Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
310/15.2T8OLH.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
1 - Ainda que exista ativo a liquidar o juiz no despacho inicial de admissão do incidente de exoneração do passivo restante deve declarar o encerramento do processo de insolvência circunscrito unicamente aos efeitos desse incidente, designadamente para contagem do início do prazo de cessão do rendimento disponível.
2 - De acordo com a redação do n.º7 do art.º 233.º do CIRE, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30/7, em vigor desde 1 de julho de 2017, o legislador dissipando a controvérsia existente, admitiu expressamente o encerramento do processo de insolvência, para o fim visado, ainda que existam bens a liquidar e sem ter lugar a liquidação integral da massa e rateio final.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:





ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

aa apresentou-se à insolvência, em ação que corre termos no Tribunal da Comarca de Faro (Juízo de Comércio de Olhão – J2) tendo requerido exoneração do passivo restante.
Por decisão de 12/12/2017 tal pretensão foi admitida liminarmente e em consequência foi também decidido:
Existe ativo a liquidar.
Assim:
1. declaro encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art. 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE, sem prejuízo do prosseguimento dos apensos de reclamação de créditos e de liquidação do ativo, bem como dos pagamentos a efetuar aos credores;
2. não existindo motivos, de acordo com o relatório apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência, para considerar que a insolvência é culposa, declara-se que a mesma é fortuita – art. 233.º, n.º 6, do CIRE;
3. declaro produzidos os efeitos previstos no art. 233.º, do CIRE, exceto os que forem incompatíveis com o deferimento liminar da exoneração do passivo acima decidido e com o referido em 1. (…)
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Irresignada com tal decisão veio a Exma Magistrada do Ministério Público dela interpor recurso terminando nas suas alegações por formular CONCLUSÕES, do seguinte teor:
1. O Mmo. Juiz a quo, após a prolação do despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, decidiu declarar encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art.º 230º n.º 1, al. e) do CIRE, declarando que não se produziam os efeitos previstos no art.º 233º do CIRE.
2. A única questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se uma vez proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, e perante a existência de bens a liquidar, podia ter sido ordenado o encerramento do processo.
3. O corpo do n.º 1 do art.º 230º do CIRE delimita o seu campo de aplicação, restringindo-se aos factos determinantes do encerramento do processo de insolvência que se verificam na hipótese de ele prosseguir após a declaração de insolvência.
4. Quando o processo prossiga as causas do seu encerramento constam das alíneas do n.º 1, merecendo especial relevo para a decisão do presente recurso as alíneas a) e e), esta introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.
5. Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o encerramento só deverá ser determinado depois de realizada a liquidação e o rateio final, ressalvando-se apenas a situação prevista no art.º 239º n.º 6 do CIRE.
6. Só se procede ao rateio final e distribuição do respetivo produto pelos credores após a liquidação dos bens que integram a massa insolvente, donde para que esta possa ser feita deve estar pendente a instância insolvencial.
7. Tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património que deve ser liquidado na pendência do processo ou não há e, então, o processo pode e deve ser encerrado no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.
8. O que resulta da alínea e) do n.º 1 do art.º 230º é que o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante não obsta ao encerramento do processo de insolvência de que pende, e se à data do despacho inicial já existirem elementos que revelem a inexistência de bens, deve o tribunal declarar o encerramento.
9. Se a liquidação ainda não tiver sido iniciada ou concluída, não há fundamento para a aplicação da alínea e) do art.º 230º do CIRE, aplicando-se o regime regra previsto na alínea a) do mesmo preceito legal.
10. Não faz qualquer sentido, uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência, quando ainda não foi levada a cabo a primordial função do mesmo, erigida pelo legislador a finalidade do processo de insolvência, a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (cfr. art.º 1º n.º 1 do CIRE).
11. A existência de bens na massa para liquidar impede o encerramento no despacho inicial de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, razão porque inevitável é o art.º 230º n.º 1 al. e) dever ser objeto de interpretação restritiva.
12. O encerramento do processo de insolvência constitui uma fase final do mesmo, pelo que deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos no mesmo processo, referidos no art.º 1º, do CIRE.
13. Assim, se à data do despacho inicial do pedido de exoneração do passivo restante já existirem elementos nos autos que revelem a inexistência de ativo a liquidar, deve o juiz declarar o encerramento do processo de insolvência.
14. Mas se o património do devedor tiver bens para liquidar e a liquidação e o rateio ainda não tiver terminado, então não existe fundamento para encerrar o processo no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, mesmo que esta decisão seja apenas para efeitos de início do período de cessão.
15. Ao interpretar o art.º 230º n.º 1 al. e) do CIRE como se o mesmo permitisse encerrar o processo de insolvência sem a liquidação e o rateio estarem realizados, o tribunal interpretou erradamente aquela norma, dando-lhe um sentido que não é adequado à situação concreta.
Nestes termos deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos para realização da liquidação e rateio final.
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Apreciando e decidindo

