Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1825/16.0T8STR-B.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: HABILITAÇÃO DO ADQUIRENTE
OPOSIÇÃO
CLÁUSULA RESOLUTIVA
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A admissibilidade do incidente de habilitação do adquirente, nos termos do artigo 356.º do CPC, depende da verificação dos pressupostos de aplicação do artigo 263.º do CPC, a saber: (i) estar pendente uma ação; (ii) a existência de uma coisa ou de um direito litigioso; (iii) a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação por ato inter vivos; (iv) o conhecimento da transmissão durante a ação.
II. Por sua vez, e como preveem os artigos 263.º, n.º 2 e 356.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, a parte contrária pode opor-se à substituição do transmitente pelo adquirente, aduzindo e provando dois fundamentos alternativos: (i) impugnando a validade do ato (formal ou substancialmente); (ii) a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
III. Não obsta à procedência do incidente de habilitação de adquirente de direito litigioso durante a pendência da ação, a circunstância de no contrato de compra e venda do imóvel objeto do litígio, ao abrigo do qual se pede a substituição processual da parte Ré transmitente, ter sido aposta uma cláusula resolutiva do negócio, com caráter retroativo, operando a destruição do negócio, caso a ação seja julgada procedente, sendo, então, a transmitente reinvestida no direito de propriedade do imóvel.
IV. Operando a referida cláusula resolutiva, a sentença não deixa de produzir o seu efeito útil, porquanto a Autora pode obter coativamente as prestações objeto da condenação, executando a sentença contra a primitiva Ré que voltou a ser reinvestida no direito de propriedade do bem, uma vez que, por via do artigo 54.º, n.º 1, do CPC, esta passa ser a única com legitimidade para ser executada.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
Por apenso à ação declarativa, sob a forma de processo comum, em que é Autora OBRA DO TRIUNFO DO IMACULADO CORAÇÃO DE MARIA e Rés AA e CIRCLEXCLUSIVE, LDA, veio LAÇOS D´HONRA, UNIPESSOAL, LDA, ao abrigo do artigo 356.º do CPC, deduzir o incidente de habilitação de adquirente alegando que, por escritura outorgada no dia 13-05-2020, adquiriu por contrato de compra e venda a CIRCLEXCLUSIVE, LDA, o imóvel identificado na ação principal, que corresponde ao prédio urbano sito em Moita Redonda, na rua dos Álamos e Rua da Moita de Baixo, na freguesia de Fátima, concelho de Ourém, composto por casa de habitação de rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiro andares, com logradouro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...73, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º ...28-Fátima.
Concluiu pedindo que seja declarada habilitada a intervir na qualidade de aquirente e em substituição da primitiva Ré CIRCLEXCLUSIVE, LDA.

Contestou o incidente de habilitação a Autora OBRA DO TRIUNFO DO IMACULADO CORAÇÃO DE MARIA alegando, em suma, que tem sérias razões para crer que a venda do prédio é um negócio simulado, celebrado com a intenção de prejudicar ou tornar mais difícil a sua posição processual, pelo que impugna as declarações constantes da escritura por se tratarem de falsas declarações.
Acresce que desconhece se houve tradição da coisa e que, atendendo aos pedidos formulados na petição inicial e no articulado superveniente, a substituição das Rés ou só da Ré CIRCLEXCLUSIVE, LDA pela adquirente prejudicaria a sua posição, uma vez que esta nada teve a ver com os artifícios criados para a duplicação da descrição predial, não foi autora do esbulho nem auferiu os frutos civis até à data da venda.
Deste modo, alega que, em face da condição resolutiva aposta no contrato de compra e venda, se Ré transmitente não permanecer na ação principal, a sentença não produzirá o efeito útil pretendido pela Autora.

Foi proferida sentença que julgou procedente o incidente de habilitação e, consequentemente, declarou a Requerente LAÇOS D´HONRA UNIPESSOAL, LDA habilitada, como adquirente, para intervir na ação principal, passando a ocupar, para todos os efeitos legais e processuais, a posição da Ré CIRCLEXCLUSIVE, LDA.

