada na sentença, a fim de indicar o paradeiro dos veículos automóveis pertencentes à insolvente; a qual foi devolvida por não ter sido reclamada; posteriormente, a 19 de Fevereiro de 2014, foi determinada a repetição de tal notificação, por via postal simples; não tendo o (…) cumprido o determinado; pelo que, a 7 de Abril de 2014, foi determinada a repetição da notificação, por contacto pessoal, com a cominação de condenação em multa; tendo (…) informado, em 8 de Maio de 2014, o paradeiro de duas viaturas, designadamente na Quinta das (…), informando desconhecer o paradeiro das restantes, em sede de declarações afirmou que, no local em questão, Quinta das (…), encontravam-se quatro veículos, propriedade da insolvente; quando iniciou funções como gerente, (…) tentou renegociar a dívida existente com a requerente; em 2 de Agosto de 2012 a insolvente apresentou-se à insolvência, no processo nº 1774/12.1 TBEVR, que correu termos neste 1º juízo cível do Tribunal Judicial de Évora, tendo tal pedido sido indeferido liminarmente, por sentença proferida em 6 de setembro de 2012, com fundamento no incumprimento parcial do anterior despacho de aperfeiçoamento proferido nesse autos, na medida em que não juntou petição inicial aperfeiçoada.


Relativamente ao fundamento consagrado na alínea h), o juízo de insolvência culposa foi alicerçado no facto de o requerido/recorrente (…), “não obstante notificado para o efeito”, não ter entregue ao Administrador da Insolvência, “até há data, os mapas de imobilizado e dos mapas de clientes e fornecedores”, praticando, em consequência, “uma irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora.”


A referida alínea consagra a relevância jurídica, para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, da contabilidade da devedora.


Ora, uma coisa é a contabilidade organizada e outra a não entrega ao Administrador da Insolvência de documentos contabilísticos (mapas). Apenas os vícios da contabilidade relevam para efeito em causa e não as omissões do gerente, o recorrente (…). O elemento sistemático aponta neste sentido.


Acresce que encontrando-se já decretada a insolvência da requerida “(…) – Comércio e Distribuição de Bebidas, Lda.”, a sua situação patrimonial e financeira era, no essencial, já conhecida.


Assim sendo, os factos dados assentes não permitem concluir pela verificação da alínea h) do artigo 186.º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.


No que concerne ao fundamento da alínea i), o juízo de insolvência culposa fundamentou-se na já referida não entrega ao Administrador da Insolvência “dos mapas dos imobilizados e dos mapas de clientes e fornecedores” – obrigação que impedia “sobre o gerente não sobre a pessoa na qual este decide delegar as responsabilidades que são suas” – e na circunstância de “só quando, pela segunda vez, e com a cominação de multa foi notificada para informar o paradeiro (dos veículos da insolvente), veio o requerido fazê-lo e apenas parcialmente”.


Percorrendo o rol dos factos provados, verifica-se que o recorrente (…), após lhe terem sido peticionados os elementos contabilísticos da insolvente, contactou o seu Técnico Oficial de Contas, que procedeu ao envio dos documentos de que dispunha, que fez chegar ao Administrador da Insolvência, com exceção dos mapas antes mencionados, antes da assembleia de credores.


Por outro lado, ocorre também, que, à terceira notificação (e não à segunda), o dito recorrente/gerente procedeu à indicação, pelo menos parcial, do paradeiro dos já identificados veículos da insolvente.


É, pois, possível concluir que, por parte do recorrente (…), não ocorreu um incumprimento, de forma persistente, do dever de colaboração. Colaborou, sim, com o Administrador da Insolvência, com algum atraso e na medida do que lhe era possível, atentas as circunstâncias em que assumiu a direcção da devedora “(…) – (…) e Distribuição de Bebidas, Lda.” – quando esta se encontrava, já, na antecâmara da insolvência, com a consequente necessidade de negociar dívidas e provável apresentação à insolvência, face ao insucesso das negociações, tendo como pano de fundo a inexistência de recursos financeiros para pagamento de serviços de técnicos, nas áreas do direito e da contabilidade.


Não se verifica, assim, a facticidade consagrada na alínea i) do antes citado normativo.


Quanto ao fundamento consagrado na alínea b) do nº 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não subscreve esta Relação o juízo do Tribunal recorrido, pelas seguintes razões: quando o recorrente (…) iniciou as suas funções de gerente da dita devedora, o prazo para apresentação das contas referentes a 2011 encontrava-se já ultrapassado; a não elaboração das contas anuais constitui apenas uma presunção de culpa grave, mas não também de causalidade em relação à situação de insolvência; como tal, competia à credora requerente do incidente a prova da citada causalidade, o que não se verificou.


