Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
516/14.1TBALR.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não tendo transitado em julgado a versão factual a partir da qual se aferiu da censurabilidade da conduta processual da parte, inexiste enquadramento fáctico em que possa alicerçar-se a condenação a coberto da litigância de má-fé por alteração da verdade dos factos e dedução de pretensão cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 516/14.1TBALR.E1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrentes: (…), (…), (…) e (…)

Por via dos presentes autos, os Recorrentes, na qualidade de Autores, demandaram a Adega Cooperativa da (…), CRL, com vista à condenação desta a pagar-lhes quantias pecuniárias discriminadas relativas à entrega de produções de uva, declarando-se que não devem os valores de encargos com a campanha. A Ré deduziu reconvenção.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando quer a ação quer a reconvenção parcialmente procedentes. Mais aí se decidiu:
«- Condenar (…), (…), (…) e (…) como litigantes de má-fé na multa de 4 UC para cada um e na indemnização a fixar posteriormente a favor de Adega Cooperativa da (…), CRL;
- Declarar a responsabilidade pessoal e direta do Ilustre Mandatário dos AA. na litigância de má-fé destes e ordenar o envio desta sentença, após trânsito, à Ordem dos Advogados para efeitos do disposto no artigo 545.º, parte final, do Código de Processo Civil;»

Notificados do teor de tal decisão, e antes de decorrido o prazo para o trânsito em julgado da mesma, as partes apresentaram-se a juízo a transigir sobre o objeto do processo, declarando os AA desistir dos pedidos formulados, a R desistir dos pedidos reconvencionais bem como dos pedidos de condenação dos AA por litigância de má-fé.

A transação foi homologada por sentença, com exceção da parte atinente à litigância de má-fé, condenando e absolvendo as partes nos precisos termos da transação apresentada, mais declarando o seguinte:
«Mantém-se o dispositivo da sentença constante de folhas 447/77, nos seguintes segmentos:
- Condenar (…), (…), (…) e (…) como litigantes de má-fé na multa de 4 UC para cada um.

- Declarar a responsabilidade pessoal e direta do Ilustre Mandatário dos AA. na litigância de má-fé destes e ordenar o envio desta sentença, após trânsito, à Ordem dos Advogados para efeitos do disposto no artigo 545.º, parte final, do Código de Processo Civil.»

O que se alicerçou nos seguintes fundamentos:
«(…) uma vez lograda a apreciação e análise da causa de pedir e pedidos em sede de decisão final, afora a condenação em indemnização por litigância de má-fé, quanto à qual vigora na sua plenitude o princípio do dispositivo (conferir artigos 3.º e 542.º, n.º 1, ambos o Código de Processo Civil), a condenação em multa de uma parte enquanto litigante de má-fé e a consequente (eventual) responsabilidade do mandatário por tais factos, está suprimida à disponibilidade das partes, porquanto não surge por vontade destas, mas por iniciativa do Tribunal investido do mandato constitucional soberano de administrar a justiça em nome do povo, sendo pois, nesse particular, inócua e inoponível a futura desistência do pedido.»