Inconformada, apelou a Autora/Requerida pugnando pela improcedência do referido incidente, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 1, al. a) do CPC, vem o presente recurso interposto da douta sentença de 10/10/2022, que julgou o incidente de habilitação de adquirente totalmente procedente e declarou a requerente Laços D’Honra Unipessoal, Lda. habilitada, como adquirente, para intervir na acção principal, passando a ocupar, para todos os efeitos legais e processuais, a posição da Ré Circlexclusive, Lda.
2. Da escritura pública de compra e venda de 13/05/2020, outorgada a fls. 66 a 69 do livro de notas para escrituras diversas n.º 104 do Cartório Notarial ..., situado na Av. ..., ..., ..., ..., apenas decorre que a 2.ª Ré declarou vender a “Laços D’Honra Unipessoal, Lda.” o predito prédio urbano;
3. Contrariamente ao plasmado na douta sentença recorrida, daquele título não decorre que a “Circlexclusive, Lda.” tenha transmitido à “Laços D’Honra, Unipessoal, Lda.”, todos os direitos e deveres inerentes à relação material controvertida discutida na acção;
4. A única coisa que é transmitida, por compra e venda, é o prédio urbano cuja propriedade é reivindicada pela A., ainda que o negócio tenha ficado sujeito à condição resolutiva;
5. O que sucederá em caso de procedência da presente acção, é a destruição dos efeitos daquele contrato de compra e venda, com a consequente restituição do prédio à esfera jurídica da “Circlexclusive, Lda.”, por decorrência da condição resolutiva inserta naquele título;
6. E é precisamente esse efeito jurídico que prejudica – e sobremaneira – a posição jurídica da A. na presente acção, determinando que a sentença final de mérito a proferir nos presentes autos, não possa produzir, na sua plenitude, o efeito útil pretendido pela A., porquanto:
a. A terceira adquirente (“Laços D’Honra, Unipessoal, Lda.”) não foi a autora do esbulho (acto ilícito) e nem auferiu ou privou a A. dos frutos civis gerados pelo prédio desde a data da propositura da acção (04/07/2016) até à data da escritura de compra e venda (13/05/2020), donde, não encontramos fundamento jurídico para a A. exigir da “Laços D’Honra, Unipessoal, Lda.” indemnização pelos frutos civis gerados naquele período;
b. Sendo a “Circlexclusive, Lda.” retirada do processo e não ficando abrangida pelos efeitos jurídicos da sentença na parte em se pretende a condenação na restituição do prédio ocupado, não fica obrigada a proceder à sua restituição à A. logo que se verifiquem os efeitos jurídicos da condição resolutiva do contrato de compra e venda.
7. Daqui decorre que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição da A. no processo;
8. Tanto mais que a Requerente não alegou ter ocorrido a transmissão do prédio e, atentos os artifícios já descritos na petição inicial e a total falta de colaboração já demonstrada pelas RR. nos autos principais, a A. tem sérias razões para crer que o negócio possa ser simulado, com a finalidade de prejudicar ou tornar mais difícil a sua posição processual;
9. E daí a A. ter impugnado por falsas as declarações prestadas pelos outorgantes naquele instrumento.
10.A douta sentença recorrida viola o art.º 356.º, n.º 1, al. a), in fine, do CPC.»

Não foi apresentada resposta ao recurso.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), a única questão a apreciar é a da (im)procedência do incidente de habilitação da adquirente.

