Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
26/21.0PHMTS.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: DIREITOS DE DEFESA DO ARGUIDO
DIREITO AO SILÊNCIO
DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
ESTATUTO PROCESSUAL DE ARGUIDO
DEPOIMENTO INDIRECTO
DECLARAÇÕES DO SUSPEITO
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Os artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP surgiram para evitar situações idênticas aos abusos perpetrados pela polícia política durante o regime ditatorial do Estado Novo, num tempo em que as declarações do, então, réu funcionavam como elemento probatório fundamental, ainda que obtidas de forma coerciva e discricionária, sendo utilizadas em audiência de julgamento mesmo quando o arguido, naquele momento processual, exercia o direito formal de não falar.
II. Os artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP visam, pois, impedir a subversão do princípio do direito ao silêncio do arguido e à sua não autoincriminação e como garantia do seu estatuto processual.
III. Assim, apesar de as verbalizações autoincriminatórias do suspeito deverem integrar um auto de notícia, e este segmento do auto não constituir prova proibida, quando aquele suspeito adquire o estatuto de arguido e exerce o correspondente direito ao silêncio o auto deixa de poder ser valorado naquela parte.
IV. Do mesmo modo se durante a audiência final o OPC (autuante ou não) depõe sobre o que ouviu dizer ao suspeito, que, entretanto, adquiriu a condição de arguido e este decidiu exercer o direito ao silêncio em julgamento, como ocorreu no caso, passa a existir uma proibição de valoração daquela prova (“verbalização” do arguido), na formação da convicção do tribunal.
V. Daí o Tribunal de julgamento ter de expurgar das provas valoráveis a parte do depoimento dos OPC no segmento em que incorpora as declarações de pessoa que vem a ocupar no processo a posição de arguido, pois aquele depoimento de ouvir dizer ao suspeito, durante uma busca, não pode contribuir para a condenação do arguido, que se reservou ao silêncio em julgamento.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 26/21.0PHMTS da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica ..., Juiz ..., realizado julgamento, foi decidido:
1.1. Condenar o arguido AA[1] pela prática de um crime de detenção de arma proibida (artigo 86.º, n.º 1, alínea c) do Regime Jurídico de Armas e Munições - Lei 5/2006, alterada pela Lei n.º 50/2019, por referência aos artigos 2.º, n.º 1 alíneas p), q), ac), ae) e az) e artigo 3.º, n.ºs 1 e 3), na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 6 €, perfazendo o montante global de 1.800 €;
1.2. Absolvido o arguido dos demais crimes que lhe foram imputados;
1.3. Absolvida a arguida BB do crime de branqueamento de capitais que lhe foi imputado.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do arguido
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Objecto do presente recurso: Sentença condenatória.
2. Recurso interposto e matéria de facto e de direito
3. O Recorrente, não se conforma com a matéria de facto provada, no que tange, à valoração da prova produzida no que toca à autoria do Recorrente do crime pelo qual foi condenado, na medida em que no entendimento do Recorrente, não foi produzida prova suficiente, de que este, tenha sido autor da prática de qualquer crime, mormente do crime pelo qual foi condenado, pugnando o Recorrente, na presente peça Recursória pela Absolvição da prática do crime pelo qual foi condenado.
4. FACTOS QUE O RECORRENTE CONSIDERA INCORRECTAMENTE JULGADOS: que era o arguido quem guardava e possuía a pistola de marca ... e a caixa de munições nas circunstâncias de tempo e modo que foram dados como provados
Ora, no entender do Recorrente, este facto devia constar dos “Factos não provados”, pelo menos, no que tange à autoria / prática pelo ora Recorrente.
6. PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA (art.º 412º, nº 3, al. b), do CPP): não valoração das declarações prestadas pelos agentes da PSP, na medida em que estes quanto à posse da arma e munições limitaram-se a reproduzir as declarações de arguido cuja leitura não foi permitida, por violação das disposições legais infra indicadas. Total ausência de prova.
7. o recorrente remeteu-se ao silêncio.
8. o recorrente não solicitou a leitura de quaisquer declarações que prestou em sede de inquérito.
9. o Recorrente, encontrava-se, nas buscas domiciliárias, sem estar devidamente acompanhado por defensor /advogado.
10. A decisão condenatória quanto à posse pelo arguido das armas apreendidas, deveu-se exclusivamente às declarações prestadas pelos agentes que em julgamento reproduziram as declarações do arguido aquando das buscas domiciliárias, quando aquele se encontrava no exercício das suas funções de agentes da PSP e o arguido era já suspeito e era o alvo das referidas buscas domiciliárias.
11. Estamos, assim, perante declarações do arguido no âmbito de uma diligência de inquérito (buscas domiciliárias), e não tendo o mesmo requerido a leitura das mesmas, tais declarações não podem ser valoradas como meio de prova dos factos de que estava acusado.
12. Fazê-lo, seria violar o plasmado no já citado artigo 357° do Código de Processo Penal, acolhendo um meio de prova não permitido por lei.
13. Não podendo ser valoradas como meio de prova é como se as mesmas inexistissem nos autos.
14. Mais não podem os Órgãos de Polícia criminal depor sobre tais declarações e muito menos ser confrontados com o teor das mesmas.
15. Violando-se assim o disposto no art.° 356° no 7 do CPP: Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
16. Daqui decorre que as declarações prestadas pelo arguido e que foram feitas constar no auto de notícia e detenção constante dos autos não pode ser acolhido como meio de prova dos factos alegados na acusação.
17. O artigo 356° regula a leitura permitida de autos e declarações, estatuindo o n°. 7 que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
18. No que concerne ao depoimento prestado pelos senhores agentes e aos quais faz referência o Tribunal recorrido, entendemos tratar-se de depoimento que reproduz declarações do arguido prestadas em inquérito, durante a realização das buscas e confrontado com apreensão das referidas armas e munições.
19. Nos termos do n.° 7 do artigo 356. ° do CPP, os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
20.Os órgãos de polícia criminal que tenham realizado as buscas domiciliárias NÃO podem prestar declarações sobre as declarações que ali foram prestadas pelo arguido; tais declarações estão abrangidas na proibição do artigo 356.º, n.º 7 do CPP.
21. face ao supra não devem ser consideradas e valoradas as declarações prestadas pelas testemunhas, na parte em que aludem às declarações que o arguido Recorrente prestou aquando da apreensão da arma de fogo e munições no interior da sua residência.
22.Face ao supra exposto deve o presente Recurso ser julgado procedente, nos exatos termos supra expostos, e em consequência, DEVE SER DECLARADO NULO O DEPOIMENTO PRESTADO pelas testemunhas agentes da PSP NO QUE À MATÉRIA RELATIVA às declarações prestadas pelo arguido aquando das buscas domiciliárias e quando confrontado com a apreensão da arma de fogo e munições.
23.impondo-se a absolvição do recorrente.
DAS NORMAS VIOLADAS:
Artigo 127º do CPP;
Artigo 356º nº 7 do CPP;
Artigo 357º do CPP;
Nestes termos e nos melhores em Direito permitidos deve o presente RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, nos exatos termos supra expostos, com todas as consequências legais que daí advenham.”.

