Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1937/11.7TBBNV.E1
Relator: ASSUNÇÃO RAIMUNDO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DO RAMO VIDA
FALSIDADE DAS DECLARAÇÕES
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
I - Nos termos art. 429.º do Código Comercial “Toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de fatos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.
II - Resulta da referida norma que não é necessário que o segurado tenha aquele conhecimento para que o contrato seja declarado nulo/anulado. O que apenas é necessário é que haja uma declaração inexata ou uma reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
III - Dado que a anulabilidade prescrita no art. 429 do Código Comercial opera mesmo perante o desconhecimento do segurado sobre a essencialidade do facto reticente, temos que no caso em apreço o contrato de seguro é anulável, sendo irrelevante o nexo de causalidade entre o facto omitido e a invalidez ora denunciada, para aferir a reticência da declaração do autor.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Instância Central de Santarém, Secção Cível, Juiz 1, corre termos a presente ação, com processo ordinário, que AA moveu contra BB – Companhia de Seguros, SA, com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 48.121,50, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, correspondente ao valor segurado.
Alegou, em síntese, que o autor e a sua companheira celebraram com a ré um contrato de seguro do ramo vida, titulado pela apólice …/…/…, que se encontrava associado ao empréstimo para habitação contraído por ambos junto do CC, SA, com a duração de 480 meses;
O contrato de seguro tinha uma cobertura de 100% do valor em dívida no referido empréstimo e tinha como valor seguro por morte ou invalidez total e permanente o capital de € 48.121,50;
Em Outubro de 2008 foi-lhe diagnosticado um tumor maligno nos intestinos e foi submetido a diversos tratamentos e a intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido atribuída, em 20 de Abril de 2009, uma incapacidade permanente global de 95%;
Informou a ré da atribuição desta incapacidade e solicitou o pagamento do capital seguro, tendo esta negado dizendo que à data da celebração do contrato do seguro era portador de quadro clínico suscetível de influenciar a verificação do risco.
A ré contestou alegando, em resumo, que o autor aquando do preenchimento do questionário clínico prestou falsas declarações, que constitui motivo de anulação do contrato de seguro, anulação esta que foi comunicada ao autor por carta de 4 de Março de 2010.
Em reconvenção pede que se declare a reversão a seu favor dos prémios pagos pelo autor no montante de € 5.296,78.
Na contestação a ré mencionou um outro contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice n.º …/…/…, e usou a mesma argumentação de fato e de direito para sustentar a sua invalidade e a reversão dos prémios a seu favor.
Na réplica o autor afirmou que a situação em causa diz apenas respeito ao contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice n.º …/…/….
Concluiu pela improcedência da reconvenção e manteve a tese da petição inicial.
Após os normais tramites, teve lugar a audiência de julgamento e a sentença proferida terminou com a seguinte decisão:
Nestes termos e de harmonia com a fundamentação que antecede: - julgo esta ação totalmente procedente e condeno a ré a pagar ao autor a quantia de € 48.121,50 (quarenta e oito mil cento e vinte e um euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento, calculados à taxa legal;
- Julgo o pedido reconvencional totalmente improcedente e dele absolvo o autor.”

Inconformada com a decisão, a ré veio recorrer, terminando as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
1. Em 28 de agosto de 2001, o recorrido e a sua companheira subscreveram a proposta respeitante ao seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/….
2- Na data da subscrição da proposta respeitante ao contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice nº …/…/…, foi elaborado o respetivo questionário clínico, subscrito pelo recorrido e preenchido pela forma constante de fls. 115 e 117. 3- No questionário clínico o recorrido não declarou padecer de hepatite B.
4- Na data do preenchimento e subscrição do questionário clínico respeitante ao contrato de seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/… o recorrido padecia de hepatite B.
5- As menções que constam do questionário clínico sobre o estado de saúde do recorrido influenciaram a decisão da recorrente aceitar celebrar o seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/…, nos respetivos termos e condições.