B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. Por escritura pública outorgada em 13 de Maio de 2020, a requerente Laços D´Honra Unipessoal, Lda declarou comprar a Circlexclusive, Lda, que por sua vez declarou vender àquela, o prédio urbano sito em Moita Redonda, na Rua dos Alamos e Rua da Moita de Baixo, na freguesia de Fátima, concelho de Ourém, composto de casa de habitação de rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiro andares, com logradouro, inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...73, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º ...28-Fátima, pelo preço de € 225.000,00.
2. Na mesma escritura os outorgantes declararam ainda o seguinte:
“Que submetem esta compra e venda (…) à condição resolutiva, destruindo-se automática e retroativamente os efeitos do negócio condicionado, no caso de haver procedência da ação acima mencionada (…).
“Que este contrato de compra e venda produz os seus efeitos normais, mas está suspensa sobre a sua eficácia a possibilidade de verificação do evento condicionante (procedência da referida ação).
“Verificada a condição há a destruição automática e retroativa dos efeitos do negócio, o que fará perder a eficácia dos atos dispositivos da parte compradora condicional.
“Não verificada a condição, os efeitos do negócio consolidam-se, radicando-se, definitivamente, a posição da compradora”.
3. Pela Ap. ...61 de 2019/12/02, encontra-se inscrita a favor da requerente Laços D´Honra Unipessoal, Lda o direito de propriedade sobre o prédio identificado no n.º 1.
4. Na acção principal a autora deduziu os seguintes pedidos:
A-) Ser declarado e reconhecido o direito de propriedade da A. sobre o prédio supra melhor identificado nos artigos 1º e 10º;
B-) Serem as Rés condenadas a reconhecerem aquele direito de propriedade da A. sobre o aludido prédio;
C-) Serem as Rés condenadas a restituírem de imediato aquele prédio à A. devoluto de pessoas e coisas e na situação anterior;
D-) Serem as Rés condenadas a absterem-se da prática de quaisquer actos que atentem e violem aquele direito de propriedade da A. sobre o aludido prédio;
E-) Serem declarados falsos os documentos forjados pela 1ª Ré para titular em seu nome o prédio da A. e que deu origem à descrição predial n.º ...28 e à inscrição matricial sob o artigo ...73;
F-) Ser declarado inexistente ou nulo o contrato de compra e venda celebrado entre as Rés e referente ao prédio com a descrição predial e inscrição matricial referidas na alínea anterior;
G-) Serem declarados falsos e cancelados os registos e a inscrição matricial referenciados supra na alínea E-), pois titulam prédio inexistente;
H-) Serem notificadas a Conservatória do Registo Predial de Ourém e a Repartição de Finanças de Ourém para procederem ao cancelamento daquelas descrição predial e inscrição matricial;
I-) Ser a 2ª Ré condenada a abster-se de alienar, hipotecar, onerar ou celebrar quaisquer contratos tendo por objecto o prédio com aquelas descrição predial e inscrição matricial supra aludidas na alínea E-);
J-) Serem declarados nulos ou inexistentes os actos e contratos referidos na alínea anterior porventura já praticados pela 2ª Ré;
L-) Serem cancelados todos e quaisquer actos e contratos referidos na alínea I-), devendo ser notificada a Conservatória do Registo Predial de Ourém desse cancelamento (…).
5. Em articulado superveniente a autora veio pedir a condenação das rés no pagamento dos rendimentos produzidos pelo aludido prédio durante todo o período da sua ocupação ilegal.

C- De Direito
A sentença recorrida decretou a habilitação da Requerente e adquirente do imóvel em causa nos autos por considerar que estão preenchidos os pressupostos do artigo 356.º do CPC, porquanto «Com a transmissão da coisa (imóvel) objeto do litígio, ainda que sujeita a condição resolutiva, foram transferidos para a requerente Laços D´Honra Unipessoal, Lda, na qualidade de adquirente, todos os direitos e deveres inerentes à relação material controvertida discutida na acção principal de que estes autos são apenso», acrescentando ainda «Será, portanto, na esfera jurídica da requerente/adquirente que se produzirão os efeitos jurídicos da procedência da acção principal, quer quanto aos pedidos deduzidos na petição inicial, quer quanto à pretensão apresentada no articulado superveniente.»
Considerando também que «(…) a requerida Obra do Triunfo do Imaculado Coração de Maria limitou-se a apresentar meros juízos conclusivos e valorativos, mormente quanto à existência de um negócio simulado, que teria sido celebrado com a intenção de prejudicá-la ou tornar mais difícil a sua posição no processo (cfr. arts. 7.º e 8.º da oposição). Não só não foram alegados factos concretos, ainda que indiciários, que pudessem sustentar tal versão, como não requereu a produção de qualquer prova.
Nada obsta, pois, a que se admita a requerida substituição processual.»