2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, embora não tivesse apresentado conclusões articuladas.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo arguido.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questão a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer consiste em saber se ocorreu violação dos artigos 127.º, 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP, com a consequente nulidade da sentença por terem sido considerados provados factos baseados em prova proibida (depoimentos prestados pelas testemunhas agentes da PSP sobre o que ouviram dizer ao suspeito em fase de inquérito).

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição parcial):
“ 1.1. (…)
1.9. No dia 17 de Março 2021, pelas 9h00, na Rua ..., ..., no interior da sua residência, na sala, no interior de uma mala própria de senhora, o arguido AA guardava e possuía:
Uma pistola de marca ..., de calibre ... mm, modelo ...10, com o n.º..., de percussão central, de municiamento posterior, com comprimento total de 15,3 cm- cano estriado com 9 cm-, com capacidade de 8 tiros, carregador e de funcionamento semiautomático- que ao ser introduzida uma munição na câmara, após cada disparo se carrega automaticamente-, em mau estado de conservação, mas apta a produzir disparos e em condições de funcionamento; e
Uma caixa com 11 munições de projétil único encamisado, de calibre ... mm-aptas para uso na referida pistola ou qualquer outra do mesmo calibre de percussão central- de marca ..., produzidas pela ... (..., em ...), em razoável estado de conservação e funcionamento.
1.10. O arguido quis guardar e deter aquela pistola e munições, não obstante saber não estava autorizado a deter e transportar aqueles objetos.
1.11. Por não possuir qualquer licença de uso e porte de arma, como bem sabia
1.12. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente
1.13. O arguido sabia, ainda, que a sua conduta, acima discriminadas, era proibida e punida por lei penal.
Condições económicas, pessoais e sociais do arguido AA
1.14. AA vive com a companheira, CC de 32 anos, doméstica e quatro filhos menores, todos estudantes no ....
1.15. O agregado ocupa uma casa situada num bairro camarário, onde existem outras casa ocupadas por familiares do arguido.
1.16. O agregado familiar encontra-se laboralmente inativo, beneficiando de apoios estatais para sobreviver; a respectiva situação económica afigura-se frágil, não se encontrando, contudo, em causa as necessidades básicas.
1.17. AA não desenvolve qualquer atividade estruturada passando o quotidiano em casa ou a conviver com os familiares e amigos.
1.18. A interação familiar é marcada por uma dinâmica de família alargada, onde se privilegiam as práticas sociais no seio do bairro. A dinâmica foi caracterizada como estável.
1.19. AA desenvolveu-se inserido num contexto socioeconómico desfavorável. Os pais, residentes em ..., dedicavam-se à venda ambulante assegurando aos seus descendentes a sua subsistência.
1.20. O processo de socialização do arguido assentou numa dinâmica de família alargada, em que os convívios garantiam a manutenção de laços de proximidade entre todos os familiares.
1.21. Sem a família valorizar a escolaridade, AA frequentou a escola, mas não concluiu nenhum grau de ensino.
1.22. Com uma presença marcada pela desmotivação, fraca assiduidade e insucessos, o arguido não obteve escolaridade que lhe permitisse alcançar uma ocupação laboral estável. A ausência da escolaridade obrigatória, condicionou o percurso laboral do arguido, não lhe permitindo ter acesso a algumas hipóteses de trabalho.
1.23. Com cerca de 17 anos, AA estabeleceu uma relação afetiva com uma jovem do ..., tendo deixado ... para se fixar no .... Da união nasceram quatro filhos.
1.24. Durante os primeiros anos de vida em união de facto, o arguido foi feirante, vendendo em feiras e mercados da zona. Deixou a atividade por, com a alteração das regras e procedimentos regulatórios das feiras e mercados, ter deixado de conseguir arranjar lugar para montar a banca.
1.25. Deste modo, acabou por arranjar trabalho como lavador de automóveis junto do aeroporto ..., atividade que desenvolve de forma sazonal, ficando a viver durante cerca de dois, três meses no ..., quando para tal é solicitado, fazendo também campanhas agrícolas sazonais em ... de forma esporádica.
1.26. Em sede de entrevista, o arguido mostrou-se cordato, revelando contudo, um discurso indiciador de algumas limitações no plano das suas competências pessoais.
(…) Antecedentes criminais do arguido AA
1.43. Por decisão, transitada em 27/09/2016, proferida em 26/09/2016, no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 90/15.... no Juízo Local Criminal ... do Tribunal da Comarca ..., foi o arguido condenado, pela prática em 18/03/2015 de um crime de furto, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
A pena foi declarada extinta em 21/01/2019.
1.44. Por decisão, transitada em 11/12/2017, proferida em 10/11/2017, no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 796/16.... no ... do Tribunal da Comarca ..., foi o arguido condenado, pela prática em 23/03/2016 de um crime de furto, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
A pena de multa foi declarada extinta em 13/10/2019. (…)”.