6- Caso constasse do questionário clínico que o recorrido padecia de hepatite B, a recorrente teria recusado a celebração do seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/…, ou no mínimo submeteria a respetiva celebração a termos e condições diversos daqueles em que o celebrou, designadamente, agravando os prémios de seguro no que respeita á cobertura de morte e/ou excluindo a cobertura complementar de invalidez absoluta e definitiva.
7- Na data da celebração do seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/…, o recorrido tinha conhecimento do seu estado de saúde.
8- O recorrido prestou falsas declarações sobre o seu estado de saúde no referido questionário clínico.
9- Essas falsas declarações influenciaram a decisão da recorrente celebrar o seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/….
10- A relevância das falsas declarações do recorrido sobre o seu estado de saúde decorre desde logo da recorrente lhe ter solicitado a subscrição e preenchimento do referido questionário clínico.
11- A recorrente solicitou o preenchimento e a subscrição pelo recorrido do referido questionário clínico precisamente por entender que o respetivo preenchimento e subscrição era relevante para a apreciação do risco emergente do seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/….
12- O nexo de causalidade entre a causa direta da invalidez do recorrido e as falsas declarações por ele prestadas sobre o seu estado de saúde, não constitui requisito da anulabilidade do seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/….
13-A análise de risco é efetuada no momento da celebração do seguro de vida, considerando o estado de saúde do proponente nesse momento e as declarações por ele prestadas nesse momento sobre o seu estado de saúde.
14-No caso da análise de risco depender do nexo de causalidade entre o estado de saúde do proponente no momento da celebração do seguro de vida e a evolução do seu estado de saúde, a análise de risco constituiria exercício de futurologia.
15- Verificam-se todos os pressupostos da anulabilidade do seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/… (artigo 429º do Código Comercial).
16- Na sentença recorrida ao decidir-se pela condenação da recorrente no pedido e pela absolvição do recorrido do pedido reconvencional, violou – se o disposto nos artigos 429º do Código Comercial e 342º, nº 2, do Código Civil.
17- Termos em que, deve conceder-se inteiro provimento ao presente recurso de apelação, e em consequência, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão em que se decida absolver a recorrente do pedido e condenar o recorrido no pedido reconvencional.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657 nº4 do Código de Processo Civil.
Cumpre apreciar e decidir:

De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. a título de exemplo os Acórdãos do S.T.J. de 2/12/82, BMJ nº 322, pág. 315; de 15/3/2005, Proc. nº 04B3876; de 11/10/2005, Proc. nº 05B179; de 25-5-2010, Proc. nº 8254/09.0T2SNT.L1.S1; e de 30-6-11, Proc. nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, todos publicados nas Bases de Dados Jurídicos do ITIJ), o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resultava dos arts. 684 nº3 e 685-A nº1 do Cód. Proc. Civil e continua a resultar das disposições conjugadas dos arts. 635 nº 4, 637 nº2 e 639 do N. Cód. Proc. Civil.
Nesta conformidade, a recorrente coloca à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
A - Na situação em apreço, verificam-se os pressupostos da anulabilidade do seguro de vida titulado pela apólice nº …/…/… (artigo 429º do Código Comercial) (?).
B – Deve o pedido reconvencional ser julgado procedente ao abrigo dos arts. 429º do Código Comercial e 342º, nº 2, do Código Civil (?).

A sentença recorrida deu como provados os seguintes fatos:
1. No dia 28 de Agosto de 2001, o autor e a sua companheira celebraram com a ré um contrato de seguro do ramo vida, titulado pela apólice …/…/…, que se encontrava associado ao empréstimo para habitação contraído por ambos junto do CC, SA, com a duração de 480 meses.
2. O contrato de seguro tinha uma cobertura de 100% do valor em dívida no referido empréstimo e tinha como valor seguro por morte e por invalidez total e permanente o capital de € 48.121,50.
3. O autor respondeu ao questionário clínico que lhe foi apresentando aquando do pedido de empréstimo bancário pela forma constante de fls. 115 e 117.
4. Em Outubro de 2008 foi-lhe diagnosticado um tumor maligno nos intestinos (neoplasia do recto) e foi submetido a diversos tratamentos e a intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido atribuída, em 20 de Abril de 2009, uma incapacidade permanente global de 95%.