Discorda a apelante invocando que a sentença recorrida violou o 356.º, n.º 1, alínea a), in fine, do CPC, pois com a procedência da ação, por via da cláusula resolutiva inserta no contrato de compra e venda, ocorrerá a destruição dos efeitos do negócio, não produzindo a sentença de mérito, na sua plenitude, o efeito útil pretendendo pela Autora, uma vez que: (i) a adquirente não foi a autora do esbulho, nem auferiu os frutos civis gerados pelo prédio entre a data da propositura da ação e a data da escritura de compra e venda, não existindo fundamento jurídico para dela exigir a respetiva indemnização; (ii) não fica obrigada à restituição do imóvel como pedido, assim que se verificarem os efeitos da cláusula resolutiva; (iii) a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição da Autora no processo, tendo razões, atento o comportamento da Ré vendedora, para crer que o negócio foi simulado, daí ter impugnado, por falsas, as declarações dos outorgantes apostas naquele instrumento.

Vejamos, então, se a sentença recorrida padece do vício que a Apelante lhe aponta.
O incidente de habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, regulado no artigo 356.º do CPC, é um incidente da instância que tem como efeito a modificação subjetiva da instância por modificação da mesma quanto às pessoas (artigos 259.º e 262.º, do CPC).
Decorre da previsão do n.º 1, alíneas a) e b) do artigo 356.º do CPC, que regula a substituição da parte na lide processual por ter ocorrido uma alteração substantiva na relação em litígio no que concerne às partes, que a substituição pode ocorrer em relação à coisa objeto do litígio, tendo na base um ato inter vivos, como é o caso da compra e venda de um determinado imóvel.
Importa, porém, realçar que este incidente «(…) visa a modificação dos sujeitos na lide, pelo que os seus efeitos são de natureza meramente processual, ou seja, não comporta a discussão e decisão sobre o direito que constituí o próprio objecto da causa.»[1]
No que concerne à legitimidade para a sua dedução, estipula o n.º 2 do artigo 356.º do CPC, que «A habilitação pode ser promovida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária», pelo que, tendo a Requerente alegado e demonstrado a aquisição do bem objeto do litígio na lide principal, tem legitimidade para instaurar o presente incidente.
A admissibilidade do incidente de habilitação do adquirente, nos termos do artigo 356.º do CPC, depende da verificação dos pressupostos de aplicação do artigo 263.º do CPC, a saber. (i) estar pendente uma ação; (ii) a existência de uma coisa ou de um direito litigioso; (iii) a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação por ato inter vivos; (iv) o conhecimento da transmissão durante a ação.
Por sua vez, e como preveem os artigos 263.º, n.º 2 e 356.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, a parte contrária pode opor-se à substituição do transmitente pelo adquirente, aduzindo e provando dois fundamentos alternativos: alínea a) – impugnando a validade do ato (formal ou substancialmente); alínea b) – a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
No caso presente, encontra-se se verificado o requisito pendência da ação e a natureza litigiosa do direito que constitui o objeto processual, já que a coisa ou direito litigioso adquirem essa natureza a partir do momento em que são objeto de um pedido formulado numa ação judicial e o Réu é citado para a ação (cfr. artigo 259.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Também se encontra demonstrada a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação por ato inter vivos, por ter sido junta aos autos a escritura de compra e venda, com o consequente conhecimento da transmissão durante a ação.
Importa já referir que a cláusula resolutiva inserida no contrato de compra e venda em nada altera a verificação destes pressupostos, uma vez que a habilitação de adquirente não é legalmente excluída quando a transmissão do direito de propriedade foi realizada através de um negócio condicional.
Efetivamente, a compra e venda entre particulares pode ser celebrada condicionalmente, ou seja, não é um negócio incondicional, seja por força da lei ou da índole do negócio, não estando em causa razões de interesse público, a necessidade de proteção do comércio jurídico ou outra razão jurídica ou socialmente atendível.[2]
Nos termos do artigo art.º 270º do Código Civil, conjugado com o artigo 405.º do mesmo Código, ao abrigo da liberdade negocial, as partes podem condicionar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a resolução; no segundo, resolutiva.
A cláusula resolutiva é uma condição que opera do seguinte modo: «(…) o negócio começa por produzir os seus efeitos, mas estes dissolvem-se, deixam de produzir-se, sendo destruídos retroactivamente, se o evento condicionante se verificar.»[3]
Como decorre do artigo 276.º do Código Civil, quando ocorre a destruição automática dos efeitos do negócio, a regra é que essa cessação seja retroativa, embora a isso se possa opor a vontade das partes ou a natureza do negócio.

