Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5/12.9GCRMZ.E1
Relator: PROENÇA DA COSTA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
UNIDADE E PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 10/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
I - A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.

II - Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.

III - No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…

IV - Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.

V - Embora se esteja perante a detenção pelo arguido de dois tipos de armas de diferentes características - integrando-se uma delas na previsão da alínea c) e duas delas na alínea d), do artigo 86.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio -, não deixa de ser o mesmo o bem jurídico protegido. Para lá de existir, face à matéria de facto tida como assente, unidade de resolução criminosa, a fazer com que se conclua pelo cometimento de um único crime de detenção de arma proibida, a punir pelo art.º 86.º, n.º1, al.ª c), da citada Lei, por se tratar da conduta mais grave, devendo a detenção das demais armas proibidas ser considerada, em termos de agravamento da ilicitude e consequentemente na medida da pena.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, a correrem termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Reguengos de Monsaraz, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido:

A., filho de..., natural da freguesia e concelho de Mourão, nascido em 25.05.1966, casado, desempregado, titular do Bilhete de identidade n.º ---residente na... Aldeia da Luz, Mourão, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada:

- de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152° nos 1, al. b) e 2 do Código Penal.

- de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea m) e 3.º, n.º 2, alínea f), todos da Lei nº 5/2006, de 23/02, na versão da Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio.

- de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea g) e 3.º, n.º 5, alínea g) todos da Lei nº 5/2006, de 23/02, na versão da Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio.

- de uma contra-ordenação, prevista e punida pelo artigo 97.º, com referência à alínea d) do n.º 9 do artigo 3.º e alínea f) do n.º 1 do artigo 2.º todos da Lei nº 5/2006, de 23/02, na versão da Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio.

O arguido não apresentou contestação nem arrolou testemunhas.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, vindo-se, no seu seguimento, a prolatar pertinente Sentença, onde se Decidiu:

a) Condenar o arguido JA., pela prática de um crime de violência doméstica qualificado, p. e p. no art. 152º, n.ºs 1 al. a) e 2, do Cód. Pen., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b) Suspender a execução da referida pena por igual período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;

c) Condenar o arguido pela prática de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.°, n.º 1, alínea c), e pelo art.º 86.°, n.º 1, alínea d), todos do Regime Jurídico das armas e suas munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro), nas penas de 100 (cem) e 120 (cento e vinte) dias de multa, respectivamente;

d) Em cúmulo, aplicar ao arguido a pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo a quantia total de 900,00 (novecentos euros);

e) Condenar o arguido pela prática da contra-ordenação p. e p. no art. 97º, do Regime Jurídico das armas e suas munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro), na coima de € 600,00 (seiscentos euros);

f) Declarar perdidas a favor do Estado as armas e as munições apreendidas nos presentes autos (artigo 109.º, do Cód. Pen.) uma vez que as mesmas, pela sua natureza, são susceptíveis de pôr em perigo a segurança das pessoas e oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de factos ilícitos.

Inconformado com o assim decidido, traz o arguido o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

a) Relativamente ao crime de violência doméstica, entende o recorrente que há insuficiência de prova produzida que o levou a ser condenado pelo referido crime.

b) Acontece que apenas foi ouvida uma testemunha no decorrer da audiência de discussão e julgamento, sendo este depoimento insuficiente para imputar ao arguido esse crime.

c) Refere a testemunha DR que nunca assistiu a qualquer agressão física por parte do arguido na pessoa da ofendida.

d) Apenas e durante o período em que viveu na casa do arguido e da ofendida, a partir do ano de 2009 ou 2010, ter ouvido algumas discussões entre o casal, onde o arguido proferiu as palavras e as expressões constantes na douta sentença, não tendo precisado quantas vezes o arguido as proferiu.

e) Foi dado como provado que estas palavras e expressões foram proferidas ao longo da coabitação do casal, que começou em 15 de Julho de 1984, quando a testemunha referiu que apenas foi viver com o casal no ano de 2009 ou 2010, logo é nosso entender que deveria ter ficado provado que só a partir desse ano é que as discussões do casal começaram e não ao longo da coabitação do casal, por não existir prova.

f) A testemunha referiu que nunca levou a sério as expressões consideradas pelo Tribunal “a quo”, como ameaçadoras, proferidas pelo arguido, uma vez que o mesmo é uma pessoa não violenta, não acreditando que o arguido fosse capaz de agredir fisicamente a ofendida.