5. O autor informou a ré da atribuição desta incapacidade, enviou-lhe documentação médica e solicitou o pagamento do capital seguro.
6. Por carta de 4 de Março de 2010, a ré recusou o pagamento alegando que à data da celebração do contrato de seguro o autor era portador de um quadro clínico suscetível de influenciar a verificação do risco e considerou o contrato nulo a partir daquela data.
7. O autor é portador de anti-corpos de hepatite B positivos desde 1998, situação diagnosticada em análises de rotina, não tendo nessa altura qualquer sintomatologia.
8. Não lhe foi ministrada qualquer medicação para a hepatite B.
9. Aquando do preenchimento do questionário clínico de fls. 115 e 117 o autor não informou que era portador de hepatite B.
10. A hepatite B não influenciou nem aumentou o risco de neoplasia do recto.
11. À data da celebração do contrato de seguro o autor não efetuava qualquer tratamento médico, não tomava medicação para a hepatite B, não estava a ser acompanhado em consultas da especialidade e não padecia de qualquer incapacidade para o trabalho.
12. A partir de 2007 o autor passou a sofrer de diabetes.
13. Se o autor tivesse declarado que padecia de hepatite B, de diabetes, que tinha sido submetido a tratamento médico consecutivo, que tomava medicação regularmente, que tinha sido submetido a consulta médica não de rotina e que aguardava a realização de consulta médica não de rotina, a ré teria recusado a celebração do contrato de seguro ou, no mínimo, teria submetido a celebração a termos e condições diversos, nomeadamente agravando o prémio quanto à componente “morte” e/ou excluindo a componente “invalidez”.
14. A incapacidade de que é portador impede o autor de exercer a sua função laboral de assistente operacional na Câmara Municipal de Salvaterra de Magos.
15. O autor tem de realizar tratamentos médicos regulares e toma medicação dispendiosa.
16. O autor e sua companheira, que é doméstica, têm dificuldades em prover ao seu sustento e pagar o empréstimo bancário.

Vejamos:
- A -
A decisão recorrida fez a seguinte análise dos fatos na aplicação do direito:
Com a presente ação pretende o autor obter o pagamento do capital de um contrato de seguro do ramo vida que contraiu junto da ré por altura da celebração de um contrato de empréstimo para habitação, fundando tal pretensão na existência de uma incapacidade. A ré entende que o autor prestou falsas declarações no momento em que respondeu ao questionário clínico que precedeu a celebração daquele seguro.
Nos termos art.429.º do Código Comercial, aplicável ao caso atenta a data do contrato, “Toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de fatos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo. O seu § único prescreve que “Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio”.
A propósito deste preceito legal e do que se deve entender por fatos ou circunstâncias que podem influir na existência ou no conteúdo do contrato de seguro escreve-se no Ac. da RP de 20/01/2014 (www.dgsi.pt): “ A razão de ser deste preceito legal prende-se, essencialmente, com a formação da vontade das partes, neste caso, da seguradora, no ato da celebração do contrato: esta, ao aceitar o contrato, fá-lo com base na análise de elementos, quando fornecidos pela outra parte, que pressupõe verdadeiros. Com base nos quais prevê os riscos daí advenientes, se os deve assumir e em que condições. E não obstante naquele preceito se falar em nulidade, é pacífico na doutrina e jurisprudência estarmos, antes, perante uma situação de anulabilidade. Donde, entre o mais, dever ser arguida pelos interessados, existir um prazo de caducidade para a sua invocação e poder o contrato ser convalidado. (…) Assim, apenas são relevantes as inexatidões ou reticências que influam na existência ou condições do contrato: o segurador, caso as conhecesse, não contrataria, ou contrataria em condições diferentes. Apenas relevam, em consequência, as declarações inexatas ou reticentes respeitantes a fatos ou circunstâncias que servem para calcular a medida do risco.