Inconformados, os AA condenados por litigância de má-fé apresentaram-se a recorrer, pugnando pela declaração de nulidade da sentença recorrida, a substituir por decisão que revogue a condenação em multa e a declaração de responsabilidade do mandatário. Concluem a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1 - Após a homologação da transacção junta aos autos pelas partes apenas subsiste, da sentença ora recorrida, o dispositivo que condenou os AA. em multa como litigantes de má-fé e declarou o seu mandatário pessoalmente responsável por tal litigância de má-fé e determinou a competente comunicação à Ordem dos Advogados. O dispositivo da sentença que conhecia do fundo da causa não chegou a transitar em julgado por homologação da desistência recíproca dos pedidos formulados nos autos por AA. e R.. Embora se aceite que as partes não podiam transigir sobre a matéria da condenação em multa como litigantes de má-fé e da declaração de responsabilidade pessoal do seu mandatário, o facto é que sem conhecimento do fundo da acção, em matéria de facto e de direito, conhecimento esse devidamente transitado, não podem manter-se aquela condenação e declaração (levando-se em conta que o que está em causa na sentença recorrida é decisão sobre má fé substancial-art. 542.º, 2, a) e b), do C.P.C.). Termos em que a sentença recorrida viola aquela disposição do C.P.C.
2 - Sem prejuízo do alegado em 1. supra e para o caso de não se entender como aí alegado, sempre se dirá, sem conceder, que a condenação dos Apelantes em multa como litigantes de má fé constitui, salvo o devido respeito, uma manifesta injustiça e que como tal deverá, caso se entenda que pode subsistir mesmo após a homologação da transacção supra mencionada, ser revogada.
3 - Assim e por mera cautela impugnam os Apelantes a decisão constante da sentença recorrida em matéria de facto.
4 - Desde logo a sentença recorrida ao referir na sua pág. 28 que «foi a Assembleia Geral que aprovou os valores de liquidação para os anos de 2010 e 2011 (pontos 1. e 3. dos factos provados)» está a decidir em oposição com os fundamentos de facto invocados para tal decisão, uma vez que nos pontos 1 e 3 dos factos não provados não consta que tenha havido aprovação, pela referida Assembleia Geral, daqueles valores de liquidação, mas apenas dos Relatórios e Contas referentes aos exercícios de 2011 e 2012 (coisa necessariamente diferente da aprovação dos valores de liquidação referentes às campanhas de 2010 e 2011). Verifica-se pois nulidade da sentença nesta parte, nos termos do art. 615.º, 1, c), do C.P.C., que aqui expressamente se vem arguir como um dos fundamentos do recurso.
5 - Verifica-se ainda que resulta do Doc. 8 junto à contestação apresentada pela R. à acção intentada pela A. (…) e outro, fls. 172v. a 174v.dos autos; do relatório e contas do exercício de 2011 (junto aos autos como Doc. 63 da p.i. da A. … e outro); dos Docs. 1 e 3 juntos à contestação apresentada pela R. à acção intentada pela ora Apelante (…); do Doc. 10 junto à contestação da R. à acção da A. (…), junto a fls. 150v. a 152 do apenso A dos autos e do relatório e contas referente ao exercício de 2012 (Doc. 9 junto à contestação apresentada pela R. à acção intentada pela A. …), bem como dos depoimentos prestados pela A. (…) – (gravado na sessão da audiência final de 21-04-2016 entre as 14h.26m.29 s. e as 16h.06m.08 s., sendo para esta matéria relevante a passagem da gravação que vai dos 34m.49s. aos 36m.56s. do respectivo depoimento), pela A. (…) – (gravado na sessão da audiência final de 21-04-2016 entre as 16h.07m.46s. e as 17h.05m.04 s., sendo para esta matéria relevante a passagem da gravação que vai dos 12m.20s. aos 12m.53s. do respectivo depoimento) e pela testemunha da R. (…) – (gravado na sessão da audiência final de 24-05-2016 entre as 10h.14m.47s. e as 10h.42m.29s., sendo para esta matéria relevante a passagem da gravação que vai dos 18m.52s. aos 27m.38s. do respectivo depoimento), que mesmo interpretando «generosamente» os pontos de facto 1 e 3 dados como provados como significando que a Assembleia Geral da R. aprovou os valores de liquidação para os anos de 2010 e 2011 nunca tais factos poderiam ter sido dados como provados.
6 - Quanto ao ponto 3 dos factos não provados dá-se aqui por integralmente reproduzido o acima alegado quanto aos pontos 1 e 3 dos factos provados (excepto quanto à nulidade da sentença). Os mesmos documentos e depoimentos aí referidos impunham que se tivesse dado como provado que «A Direcção definiu unilateralmente o montante de liquidação pelas uvas entregues pelos associados», contrariamente ao julgado na douta sentença recorrida.
