Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
25/16.4 T8PTG-A.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: EXECUÇÃO
DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DE IMÓVEL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: I. O diferimento de desocupação previsto nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC constitui um meio de tutela excepcional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada (e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5, do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente à massa insolvente ou ao adquirente).
II. A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação, quer por via da analogia, quer do recurso a interpretação extensiva, a outras situações que não as especificamente previstas.
iii. Pese embora a diversidade de soluções que o legislador ordinário, no seu poder de conformação à lei constitucional, entendeu consagrar, não deixou ainda assim de tutelar o direito à habitação (com assento no art.º 65.º da CRP[6]) do executado que vê ser vendida a casa onde reside habitualmente, quer por via da vinculação do Sr. agente de execução à comunicação prévia prevista no n.º 6 do referido art.º 861.º, quer pela via da suspensão da execução nos casos prevenidos nos n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 863.º antes citados.
iv. Assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares, pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 25/16.4 T8PTG-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre
Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre – Juiz 3

(…)
Afigurando-se que o recurso é manifestamente infundado, vindo a questão colocada a ser decidida de forma, tanto quanto se conhece, uniforme, autorizada pelo disposto no art.º 656.º do CPC, passo a proferir decisão sumária.

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I. Relatório
(…), executada nos autos principais, neles requereu, ao abrigo do disposto no art.º 864.º, n.º 1, do CPC, a prorrogação do prazo para entrega do imóvel penhorado e adjudicado à exequente, tendo alegando para tanto que aí reside com o marido e a filha menor do casal, não dispondo de outra casa para onde se mudar, nem de meios para o obter, encontrando-se doente desde 2003, o que obriga à toma diária de medicamentos, sendo a menor acompanhada em consulta de psiquiatria juvenil, receando que a consumar-se a desocupação tal provoque um agravamento do estado de saúde de ambas.
A exequente/adjudicatária pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido.
Foi então proferido despacho que, na consideração de que era aplicável ao caso o disposto no art.º 863.º do CPC, nos seus n.ºs 3, 4 e 5, não se encontrando verificados os pressupostos exigidos, indeferiu o requerido, determinando a entrega do imóvel à exequente no prazo de 10 dias.
Inconformada, apelou a requerente e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª Por força do disposto no art.º 574.º, n.º 2, do CPC, devem considerar-se admitidos por acordo os factos alegado pela executada, ora apelante, no requerimento inicial do incidente de diferimento da desocupação e, em consequência, serem os mesmos dados como provados;
2.ª O douto Tribunal “a quo” aplicou erradamente o disposto no art.º 863.º, n.º 3, do CPC;
3.ª O douto Tribunal não aplicou, devendo fazê-lo, o disposto no art.º 864.º do CPC;
4.ª Deverá ser considerado provado e procedente o incidente de diferimento da desocupação e conceder-se à apelante o prazo de 5 meses ou aquele que, no prudente critério de VV. Ex.ªs for considerado como adequado para a entrega da casa de morada de família da apelante, identificada no art.º 1.º do requerimento inicial de deferimento de desocupação.
A exequente/adjudicatária não contra alegou.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, cumpre decidir se a decisão recorrida errou, por errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 863.º, n.º 3, do CPC.
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II. Fundamentação
De facto
Pese embora a Mm.ª juíza se tenha indevidamente abstido de elencar a matéria de facto relevante para a decisão, não tendo sido impugnada a alegada pela recorrente no requerimento apresentado, a dar lugar à aplicação do art.º 567.º, n.º 1, ex vi do disposto nos art.ºs 732.º, n.º 3 e 293.º, n.º 3, todos do CPC[1], e atendendo ainda aos documentos constantes dos autos, que também não foram objecto de impugnação, encontram-se provados nos autos com relevância os seguintes factos:
1. Nos autos principais foi penhorado o imóvel sito no Bairro da (…), Rua (…) – Lote 36, no Crato, descrito na CRP do Crato sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana na União das Freguesias de Crato e Mártires, Flor da Rosa e Vale do Peso, sob o art.º (…).
2. O imóvel identificado em 1 é, desde há mais de 20 anos, a casa de morada de família da requerente.
3. A requerente casou com (…) em 17 de Outubro de 1998.
4. (…) nasceu em 1 de Março de 2002 e é filha da requerente e do seu cônjuge.