E mais à frente acrescenta: “Escreve, a propósito, Júlio Vieira Gomes in Dever de Informação do (Candidato a) Tomador do Seguro na Fase Pré-Contratual, à Luz do D.L. nº72/2008 de 16 de Abril, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Carlos Ferreira de Almeida, II, 410: “…o Tribunal deverá estar atento para verificar se a contrario um questionário não ajuda a criar a convicção da irrelevância de um certo fato ou até se tal convicção não é gerada pela conjugação entre um extenso leque de questões, por vezes até muito detalhadas e de importância secundária, acompanhadas de silêncio a respeito de outra questão – o leigo, que parte da premissa de que o segurador é um profissional que age de boa fé, pode chegar à conclusão de que, no fim de contas, e contrariamente até à sua «intuição» inicial, uma questão não é relevante, caso contrário perante um questionário tão minucioso, seria de esperar que a questão dele constasse”. Atente-se, por último, nas profundas alterações introduzidas no regime dos deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado pela Lei do Contrato de Seguro aprovada pelo DL n.º 72/2008 de 16 de Abril – arts. 24.º e ss., das quais se salienta o estabelecimento da causalidade do fato inexato ou omitido para a ocorrência do sinistro como condição da sua invocação pelo segurador para a não cobertura do sinistro. Sabendo-se como a não-causalidade decorrente do regime previsto no C. Comercial gerou incompreensão social – cfr. sobre esta matéria, Arnaldo da Costa Oliveira in Lei do Contrato de Seguro Anotada, em anotação aos arts 24.º e ss., Júlio Vieira Gomes, ob. cit., 387 e ss., e Menezes Cordeiro in Direito dos Seguros, 585.”
No caso sub judicio está provado que - a doença (neoplasia do recto) que motivou a incapacidade de que o autor é portador (95%) surgiu após a celebração do contrato de seguro;
- à data da celebração do contrato de seguro, o autor era portador de hepatite B, mas não informou a ré dessa situação, mormente aquando do preenchimento do questionário clínico junto aos autos;
- a hepatite B não influenciou nem aumentou o risco de neoplasia do recto;
- à data da celebração do contrato de seguro o autor não efetuava qualquer tratamento médico, não tomava medicação para a hepatite B, não estava a ser acompanhado em consultas médicas regulares e não padecia de qualquer incapacidade para o trabalho;
- o autor passou a sofrer de diabetes a partir de 2007, ou seja, após a celebração do seguro.
Não obstante o autor não ter comunicado que padecia de hepatite B, e que se o tivesse feito a ré teria recusado a celebração do contrato de seguro ou, no mínimo, teria submetido a celebração a termos e condições diversos, nomeadamente agravando o prémio quanto à componente “morte” e/ou excluindo a componente “invalidez”, é certo que aquela doença não teve qualquer relação com o evento que originou a atribuição da incapacidade. Por outras palavras: a falsidade ou omissão relevante para se poder sustentar a invalidade do contrato de seguro deve dizer respeito à situação clínica que tenha tido, sob o ponto de vista da ciência médica, influência na doença, e não uma qualquer patologia que em nada se relacionou com aquela. Ora, é precisamente esta a situação apurada nos autos: a hepatite B, pré-existente à celebração do contrato de seguro, não influenciou nem aumentou o risco de neoplasia do recto. Daí que a omissão em que o autor incorreu não tornou inválido (nulo ou anulável) o contrato de seguro.
Consequentemente, não só não pode a ré recusar o pagamento do capital, como o pedido da mesma no sentido de se declarar a reversão dos prémios pagos pelo autor, no montante de € 5.296,78, não pode proceder.”
A sentença recorrida entendeu que deve haver nexo de causalidade entre o facto omitido e a verificação do risco coberto pelo seguro, pelo que não tendo a hepatite B influenciado nem aumentado risco de neoplasia do recto, a omissão por parte do segurado não teve qualquer relevância para se considerar inválido o contrato de seguro.
Cremos que não tem razão.
Na verdade, o momento em que se tem de verificar a exatidão ou a reticência a que alude o artigo 429º do Código Comercial é, evidentemente, o momento em que a proposta do segurado chega ao conhecimento da seguradora – cfr. artigo 224º do Código Civil.