3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou não se terem provado quaisquer outros factos com interesse para a causa.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição parcial):
“O tribunal deu como provados e não provados os factos nos moldes acima consignados sustentando-se no conjunto da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento em articulação com a demais prova produzida nos autos, em conformidade com o preceituado no art. 127º do CPP, nos termos que de seguida se explicitarão.
(…)
No que tange ao descrito em 1.9. dos factos provados, emerge do auto de busca e apreensão de fls. 89 e ss. que, na residência do arguido foi apreendida a arma e munições aí melhor descritas, sendo que as mesmas se encontravam na sala do imóvel no interior de uma mala própria de senhora. As características dos objectos apreendidos mostram-se fixadas no exame pericial de fls. 157 e ss.
Ora, no que aqui releva, cumpre referir que basta a mera detenção, enquanto domínio pelo agente daqueles objectos.
É certo que em sede de julgamento o arguido não prestou declarações, pelo que não assumiu que detivesse a referida arma ou que conhecesse a sua presença na sua residência, sendo que a avaliar pelo local em que foram detectadas as mesmas não se encontrariam à vista, mas sim no interior de uma mala própria de senhora numa área comum da residência.
A propósito de tais factos foram ouvidos, em sede de audiência de julgamento, as testemunhas DD e EE, agentes da PSP intervenientes na diligência de buscas que levou à detecção da arma e munições descritas nos autos.
Tais testemunhas reportaram-se à reacção do arguido e esposa aquando da busca e no que concerne àqueles objectos, sendo que a testemunha EE referiu que a localização da arma foi indicada pela esposa do arguido e que este de imediato a assumiu como sua por lhe ter sido doada pelo seu avô. A testemunha DD refere igualmente que o arguido por sua iniciativa logo lhes referiu que a arma era do seu avô.
Tal reacção imediata denota claramente que o arguido tinha conhecimento daquela arma e munições na sua residência e que, com esse conhecimento, as deixou ali permanecer, o que aponta para a sua clara detenção das mesmas.
Se aquelas reacções – nomeadamente a da esposa do arguido ao indicar por sua iniciativa a localização da arma – apontam também para a imputação da conduta àquela, e facto que aqui não releva já que a opção foi a de dedução de acusação apenas contra o arguido. E tal possibilidade não exclui, obviamente, que aquela conduta seja também imputável ao arguido.
Uma nota para referir que tais declarações do arguido veiculadas pelas testemunhas em causa, correspondendo a declarações proferidas por este por sua iniciativa e no decurso de uma diligência sem que houvesse ainda motivos para a constituição de arguido (sendo porventura tais declarações que motivaram tal constituição), não colidem com a proibição de valoração de declarações informais prestadas pelo arguido em detrimento do regime legal quanto às declarações do arguido, como foi aventado em sede de audiência de julgamento pela Ilustre Defensora.
Socorremo-nos aqui do que a propósito se escreveu no Ac. da Relação de Lisboa, de 22/06/2017, processo n.º 320/14.7GCMTJ,L1-9, disponível no site www.dgsi.pt.
Não obstante jurisprudência algo imprecisa quanto à delimitação conceptual das situações de facto (conceito de “depoimento indirecto” quando o agente de autoridade percepcionou directamente factos, ou de “conversa informal” com “arguido”, quando ainda não há constituição como arguido), pensamos que uma adequada delimitação das situações de facto e de direito é a sufragada pelo STJ no acórdão de 15-02-2007 (Proc. 06P4593, sendo relator o Cons. Maia Costa):
I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.
II - Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.
III - Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.
IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).
V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.
VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito”
Assim, entende-se não haver conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir os preceitos legais, quer pela necessidade de “documentar” a prática do ilícito e suas sequelas, designadamente providenciar os actos cautelares que se imponham (v. g. artigos 243º, 248 a 250º do C.P.P.), quer quando actuam por imposição legal ao detectarem a prática de um ilícito e o arguido decide – por sua iniciativa e sem actuação criticável das forças policiais – fazer afirmações não sugeridas, provocadas ou imaginadas por aqueles OPC.
Não só as forças policiais estão a cumprir preceitos legais que lhes impõem uma actuação, como a agora arguida fez afirmações (a “conversa informal” exige bilateralidade, comunicação mútua).
Ora, no caso, aquelas testemunhas veicularam a posição que o arguido assumiu logo de imediato e que denotava o conhecimento de que a arma ali se encontrava na sua disponibilidade, e sem que o mesmo tivesse sido incitado a tanto. Não se vislumbra, aqui, qualquer actuação das forças policiais tendente a contornar as normas decorrentes da valoração das declarações do arguido ou do seu direito ao silêncio.
O vertido em 1.11. decorre da informação prestada a fls. 249.
O descrito em 1.10., 1.12. a 1.14. emerge das regras de experiência comum associadas ao tipo de objecto apreendido, sendo inverosímil considerar que o arguido desconhecesse a necessidade de estar habilitado com licença de uso e porte de arma.
(…)
No que tange às condições económicas dos arguidos, o tribunal atendeu aos respectivos relatórios sociais junto aos autos e elaborados pela DGRSP com recurso a fontes e metodologia adequada.
No que tange aos antecedentes criminais dos arguidos atendeu-se ao teor do CRC de cada um dos arguidos, juntos aos autos e dos quais constam as condenações supra transcritas.”.

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição parcial):
“4. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