5. O marido da requerente encontra-se desempregado, não tendo bens nem rendimentos.
6. A menor filha do casal frequenta o 11.º ano de escolaridade, Curso de Ciências e Tecnologia, no Agrupamento de Escolas do (…), em Portalegre.
7. A menor iniciou acompanhamento na consulta de psiquiatria juvenil em 21.01-2019, apresentando quadro com sintomas ansiosos e depressivos de base multifatorial.
8. A requerente sofre de depressão crónica endo-reactiva desde 2003, tomando medicamentos com carácter de permanência.
9. Não é titular de bens para além do recheio da habitação.
10. Só com a ajuda de amigos e familiares tem conseguido fazer face às despesas.
11. A requerente não dispõe de outra casa para residir com a família.
12. Foi declarada insolvente por sentença proferida em 26/2/2019 no âmbito do processo 246/19.8 T8PTG que corre termos pelo 2.º juízo local cível de Portalegre.
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De Direito
Dos pressupostos do diferimento de desocupação da casa
A recorrente pretende ter ocorrido erro na definição das normas jurídicas aplicáveis, porquanto, tendo a Mm.ª juíza apreciado a sua pretensão e proferido decisão à luz do regime que emerge dos n.ºs 3 a 5 do art.º 863.º do CPC, aplicável ex vi do n.º 6 do art.º 861.º do mesmo diploma, suscitou antes o incidente de diferimento da desocupação de imóvel previsto no art.º 864.º, que defende ser o regime aplicável.
Todavia, e salvo melhor opinião, é a recorrente quem labora em erro.
Antes de mais, e ao invés do que parece pressupor, o incidente foi suscitado no âmbito do processo de execução, e não de insolvência, sendo certo que apenas neste se prevê que à desocupação da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente seja aplicável o regime específico consignado para a execução de despejo (cf. o art.º 150.º, n.º 5, do CIRE, na redacção introduzida pelo DL 79/2017, de 30 de Junho, que remete para o disposto no art.º 862.º, do que resulta a aplicação das normas do título IV, em que se insere, com as alterações constantes dos art.ºs 863.º e 864.º). Sucede, porém, que tanto quanto decorre dos presentes autos, o imóvel terá sido transmitido no âmbito do processo executivo antes do decretamento da insolvência, sendo portanto aplicável, se disso fosse caso, o disposto no n.º 2 do art.º 149.º do CIRE, sem que a entrega pudesse/devesse ter lugar no processo de insolvência.
Feito tal prévio esclarecimento, tendo o imóvel penhorado sido adjudicado à credora exequente, tem esta direito à entrega do bem na própria execução nos termos prescritos no art.º 861.º, devidamente adaptados.
Dispondo sobre a entrega da coisa prevê o mesmo art.º 861.º que, estando em causa a casa de habitação do executado e suscitando-se dificuldades sérias no realojamento deste, o agente de execução deve comunicar antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes (cf. n.º 6). Por força da remissão operada por este preceito é ainda possível suspender a execução quando, para além do mais que se prevê no art.º 863.º, se demonstre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve manter a suspensão, que a diligência põe em risco de vida pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda (vide n.º 4). Tal suspensão carece de ser confirmada pelo juiz a requerimento do detentor apresentado no prazo de 10 dias (cf. n.ºs 4 e 5) e após audição do exequente.
Diverso, como se disse, é o incidente de diferimento de desocupação do imóvel, que o legislador reservou ao arrendatário habitacional (e que a lei insolvencial importou em benefício do insolvente quando esteja em causa a casa de habitação onde resida habitualmente, cf. n.º 5 do art.º 150.º do CIRE), regulado nos art.ºs 864.º e seguintes.
A apelante, como se vê do teor das alegações, reconhecendo que os factos por si alegados não integram a previsão do artigo 863.º, sustenta que não requereu a suspensão da execução nos termos aqui previstos, mas antes o diferimento de desocupação do locado, incidente que pretende dirigido também ao executado não arrendatário quando está em causa a casa onde reside habitualmente, para o que se encontram reunidos os necessários pressupostos.