Ou seja, foi na altura em que o autor preencheu o questionário clínico de fls. 115 e 117 e não informou que era portador de hepatite B, que se tinha que aferir da omissão de que padecia daquela doença e o regime aplicável era, na altura, o do art. 429 do Código Comercial.
Nesta conformidade, o entendimento defendido não encontra apoio legal, já que “ao contrário de que está previsto no regime do seguro atualmente em vigor – art. 24 do DL. 72/2008 de 16 de Abril – o art. 429 “fulmina com valor negativo”, correspondente à anulabilidade do negócio a prestação culposa de declarações inexatas ou reticentes que tenham viciado a vontade de contratar da seguradora” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/6/10, Proc. 90/2002.G1.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/9/10, Proc. 08A1373; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-3-2014, Proc. nº 2971/12.TBBRG.G1.S, todos em www.dgsi.pt.
Dispõe-se no corpo do artigo 429º do Código Comercial que “toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, tornam o seguro nulo”.
Sobre o segurado recai, pois, “o dever se declaração do risco, pois, se não completar a declaração realizada porque quem fez o seguro, tendo conhecimento de factos ou circunstâncias que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, perde o direito à prestação do segurador”- Moutinho de Almeida, em “O Contrato de Seguro”, pg. 65.
Com interesse para apreciação de tal questão, provou-se:
7. O autor é portador de anti-corpos de hepatite B positivos desde 1998, situação diagnosticada em análises de rotina, não tendo nessa altura qualquer sintomatologia.
8. Não lhe foi ministrada qualquer medicação para a hepatite B.
9. Aquando do preenchimento do questionário clínico de fls. 115 e 117 o autor não informou que era portador de hepatite B.
10. A hepatite B não influenciou nem aumentou o risco de neoplasia do recto.
11. À data da celebração do contrato de seguro o autor não efectuava qualquer tratamento médico, não tomava medicação para a hepatite B, não estava a ser acompanhado em consultas da especialidade e não padecia de qualquer incapacidade para o trabalho.
12. A partir de 2007 o autor passou a sofrer de diabetes.
13. Se o autor tivesse declarado que padecia de hepatite B, de diabetes, que tinha sido submetido a tratamento médico consecutivo, que tomava medicação regularmente, que tinha sido submetido a consulta médica não de rotina e que aguardava a realização de consulta médica não de rotina, a ré teria recusado a celebração do contrato de seguro ou, no mínimo, teria submetido a celebração a termos e condições diversos, nomeadamente agravando o prémio quanto à componente “morte” e/ou excluindo a componente “invalidez”.
Portanto, na altura em que celebrou o seguro de vida em causa nos autos, o autor era portador de hepatite B (desde 1998) e não a declarou. Se o autor tivesse declarado que padecia desta infeção a ré teria recusado a celebração do contrato de seguro ou, no mínimo, teria submetido a celebração a termos e condições diversos, nomeadamente agravando o prémio quanto à componente “morte” e/ou excluindo a componente “invalidez”.
Tendo em conta que a hepatite B, “provocada pelo Vírus da Hepatite B (VHB) é a mais perigosa das hepatites e que os seus portadores podem desenvolver doenças hepáticas graves, como a cirrose e o cancro no fígado” – cfr. http://www.roche.pt/hepatites - o autor ao não referir essa doença fez uma declaração reticente, entendendo-se como tal a omissão de factos ou circunstâncias que importam para a avaliação do risco.
E aquela declaração reticente tem que ser considerada relevante para a nulidade do seguro porque, manifestamente, tal omissão teve influência sobre a sua existência, na medida em que está provado que a ré seguradora não teria contratado se tivesse conhecimento de que o segurado era portador daquela doença. Anotando-se, a este respeito, que para a desvinculação da seguradora resultante desta nulidade é indiferente que exista ou não dolo do declarante – cfr. Moitinho de Almeida, ob. cit., página 79.