No caso em apreço, atenta a estipulação das partes, que não afastaram a retroatividade, bem pelo contrário, e também não obstando a tal a natureza do negócio, a inserção da cláusula resolutiva significa que, caso a ação principal seja julgada procedente (evento condicionante), os efeitos da transmissão do direito de propriedade para a esfera jurídica da adquirente do direito de propriedade sobre o imóvel objeto do litígio nestes autos, são destruídos retroativamente e, consequentemente, o direito de propriedade volta a radicar-se na esfera jurídico patrimonial da vendedora CIRCLEXCLUSIVE, LDA.
Todavia, esta condicionante, como já referido, em nada obsta à procedência do incidente de habilitação e aos efeitos processuais do mesmo, porquanto a habilitação do adquirente coloca-o no lugar e na posição processual que o transmitente ocupava na lide, de modo a permitir que a causa prossiga entre os atuais titulares da relação jurídica controvertida.
O habilitado, sucedendo na posição processual do transmitente, passa a exercer os mesmos direitos e fica sujeito ao cumprimento das mesmas obrigações processuais que àquele competiam, sem interferir com o objeto da causa, ou seja, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objeto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir.

Tendo a parte contrária contestado o incidente, a procedência do mesmo não se basta com o preenchimento dos requisitos acima assinalados.
É ainda necessário aferir se estão verificados os pressupostos que podem determinar a sua improcedência.
Neste caso, o juiz tem de apreciar os fundamentos invocados pelo contestante que se reportam, como já referido, à validade do ato ou à alegação da transmissão se ter realizado para tornar mais difícil a posição do contestante no processo.
No caso, a Autora alegou no artigo 7.º da sua contestação que «(…) tem sérias razões para crer que o negócio possa ser simulado, com a finalidade de prejudicar ou tornar mais difícil a sua posição processual, pelo que desde já impugna por falsas as declarações prestadas pelos outorgantes naquele instrumento».
O documento em causa é uma escritura pública, um documento autêntico, que faz prova plena quanto às declarações nele exaradas por terem sido prestadas perante um notário (cfr. artigos 369.º, n.º 1, 370.º e 371.º do Código Civil).
A sua força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (artigo 372.º do Código Civil).
O incidente de falsidade encontra-se tipificado e obedece a alegação factual específica e a uma tramitação própria, como decorre dos artigos 444.º e 446.º do CPC.
No caso, não consta dos autos que a Autora tenha suscitado formalmente qualquer incidente de falsidade da escritura pública de compra e venda junta aos autos.
Por conseguinte, a alegação de que crê existirem fundamentos sérios para que o negócio seja simulado e, simultaneamente, invocar que impugna as declarações prestadas pelos outorgantes, não corresponde à forma processual adequada para colocar em crise a genuinidade e/ou autenticidade ou a força probatória de tal documento.
O que significa que tal alegação não obsta à habilitação da adquirente.