Não tem, porém, razão[2], uma vez que o legislador distinguiu deliberadamente as duas situações, confinando o incidente de diferimento às execuções para entrega de coisa imóvel arrendada, regime excepcional que não permite – nem a nosso ver existe identidade de situações que o justificasse – aplicação analógica, inexistindo do mesmo passo lacuna que importe o recurso à interpretação extensiva. Isso mesmo vem sendo decidido sem divergência, solução acolhida nos acórdãos do STJ de 17/3/2016, processo 217/09.2TBMBR-B.P1.S1, e do TRC de 15/11/2011, processo 5316/03.1TJCBR-B.C1, os quais, prolatados embora ao abrigo do CPC cessante, mantêm plena actualidade, uma vez que as soluções consagradas são idênticas no velho e no novo código; e já ao abrigo do novo CPC, os arestos do TRL de Ac. TRL de 12/7/2018, processo 719/17.7 T8OER-A.L1-7; do TRP de 18/12/2018, processo 2384/08.3TBMAI-B.P1; e do TRG de 21/3/2019, processo 153/15.3T8CHV-C.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt, para os quais se remete.
E compreende-se que assim seja, dadas as substanciais diferenças de uma e outra situações.
No que respeita à casa arrendada, o legislador impôs ao senhorio uma ultra vigência do contrato no pressuposto de que é esse o destino que pretende ainda dar ao imóvel e garantindo, pelo mecanismo de recurso ao Fundo de Socorro Social, o pagamento das rendas durante o período de deferimento. Trata-se, portanto, de uma compressão do direito de propriedade plenamente justificada pela necessidade de garantir o direito à habitação do inquilino que se encontra numa situação particularmente frágil, quer por razões económicas, quer de saúde (cfr. as als. a) e b) do n.º 2 do art.º 864.º).
Quanto ao insolvente, a quem o legislador entendeu estender tal benefício, visa em nosso entender garantir que dispõe de um prazo razoável para resolver a sua situação de carência habitacional -o que, via de regra, atenta a natureza urgente do processo insolvencial, não ocorrerá-, sendo certo que não basta a invocação de “razões sociais imperiosas” para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito. E tais pressupostos condicionantes terão de se verificar, nos termos da lei, na pessoa do insolvente (tal como ocorre com o arrendatário).
Diferente é, pois, a situação do executado, porquanto, uma vez instaurada a execução, deverá (terá que) contar com a previsível futura venda da casa de habitação que vier a ser penhorada (designadamente nos casos em que o credor tem o seu crédito garantido por hipoteca) devendo, consequentemente, procurar uma alternativa, com recurso, se necessário, a apoios sociais.
Pese embora a diversidade de soluções que o legislador ordinário, no seu poder de conformação à lei constitucional, entendeu consagrar, não deixou ainda assim de tutelar o direito à habitação (com assento no art.º 65.º da CRP[3]) do executado que vê ser vendida a casa onde reside habitualmente, quer por via da vinculação do Sr. agente de execução à comunicação prévia prevista no n.º 6 do referido art.º 861.º, quer pela via da suspensão da execução nos casos prevenidos nos n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 863.º antes citados. É que, conforme se teve já oportunidade de fazer notar[4], assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares (cf. n.ºs 2, 3 e 4 do preceito), pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes[5].
Improcedendo todos os argumentos do recurso, impõe-se manter a decisão recorrida.
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III. Decisão
Em face a todo o exposto, julgo improcedente o recurso, mantendo a decisão apelada.
Custas pela recorrente, sem benefício de eventual isenção que lhe tenha sido concedida.
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Sumário:
(…)
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Évora, 11 de Julho de 2019
Maria Domingas Alves Simões
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[1] Cfr., neste mesmo sentido, acórdão do TRC de 8 de Maio de 2018, no processo 320/17.5T8LSA.C1, acessível em www.dgsi.pt
[2] Para além do facto de o requerimento ser intempestivo à luz do que dispõe o n.º 1 do art.º 864.º, o que é fundamento de indeferimento liminar nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 865.º, ambos os preceitos do CPC.
[3] O preceito citado proclama no seu art.º 1.º que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
[4] Ac. do TRC de 17/1/2017, no processo 59/14.3 TBSCD-F.C1, relatado pela ora relatora.
[5] Cfr., neste sentido, ainda que a propósito da extensão do regime ao arrendatário rural que habita no prédio arrendado, o Acórdão do TC n.º 581/2014, de 17 de Setembro, processo n.º 650/12, no qual se refere que “O direito à habitação tem, assim, o Estado – e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios – como único sujeito passivo e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios”.
[6] O preceito citado proclama no seu art.º 1.º que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.