Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
68/19.4YREVR.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA
UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 05/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1- Se em “processo de transmissão de sentença e da certidão” (a que é aplicável a Lei nº 158/2015) proveniente de tribunal de país membro da União Europeia é imposta uma pena inicial de 10 anos de prisão depois desdobrados numa pena compósita que inclui a prisão (9 anos) e a liberdade condicional (1 ano) suscita-se a questão de saber se a aplicação da lei portuguesa pode contabilizar a pena pelo referente inicial dos 10 anos de prisão já que, face aos nsº 1 e 2 do artigo 15º da Lei nº 158/2015, este Tribunal da Relação tem “competência exclusiva para, sob reserva do disposto nos n.sº 4 e 5, tomar as decisões necessárias para efeitos de execução da condenação, nomeadamente no que se refere às condições aplicáveis à libertação antecipada ou à liberdade condicional”.

2 - Considerando, no entanto, que a entidade emissora informa que o meio da pena ocorre quando se perfazem os quatro anos e meio de prisão, a natureza de pena compósita com a previsão de um período de prisão e definição antecipada de prazo de liberdade condicional, deve ser interpretada no sentido de não agravar a pena imposta no estado de emissão – artigo 16º, nsº 4 e 5 da Lei nº 158/2015 e artigo 17º, nº 4 da Decisão Quadro 2008/909/JAI – o que implica que a contabilização dos prazos previstos nos artigos 61º e 62º do Código Penal em função de uma pena de prisão de 9 anos. (sumário do relator)

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

A - Relatório

O Digno Procurador-Geral Adjunto veio, ao abrigo do disposto no artigo 4º da Decisão-2008/909/JAI do Conselho de 27-11-2008 – Decisão-Quadro relativa à Transferência de Detidos, solicitar que “seja reconhecida” a sentença condenatória do cidadão português J…, lavrada no processo nº T20187072 do Snaresbrook Crown Court requerer que seja a mesma reconhecida e, em consequência:

a) – se informe a autoridade competente do Estado de emissão da decisão definitiva de reconhecer a sentença - al.e) do artigo 43°;

b) - se remeta o presente processo ao Tribunal competente para a execução (n. 2 do Art. 13° e 14° que, no caso, será a secção criminal da instância local de Faro – comarca de Faro), para cumprimento do disposto no artigo 477° do Código de Processo Penal, designadamente, calculando as datas relevantes para a liberdade condicional, de acordo com a lei nacional (n. l do artigo 15° da lei 158/2015 de 17/09), onde se deverá providenciar pela transferência do condenado para Portugal na data acordada entre as autoridades competentes de ambos os Estados e até 30 dias após a decisão – (artigos 14° e 23° da mesma Lei).


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Foi junta certidão da sentença do processo identificado com indicação do trânsito em julgado e informação sobre a liquidação da pena e respectivas traduções, assim como declaração subscrita pelo arguido de onde se extrai o desejo de ser transferido para efeitos de cumprir o remanescente da condenação em pena privativa da liberdade que lhe foi imposta.

Este tribunal é competente vista a residência do condenado em Portugal e inexistem causas de inexecução da sentença- artigo 17º da mesma Lei.

A pena imposta é compósita, diferenciada de 10 (dez) anos de prisão, sendo 9 (nove) anos de prisão e com um termo alargado de condicional de 1 (um) ano.

A entidade emissora informa que o meio da pena ocorre a 15-10-2022- pag. 31v.

E solicita informe sobre liberdade condicional - pag. 31v – que foi enviado.

Foram dispensados os vistos.


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B - Fundamentação

B.1 - Ressalta dos autos que:

1) Por sentença proferida no âmbito do supra identificado processo do Snaresbrook Crown Court o arguido J…, nascido em 10/02/1995, de nacionalidade portuguesa, com o cartão de cidadão nº … e com residência conhecida em …, Faro, Portugal, foi condenado pela prática, como autor, de um crime de violação de criança de idade inferior a 13 anos, previsto e punido pela secção 5 (l) da Lei britância de crimes sexuais de 2003, na pena diferenciada de 10 (dez) anos de prisão, sendo 9 (nove) anos de prisão e com um termo alargado de condicional de 1 (um) ano.

2) O condenado ficou sujeito a uma medida de expulsão (deportação), ficando proibido de entrar no Reino Unido, por decisão do Secretário de Estado junto ao Ministério da Administração interna, datada de 30/10/2018 e ao abrigo da Lei de imigração de 1971 e 1988 e Regulamento em matéria de imigração de 2016 da União Europeia.

3) A condenação diz respeito aos seguintes factos: entre 17/11/2016 e 04/09/2017, o condenado, pelo menos em duas ocasiões, penetrou intencionalmente com o seu pénis o ânus de Melanie da Costa, uma criança com idade inferior a 13 anos.