Cumpre agora proceder ao enquadramento jurídico da causa concluindo-se ou não pelo preenchimento pelo arguido do tipo legal em análise.
Nos presentes autos é imputada:
- ao arguido AA:
(…)
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86 n.º1 alínea c) do Regime Juridico de Armas e Munições (Lei 5/2006, Alterada pelo/a Lei n.º 50/2019 - Diário da República n.º 140/2019, Série I de 2019-07-24, em vigor a partir de 2019-08-23), por referência aos artigos 2.º n.º1 alíneas p) q) ac); ae) e az), bem como do artigo 3.º n.º1 e 3.º, todos daquele diploma;
(…)
Do crime de detenção de arma proibida
Vem imputada ao arguido AA a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos artigos 2.º n.º1 alíneas p) q) ac); ae) e az), bem como do artigo 3.º n.º1 e 3.º, todos daquele diploma.
De acordo com o citado normativo, e na redacção vigente à data dos factos, incorre na prática de um crime de detenção de arma proibida “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo (…) c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
No caso dos autos a arma apreendida é uma arma de fogo curta, pistola semiautomática de calibre ... mm ....
Tal arma integra a categoria B, em conformidade com o preceituado no art. 2º, n.º 1, als. q), az) e ae), e art. 3º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Por seu turno, as munições apreendidas integram também a classe B, nos termos do disposto no art. 3º, n.º 3, da Lei 5/2006.
O tipo legal em causa preenche-se com qualquer das condutas acima descritas -detenção, transporte, importação, transferência, guarda, compra, adquisição a qualquer título ou por qualquer meio ou obtenção por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, uso ou pelo acto de trazer consigo – abrangendo um leque extremamente alargado, exaustivo, até, de actuações.
O art. 2º, n.º 5, da Lei 5/2006, dispõe sobre algumas definições legais pertinentes ao preenchimento do tipo em causa. Define, assim:
- na al. g) “Detenção de arma”, como o facto de ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor;
- na al. o) «Guarda de arma», como o acto de depositar a arma, no domicílio ou outro local autorizado, em cofre ou armário de segurança não portáteis, casa-forte ou fortificada, bem como a aplicação de cadeado, accionamento de mecanismo ou remoção de peça que impossibilite disparar a mesma;
- na al. p) «Porte de arma», como o acto de trazer consigo uma arma branca ou uma arma municiada ou carregada ou em condições de o ser para uso imediato;
- na al. r) «Transporte de arma», como o acto de transferência de uma arma descarregada e desmuniciada ou desmontada de um local para outro, de forma a não ser susceptível de uso imediato;
- na al. s) «Uso de arma», como o acto de empunhar, apontar ou disparar uma arma;
- na al. v) «Importação», como a entrada ou introdução nos limites fiscais do território nacional de quaisquer bens, bem como a sua permanência em estância alfandegária ou zona internacional, a aguardar os procedimentos legais aduaneiros, quando provenientes de países terceiros à União Europeia;
- na al. x) «Exportação», como a saída dos limites fiscais do território nacional de quaisquer bens com destino a país terceiro à União Europeia, bem como a sua permanência em estância alfandegária ou zona internacional a aguardar os procedimentos legais aduaneiros;
- na al. ab) «Transferência», como a entrada em território nacional de quaisquer bens previstos na presente lei, quando provenientes de Estados membros da União Europeia, tendo Portugal como destino final, ou a saída de quaisquer bens de Portugal, tendo como destino final.
O tipo de crime em causa é apenas passível de ser praticado a título de dolo, porquanto a negligência não se encontra prevista. Nesta medida, em face do disposto no art.13º do CP, não é punível a negligência.
Compulsando a factualidade demonstrada, constata-se que arma foi apreendida ao arguido AA, o qual a detinha na sua residência, sendo que a mesm se encontrava em condições de funcionamento.
Nos termos do art. 5º, n.º 3, al. b), da Lei 5/2006, a detenção da arma em causa é permitida, além do mais, a quem seja titular da respectiva licença de uso e porte de arma.
É, também, inequívoco, face aos factos provados que o arguido não tinha qualquer licença ou utilização que lhe permitisse o transporte da arma mencionada.
Também resultou demonstrado que o arguido actuou voluntariamente ao deter aquela arma e munições, pelo que actuou com dolo directo, nos termos do art. 14º do CP.
Inexistem circunstâncias que permitam excluir a ilicitude da conduta ou a culpa do arguido, pelo que o mesmo preencheu o tipo legal em causa.
5.DA ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Apurada a responsabilidade penal do arguido AA, cabe proceder à escolha da sanção adequada.
O crime de detenção de arma proibida é punido, nos termos do art. 86º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, com a pena de multa até 600 dias ou com pena de prisão de 1 a 5 anos.
A)DA ESCOLHA DA PENA
Importa em primeiro lugar, na determinação da pena a aplicar, proceder à escolha da pena, nos termos do art. 70º do CP, optando-se pela pena não privativa da liberdade sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O art. 40º do CP estabelece como finalidades da punição a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, obedecendo a uma lógica de prevenção geral positiva e prevenção especial positiva. Assim, pretende-se com a aplicação de uma pena, não só reforçar as expectativas da comunidade, que viu um bem jurídico-penalmente protegido ser desconsiderado, na capacidade de tutela e reacção do ordenamento jurídico; mas também promover a reintegração social do agente que põe em causa os valores penalmente tutelados.
Nesta medida, baixas necessidades de reintegração social ditarão a preferência de uma pena não privativa da liberdade se esta pena não puser em causa a confiança da comunidade no ordenamento jurídico e na sua capacidade de tutela dos bens jurídicos comunitariamente valiosos.
No que tange à necessidades de prevenção geral, revelam-se as mesmas elevadas quanto a qualquer daqueles tipos de crime, na medida em que a sua prática (pese embora não se tenha por ambudante) colide de forma gravosa com a correcta administração da justiça, pedra basilar em qualquer sociedade. É gravosa a intervenção do cidadão no sentido de desvirtuar o recurso aos meios de administração de justiça para fins que não os que lhe são acometidos.
Constata-se que o arguido foi já condeando por duas vezes pela prática de furto em penas de multa, por factos praticados nos anos de 2015 e 2016. As condenações anteriores em nada se relacionam com o tipo de factos por que vai condenado.
Afigura-se-nos, assim que se admite, aqui, ainda, a eficácia de uma pena de multa, não se justificando, por ora a aplicação de uma pena de prisão com base naqueles antecedentes.
B) Da determinação da medida da pena
Impõe-se, agora, proceder à determinação concreta da pena, para o que se atenderá aos critérios plasmados no art. 71º do CP.
Na determinação do quantum da pena importa atender aos critérios estabelecidos no art. 71º, n.º 1 e 2, do CP, considerando-se a culpa do agente e as exigências de prevenção que o caso reclama.
Em caso algum poderá a medida da pena exceder a medida da culpa do agente, funcionando esta como “uma incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – seja, de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização.” (FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora).
A culpa actuará, pois, como limite máximo dentro da moldura balizada pelas necessidades de tutela dos bens jurídicos, a qual oscilará entre a medida óptima de tutela e de garantia das expectativas comunitárias na eficácia do ordenamento e o limiar mínimo “abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar” (FIGUEIREDO DIAS, op. cit.).
Ainda dentro da moldura assim alcançada actuam considerações de prevenção especial de socialização, as quais determinam a final a medida da pena.
Assim, tanto na escolha, como na determinação da medida da pena dever-se-á atender às necessidades de prevenção geral e especial que ocorrem no caso concreto. As primeiras relacionando-se com a tutela das expectativas da comunidade face à violação do bem jurídico pelo agente; as segundas prendendo-se com as necessidades manifestadas pelo arguido de interiorização de valores assumidos como nucleares pela comunidade em que o agente se insere. Nos dizeres de Figueiredo Dias: “Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar á necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime (…) limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.” (FIGUEIREDO DIAS, op. cit, p.215).
As três linhas de força – prevenção geral e especial e culpa – deverão ser analisadas à luz dos factores, plasmados nas diversas alíneas do art. 71º, n.º 2, do CP, que norteiam a determinação da medida da pena.
Assim, quanto ao arguido FF, cabe considerar a mediana gravidade da sua conduta, traduzida na detenção de mais que uma peça (arma e munições), sendo que tal gravidade não se apresenta manifestamente elevada face ao espectro de condutas abrangidas pela incriminação.
Contra o arguido depõem também os antecedentes criminais apurados e que afastam decisivamente a pontualidade de condutas de natureza criminal no percurso de vida do arguido.
Por outro lado, inexiste nos autos qualquer sinal de arrependimento, que poderia ser favoravelmente considerada.
Nesta medida entende-se como suficiente, por justa e proporcional, a pena de 300 trezentos) dias de multa.
*
A determinação do quantitativo diário da multa a aplicar rege-se pelo n.º 2 do art. 47º do C.P., devendo o julgador atender à situação económica e financeira do arguido bem como aos seus encargos pessoais, matéria que se mostra acima plasmada.
Actualmente a lei define como limites mínimo e máximo para a fixação do referido quantitativo diário as quantias de € 5,00 e € 500,00, nos termos do disposto do art. 47º, n.º 2, do C.P.
Nesta medida, pese embora a situação de desemprego, resulta que o agregado em que se insere beneficia de auxílios estatais, sendo que o mesmo deverá de alguma forma porver ao seu sustento, entende-se adequada a fixação de um quantitativo diário de € 6,00.
Atendendo a tudo o exposto reputa-se adequada a pena de 300 dias de multa à taxa de € 6,00, o que perfaz o montante global de € 1.800,00.
6. Da perda das armas e munições apreendidas a favor do Estado
Vem o Ministério Público requerer a declaração de perda das armas e munições apreendidas ao arguido a favor do Estado.
Dos autos resulta que a arma em causa se encontra registada em nome de GG, residente no ..., n.º ..., ..., ..., desconhecendo-se se o mesmo é titular de licença de uso e porte de arma.
Afigura-se-nos, assim, ser de aferir da possibilidade de restituir tal arma a indivíduo a favor de quem a mesmas se mostra registada.
Assim, antes de mais, cumpre proceder à notificação da pessoa identificada a fim de cir aos autos indicar se a arma e munições em causa lhe pertencem e, em caso afirmativo, juntar documentação que ateste a licença de uso e porte da mesma (…)”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo arguido
Cumpre, agora, conhecer o mérito do recurso respondendo à questão colocada pelo arguido, e assinalada em II. ponto 2. deste Acórdão, considerando estar em causa a condenação daquele pela prática de um crime de detenção de arma proibida e ter sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto e de direito, nos termos dos artigos 410.º, 412.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 427.º e seguintes do CPP.

Entendeu o recorrente não ter o tribunal a quo realizado uma correta valoração da prova produzida tendo conduzido aos factos provados matéria sustentada por prova proibida com reflexos no direito aplicado, pugnando pela revogação da sentença condenatória e com a sua consequente absolvição.

O recorrente defende que as declarações por si prestadas aquando das buscas domiciliárias e também constantes no auto de notícia e depois reproduzidas nos depoimentos das testemunhas DD e EE, agentes da Polícia de Segurança Pública, em audiência de julgamento, não podem ser valoradas como meio de prova, por violação dos artigos 127.º, 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP.

Deveria, pois, o Tribunal a quo ter conduzido aos factos não provados a materialidade dada como assente quanto à prática do crime de detenção de arma proibida.

Estão em causa os depoimentos do OPC que reproduzem as verbalizações do recorrente prestadas em inquérito quando, durante a realização de uma busca domiciliária, como suspeito, foi confrontado pela autoridade policial sobre ter na sua casa uma arma e munições proibidas (pistola da marca ... e a caixa de munições).

Para o recorrente os depoimentos prestados pelos agentes da PSP não podem ser objeto de valoração por esta prova de ouvir dizer ao arguido ser proibida, equivalendo à sua inexistência nos autos.