g) Relativamente às mensagens que o arguido alegadamente enviou para a ofendida, foi considerado pelo Tribunal recorrido que eram de teor ameaçador. Ora para se consideram que estamos perante ameaças, salvo melhor opinião, é necessário que o agente provoque no sujeito passivo medo ou inquietação, ou prejudique a sua liberdade de determinação. Acontece que não ficou provado que tais ameaças tivessem provocado medo ou inquietação na ofendida, uma vez que a testemunha nada referiu, e a ofendida não prestou declarações.

h) O mesmo se aplica às expressões “corto-te a cabeça” e racho-te ao meio”.

i) Nunca foi referido pela testemunha inquirida em sede de julgamento, que os filhos do casal tenham presenciado quaisquer discussões entre o casal, apenas referindo que ela ouviu algumas das discussões, mas nunca presenciou o início das mesmas.

j) Foi também dado como provado que no dia 5 de Fevereiro de 2012, o arguido empurrou a ofendida contra o murro do quintal da residência, quando a testemunha referiu peremptoriamente, que não viu o arguido a empurrar a ofendida, que quando chegou ao quintal, a ofendida esta encostada ao murro, e o arguido estava a segurá-la e a gritar. Não referindo se o arguido estava a exercer qualquer forma na ofendida ou se esta estava impedida de sair do local onde se encontrava.

k) Foi dado como provado, que ao actuar desta forma, o arguido pretendia atingir o bem-estar psicológico da ofendida e fazê-la temer pela sua vida e integridade física, ameaçando-a, humilhando-a e fragilizando-a e que lhe causou sofrimento e humilhação.

l) Ora acontece, como já referido, a ofendida não prestou declarações, logo não ficou provado que a ofendida tenha, em qualquer altura, tenha sido afectada psicologicamente, tenha se sentido humilhada ou fragilizada com a actuação do arguido.

m) Em nossa opinião, só a ofendida poderia ter esclarecido o tribunal recorrido sobre os danos sofridos pela actuação do arguido, uma vez que estamos a falar dos sentimentos da mesma.

n) Em momento algum, ficou provado que a ofendida se sentiu ameaçada pelo arguido.

o) Pelo supra referido, e não tendo sido produzida prova suficiente que existiram os maus tratos psicológicos por parte do arguido na pessoa da ofendida, deverá este ser absolvido do crime de violência doméstica qualificada, que foi condenado pelo Tribunal “a quo”.

p) No que toca aos dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. no art.86º nº1 al. c) e d) do RGAM, que o arguido também foi condenado, entende o arguido que deveria ter sido condenado apenas por um crime, de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora nº92/10.4GAENT.E1.

q) Refere esse douto acórdão que o “detentor de duas armas, na mesma ocasião, se bem que de categorias diferentes e previstas em distintas alíneas do nº1 do art.86º do RGAM, deverá ser punido apenas por um dos crimes – o mais grave – não se descortinando do conjunto dos factos dois sentidos materiais ou sociais de ilicitude autónomas entre si”.

r) Assim deverá o arguido ser condenado por um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art.86º nº1 al. c) do RGAM, e ser absolvido do crime de detenção de arma proibida, p. e p. na al. d) do mesmo preceituado legal.

Nestes Termos e nos mais de Direito, e sempre com o mui suprimento de Vexas, deve o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica e relativamente aos crimes de detenção de arma ilegal, ser o arguido condenado apenas por um dos crimes – o mais grave, sendo assim absolvido do outro.

Respondeu ao recurso o Magistrada do Ministério Público, dizendo:

1 – Para além da testemunha que prestou declarações, a sentença ora recorrida teve em consideração certidões, autos e documentos constantes dos autos que se consideram examinados em audiência e que não foram impugnados, sendo todos analisados «criticamente à luz das regras do bom senso e da experiência comum».

2 - Mostra-se, pois, bem fundamentada e bem valorada a prova produzida, não havendo fundamento para a alterar, tanto mais que não ocorre qualquer reapreciação, imediata e directa, dessa prova.

3 – Não se vislumbra, deste modo, qualquer vício da decisão, nomeadamente a invocada insuficiência da prova produzida.

Consequentemente, deve o recurso ser julgado improcedente, como é de Justiça!

Nesta Instância, o Ex.mo Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e consequente manutenção da Sentença impugnada.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida forma considerados os seguintes Factos:

FACTOS PROVADOS
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados, com relevo para a decisão, os factos seguintes:

1. A ofendida B é casada com o arguido desde o dia 15 de Junho de 1984, tendo posto termo à vivência marital, abandonando a residência, no dia 5 de Fevereiro de 2012.