Como é sabido o objeto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso - (artigos 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, todos do CPC).
Assim, a questão a apreciar circunscreve-se em saber se proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, e perante a existência de ativo a liquidar, se pode ordenar o encerramento do processo de insolvência nos termos consignados na decisão recorrida.
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Na apreciação da questão há que ter em conta o supra descrito, que nos dispensamos de transcrever de novo.
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Conhecendo da 1 ª questão
Ao que nos é dado constatar, a questão em apreciação vem sendo levantada no Juízo de Comércio de Olhão, já tendo este Tribunal Superior emitido pronúncia por diversas vezes (designadamente, Ac. de 25/01/2018, no processo 774/16.7T8OLH.E1; Ac. de 08/02/2018 no processo 412/17.0T8OLH.E1; Ac. de 22/02/2018 no processo 1170/15.9T8OLH.E1; Ac. de 08/03/2018 no processo 358/16.0T8OLH.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt) tendo as decisões sido proferidas em sentido coincidente assumindo-se como relevante para esse efeito a alteração introduzida no artº 233º do CIRE (aditamento do n.º 7) pelo Dec. Lei 79/2017 de 30/06,[1] pelo que entendemos ser de corroborar o entendimento neles perfilhado sobre a questão em apreciação, de modo que, na argumentação e decisão, iremos seguir de perto o acórdão proferido 08/03/2018, com a alterações decorrentes da especificidade do presente processo.
Antes das alterações ao CIRE decorrentes do Dec. Lei 79/2017 de 30/06 prevalecia o entendimento, no que se refere ao encerramento do processo de insolvência, que não obstante o disposto no artº 230º n.º 1 al. e) do CIRE, até ao encerramento da liquidação e rateio final, não deve o juiz declarar o encerramento do processo, só o devendo fazer na sequência do despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, se inexistissem bens a liquidar, e só nesta circunstância, impondo-se que, na sua existência, e não estando concluída a respetiva liquidação, conforme decorre da alínea a) do nº 1 do artº 230º, do CIRE, que estatui, em termos gerais, sobre o encerramento do processo de insolvência, este não pudesse ocorrer.
Daí que a existência de bens na massa para liquidar impedisse que o juiz decretasse o encerramento no despacho inicial.
“Tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património atual que deve ser liquidado, ou não há. Neste ultimo caso, tanto pode suceder que a inexistência seja já conhecida à data do proferimento do despacho inicial do incidente, como não.
Ora, se houver património a liquidar, não se vê como deva – ou possa – o despacho inicial declarar o encerramento do processo de insolvência, o qual só terá lugar após a concretização da liquidação e rateio”[2].
Como, na mesma senda, se salienta no Ac. do TRG de 07/05/2015[3] «também para Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, Almedina, 2015, 344 e 540 e segs. e sendo incontornável (em face do disposto no art.º 239º, nºs 1,2 e 6 do CIRE) que com o encerramento do processo de insolvência apenas após a concretização da liquidação e rateio, verifica-se um atraso do início do período da cessão, a verdade é que, caso o despacho inicial decretasse sempre o encerramento do processo e quando nessa altura o processo de insolvência ainda não estava encerrado, o devedor com bens sairia profundamente beneficiado, pois que, se a regra é a do inicio da venda dos bens apenas ocorrer após a assembleia de apreciação do relatório (cfr. artº 158º), sendo nesta mesma assembleia proferido o despacho inicial e que declararia igualmente o encerramento do processo, então “não haveria assim tempo para proceder à venda de bens do devedor”.
Daí que, conclui Soveral Martins “a existência de bens na massa para liquidar impeça que o Juiz decrete o encerramento no despacho inicial”, razão porque inevitável é o artº 230º, nº 1, alínea e), do CIRE, dever “ser objeto de interpretação restritiva”, tudo apontando que tenha surgido para “situações em que se verifica a insuficiência e bens do insolvente e este beneficia do deferimento do pagamento das custas”».
No mesmo sentido também se pronuncia Luís Manuel Teles de Menezes Leitão,[4] afirmando que “o encerramento do processo de insolvência constitui a fase final do mesmo, pelo que logicamente deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos nesse mesmo processo, a que se refere o artº 1º, ou seja, a liquidação do património do devedor e a repartição do respetivo produto pelos seus credores [cfr. artº 230º, nº 1, a)], ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, cuja decisão de homologação tenha transitado em julgado, se a isso não se opuser o conteúdo deste”.
Havia, assim, o entendimento generalizado de que o encerramento a que se alude na alínea e) do nº 1 do artigo 230º do CIRE, só deveria ser decretado nas situações em que se verificava a insuficiência de bens.
Todavia, como se evidencia das alterações introduzidas ao CIRE pelo Dec. Lei 79/2017 de 30/06 que passaram a vigorar a partir de 01/07/2017 sendo aplicável embora com exceções, aos processos pendentes, o legislador tomou posição expressa sobre tal problemática clarificando em que momento deve ser proferida a decisão de encerramento do processo insolvencial existindo despacho inicial de exoneração do passivo restante, e qual o alcance da mesma na tramitação dos autos, introduzindo um novo número (7.º) no artº 233º do CIRE no qual se dispõe que “o encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 230º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, certamente com vista em não protelar exageradamente (o que acontecia muitas vezes) o início do período de cessão do rendimento disponível, conforme, até, também se evidencia do teor do n.º 6 do artº 6º (norma transitória) do citado Dec. Lei 79/2017.