7 - Quanto ao ponto 2 dos factos não provados, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, deverá ser dado como provado ou seja que «A R. sabia que os AA. tinham dificuldades económicas e definiu valores para pagamento da produção de uvas entregues pelos associados que sabia insuficientes para suportar os custos de produção destes». O que se impõe face aos depoimentos prestados em audiência pela (…) – (gravado na sessão da audiência final de 21-04-2016 entre as 14h.26m.29 s. e as 16h.06m.08 s., sendo para esta matéria relevante a passagem da gravação que vai dos 22m.40s. aos 23m.20s. do respectivo depoimento) e pela A. (…) – (gravado na sessão da audiência final de 27-04-2016 entre as 11h.54m.01s. e as 12h.49m.59s., sendo para esta matéria relevante a passagem da gravação que vai dos 3m.38s. aos 08m.00s. do respectivo depoimento). E ainda face aos seguintes documentos juntos aos autos: relatório e contas do exercício de 2011 (junto aos autos como Doc. 63 da p.i. da A. …) e acta n.º 3/2013 da Assembleia Geral da R. de 17/8/2013 (Doc. 10 junto à contestação da R. à acção da A. …, junto a fls. 150v. a 152 do apenso A dos autos).
8 - Alterando-se desta forma o julgamento da matéria de facto manifesto se torna que os Apelantes não alteraram a verdade dos factos nem deduziram pretensão cuja falta de fundamento não desconheciam, pelo que a sentença recorrida violou o disposto no art. 542.º, 2, a) e b), do C.P.C.
9 - Mesmo que não se devesse alterar o julgamento feito pelo Tribunal a quo em matéria de facto, concretamente quanto aos pontos 2 e 3 dos factos não provados e 1e 3 dos factos provados (o que por mera cautela, sem conceder, se admite) não se segue que os Apelantes tenham alterado a verdade dos factos (pelo contrário demonstraram ao longo de toda a pendência do processo, inclusive com os depoimentos prestados em audiência, a sua total transparência e espontânea veracidade!). Assim, mesmo que se entendesse que os Apelantes não tinham logrado provar que «A R. sabia que os AA. tinham dificuldades económicas e definiu valores para pagamento da produção de uvas entregues pelos associados que sabia insuficientes para suportar custos de produção destes» daí não se segue que o contrário tenha ficado provado e que corresponda à verdade dos factos. E mesmo que se entendesse que ficara provado não que a R. definira unilateralmente aqueles valores mas sim que tais valores haviam sido aprovados em Assembleia Geral da R., a verdade é que os Apelantes também aqui não faltaram à verdade uma vez que nas referidas assembleias nunca sentiram que estivessem a participar na definição de tais valores que eram unilateralmente comunicados e não eram objecto de deliberação independente, havia uma simples informação de quais os valores a pagar e sobre quando apresentarem as cadernetas para pagamento. Isto além de que os Apelantes, quanto à matéria das transacções com a R. e ao recebimento dos respectivos preços (concretamente do preço da produção entregue) entendem ser terceiros credores em relação à R.. Nem os Apelantes negam ou alguma vez negaram que tenha sido aprovada em Assembleia Geral a utilização de fundos de reserva para compensar os associados da liquidação de 2011, o que é notório e resulta da matéria de facto provada é que mesmo assim os valores de liquidação e abonos pagos aos Apelantes continuaram a mostrar-se insuficientes para assegurar a respectiva subsistência.
10 - Não é verdade que os Apelantes tenham deduzido pretensão cuja falta de fundamento não desconheciam, mas sim que entenderam legitimamente que a exigência, por parte da R., de «penalizações» correspondentes à exigência dos custos fixos referentes à produção não entregue por eles à R. constituía abuso de direito por corresponder a uma situação de impossibilidade de entrega da produção criada pela R. que pelos valores de liquidação que praticava (tivesse ou não alternativa) bem sabia que estava a impossibilitar a subsistência dos Apelantes e a forçá-los, para sobreviverem, a entregar a sua produção a terceiros.
11 - A simples divergência de entendimento manifestada pelo Tribunal a quo não significa, nem pode nunca significar só por si, que tenha ocorrido litigância de má-fé substancial, sob pena de todos os vencidos em pleitos judiciais estarem sujeitos ao respectivo garrote.
12 - Violou pois a sentença recorrida, também aqui, o disposto no art. 542.º, 2, a) e b), do C.P.C. bem como, quanto ao abuso do direito invocado pelos Apelantes, o disposto no art. 334.º do Código Civil.
13 - Não incorreram assim os Apelantes na má-fé substancial referida na sentença recorrida (pelo contrário estiveram sempre de boa fé nos autos!) e naturalmente o seu mandatário não pode ter responsabilidade pessoal numa má-fé que na verdade nunca ocorreu (tendo a sentença recorrida violado assim os arts. 542.º, 2, a) e b) e 545.º do C.P.C.).
14 - Deverá nestes termos a douta sentença recorrida ser declarada nula ou revogada e substituída por douto acórdão que revogue a condenação dos Apelantes em multa como litigantes de má-fé e a declaração da responsabilidade pessoal e directa do respectivo mandatário e a ordem de envio da sentença recorrida à Ordem dos Advogados, com o que se fará JUSTIÇA!»