2. Nesta última data, o arguido e a ofendida tinham residência na..., Aldeia da Luz, Mourão, residindo com os filhos de ambos, C, nascido a 01.12.1986 e a menor D., nascida a 02.11.2996, bem como com a companheira do filho C, DR.

3. Ao longo da coabitação entre o arguido e a ofendida, em ocasiões de número e frequência não concretamente apurada, mas de forma regular o arguido dirigiu-lhe palavras como: “puta”, “galdéria”, “marrã”, e “mal governada” e dirigindo-lhe expressões como “vai para o caralho”, “não vales nada”, “és uma merda”, “

4. Na vigência do casamento de ambos, e até ao momento em que a ofendida saiu de casa, o arguido ameaçou-a frequentemente com expressões como “corto-te a cabeça”, “racho-te ao meio”.

5. No dia 5 de Fevereiro de 2012, no quintal da residência comum, o arguido empurrou e manteve a ofendida encostada contra o muro, enquanto gritava com a mesma.

6. Entre os dias 16 e 18 de Março de 2012, o denunciado enviou várias mensagens para o telemóvel da ofendida, de teor ameaçador, afirmando, as seguintes expressões:

- “como e que estas eu já fiz o que tinha a fazer? Espero que não te fique na comsiemcia, eu amei vos a todos principalmente a ti, foste o amor da minha vida, adeus pode qu se emcontremos no outro mundo vaiam para cararlho adeus”, “se não atendes o telefone preparate para o começo do inferno eu qria levar tudo a bem mas vocês não querem então vamos por outros lados”,

- “Atende n telefone poque que a tarde disses t que me ligavas respone se não me respondes toma cuidade com a tua filha”,

- “se não atendes preparate para uma noite em que pode acontecer muita coisa contigo ou com os teus filhos”,

- “Há? E podes ir a jnr mostrar as menssajens para ver quem e que fica pior outra coisa se não fizeres vida comigo não fazes com mais ninguém, responde não sejas cobarde so os cobardes e que tem medo”; e

- “Atende que não é para te chatear senão é pior”.

7. Ao actuar da forma descrita, repetidamente na residência comum do casal e por vezes na presença dos filhos, o arguido pretendia atingir o bem-estar psicológico da ofendida e fazê-la temer pela sua vida e integridade física, ameaçando-a, humilhando-a e fragilizando-a na sua relação conjugal, objectivos que logrou alcançar.

8. Ao proferir as expressões supra descritas, de forma contínua e reiterada, quis o arguido causar-lhe sofrimento e humilhação, o que conseguiu, sabendo que as mesmas atingiam a honra e consideração pessoal da sua companheira.

9. Estava o arguido ciente de que deveria abster-se de se comportar da forma descrita, atentos os laços que o uniam à ofendida, bem como que lhe devia especial respeito e carinho.

10. O arguido actuou sempre de forma livre e conscientemente, apesar de saber que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

11. No dia 04.06.2012, o arguido detinha, no interior da sua residência, os seguintes objectos:

A) Na sala da residência e no quarto:

a - um punhal, de marca “Arojas - Bacete”, Stainless – Spain, que se encontrava no interior de uma bolsa de cabedal castanho, com lâmina de 19cm;

b - um punhal de marca “Halcon - Inox”, que se encontrava dentro de uma bolsa castanha, com lâmina de 18cm;

c - um punhal de marca “Muela Condor”, made in Spain, que se encontrava no interior de uma bolsa de cabedal castanho, com lâmina de 15,8cm;

d - um punhal com a inscrição “Stainless Steel” que se encontrava dentro de uma bolsa de cor preta, com lâmina de 18,5cm;

e - uma bolsa em cabedal com dois punhais de diferentes dimensões no seu interior, marca “Nieto”, modelo 440c, com lâmina de 21cm e de 10 cm;

f - um punhal de marca “Andujar”, made in Spain, que se encontrava dentro de uma bolsa de cabedal, com lâmina de 23cm;

g - um punhal de marca “Icel”, que se encontrava dentro de uma bolsa de cabedal de cor castanha, com lâmina de 21cm;

h - um punhal com a inscrição “Stainless Steel”, que se encontrava dentro de uma bolsa de cabedal, com lâmina de 22,5cm;

i - um punhal de marca “King Knife”, que se encontrava dentro de uma bolsa em cabedal castanho, com lâmina de 22cm;

j - uma faca, de marca “Muela Grizzly”, que se encontrava dentro de uma bolsa de cabedal preto;, com lâmina de 12cm;

l - uma faca, de marca desconhecida, com cabo em madeira castanha, que se encontrava dentro de uma bolsa de cabedal preto, com lâmina de 12cm;

m - uma navalha marca “Muela” com cabo castanho, que se encontrava dentro de uma bolsa em cabedal castanho, com lâmina de 17,5cm;

n - uma carabina, marca “Webleyescott”, modelo “Cross”, calibre 25, com o número de série 879355;

o - uma espingarda de ar comprimido, calibre 4.5 mm(177) marca “Norica”, modelo “Sport”, com o número de série 48211-00.