4) O condenado está privado de liberdade desde 20/09/2017, data em que ficou em prisão preventiva até 5/04/2018, e desde esta data para cá em cumprimento da pena sofrida que terminará em 19/09/2026.

5) Segundo a lei britânica, a pessoa condenada tem direito à liberdade antecipada ou condicional, após cumprir metade da condenação (05/10/2022).

6) O condenado, em 20 de julho de 2018, por declaração dirigida aos serviços prisionais britânicos, manifestou o seu desejo, constante da referida documentação, expressando, clara e inequivocamente, a livre vontade de ser transferido para Portugal, para aqui cumprir o resto da sua pena privativa de liberdade.

7) A autoridade Central do Ministério da Justiça britânico, reconheceu válida e ordenou a transmissão da decisão para prosseguir em Portugal o cumprimento do remanescente da citada pena.

8) É em Portugal, de onde é nacional, onde se encontra o seu núcleo familiar próximo, e aqui tem ligações pessoais, familiares que podem facilitar a sua reinserção social.


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Cumpre conhecer

B.2 - Como consabido, o reconhecimento dos efeitos internacionais das sentenças estrangeiras em Portugal não se processa automaticamente. Elas só ganham eficácia internamente através da revisão e confirmação, que a nossa lei processual regula nos art. 234 a 240 do CPP – cf. também o art. 100 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – LCJIMP).

Sendo concedida a revisão, a sentença revidenda ingressa por essa via no sistema jurisdicional português que a acolheu. A revisão e confirmação de sentença estrangeira constitui pressuposto da transferência para cumprimento da pena em Portugal, de cidadão português condenado em país estrangeiro (cf. art. 123 n.º 2 da referida LCJIMP).

Acontece, no entanto, que não estamos perante uma sentença estrangeira, sim perante uma sentença proveniente de um país membro da União Europeia. Em termos simples, em se tratando de sentença proveniente de autoridade judiciária da União Europeia e vista a existência do princípio de reconhecimento mútuo das sentenças comunitárias, a desnecessidade de “revisão de sentença estrangeira” é evidente.

Como se sabe, o princípio do reconhecimento mútuo - que assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados-Membros da União Europeia - significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua própria lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro.

Tal princípio induz à existência de instrumentos específicos totalmente juridicizados e judicializados. “Juridicizado porque não há qualquer juízo de oportunidade política na decisão. Judicializado porque a cooperação se faz directamente entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, sem qualquer intervenção do poder executivo” (Ac. do STJ de 23-11-2006, Cons. Maia Costa).

O que não impede que se constate face à Decisão-Quadro nº 2008/909/JAI do Conselho de 27-11-2008, Decisão-Quadro relativa à Transferência de Detidos e à vigência da Lei nº 158/2015, de 17-09, que não obstante se continue a usar a terminologia anterior - o termo “reconhecimento” – agora com diverso sentido, o de aceitabilidade dos requisitos de forma da própria decisão a executar e se proceda então à sua confirmação e revisão dos efeitos penais da sentença lavrada no processo nº T20187072 do Snaresbrook Crown Court.

Conforme resulta da letra da Decisão-Quadro nº 2008/909/JAI, de 27-11-2008, designadamente do seu artigo 4º, nº 5, nela apenas se fala em “processo de transmissão de sentença e da certidão” (certidão tipo contendo os dados já constantes do processo na documentação enviada), não exigindo um qualquer e específico procedimento para aquilatar da validade jurídica da sentença na ordem jurídica nacional.

Isto implica, naturalmente, que não há que rever a sentença do estado de emissão, mas constatar que a sentença está por natureza automaticamente reconhecida porquanto cumpridos os critérios de forma - e junta a necessária documentação de apoio - e é exequível, restando apurar da adequação à ordem jurídica portuguesa dos seus efeitos penais.


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B.3 - A pretensão do Ministério Público requerente concretiza-se na transferência de cidadão português condenado em pena de prisão por sentença, transitada, de tribunal do Reino Unido.

A sentença foi transmitida após requerimento/consentimento do condenado – artigo 10º, nsº 1 e 5, al. a) da Lei nº 158/2015.

O crime imputado é o de violação, cabendo na previsão da Decisão-Quadro nº 2008/909/JAI, de 27-11-2008, designadamente do seu artigo 7º, travessão nº 26.

Inexiste, portanto, necessidade de controlo da dupla incriminação. No entanto ela existe já que corresponde ao artigo 3º, nº 1, al. bb) da Lei nº 158/2015, de 17-09.