Porém, mesmo que, face aos factos apurados, se entenda verificados os pressupostos para declarar a insolvência da referenciada como culposa, a consequente afectação do gerente/recorrente (…) constituiria uma situação de grave injustiça, ofensiva do sentimento de justiça dominante, justificadora do recurso à “válvula de segurança” do abuso de direito, com a consequente perda do direito. Efectivamente, não só (…) – de início (de Abril de 1999 a Maio de 2011) gerente de direito e, depois, de facto (pelo menos, de 04 de Junho de 2012 até à declaração da insolvência, que ocorreu em Janeiro de 2013) – foi excluído, pela requerente do incidente, a credora “(…) – Sociedade Central de Cervejas e Bebidas S.A.”, do rol das pessoas afetadas pela qualificação, como também o recorrente – gerente recém-chegado (em 04 de Junho de 2012) –, que promoveu, dois meses depois do início do exercício das suas funções, a apresentação da devedora à insolvência, não contribuiu, com a sua conduta, certamente, para a impossibilidade da requerida “(…) Comércio e Distribuição de Bebidas, Lda.” cumprir as suas obrigações ou para o seu agravamento.


Pelo exposto, procede esta parte da apelação.


Em síntese[19]: uma coisa é a contabilidade organizada e outra a omissão do gerente na entrega ao administrador da insolvência de documentos (mapas contabilísticos); como tal, a alínea h), parte final, do nº 2, do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não contempla a antes referida não entrega; a não elaboração das contas anuais (alínea b), do nº 3 do mesmo normativo) constitui apenas uma presunção de culpa grave, mas não também de causalidade em relação à situação de insolvência; como tal, compete ao credor requerente do incidente de qualificação a prova da citada causalidade; a afetação de consequências civis a um gerente que assumiu a direção da devedora/insolvente apenas cerca de dois meses antes de promover a sua apresentação à insolvência e que não contribuiu, com a sua conduta, para ao impossibilidade da sua representada cumprir as suas obrigações, conjugada com a circunstância de o gerente de facto ter sido excluído pelo credor requerente do incidente de qualificação da insolvência, constitui uma situação de grave injustiça, ofensiva do sentimento de justiça dominante, justificadora do recurso à “válvula de segurança” do abuso de direito, com a consequente perda do direito.





Decisão


Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, julgando, neste parte, procedente a apelação revogar a sentença recorrida.


Custas pela requerente do incidente.


Évora, 12 de Março de 2015


Sílvio José Teixeira de Sousa


Rui Machado e Moura


Maria da Conceição Ferreira


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[1] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, pág. 141.


[2] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 704.


[3] Artigo 615.º, c) do Código de Processo Civil.


[4] Artigo 614.º, nº 1 do Código de Processo Civil e Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, págs. 130 e 131.


[5] Artigo 9.º, nº 1 do Código Civil e Jacinto Fernandes Rodrigues Basto, in Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 39.


[6] Artigos 342.º, nºs 1 e 2 e 344.º, nº 1 do Código Civil e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, págs. 450, 452 e 465.


[7] Artigo 186.º, nº 1 do CIRE, Luís A. Carvalho Fernandes / João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação e Empresas Anotado, vol. II, pág. 14 e Acórdãos da Relação de Guimarães de 11 de Janeiro de 2007 e 20 de Setembro de 2007 e da Relação do Porto de 13 de Setembro e 25 de Outubro de 2007, in www.dgsi.pt..


[8] Luís Manuel Teles Menezes Leitão, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2012, 6ª edição, pág. 187, e artigo 186.º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.


[9] Luís Manuel Teles Menezes Leitão, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2012, 6ª edição, pág. 187, e artigo 186.º, nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.


[10] Artigo 186.º, nº 2, h) do Código da Insolvência e da Recuperação e Empresas.


[11] Artigo 186.º, nº 2, i) do Código da Insolvência e da Recuperação e Empresas.


[12] Artigo 186.º, nº 3, b) do Código da Insolvência e da Recuperação e Empresas.


[13] Artigos 9.º, nº 1, i) e 65.º, nº 5 do Código das Sociedades Comerciais.


[14] Artigo 70.º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.


[15] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 6ª edição - 2012, pág. 191, e artigo 189.º, nº 2 do mesmo diploma.


[16] Acórdão do STJ de 18 de Março de 2010 (processo nº 387/1993.S1), in www.dgsi.pt..


[17] Acórdão do STJ de 16 de Dezembro de 2010 (processo nº 1584/06.5 TBPRD.P1.S1), in www.dgsi.pt..


[18] Acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 2011 (processo nº 2/08.9 TTLMG.P1.S1), in www.dgsi.pt. e artigo 334.º do Código Civil.


[19] Artigo 663.º, nº 7 do Código de Processo Civil.