B) No quintal, no interior de um anexo em madeira, uma faca, marca “Inox Portugal” que se encontrava dentro de uma bolsa de cabedal castanho, com 10 cm;

12. O arguido não apresentou qualquer justificação para a posse dos referidos objectos.

13. O arguido conhecia as características das armas, bem sabendo que a detenção daquelas armas, nas circunstâncias supra descritas, não lhe era legalmente permitida

14. O arguido actuou sempre de forma livre e conscientemente, apesar de saber que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

15. Do registo criminal do arguido não consta qualquer inscrição.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultou provado:

1. Que o arguido tenha dirigido à ofendida a expressão vai para a “cona da tua mãe” e “vai-te foder”.

2. Que durante os anos de casamento e até à separação, em ocasiões de número e frequência não concretamente apurada, mas de forma regular, o arguido JA., desferiu à vítima murros, bofetadas e puxões de cabelo, no interior da residência do casal e muitas vezes na presença dos seus filhos menores.

3. Que, como consequência da conduta do arguido, a ofendida apresentou vários hematomas nas costas e sentiu dores e mau estar geral.

4. Que o arguido pretendia maltratar a queixosa corporalmente, causando-lhe dores e ferimentos.

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:

O Tribunal fundou a sua convicção, quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, com base no conjunto da prova produzida, analisada criticamente à luz das regras do bom senso e da experiencia comum.

Os factos descritos sob os números 1 e 2 foram julgados provados com base no teor das certidões juntas aos autos, e no depoimento da testemunha DR, que os confirmou.

Igualmente se teve em conta o depoimento da referida testemunha, a qual referiu viver em união de facto com o filho do arguido, tendo ido viver com o mesmo para a residência do arguido em Maio de 2009, para prova dos factos descritos nos pontos 3, 4 e 5. Com efeito, refere tal testemunha, que se revelou espontânea, credível e isenta no modo como depôs, que viveu, juntamente com o seu companheiro e filho do arguido, na casa deste e da ofendida, entre Maio e Setembro de 2009, e depois novamente de Abril de 2010 até à data em que, juntamente com a ofendida, saíram do lar.

Mais referiu a mesma testemunha ter assistido a diversas discussões entre o casal, cujo início geralmente não acompanhava, e durante as quais ouvia o arguido dirigir à ofendida as expressões acima descritas, não tendo contudo assistido a qualquer agressão física.

Quanto ao episódio descrito sob o número 5 dos factos provados, referiu não ter assistido ao respectivo início, tendo no entanto visto a ofendida encostada contra o muro pelo arguido, que a mantinha segurada enquanto gritava com a mesma, facto que a levou a pedir ajuda, chamando o filho de ambos – que acabou por separá-los, e a GNR.

A matéria descrita no ponto 6 dos factos provados foi assim julgada com base na análise do teor do auto de leitura da memória do telemóvel da ofendida (fls. 78-79), com o n.º 96----, onde se encontravam registadas as mencionadas mensagens, recebidas do número 964---, gravado com o nome “Marido”.

Para prova dos factos descritos no ponto 11, teve o Tribunal em conta o teor do auto de busca e apreensão de fls. 126-128, das fotografias de fls. 138 e do relatório de avaliação de armas de fls. 254 a 389.

Quanto à ausência de justificação para a posse dos objectos em apreço (ponto 12 dos factos provados), decorre a mesma da falta de prova – que caberia ao arguido fazer – da mesma, sendo para tal insuficiente o depoimento da testemunha DR, na parte em que refere existirem, na casa do arguido, facas usadas para a matança do porco. Com efeito, a referida testemunha não especificou a que concretas facas se referia, sendo certo que, para além das constantes da acusação, foram apreendidas outras facas ao arguido – relativamente a cuja posse não foi deduzida acusação -, e ainda que, à data da apreensão efectuada, a testemunha em causa já não habitava a casa do arguido, conforme decorre do respectivo depoimento.