Está em causa a interpretação dos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP que estabelecem respetivamente o seguinte:

“7. os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”.

“1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 7 a 9 do artigo anterior”. (sublinhado e negrito nosso).

Para se compreender o verdadeiro alcance da questão colocada cumpre, em primeiro lugar, proceder ao enquadramento histórico e jurídico destes dois artigos.

3.2.1. Enquadramento histórico e jurídico

A questão processual suscitada pelo arguido em sede de recurso é uma das mais antigas tratadas pela doutrina e jurisprudência[2] no âmbito do Código de Processo Penal de 1987 (DL 78/87 de 17.2), que revogou o Código de Processo Penal de 1929 (Decreto-Lei n.º 16489, de 15.2.1929).

Os artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP de 1987 surgiram tendo por escopo o reforço do estatuto processual do arguido e como desígnio a proteção deste. Visava-se evitar situações idênticas aos abusos perpetrados pela polícia política e às práticas utilizadas no processo inquisitório vigente durante o regime ditatorial do Estado Novo, num tempo em que as declarações do, então, réu funcionavam como elemento probatório fundamental, ainda que obtidas de forma coerciva e discricionária[3], sendo utilizadas em audiência de julgamento mesmo quando o arguido, naquele momento processual, exercia o direito formal de não falar.

Os artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP de 1987 visaram, assim, impedir que se fizesse valer, em audiência de julgamento, as declarações do arguido cuja leitura não fosse permitida, através de depoimentos dos órgãos de polícia criminal que as tivessem recebido, por forma a não ser subvertido o princípio do direito ao silêncio do arguido e à sua não autoincriminação, garantindo-se, assim, o estatuto processual deste.

A primeira abordagem jurisprudencial realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre o tema terá ocorrido, há mais de três décadas, no Acórdão do STJ de 29.1.1992[4]. Neste aresto o Tribunal Superior considerou não ser admissível a valoração, em julgamento, das “verbalizações” de uma suspeita, ainda não constituída arguida, realizadas em inquérito perante os órgãos de polícia criminal.

Também nos anos 90 o mesmo Supremo Tribunal de Justiça proferiu, em sentido divergente, um outro Acórdão, datado de 29.3.1995[5], salientando que tais “verbalizações” prestadas de forma informal pelo suspeito não configuram “declarações” na verdadeira aceção do termo constante dos artigos 356.º, n.º 7[6] e 357.º[7] do CPP, ao considerar que:

“Os órgãos de polícia criminal estão proibidos de ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo de declarações que tenham recebido e cuja leitura não seja permitida e não o de serem sobre o relato de conversas informais que tenham tido com os arguidos” mas, “precisamente por se tratar de conversas informais, não há que falar em «declarações cuja leitura não é permitida» e, por conseguinte, de declarações exaradas em auto (…) salvo se se provar que o agente investigador escolheu deliberadamente esse meio de conversas para evitar a proibição de leitura das declarações do arguido em audiência (…)”.

Em posteriores Acórdãos prosseguiu-se no debate sobre a admissibilidade ou não destas “conversas informais”, tendo-se alcançado uma posição jurisprudencial, julga-se uniforme, defensora que após a formalização da constituição do indiciado autor do crime como arguido as “declarações formais” (exceto nas situações do artigo 357.º do CPP) bem como as “declarações informais” não eram admissíveis como meio de prova. Nesta situação era proibida a valoração de prova dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal sobre o que ouviram o arguido dizer, por exemplo nos corredores do Tribunal, na carrinha celular, a um enfermeiro, etc.

Nesta ótica tal depoimento do agente policial, em julgamento, constituiria sempre uma violação direta (“declarações formais”) ou indireta (“declarações informais”) do regime da leitura de declarações do arguido em audiência final, com a sua impossibilidade de aproveitamento para sustentar a convicção do Tribunal, ao abrigo do artigo 127.º do CPP.

A jurisprudência debruçou-se, também, sobre a admissibilidade ou não da valoração das “verbalizações” de um cidadão antes de este ser sequer suspeito e quando, ainda, nem sequer existia Inquérito, ou mesmo quando estando pendente Inquérito já existia um suspeito, mas num momento em que ainda não havia constituição de arguido.

Para parte da jurisprudência estas “verbalizações” de um suspeito ou de uma pessoa que nem suspeita fosse, em rigor, não poderiam ser designadas de “declarações”, mas tão só, de “conversas informais”, de “afirmações de um cidadão” ou de “afirmações de um suspeito”. Sob este ponto de vista não seria aplicável a proibição dos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP, pois nela era utilizada a expressão “declarações” e não a palavra “conversas”.

Por necessidade de clarificar a exposição do tema cumpre referir que o conceito “conversas informais” é utilizado pela jurisprudência indistintamente quer para as situações em que o indiciado agente do crime, ainda, não é suspeito, como para os casos em que já o é, como, ainda, para a circunstância de o arguido já ter sido constituído como tal, mas em que as suas afirmações não são produzidas durante uma diligência formal de recolha de declarações no decurso de atos processuais (de investigação ou diligências de obtenção de prova), sujeitas ao princípio da oralidade e à obrigatoriedade legal de os agentes policiais as reduzirem a escrito.

Daí, para melhor delimitar a questão a ser apreciada neste Acórdão serão utilizadas as expressões “declarações formais” e “declarações informais” quando o arguido já tiver sido constituído como tal no processo. Sendo as primeiras (declarações formais) produzidas durante uma diligência formal de recolha de declarações no decurso de atos processuais (de investigação ou diligências de obtenção de prova), sujeitas ao princípio da oralidade e à obrigatoriedade legal de redução a escrito. As segundas serão as declarações prestadas fora dessa circunstância formal, como por exemplo, no decurso do transporte policial do arguido do estabelecimento para o Tribunal, ou para um hospital ou durante a sua permanência à entrada ou saída de uma diligência processual (ex: interrogatório de arguido detido; julgamento, etc).

Depois para se distinguirem das “declarações” (formais e informais) mencionadas no parágrafo anterior designaremos de “conversas informais” as “verbalizações” ou “afirmações” prestadas antes da constituição do agente do crime como arguido, seja ele já suspeito ou apenas um “mero cidadão” sobre o qual não recai qualquer suspeita.

São precisamente estas “verbalizações”, “afirmações”, “conversas informais” entre os órgãos de polícia criminal e a pessoa, ainda, não constituída arguida que interessa abordar com maior profundidade, no âmbito deste recurso. É que a valoração em julgamento das “declarações” “formais” e “informais”, posteriores à constituição de arguido são unanimemente aceites, pela jurisprudência e a doutrina, como proibidas[8], mas neste recurso estão em causa as “verbalizações” do suspeito de um crime durante uma busca domiciliária, ordenada no âmbito de um inquérito, mas antes da sua constituição como arguido.

Como já se assinalou o processo inquisitório, apanágio do regime do Estado Novo, conduziu à necessidade de no Processo Penal de 1987, de forma a melhor acautelar os direitos do arguido, se impor a regra da proibição de reprodução e leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pelo arguido no âmbito do processo nas fases anteriores ao julgamento, sem prejuízo obviamente do estabelecido no artigo 357.º do CPP. Esta proibição estende-se ao depoimento dos Órgãos de Polícia Criminal sobre o conteúdo dessas declarações que receberam do arguido e cuja leitura não é permitida na audiência final.