A necessidade de alguma modificação da lei no sentido de consignar expressamente o que se pretendia verdadeiramente com o consignado na alínea e) do n.º 1 do artigo 230º do CIRE e levava a doutrina e a jurisprudência a fazer uma interpretação restritiva ao preceituado, era há muito afirmada pela doutrina, pois “se não há insuficiência da massa e há liquidação, o encerramento do processo de insolvência terá lugar após a realização do rateio final (art.º 230.º, n.º1, al. a). Não faz então qualquer sentido aplicar nessa hipótese o art.º 230.º, n.º 1, al. e)[5], e essa modificação ocorreu com a inclusão de um.º 7 no artº 233º do CIRE.
Por isso, como bem se salienta no aludido acórdão desta Relação de 22/02/2018 (processo 1170/15.9T8OLH.E1) presentemente “à luz da letra da lei é claro que se divisa a intenção de conceder autonomia à al. e) do nº 1 do artigo 230º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e assim o intérprete fica compelido a declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal ainda não tenha previamente sucedido”, independentemente de existir, ou não, ativo, ainda, a liquidar.
Parece resultar assim como assumido pelo legislador, em face do que vinha sendo a experiência decorrente da aplicação que era feita da lei, até então, colocar o devedor insolvente “a salvo da demora desgastante em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência, conferindo-se eficácia renovada ao incidente da exoneração do passivo restante: o princípio do fresh start, visando a reintegração plena do devedor na vida económica, não se compagina com a manutenção do devedor paralisado por longo período durante o qual ocorrem as vicissitudes do processo de insolvência, sendo antes imperioso que possa cumprir, desde logo e durante o prazo fixo de cinco anos, as obrigações legais que lhe permitirão alcançar a sua reabilitação económica”[6]
Deve concluir-se, assim, que perante a aplicação conjugada das normas do CIRE, após a redação introduzida pela Dec. Lei 79/2017, já em vigor à data da decisão recorrida, que se impõe a declaração de encerramento do processo de insolvência aquando a prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante em consonância como o que dispõe o art.º 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE, mas, desde que existam bens ou direitos a liquidar, o encerramento determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, conforme determina o art.º 233.º, n.º 7, do CIRE, pois da expressão adverbial “unicamente” transparece que os outros efeitos do encerramento previstos no artigo 233º do CIRE não se produzem, embora “como há bens a liquidar, deve proceder-se a essa liquidação no processo de insolvência”.[7]
A decisão impugnada embora declare encerrado o processo de insolvência nos termos do previsto no art.º 230º n,º 1 al. e) do CIRE e permita a possibilidade de proceder à liquidação do ativo e dos pagamento a efetuar aos credores [ponto 1], (o que parece ir de encontro à pretensão da recorrente que pretende ver o processo prosseguir), declara também que são produzidos os efeitos previstos no art.º 233.º, do CIRE, exceto os que forem incompatíveis com o deferimento liminar da exoneração do passivo acima decidido [ponto 3], donde considerando que todos os efeitos decorrentes do encerramento do processo que se mostram enunciados no art.º 233.º, n.º 1, do CIRE, parece existir contradição na decisão, pelo que há que clarificá-la, de modo a que no âmbito do encerramento decretado se observe, tão só, o decorrente regime legal consagrado no citado n.º 7 do art.º 233.º do CIRE.
Em consequência, a apelação procederá, apenas, parcialmente, não se atendendo à pretensão que visa a declaração do não encerramento do processo, havendo, apenas e tão só, que clarificar o restringir o seu âmbito em conformidade com o regime legal supra aludido.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, alterar a decisão recorrida, declarando-se o encerramento do processo de insolvência nos termos da al. e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, mas que tem por efeito, unicamente, o início do período de cessão do rendimento disponível.
Sem custas.

Évora, 22 de Março de 2018
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo

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[1] - Não olvidamos a existência de decisão em sentido divergente, mas na qual não se aludiu à alteração efetuada no artº 233º do CIRE e à relevância (ou não) dessa alteração, assumindo como correto o entendimento que antes dessa alteração vinha prevalecendo – Ac. desta Relação de 22/02/2018 no processo 221/14.9TBABF.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] - v. Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 2ª edição, 875.
[3] - No processo 49814.0TBGMR-G.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] - In Direito da Insolvência, 4ª edição, 301.
[5] - v. Alexandre Soveral Martins in Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, 540 a 542.
[6] - v. Acórdão do TRE de 25/01/2018, já citado.
[7] - v. Alexandre Soveral Martins “A Reforma do CIRS e as PMES”, in Estudos de Direito da Insolvência, 2018, 21.