A prova da ausência de antecedentes criminais do arguido assentou na análise do respectivo CRC.
Os factos não provados foram assim julgados face à falta de prova quanto aos mesmos.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.

Como decorre das conclusões formuladas pelo aqui recorrente, vemos que se pretende que este Tribunal de recurso proceda quer ao reexame da matéria de facto, quer ao reexame da matéria de direito.

Ora, conhecendo, como conhece, de facto e de direito, art.º 428.º, do Cód. Proc. Pen., nada obsta a que se venha conhecer do recurso com a amplitude cognitiva pretendida.

Desde logo, e segundo lemos o por si alegado, dissente da forma como se veio dar como assente a matéria constante dos pontos 3), 4) e 5), dos factos provados.

Quanto ao pretendido reexame da matéria de facto, apesar de o aqui recorrente não o referir expressamente, do que se patenteia da sua motivação de recurso é que se pretende a impugnação ampla da matéria de facto e por que minimamente se mostram cumpridas as exigências legais em tal matéria, cfr. art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Pen., passaremos a proceder ao almejado reexame e com a amplitude assinalada.

Nesta situação, como consabido, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.

Sendo que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

Não se pressupondo, pois, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa[1].

Não se estando perante um novo julgamento do objecto do processo, mas antes perante um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo.

O que já resultava do teor do preâmbulo do DECRETO-LEI n.º39/95, de 15 de Fevereiro, onde se dizia que o registo da prova produzida em audiência visava assegurar um verdadeiro e efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, mas acrescentando-se que essa garantia “ nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência- visando-se apenas a detecção e correcção de pontuais e concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”. E que “ o objecto do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, sim, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes de quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora me menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência) ”[2].

E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

Como é sabido, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova-cfr, art.127.º, do Cód. Proc. Pen; Livre convicção a processar-se segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.

O que nos conduz á conclusão de que a convicção do julgador só tem de ser objectivável e motivável, aliás como decorre dos requisitos da sentença, atentar no teor do art.374.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen.

Sendo que a livre convicção não se confunde com a convicção íntima do julgador.

A liberdade do julgador circunscreve-se á livre apreciação dentro dos parâmetros legais, não podendo ela estender-se ao livre arbítrio, impondo-se-lhe, por isso, que proceda com bom senso e sentido da responsabilidade, extraindo das provas um convencimento lógico e motivado.

Ora, se é evidente que o tribunal de recurso pode sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância, ou seja, o processo lógico que levou a considerar-se que era uma e não outra a prova que se produziu, já o mais não lhe é possível sindicar. Porquanto impedido está de controlar tal processo no segmento lógico em que a prova produzida naquela instância escapa, foge, ao seu controle, porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Não sendo, por isso sindicável por este tribunal de recurso o segmento da prova conducente ao maior ou menor convencimento do julgador na análise dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento.

Como referido supra, entende o recorrente que deviam ter sido tido como não provados os factos dados como provados sob os pontos 3), 4), e 5). E, dessa forma, ser absolvido do crime de violência doméstica pelo qual veio a sofrer condenação.

Antes do mais, importa reter que quando o recorrente funde o seu recurso na circunstância de se estar perante uma deficiente percepção dos depoimentos, importa saber se a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência; mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão cruzada dos meios de prova, a oralidade e imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício do contraditório, na discussão cruzada levada a cabo na plenitude da audiência, pública, de discussão e julgamento.

Daí que, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, só os princípios da oralidade e da imediação permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso[3].

Pelo que, o tribunal de recurso, em tal situação, só pode afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374º, n.º2 do CPP[4].

Desde logo entende que não pode ser tido como provado o lapso temporal referido no ponto n.º3 dos factos provados, porquanto a única testemunha ouvida, a respeito, apenas foi viver para a casa do arguido e da ofendida em 2009 ou 2010, segundo refere.

Está-se o recorrente a reportar ao depoimento da testemunha DR, aliás, mencionado na fundamentação da decisão de facto e como única prova do ponto da matéria de facto em apreço, que deu nota de ter ido viver para a residência do arguido e da ofendida em Maio de 2009 ou de 2010, onde permaneceu até Setembro ou Outubro desse ano, regressando em Abril do ano seguinte e daí saindo no dia 5 de Fevereiro de 2012, ver minutagem 3.00 a 3.30.