Acontece, todavia, que antes de ser constituído arguido o eventual autor do facto ilícito criminal pode ter tido uma “conversa informal” com o órgão de polícia criminal de onde resulte a sua autoincriminação.

A jurisprudência e a doutrina abordaram a questão de saber se as “verbalizações” do suspeito ou mesmo de um cidadão sobre o qual não recaía qualquer suspeita da prática de um crime podiam valer em julgamento, através do depoimento dos agentes policiais sobre o que ouviram dizer ao futuro arguido.

Como nos casos de “conversas informais” a lei não imporia um ato formal de tomada de “declarações” reduzidas a escrito e consignadas em auto a jurisprudência e a doutrina questionaram-se sobre a exclusão ou inclusão destas “verbalizações” do âmbito dos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP. Na verdade, para um determinado segmento jurisprudencial não tendo aquelas “afirmações” sido formalmente prestadas nem reduzidas a escrito, ficaria inviabilizada a sua “leitura” (não podendo ser lido o que não foi plasmado em texto), como parece sugerir o segmento inicial da redação do n.º 1 do artigo 356.º do CPP (“1- Só é permitida a leitura em audiência de autos (…)” – Sublinhado nosso).

Várias teses sobre a temática foram avançadas. Uma delas considerou estas “conversas informais”, tidas antes da constituição de arguido, sempre suscetíveis de reprodução em julgamento pelo OPC. Outro segmento jurisprudencial considerou estar vedado por completo ao agente policial testemunhar em julgamento sobre o que ouviu dizer ao cidadão ou suspeito. E, ainda, outra tese apontou no sentido de em algumas circunstâncias não ser permitido o depoimento do OPC sobre as “conversas informais” tidas com o suspeito da prática de um crime.

Dentro desta última tese cabe o defendido no Acórdão da RE de 4.6.2013, relatado pelo Desembargador Gomes de Sousa[9], onde é colocado o foco da questão na análise da atuação policial, distinguindo as situações de quando já há suspeito daquelas em que, ainda, não há.

Neste Acórdão defende-se que as “verbalizações” realizadas antes do cidadão ser suspeito são sempre passíveis de reprodução pelo OPC em julgamento. Já se o cidadão for suspeito e a má fé policial tiver ilegalmente atrasado a sua constituição como arguido será proibida a reprodução em julgamento das suas verbalizações. Daí só quando se evidencia uma questão de fronteira na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e de “arguido” se terá de delimitar claramente a situação de facto através de uma análise rigorosa e concreta da atuação policial, sendo a dúvida de facto resolvida a favor do arguido.

A este nível, naquele Acórdão da RE de 4.6.2013, salienta-se ser necessário casuisticamente avaliar se aquela “conversa informal” visou contornar ou iludir a proibição contida no n.º 7 do artigo 356.º do CPP[10].

Embora naquele Acórdão de tivesse assinalado não se estar, em concreto, perante uma situação de fronteira [11], o caso em apreciação neste recurso aparenta, como adiante explanaremos, configurar precisamente uma dessas situações limite, pois já existia suspeito da prática de um crime aquando da busca domiciliária realizada.

Para além, das discussões jurisprudenciais apontadas também se tem debatido se a esse depoimento do OPC em julgamento, sobre o que ouviu dizer o suspeito ou ao cidadão, ainda não constituído arguido, é aplicável o regime do depoimento direto ou o depoimento indireto. Concluindo parte da jurisprudência que quando a fonte seja o futuro arguido, não é de convocar o artigo 129.º do CPP, apenas aplicável à prova testemunhal, face à distinção entre os estatutos de arguido e de testemunha.

Ainda a este nível, tem-se defendido que não sendo aplicável aos agentes policiais o regime do depoimento direto ou indireto ao testemunho do OPC, sobre o conteúdo confessório das “conversas informais”, é de aplicar um regime próprio.

Neste regime próprio para além de dever ser assegurada a possibilidade de contraditório ao arguido, entretanto constituído como tal, o Tribunal valorará o depoimento do OPC, nos termos do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP), conquanto existam outros meios de prova capazes de corroborar aquele testemunho do agente policial sobre o que ouviu dizer ao simples cidadão ou ao suspeito.

Nestas situações, todavia, é defendido, por alguns, que a decisão do Tribunal não deverá assentar única e exclusivamente no depoimento do OPC sobre o que ouviu dizer ao simples cidadão ou ao suspeito, mas ainda, acerca de factos de que aquele percecionou diretamente, por força por exemplo da vigilância a que procedeu ao local do crime, da investigação realizada a partir de uma denúncia anónima, ao observado aquando da busca realizada ao domicílio do suspeito, ou, ainda, em provas documentais ou testemunhais colhidas.

Sem prejuízo do referido, mesmo para os defensores da total proibição de valoração de prova, em julgamento, quer dos depoimentos prestados pelos agentes policiais como do teor do auto que reproduza as “verbalizações” autoincriminatórias do mero cidadão, do já suspeito ou mesmo do arguido, não se tratando na origem de uma proibição de prova o auto em causa bem como os depoimentos constituem prova legal e são em princípio amplamente valoráveis pelo Tribunal em julgamento.

Assim, mesmo para os que excluem totalmente a possibilidade de valoração do depoimento do agente policial sobre o que ouviu dizer à pessoa que vem a ocupar no processo a posição de arguido, como do auto de notícia que contenha as “verbalizações” do futuro arguido, o depoimento e o auto são válidos, pois são suscetíveis de “fornecer pistas de investigação e contribuir para a evolução do inquérito e para a recolha de novas provas”[12] sem contaminação destas e de serem valorados quanto à parte remanescente, mesmo quando o arguido exerce o direito ao silêncio em julgamento.

Para todas as correntes jurisprudenciais, pelo menos as mais recentes, os depoimentos dos órgãos e polícia criminal e o teor do auto (de notícia ou de ocorrência) são sempre valoráveis conquanto expurgados da parte em que contêm incorporadas as “afirmações” do futuro arguido.

Ainda, por outras palavras, é comumente aceite que o OPC pode ser sempre ouvido como testemunha em julgamento e nesse âmbito reproduzir o por si percecionado através dos sentidos, não só quanto às condições de tempo, modo e lugar e razões pelas quais se deslocou ao locus delictii para recolha de provas e/ou como chegou ao contacto com o futuro arguido bem como quanto às expressões corporais adotadas por este.

Não são, pois, para a posição jurisprudencial e doutrinal, e que se julga ser unânime, abrangidos pelas proibições do artigo 357.º do CPP os depoimentos do OPC acerca de gestos, silêncios, reações ou atitudes do futuro arguido.

No referente ao recurso em apreciação o que interessa é tomar posição em relação à resposta a dar à questão de saber se os “atos de fala” do suspeito que no futuro foi constituído arguido constituem “prova proibida” e, ainda, se os depoimentos dos agentes policiais, prestados em julgamento, sobre aquelas “verbalizações confessórias” estão abrangidos pela “proibição de valoração de prova” do artigo 357.º do CPP.

Nesta análise sobre o debate jurisprudencial e doutrinal que se estendeu por mais de trinta anos não deixou de estar presente na nossa memória, de forma impressiva, o modo como o cidadão do Estado Novo era levado a confessar os ilícitos (cometidos ou não).