Importa, assim, conhecer das seguintes questões, salvo prejudicialidade decorrente do conhecimento precedente:
- da falta de fundamento para a condenação dos Recorrentes por litigância de má-fé, designadamente por não estarem assentes os factos em que se alicerçou;
- da reapreciação da matéria de facto julgada provada.

III – Fundamentos

A – Dados a considerar
Aqueles que constam enunciados supra e bem assim que a condenação dos Recorrentes por litigância de má-fé, ancorou-se no seguinte[1]:
- «os AA. alegaram que a R. definiu valores para pagamento de produção de uva entregue pelos associados que sabia insuficientes para suportar custos de produção destes (que tinham dificuldades económicas) e que a Direcção definiu unilateralmente o montante de liquidação pelas uvas entregues (pontos 2. e 3. dos factos não provados)»;
- contudo, «apurou-se» que o Presidente da Direcção fez um apelo para aos membros para entregaram uvas para poder fazer liquidações melhores (ponto 1. dos factos provados) e a Direcção propôs a utilização de Fundos de Reserva até € 300000,00 para compensar os sócios da liquidação de 2011, sob pena de estes não receberem um valor razoável pelas uvas que permitiram à Adega funcionar, o que foi aprovado em Assembleia Geral por unanimidade (ponto 3. dos factos provados) - e de que vão beneficiar pelas uvas entregues em 2011 -, e que foi a Assembleia Geral que aprovou os valores de liquidação para os anos de 2010 e 2011 (pontos 1. e 3. dos factos provados).»
- «os AA. quiseram persuadir o tribunal de que a Adega, através da sua Direcção, estava contra os interesses dos seus membros, agindo com o propósito de lhes liquidar um valor inferior aos custos em que incorreram, isto é, infligir uma perda patrimonial, o que se demonstrou não corresponder à verdade.»
- «nesta linha de actuação, os AA. ainda vieram invocar um abuso de direito da R. na aplicação de uma comparticipação nos encargos e despesas pela uva que não entregaram (como previsto no artigo 15.º, n.º 4, do Estatutos da R.), quando não podiam ignorar já ter sido alertados para importância de entregar uvas e para a aplicação de um montante de comparticipação e, sobretudo, a vantagem patrimonial em que se encontram face ao membros cumpridores, não só por terem recebido mais que estes pela alienação das uvas, como por não terem suportado nenhuma daquelas despesas que, de acordo com a sua vontade ao aderirem à R., estão obrigados a liquidar, num quadro de efectiva entreajuda e cooperação. Era, pois, manifesto que não se verificava qualquer abuso da R., que exigiu tal comparticipação apenas para preservar o que cabia, em primeira linha, aos próprios AA., enquanto membros da R., assegurar: a equidade e uma real colaboração, para satisfação do interesse de todos.»
- os AA «alteraram a verdade dos factos e deduziram pretensão cuja falta de fundamento não podiam deixar de conhecer, o que apenas pode ser configurado, atento o carácter muito próximo dos AA. da matéria, de dolosa.»

B – O Direito

O tribunal a quo, embora julgando parcialmente procedentes as pretensões dos AA, condenando a R a pagar-lhes quantias pecuniárias peticionadas, considerou que, em face da factualidade apurada, a conduta processual por aqueles desenvolvida estava sujeita a um juízo de censura que implicava na condenação no pagamento de multa e em indemnização à R, que a peticionou, a coberto do instituto da litigância de má-fé.