Sendo que a testemunha refere quer as palavras quer as expressões mencionadas no aludido ponto n.º 3 dos factos provados, ver minutagem 1.44 a 1.50, 1.58 a 2.06 e 2.12 a 2.42.

O que impõe se proceda a alteração do teor do ponto n.º 3, dos factos provados, o qual passa a ter a seguinte redacção:

3. No período compreendido entre Maio de 2009 ou de 2010 e Setembro/Outubro de 2009 ou de 2010 e Abril de 2010 ou de 2011 e o dia 5 de Fevereiro de 2012, em ocasiões de número e frequência não concretamente apurada, mas de forma regular, o arguido dirigiu à ofendida palavras como: “puta”, “galdéria”, “marrã”, e “mal governada” e dirigindo-lhe expressões como “vai para o caralho”, “não vales nada”, “és uma merda”, “

O ponto n.º 4 dos factos provados, e no seguimento do acabado de mencionar, continuando a testemunha DR a ser a única prova do mencionado facto, como bem decorre da fundamentação da decisão de facto, deve merecer também intervenção correctiva, no que respeita ao período temporal dele constante.

Passando a ter a seguinte redacção:

4.No mesmo período temporal o arguido ameaçou-a frequentemente com expressões como “corto-te a cabeça”, “racho-te ao meio”.

Por fim, no que respeita à factualidade vertida sob o ponto n.º 5, dos factos provados, uma vez mais se deve fazer intervenção correctiva, tendo em conta o narrado pela único testemunho existente, a respeito, ou seja, o prestado pela testemunha DR.

Testemunha que não assistiu a qualquer empurrão do arguido na ofendida, pois quando chegou ao local dos feitos se deparou com o arguido segurando a ofendida contra o muro e gritando com ela, ver minutagem 4.48 a 5.04.

Pelo que o ponto n.º 5 dos factos provados passe a ter a seguinte redacção:

5. No dia 5 de Fevereiro de 2012, no quintal da residência comum, o arguido encostou a ofendida contra o muro, enquanto gritava com a mesma.

O demais pretendido pelo aqui recorrente, por se inscrever ao nível da valoração da prova por banda do Tribunal recorrido não pode ser tido nem ao nível do erro de julgamento-erro de valoração, nem ao nível dos vícios do art.º 410.º, n.º2, do Cód. Proc. Pen., vício da decisão; e, por tal, ao mesmo se não atender.

Com a questão acabada de referir uma outra se concatena e consiste em saber se os factos apurados, com a dimensão acabada de referir, esta imodificável, são aptos, ou não, a preencher os elementos típicos do crime de violência doméstica pelo qual o aqui recorrente sofreu condenação.

No que respeita ao crime de violência doméstica, rege o art.º 152.º, do Cód. Pen., onde se diz no seu n.º 1, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Como ensina o Prof. Américo Taipa de Carvalho, o intento de prevenir e reprimir as ofensas que rebaixem de modo socialmente insuportável a dignidade pessoal da vítima está por certo na base da criminalização específica dos maus tratos domésticos.[5]

Sobre o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, vária tem sido a discussão, não existindo unanimidade de entendimento.

Para Nuno Brandão, ao contrário do que vem sendo defendido pela jurisprudência, não é de sufragar o entendimento que vai no sentido de o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica ser a dignidade humana.

Porquanto, com o delito em causa se pretende dirigir e actuar sobre condutas que estão muito longe de uma tal dignidade.

Sendo mais adequada á teleologia da específica criminalização dos maus tratos intra-familiares, á sua inserção sistemática e á eficácia operativa do preceito apontar a saúde como o bem jurídico do crime de violência doméstica.

Sendo objecto de tutela a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica[6].

Para Miguez Garcia o bem jurídico protegido pela norma será um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, a liberdade nas suas expressões sexual e de natureza pessoal.[7]

Para Plácido Conde Rodrigues, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime em apreço será a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral[8].
Como afirmação de que o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em apreço é, em geral, a dignidade da pessoa humana e, em particular, a saúde, vemos vários arestos dos nossos Tribunais Superiores, de onde destacamos, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 26.05.2010, no Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1.

E estaremos perante um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude de uma relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. Pressupondo que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos.

O sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal ou seja cônjuge.[9]

De salientar que a lei prescinde da existência de laços familiares entre a vítima e o agente ao tempo do facto.

Do que de tal dá bem nota o segmento da lei ao abranger o ex-cônjuge ou pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga á dos cônjuges. Alargando-se, desta sorte, a tutela às relações parentais não familiares.

A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.