Quanto ao conhecimento, por parte do autor, de que era determinante para a seguradora analisar o risco do contrato se lhe tivesse sido declarado a existência da doença em causa, tal facto não se provou. Porém, resulta do transcrito artigo 429º do Código Comercial que não é necessário que o segurado tenha aquele conhecimento para que o contrato seja declarado nulo/anulado. O que apenas é necessário é que haja uma declaração inexata ou uma reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
De notar que tendo o questionário de fls. 117 perguntado “Já foi submetido a algum teste de despistagem do Virus HIV (SIDA)?”, e tendo o autor respondido “que sim”, não ignorava naquele momento que possuía o aludido vírus da hepatite B, já que esta até em análises de rotina é diagnosticável. E, com o devido respeito, é-nos difícil entender que quem é portador de hepatite B, ignore que o conhecimento desse facto pela seguradora não é determinante na decisão de contratar. Com efeito, o grau de diligência sobre o conhecimento dessa essencialidade tem de ser aferido pela diligência média de um homem médio colocado na situação do declarante (art. 487 nº2 do Código Civil).
De qualquer modo, dado que a anulabilidade prescrita no art. 429 do Código Comercial opera mesmo perante o desconhecimento do segurado sobre a essencialidade do facto reticente, temos que no caso em apreço o contrato de seguro é anulável, sendo irrelevante o nexo de causalidade entre o facto omitido e a invalidez ora denunciada, para aferir a reticência da declaração do autor.
Nesta conformidade, constituindo a nulidade/anulabilidade do contrato de seguro um facto impeditivo da validade do contrato, o autor não tem direito ao direito de crédito sobre o capital seguro (art. 576 nº3 do Código de Processo Civil).

- B –
Quanto ao pedido reconvencional – reversão a favor da ré do prémio de seguro pago -, a sentença recorrida julgou-o improcedente sem grande fundamentação, já que tinha julgado improcedente a exceção da anulabilidade do contrato de seguro.
Conforme já nos expressámos acima, “… a má fé não condiciona a aplicação do regime da anulabilidade do contrato, podendo – como é incontroverso na vigência do art. 429º do Código Comercial - este valor negativo do ato fundar-se na prestação negligente de informações pelo segurado acerca do seu estado de saúde atual, não referindo, por leviandade e inconsideração, uma patologia por ele conhecida e que, conforme as regras da experiência, não podia razoavelmente ignorar que era suscetível de influenciar a vontade de contratar da seguradora: na verdade, tal anulação basta-se com a censurabilidade do erro causado à contraparte, ainda que proveniente de um comportamento meramente negligente, não sendo pressuposto da anulação do negócio que se trate de erro dolosamente provocado - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-3-2014, Proc. nº 2971/12.TBBRG.G1.S, em www.dgsi.pt.
Embora não releve para a anulabilidade do contrato a prova da má fé, esta já é relevante para a aferição das consequências da anulação. É que, não havendo má fé do segurado, opera de pleno o típico efeito retroativo da anulabilidade do contrato (arts. 285 e 289 nº1 do Código Civil), não tendo o segurador o direito ao prémio que o § único do referido art. 429º ressalva apenas para os casos de má fé do segurado: “Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio”.
Ora não tendo a recorrente logrado provar a má fé ou dolo do autor, não pode proceder o pedido reconvencional deduzido, respeitante à reversão a favor da R. dos prémios de seguro pagos.

Decisão:
Nos termos expostos, decide-se:

1 – Revogar a decisão proferida, na parte em julgou a ação procedente;
2 – Na procedência da exceção arguida pela ré, declarar nulo o contrato de seguro celebrado entre o autor e a ré e absolver a ré do pedido;
3 – Manter no restante a decisão proferida
4 – As custas serão devidas nos seguintes termos:
a) Custas da ação pelo autor e da reconvenção pela ré.
b) Custas do recurso pelo autor e pela ré, na proporção do decaimento.

(Texto escrito e revisto pela relatora, que assina e rubrica as restantes folhas)

Évora, 5-5-2016
Assunção Raimundo
Luís Mata Ribeiro
Sílvio de Sousa