Se se tiver bem presente a razão de ser do preceito compreende-se que as “verbalizações”, “afirmações” ou “conversas informais” tidas pelo suspeito não podem servir para suprir falhas de investigação, sendo que se remetendo o arguido ao silêncio em julgamento tudo se passa como se aquelas não existissem.

O suspeito não pode ser obrigado, conduzido ou apanhado a “contribuir para a sua autoincriminação através da palavra, no sentido de declaração prestada no processo e para o processo”[13] independentemente de a sua palavra ser designada por “declaração”, “conversa informal”, verbalização” ou “afirmação”.

Como de forma clara é salientado no Acórdão do STJ de 30.11.2022, “Mesmo que se entenda que o direito ao silêncio nasce apenas quando o arguido é constituído como tal, o exercício deste direito, em concreto, pelo arguido, como arguido, não pode deixar de silenciar, apagando, tudo o que fora pelo mesmo declarado anteriormente, antes de ter adquirido a posição de arguido no processo.”

Na verdade, como faz notar a Conselheira Ana Barata Brito se “uma testemunha vem a adquirir posteriormente a posição de arguido e, nessa qualidade, exerce o direito ao silêncio, verifica-se o efeito expansivo do exercício do silêncio”.

3.2.2. Enquadramento do caso concreto

No caso em apreciação foram emitidos mandados de busca domiciliária à residência dos suspeitos AA (arguido), AA (filho do arguido) e CC (mulher do arguido) para apreensão dos telemóveis, cartões SIM e outros aparelhos semelhantes, com vista à sua análise pericial, bem como quaisquer outros objetos ou valores que pudessem ser instrumento, vantagem ou produto do crime ou que pudessem servir de prova, porquanto estava indiciada a prática de crime de burla informática e de falsidade informática através de conduta fraudulenta utilizando a plataforma/aplicação MBWAY com interferência na conta bancária das vítimas.

Durante essa busca domiciliária, segundo o autuante, agente da PSP EE, foi encontrada uma pistola de marca ..., número de série ...49, calibre ... m/m, com o carregador vazio introduzido, junto da qual estava uma caixa contendo onze munições do mesmo calibre. A referida arma e munições foram encontradas na sala, acondicionadas dentro de uma mala de senhora.

Nessa sequência o referido OPC procedeu à apreensão da arma e respetivas munições e contactado o MP este determinou que fosse elaborado auto de detenção do suspeito AA, com a respetiva constituição de arguido.

Fez, ainda, o autuante consignar no auto de notícia que “Após confrontado com a presença de arma e munições, o suspeito AA de imediato e de forma espontânea admitiu que a arma lhe pertencia, acrescentando que a mesma lhe foi dada pelo seu avô, no entanto declarou que não tinha qualquer documentação da arma, bem como não está habilitado ao uso e porte de arma.”.

Atuou o OPC em conformidade com a lei, pois, cumpre-lhe verter no auto de notícia as informações recolhidas quando presencia a infração, tudo nos termos do artigo 243.º do CPP[14].

Este auto de notícia, constante do processo, é legal e o ali plasmado não configura qualquer proibição de prova, pois esta apenas ocorre quando as provas são obtidas mediante a violação de direitos fundamentais com tutela constitucional (artigo 32.º, n.º 8 do CRP), como por exemplo se a “verbalização” do suspeito tivesse sido obtida através de tortura.

Por outras palavras não se mostra controvertida a legalidade do auto de notícia, nem a lei comina com qualquer nulidade o auto elaborado por OPC onde sejam reproduzidas as declarações de cidadãos ou suspeitos, ainda, não constituídos arguidos.

A controvérsia suscitada no recurso centra-se sim em saber se é possível valorar o depoimento do autuante e dos outros agentes policiais, presentes durante a busca, sobre as “verbalizações” da pessoa que no futuro vem a ocupar no processo a posição de arguido.

O arguido recorrente considera que não, mas o MP diz que as testemunhas DD e EE, agentes da Polícia de Segurança Pública, em audiência de julgamento, apenas limitaram os seus depoimentos àquilo que percecionaram nas diligências realizadas e prévias ao inquérito, ou seja, aquando da notícia do crime no que respeita à detenção de arma proibida.

Acrescenta o Magistrado do MP que os depoimentos destas testemunhas devem ser (e foram) valorados apenas e unicamente na parte referente “a todo o circunstancialismo que rodeou a situação em que a arma e as munições pertenciam ao ora recorrente”.

Vejamos se assim foi. Na sentença proferida pelo tribunal a quo este salienta:

“Tais testemunhas reportaram-se à reacção do arguido e esposa aquando da busca e no que concerne àqueles objectos, sendo que a testemunha EE referiu que a localização da arma foi indicada pela esposa do arguido e que este de imediato a assumiu como sua por lhe ter sido doada pelo seu avô. A testemunha DD refere igualmente que o arguido por sua iniciativa logo lhes referiu que a arma era do seu avô.[15]
Tal reacção imediata denota claramente que o arguido tinha conhecimento daquela arma e munições na sua residência e que, com esse conhecimento, as deixou ali permanecer, o que aponta para a sua clara detenção das mesmas.
Se aquelas reacções – nomeadamente a da esposa do arguido ao indicar por sua iniciativa a localização da arma – apontam também para a imputação da conduta àquela, e facto que aqui não releva já que a opção foi a de dedução de acusação apenas contra o arguido. E tal possibilidade não exclui, obviamente, que aquela conduta seja também imputável ao arguido.
Uma nota para referir que tais declarações do arguido veiculadas pelas testemunhas em causa, correspondendo a declarações proferidas por este por sua iniciativa e no decurso de uma diligência sem que houvesse ainda motivos para a constituição de arguido (sendo porventura tais declarações que motivaram tal constituição), não colidem com a proibição de valoração de declarações informais prestadas pelo arguido em detrimento do regime legal quanto às declarações do arguido, como foi aventado em sede de audiência de julgamento pela Ilustre Defensora.”
Analisando o excerto transcrito perceciona-se ter o Tribunal recorrido classificado a “palavra do arguido” como “reação”. Por outro lado, é assumido claramente que as declarações do suspeito veiculadas pelos OPC não colidem com a proibição de valoração de prova, por se estar no campo das “afirmações” (informais) em contraposição com as “declarações formais”.

Como se extrai do recente Acórdão do STJ relatado por Ana Barata Brito a propósito de “informações” prestadas por um suspeito a um OPC, deslocado ao local do delito, aquelas “afirmações” integradas no auto constituem materialmente uma declaração, ou seja, uma declaração prestada para o processo.

Nesse segmento o auto que reproduz afirmações/declarações do suspeito, que no futuro se constitui arguido, não pode ser reproduzido em julgamento através da sua leitura.

Assim, dizemos nós, na mesma linha de raciocínio, se durante a audiência final o OPC (autuante ou não) depõe sobre o que ouviu dizer ao suspeito, que, entretanto, adquiriu a condição de arguido e este decidiu exercer o direito ao silêncio em julgamento, como ocorreu no caso, passa a existir uma proibição de valoração daquela prova (“verbalização” do arguido).

Em rigor, a informação colhida pelo OPC ao suspeito ou ao arguido não constitui prova proibida, e é legal, mas se o arguido exerce o direito ao silêncio, em julgamento, passa a ser proibido valorar o depoimento de um OPC sobre o que ouviu dizer ao suspeito ou ao arguido.