E como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21 a 22, no crime em apreço devem estar em causa actos que pelo seu caracter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima.

Sendo que a circunstância de uma certa acção poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto.

Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.

No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…

Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.

Há que analisar, de seguida, se para o preenchimento do tipo em questão se basta a prática de um acto isolado ou antes se tem de exigir a reiteração de conduta.

Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica a prática de um acto isolado e sem que se exija a reiteração de conduta.

Pondo-se, desta forma, fim à polémica que existia no seio da doutrina e da jurisprudência, a respeito. Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta.

Porém, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo.

Como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21, com a revisão de 2007 foi inequivocamente aberto caminho para a integração de alguns dos casos (do facto único) no ilícito-típico de violência doméstica.

Na versão final da revisão deixou de constar a referência à intensidade dos maus-tratos como alternativa à reiteração, que fazia parte da proposta de Lei 98-X.

Na jurisprudência anterior á revisão era já largamente maioritária a posição de que o crime de maus tratos não prossupunha uma reiteração de condutas, podendo bastar-se com um único comportamento agressivo.

Para tal, muitas vezes, erigiu-se como critério relevante que a ofensa se revestisse de uma certa gravidade, que, fundamentalmente, traduzisse crueldade e insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente.

Mais recentemente, na Relação de Coimbra, vem-se aflorando a ideia da dignidade pessoal da pessoa ofendida e à possibilidade de à mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apresentados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.[10]

Apesar de entender de que os citados arestos apontam na direcção correcta, entende, porém, o Autor que há que exigir que o comportamento violento seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima.[11]

Ou como se deu nota no Acórdão da Relação do Porto, de 19.09.2012, no Processo n.º901/11.0PAPVZ.P1, como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.

Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.

Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.

O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. Sendo que o conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é fundamental para a conformação do dolo do agente, como refere Pinto de Albuquerque, in ob. cit., págs. 406.

Com base nos ensinamentos acabado de mencionar, debrucemo-nos sobre o caso em apreço nos autos.

Sem necessidade de delongas e dada a clareza da matéria de facto tida como assente, é indubitável concluir-se pelo cometimento pelo aqui recorrente do crime de violência doméstica pelo qual veio a ser condenado.

Quanto à punição pelos dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea c), e pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das armas e suas munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio).

Discrepa o recorrente da condenação que lhe foi Sentencialmente imposta, por entender não poder ser condenado por dois crimes, como o foi, antes pela prática de um só crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al.ª c), do citado Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

Na sentença recorrida veio considerar-se que o aqui recorrente cometeu dois crimes de detenção de arma proibida, como segue:

- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al.ª d), da Lei nº 5/2006, de 23/02, na versão da Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio.

- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al.ª c), da Lei nº 5/2006, de 23/02, na versão da Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio.

Porquanto, dadas as características das armas em causa nos autos se tratar de:

- armas brancas, compreendidas na classe A, as identificadas no ponto 11– A), a) a m), atento o disposto nos artigos 3º, n.º 2, al.ª f) e 2º, n.º 1, al.ª m), da Lei n.º 5/2006;

- arma de ar comprimido de aquisição condicionada, correspondendo à classe C, a identificada no ponto 11 – A) al. n), atento o disposto nos arts. 2º, n.º 1, al.ª g) e 3º, n.º 5, al.ª g), da Lei n.º 5/2006;

- arma branca, correspondendo à classe A, a identificada no ponto 11- B), atento o disposto nos arts. 3º, n.º 2 e) e 2º, n.º 1, al.ª m), da Lei n.º 5/2006.

Justificando, como segue, a condenação do aqui recorrente pela prática, em concurso real, dos dois aludidos crimes de detenção de arma proibida:

Com efeito, não resultando provados quaisquer elementos dos quais resulte ter havido um número de determinações, por parte do arguido, correspondente a cada uma das armas ou que detinha, e tendo em conta que o bem jurídico tutelado com a norma incriminadora, tal como acima definido, é atingido uma única vez – ainda que com intensidade diferente – independentemente do número de armas, não deve fazer-se corresponder a cada uma delas a prática de um crime.

Por outro lado, tendo em conta o critério adoptado pelo legislador, no art. 30º n.º 1 do Código Penal, para distinguir as situações de unidade ou pluralidade de crimes praticados, há que considerar a prática do crime previsto e punido no art. 86º n.º 1 al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, quanto à detenção de armas aí previstas e, cumulativamente, a prática do crime previsto e punido na alínea d) do mesmo preceito, quanto às armas e/ou munições que esta expressamente refere, uma vez que se trata de dois tipos criminais distintos, os quais punem – aliás, em medida diferente – a detenção de espécies de armas diferentes, não sendo nenhum deles, por qualquer forma, absorvido pelo outro.