Também alega a Autora que a transmissão foi feita para tornar a sua posição mais difícil no processo.
Atenta o teor da alegação, não podemos deixar de corroborar o que foi escrito na sentença recorrida quando refere que a alegação é meramente conclusiva e valorativa e nem sequer se ancora num pedido de produção de prova em vista à demonstração dessa alegação.
Importa acrescentar que este fundamento da oposição ao decretamento do incidente de habilitação do transmitente ou cessionário, que remonta ao direito romano e ao direito medieval, e tinha como escopo evitar «(…) que a transmissão viesse romper o equilíbrio de forças ente os litigantes (…)» resulta de, na altura, a lide ser vista como uma contenda entre litigantes, na qual o juiz tinha um papel passivo.
Nesse paradigma de litigância, a desigualdade económica e social exercia influencia decisiva sobre o desfecho da lide, donde a «(…) substituição alterava profundamente o statu quo e traduzia-se em grave surprêsa e detrimento para a parte contrária.»[4]
Atualmente, esse argumento perdeu grande parte da sua força, considerando o papel interventivo do juiz no processo civil hodierno, bem como a consagração de outros princípios processuais, pontuando, no caso, o princípio da igualdade substancial das partes (artigo 4.º do CPC e 20.º da CRP). Ainda assim, a norma mantém-se, salvaguardando eventuais situações em que a substituição por via da habilitação redunde em prejuízo do adversário do transmitente por passar a litigar com o adquirente em vez do transmitente.
Todavia como sublinhava na sua obra o Prof. ALBERTO DOS REIS, «(…) não basta demonstrar que, em consequência da substituição, se agravará a posição da parte contrária, por ter de defrontar um adversário mais forte do que o adquirente; é indispensável que se apure ter a transmissão sido feita para se obter esse resultado», ou seja, «é necessário que o juiz adquira a convicção de que a transmissão obedeceu a um propósito malicioso: o de criar embaraços ao adversário e fazê-lo sucumbir.»[5]
Ora, no caso em análise, a alegação da Autora não atingiu um grau de concretização factual que possa levar a formar-se convicção no sentido exigido pela lei.
Donde, não se pode concluir que se encontre preenchido o fundamento enunciado na parte final do n.º 1, alínea a), do artigo 356.º do CPC, impeditivo da procedência do incidente de habilitação.