Apenas se suscita um problema quanto à concreta conformação do regime da liberdade condicional.


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B.4 – Quanto à pena aplicada, considerando que os factos cometidos integram crime punido na ordem jurídica nacional, a espécie imposta (prisão) é também admitida pela lei portuguesa e não se vê que segundo esta, tenha ocorrido qualquer causa de extinção do procedimento criminal ou da pena imposta pelos factos cometidos pelo arguido e integrantes do crime de violação.

A pena compósita apenas pode suscitar dúvida relativamente ao regime de liberdade condicional, já que o seu referente inicial são os 10 anos de prisão depois desdobrados numa pena compósita que inclui a prisão (9 anos) e a liberdade condicional.

Informa a entidade emissora que se atinge metade da pena em 05-10-2022 tendo presente que o requerido esteve em “remand” entre 20/09/2017 (198 dias) e em “custódia” entre 06/04/2018 e 21/03/2019 (349 dias).

O que desde logo nos indica que a contagem do meio da pena foi efectuada pelo referente dos 9 (nove) anos de prisão da pena compósita (e não aos 10 anos de prisão, como ocorreria em Portugal).

Daqui se pode inferir a provável automaticidade da fixação prévia de 1 (um) ano de liberdade condicional já constante da pena compósita imposta, matéria de diversa configuração na ordem interna portuguesa que não aceita a fixação prévia, à data da sentença condenatória, da liberdade condicional e do seu prazo.

Tal estado de coisas apenas representava um aparente problema na medida em que, sendo um regime diferente do regime de liberdade condicional português, implicava a sua compreensão prévia.

Face aos nsº 1 e 2 do artigo 15º da Lei nº 158/2015 a execução da condenação rege-se pela lei portuguesa, tendo este Tribunal da Relação “competência exclusiva para, sob reserva do disposto nos n.sº 4 e 5, tomar as decisões necessárias para efeitos de execução da condenação, nomeadamente no que se refere às condições aplicáveis à libertação antecipada ou à liberdade condicional”.

Assim, na aplicação do regime de execução da pena - e concretamente no que à contagem da pena de prisão diz respeito para efeito de aplicação do regime de liberdade condicional - os 9 (nove) anos de prisão são a referência obrigatória para a determinação do meio da pena e, em geral, a aplicação do regime constante dos artigos 61º e 62º do Código Penal.

Aqui a natureza de pena compósita com a previsão de um período de prisão e definição antecipada de prazo de liberdade condicional, deve ser interpretada no sentido de não agravar a pena imposta no estado de emissão – artigo 16º, nsº 4 e 5 da Lei nº 158/2015 e artigo 17º, nº 4 da Decisão Quadro 2008/909/JAI – o que ocorreria se contabilizássemos os prazos previstos nos artigos 61º e 62º do Código Penal em função de uma pena de prisão de 10 anos.

Em função do que vai dito é de deferir a confirmação da sentença proferida no processo nº T20187072 pelo Snaresbrook Crown Court e os efeitos penais dessa mesma sentença, com a indicada ligeira adaptação.


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C - Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem a Secção Criminal desta Relação:

a) - Em declarar procedente o pedido de transmissão da sentença e revistos os efeitos penais da sentença proferida no âmbito do processo nº T20187072 pelo Snaresbrook Crown Court;

b) – Em declarar que tal sentença transitou em julgado em 15 de Março de 2018 e condenou José Carlos Ramos Rocha na pena compósita de 9 anos de prisão e um ano de liberdade condicional;

d) - Tal reconhecimento de efeitos penais visa a continuação, em Portugal, da sua execução e inerente transferência do condenado;

e) - O arguido esteve já em prisão:

- de 20-09-2017 até 05-04-2018 = 198 (cento e noventa e oito) dias de “Remand”;

- de 06-04-2018 até 21-03-2019 = 349 (trezentos e quarenta e nove) dias em “Custody”;

f) – O meio da pena ocorrerá a 05-10-2022 e o seu termo, contabilizando apenas a pena de prisão imposta, a 05-04-2027;

g) - Oportunamente remeta os autos ao Tribunal de Faro que é o territorialmente competente para a execução, sem prejuízo das competências específicas do respectivo TEP.


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DN. Notifique, incluindo a entidade emissora nos termos das alíneas a), c), e) e g) do artigo 21º da Lei 158/2015 e artigo 21º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI.

Para tanto traduza a parte decisória do acórdão e opere a notificação da entidade emissora e do requerido.

Comunique, de imediato e por mail, ao Tribunal de Faro, instância criminal.

Sem tributação.

(Processado em computador e revisto pelo relator).

Évora, 07/05/2019

João Gomes de Sousa (relator)

António Condesso

Ana Bacelar