Daí o Tribunal de julgamento ter de expurgar das provas valoráveis a parte do depoimento dos OPC no segmento em que incorpora as declarações de pessoa que vem a ocupar no processo a posição de arguido, pois aquele depoimento de ouvir dizer ao suspeito não pode contribuir para a condenação do arguido, que se reservou ao silêncio em julgamento.

Neste processo a verbalização/declaração do suspeito implicaria a sua responsabilização criminal e, por esse motivo, não pode ser considerada através do relato efetuado em julgamento por testemunha órgão de policia criminal, da “verbalização” ouvida dizer ao então suspeito, ou da leitura do auto de notícia.

O depoimento do OPC na parte colocada em crise (por ouvir dizer) constitui prova exclusiva dos pontos de factos questionados em recurso, pois a demonstração do facto não se retira, sem quaisquer dúvidas, do depoimento resultante de observação direta.

Da ocorrência descrita no contexto geral dos factos e da prova (por observação direta) os elementos probatórios colhidos convergem no sentido de o arguido, a mulher e pelo menos um filho imputável criminalmente (em razão da idade) viverem na residência onde foi encontrada a arma proibida e respetivas munições. Estes objetos foram, todavia, encontrados numa mala de senhora, tendo a localização da arma sido indicada pela esposa do suspeito.

Expurgando as verbalizações do suspeito do auto de notícia e dos depoimentos dos OPC, não existe qualquer outra prova, tudo parecendo indicar que a arma era detida pela mulher do arguido, pessoa que não foi constituída arguida.

No caso impunha-se que fossem verificadas, por exemplo, a existência de impressões digitais na arma e nas munições, que a confirmarem-se poderiam ser suficientes para a condenação do arguido, em concatenação com a circunstância de a arma e as munições terem sido encontradas no interior da residência do arguido e de mais duas pessoas imputáveis criminalmente.

Na verdade, os depoimentos dos dois agentes policiais presentes durante a busca, mais não foram que uma extensão das palavras do arguido, pois quem lhes indicou que a arma e as munições se encontravam numa mala de senhora foi a mulher do arguido, tudo indicando ser esta a detentora da arma em questão.

As verbalizações autoincriminatórias do suspeito integram licitamente o auto, mas quando este adquire o estatuto de arguido e exerce o correspondente direito ao silêncio o auto deixa de poder ser valorado tal como o depoimento do OPC sobre as suas “verbalizações”.

Face ao exposto, no presente caso, existe proibição de valoração dos depoimentos das testemunhas, agentes da Polícia de Segurança Pública, na formação da convicção do tribunal. Não podendo os depoimentos das testemunhas DD e EE, agentes da Polícia de Segurança Pública, ser valorados, pois são nulos.

Daí, no caso em apreciação, não poder ser dada como provada a matéria fáctica constante dos pontos 1.9. a 1.13. tal como ali vem descrita passando a constar dos provados apenas que:

“1.9. No dia 17 de Março 2021, pelas 9h00, na Rua ..., ..., na residência dos arguidos AA e BB, no interior de uma mala própria de senhora, encontrava-se:
Uma pistola de marca ..., de calibre ... mm, modelo ...10, com o n.º..., de percussão central, de municiamento posterior, com comprimento total de 15,3 cm- cano estriado com 9 cm-, com capacidade de 8 tiros, carregador e de funcionamento semiautomático- que ao ser introduzida uma munição na câmara, após cada disparo se carrega automaticamente-, em mau estado de conservação, mas apta a produzir disparos e em condições de funcionamento; e
Uma caixa com 11 munições de projétil único encamisado, de calibre ... mm-aptas para uso na referida pistola ou qualquer outra do mesmo calibre de percussão central- de marca ..., produzidas pela ... (..., em ...), em razoável estado de conservação e funcionamento.
1.10. O arguido não possui qualquer licença de uso e porte de arma.”

Conduzindo-se a restante matéria fáctica (constante dos pontos 1.9. a 1.13.) para os factos não provados, com a consequente absolvição do arguido por falta do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime (detenção de arma proibida) pelo qual aquele se encontrava pronunciado.


III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Concede-se provimento ao recurso interposto e em consequência, revoga-se a sentença recorrida, no segmento objeto de recurso, absolvendo-se em consequência o arguido da prática do crime de detenção de arma proibida.
2. Sem custas.
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 18 de abril de 2023.

Beatriz Marques Borges - Relatora
João Carrola
Maria Leonor Esteves
___________________________
[1] Filho de (...).
[2] Sobre este tema encontram-se disponíveis para consulta na internet pelo menos três teses de mestrado onde é apontada a extensa jurisprudência e doutrina que versou sobre o tema a saber: Rita Alves Proença “As Conversas Informais”. Julho 2017. Universidade Católica Portuguesa; Beatriz Carapinha Paredes “As Conversas Informais entre o Arguido e os Órgão de Polícia Criminal: Da sua Admissibilidade Como Meio de Prova no Processo Penal Português”. Março de 2017. Universidade Católica Portuguesa; Filipa Lourenço Romano – “As ´Conversas Informais` Extraprocessuais como Meio de Prova em Processo Penal”. Fevereiro de 2015. Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, todas disponíveis para consulta online.
[3] Cf. neste sentido a tese de mestrado de Rita Alves Proença “As Conversas Informais”. Julho 2017. Universidade Católica Portuguesa, disponível para consulta em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/25589/1/As%20Conversas%20Informais_RitaPron%C3%A7a_MestrForense_Julho2017.pdf.
[4] Publicado na CJ XVII, T I, p. 21.
[5] Cit. no BMJ, n.º 445, p. 279.
[6] Quanto a este n.º 7 deve salientar-se que ainda corresponde à redação original do preceito.
[7] A redação inicial do artigo 357.º era a seguinte “1 - A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida: a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou b) Quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições ou discrepâncias sensíveis entre elas e as feitas em audiência que não possam ser esclarecidas de outro modo. 2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 e 8 do artigo anterior.”
[8] Gomes de Sousa AC RE 4.6.2013, p. 40/11.4GTPTG.E1 disponível para consulta em www.dgsi.jtre.
[9] Cf. Acórdão da RE de 4.6.2013 onde foi relator o Desembargador Gomes de Sousa.
[10] Cf. também neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 11.9.2013 proferido no processo 71/11.4GCALD.C1, relatado por José Eduardo Martins.
[11] No caso em apreciação naquele acórdão da RE um condutor fora intercetado pela prática de uma contraordenação estradal, e nessa ocasião revelou o cometimento de um crime de corrupção, pelo que só depois desse momento poderia ter sido constituído arguido e não antes.
[12] Acórdão do STJ de 30.11.2022, proferido no processo 417/14.3TACBR.C3.S1 em que foi relatora Ana Barata Brito.
[13] Cf. o Acórdão do STJ de 30.11.2022, proferido no processo 417/14.3TACBR.C3.S1, relatado por Ana Barata Brito e disponível para consulta em www.dgsi.jtre.
[14] Nos termos do artigo 243.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, “1 – Sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem: a) Os factos que constituem o crime; b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; e c) Tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos. 2 - O auto de notícia é assinado pela entidade que o levantou e pela que o mandou levantar”.
[15] Sublinhado e negrito nosso