Há ainda que analisar o argumento da Apelante que incide sobre a questão do efeito útil da ação.
A intervenção da adquirente na causa, para com ela prosseguir a causa substituindo a primitiva Ré, transmitente do direito de propriedade sobre o imóvel em disputa, determina que a sentença produz efeitos em relação à adquirente por força do disposto no artigo 263.º, n.º 2, do CPC.
Caso a mesma não tivesse intervenção nos autos, o que poderia suceder porquanto a habilitação baseada em negócio inter vivos é facultativa, como decorre da previsão do n.º 1 do artigo 263.º do CPC, a sentença também produzia efeitos em relação à adquirente, exceto se a ação, estando sujeita a registo (como é o caso), a adquirente tivesse procedido ao registo da transmissão antes de feito o registo da ação. O que, no caso, não ocorre, pois o registo da ação tem data de 31-03-2017 e o registo da transmissão tem data de 02-01-2019, ou seja, o registo da ação é anterior ao da transmissão, pelo que mesmo que a adquirente não tivesse intervenção nos autos sempre ficaria abrangida pelos efeitos da sentença proferida nos autos principais.
Porém, a questão que a ora Apelante suscita é outra, pois a adquirente pretende intervir na causa e tendo sido deferida a sua pretensão, entende que a sentença não produz efeito útil em relação à primitiva Ré, transmitente do direito de propriedade sobre o bem em disputa e pedidos conexos com a mesma.
O argumento da Apelante, à primeira vista, parece ter alguma pertinência, pois, por um lado, não é admissível que se mantenha na lide, em simultâneo, a transmitente e a adquirente por a consequência jurídica típica do incidente de habilitação ser precisamente a substituição processual subjetiva de uma das partes e, por outro lado, os normativos que regulam o incidente de habilitação não preveem a situação em que o adquirente habilitado, após a decisão da ação, deixa de ser proprietário do bem em disputa e das responsabilidades que foram definidos em relação ao mesmo na sentença que decidiu o litígio.
Porém, a questão deve ser vista noutra perspetiva.
Em primeiro lugar, desde que o incidente de habilitação seja julgado procedente, a sentença constitui caso julgado em relação à adquirente habilitada, pois ao substituir na lide a transmitente (primitiva Ré), passou a ser a verdadeira Ré na ação. A sentença obriga-a porque é parte no processo; não é um terceiro. Consequentemente, encontra-se obrigada a acatar a decisão (artigos 619.º a 621.º do CPC)
Em segundo lugar, se após o trânsito em julgado da sentença, por força do funcionamento retroativo da condição resolutiva, deixa de ter na sua esfera jurídica o direito de propriedade a que se reporta a sentença e demais direitos/deveres conexos com o mesmo, abrangidos pela decisão condenatória, por voltarem a radicar-se na esfera jurídica da transmitente, a questão passa a colocar-se no âmbito da determinação da legitimidade para a execução com base naquele título executivo (sentença) aplicando-se, então, o disposto no artigo 54.º, n.º 1, do CPC, que estabelece um desvio à regra geral prevista no artigo 53.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Assim, a legitimidade para a execução do lado passivo não é deferida a quem no mesmo nele figura como devedor, mas sim ao sucessor daquele que figura no título como devedor, tenha a sucessão ocorrido por negócio entre vivos ou mortis causa.
«Tendo havido sucessão, entre vivos ou mortis causa, na titularidade da obrigação exequenda, entre o momento da formação do título e o da propositura da ação executiva, seja do lado ativo, seja do lado passivo, devem tomar, desde logo, a posição de parte, como exequentes ou como executados, os sucessores das pessoas que figuram no título como credores ou devedores», ocorrendo aqui uma especialidade, pois, «(…) enquanto na ação declarativa o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for admitido a substituí-lo (art. 263-1), na ação executiva apenas este tem legitimidade para litigar.»[6]

Verifica-se, pois, que caso a cláusula resolutiva aposta no contrato de compra e venda venha a operar e a destruir retroativamente o negócio que permitiu a substituição processual da primitiva Ré, transmitente do direito de propriedade sobre o imóvel objeto dos autos e direitos com ele conexos, pela adquirente habilitada, sendo a transmitente reinvestida naqueles direitos, a sentença condenatória não deixa de produzir o seu efeito útil, porquanto a Autora pode obter coativamente a sua execução contra a primitiva Ré por ter readquirido por negócios entre vivos, o dito direito do propriedade e os correspondentes direitos e deveres inerentes ao mesmo, passando a ser a única a deter legitimidade passiva para ser executada pro força do artigo 54.º, n.º 1, do CPC.

Em face de todo o exposto, não se verifica o vício apontado à sentença recorrida, dado estarem preenchidos os pressupostos da requerida habilitação, improcedendo a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 02-03-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)

__________________________________________________
[1] SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, Almedina, 5.ª ed. at., p. 278.
[2] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra 1987, p. 360-366.
[3] MANUEL ANDRADE, ob. cit., p. 366.
[4] ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 3.ª ed., p. 78-80.
[5] Ob. cit. p. 79-80.
[6] LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 3.ª ed., p. 110-111 (2).