A este propósito, há que ter em conta o que se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.02.2009 (in www.dgsi.pt, proc. n.º 09P0110): “O critério decisivo da unidade ou pluralidade de infracções é dado pelo diverso número de valores jurídico-criminais negados (art. 30.º, n.º 1, do CP). Todavia, sempre que determinada conduta preencha vários tipos legais de crime, tal não significa que o agente responda necessariamente pela prática de diversos crimes, pois há tipos legais de crime que se encontram numa relação entre si que implica que a aplicação de um/uns exclui a aplicação de outro (s), verificando-se, portanto, um concurso aparente de infracções, sendo o agente, neste caso, condenado por um único crime, de harmonia com o princípio da proibição da dupla valoração.

Não é este, tal como acima se explicou, o caso, nos presentes autos, pelo que se julga terem sido praticados dois crimes distintos (…) pelo arguido.

Diferentemente entendeu o Acórdão desta Relação, datado de 08 de Novembro de 2011, nos autos de Recurso n.º 92/10.4GAENT.E1, onde no seu Sumário se pode ler que o detentor de duas armas, na mesma ocasião, se bem que de categorias diferentes e previstas em distintas alíneas do nº1, do art. 86º, do R.G.A.M., deverá ser punido apenas por um crime - o mais grave - não se descortinando do conjunto dos factos dois sentidos materiais ou sociais de ilicitude autónomos entre si.

Somos a anuir ao entendimento firmado no antedito Aresto, porquanto embora se esteja perante dois tipos de armas de diferentes características- integrando-se uma delas na previsão da alínea c) e duas delas na alínea d), do citado artigo 86º, da Lei n.º 5/2006 -, não deixa de ser o mesmo o bem jurídico protegido. Para lá de existir, face à matéria de facto tida como assente, unidade de resolução criminosa, a fazer com que se conclua pelo cometimento de um único crime de detenção de arma proibida.

E a punir pelo art.º 86.º, n.º1, al.ª c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, por se tratar da conduta mais grave.

A detenção das demais armas proibidas não poderá deixar de ser considerada, em termos de agravamento da ilicitude e consequentemente na medida da pena, como se considerou no Ac. S.T.J., de 26.10.201, no Processo n.º 1112/09.0SGLSB.L2:S1.

Pelo que se condena, ora, o arguido e aqui recorrente JA. pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das armas e suas munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio), nas penas de 110 (cem e dez) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo a quantia total de 660,00 (seiscentos e sessenta euros).

Termos são em que Acordam, em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, Decidem:

a) Alterar a matéria de facto - pontos n.ºs 3, 4 e 5 -, nos termos retro mencionados;

b) Condenar, ora, o arguido, e aqui recorrente, A. pela prática de um (e não de dois) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.°, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das armas e suas munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio), nas penas de 110 (cem e dez) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo a quantia total de 660,00 (seiscentos e sessenta euros);

c) No mais, manter a Sentença recorrida.

Sem custas, por não devidas.

(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 15 de Outubro de 2013
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(José Proença da Costa)
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(Sénio Alves)
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[1] Ver, Acs. S.T.J., de 14.03.2007, no Processo n.º21/07 e de 23.05.2007, no processo n.º1498/07.

[2] Ver, Ac. desta Relação proferido nos autos de recurso n.º 11/11.0FAST.

[3] Cfr. Direito Processual Penal, I, págs.233-234.

[4] Ver, Ac. Rel. Coimbra, de 14.07.2010, no Processo n.º 108/09.

[5] Ver, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, Comentário ao art.º 152.º, § 4.

[6] Ver, A Tutela Penal Especial Reforçada Da Violência Doméstica, págs. 14 e 15.

[7] Ver, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, págs. 205.

[8] Ver, Violência Doméstica- Novo Quadro Legal e Processual Penal, Revista do C.E.J., n.º 8, págs. 305.

[9] Ver, Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 405 e Ac. Rel. Porto, de 296.09.2012, no Processo n.º 176/11.1SLPRT.P1.

[10] Ver, Ac., de 29-01-2003, e bem assim os Acórdãos da mesma Relação de 13.06.2007 e de 28.01.2010, no Processo n.º 361/07.0GCPBL.C1.

[11] Ver, Ac. S.T.J., de 6.04.2006, no Processo 1167/06.