Nos termos do n.º 1 do art. 542.º do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta pedir. Em face do disposto no n.º 2 do citado preceito, a litigância de má-fé, desde que revestida de dolo ou negligência grave, pode ser considerada sob dois aspetos:
- a má-fé material, que abrange os casos de dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa;
- a má-fé instrumental, relativa à omissão grave do dever de cooperação, ao uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, para entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Como ensina António Santos Abrantes Geraldes[2], as partes devem estar cientes de que, no âmbito da resolução de conflitos de direito privado, devem pautar-se pelas regras da cooperação intersubjetiva, pela lealdade e pela boa-fé processual. A lei, porém, não pede a nenhuma das partes que se entregue, sem luta. Por isso, a todas é garantida a possibilidade de fazerem vingar as respetivas posições, desde que estejam convencidas da sua legitimidade, mesmo que assentem em normas jurídicas objetivamente injustas, ou desde que não sejam excedidos certos limites para além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais. Comportamentos dolosos ou gravemente culposos, materializados na dedução de pretensões ou de oposições manifestamente infundadas, assentes na alteração censurável da verdade dos factos, corporizados na grave violação do dever de cooperação ou, por fim, exteriorizados através do uso ilegítimo de instrumentos do direito adjetivo, com vista à obtenção de objetivos ilegais, à ocultação da verdade ou ao entorpecimento ou retardamento da atividade dos tribunais, são considerados ilícitos e, por isso, merecedores de sanções de natureza cível, independentemente do resultado final da ação ou da execução.

No caso sub judice, a condenação por litigância de má-fé contende com a vertente material do instituto. Como se alcança da sentença para a qual a decisão recorrida remete, a litigância de má-fé foi decretada com fundamento na alteração da verdade dos factos e na dedução de pretensão cuja falta de fundamento os AA não podiam deixar de conhecer.

Constata-se, porém, que a versão factual julgada provada na ação, por referência à qual o tribunal a quo considerou que a verdade dos factos foi alterada e a pretensão deduzida destituída de fundamento (se bem que tenha obtido procedência parcial) não alcançou o trânsito em julgado. A ação veio a ser julgada extinta por transação que, nos termos do disposto no art. 1248.º n.º 1 do CC, constitui o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões. Como resulta do disposto no art. 277.º do CPC, a transação constitui uma causa de extinção da instância distinta do julgamento (cfr. als. a) e d) do citado normativo).

Ora, «a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável. A imodificabilidade da decisão constitui assim a pedra de toque do caso julgado. A sentença converte-se em caso julgado quando os tribunais já a não podem modificar. Para que tal conversão se opere, é necessário que a decisão transite em julgado. E a decisão transita ou passa em julgado, (…), logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (…) ou para reforma quanto a custas e multa.»[3] Proferida que seja a sentença, a sua validade e autoridade apenas resulta afirmada caso venha a transitar em julgado. Só alcançado que seja tal patamar é que a definição dada à relação controvertida se impõe a todos, todos tendo que a acatar, impondo-se mesmo a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, com vista não só à realização do direito objetivo ou à atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes, mas também à paz social.[4]

Se a versão factual apurada na ação não transitou em julgado também não alcançou existência jurídica. Inexiste versão factual vencedora tal como inexiste versão factual vencida. Inexiste enquadramento fáctico a partir do qual se possa aferir se a conduta processual desenvolvida pelos AA Recorrentes é censurável por terem alterado a verdade dos factos e deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podiam deixar de conhecer.

Por conseguinte, cabe concluir que neste caso[5] é totalmente desprovida de fundamento a condenação dos Recorrentes por litigância de má-fé.

O que implica na procedência das conclusões dos Recorrentes.

Concluindo: não tendo transitado em julgado a versão factual a partir da qual se aferiu da censurabilidade da conduta processual da parte, inexiste enquadramento fáctico em que possa alicerçar-se a condenação a coberto da litigância de má-fé por alteração da verdade dos factos e dedução de pretensão cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, absolvendo-se os Recorrentes da condenação por litigância de má-fé.

Sem custas.

*

Évora, 25 de Maio de 2017

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura
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[1] Cfr. fls. 474 a 477, para que remete a decisão recorrida de fls. 484.
[2] E seguindo de perto o que deixa exposto in Temas Judiciários, I vol., p. 303 e ss.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 702.
[4] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1993, p. 305 e 306.
[5] Está em causa a vertente material do instituto da litigância de má-fé. Caso se tratasse da má-fé instrumental, teria aplicação a jurisprudência emanada do STJ, designadamente dos Acs. de 20/03/2014 (Salazar Casanova), 29/10/1998 ( Miranda Gusmão), 26/09/2013 (Abrantes Geraldes) e 24/10/2013 (Tavares de Paiva).